Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1381/22.0GLSNT.L1-9
Relator: AMÉLIA CAROLINA TEIXEIRA
Descritores: ESTUPEFACIENTE PARA CONSUMO EXCLUSIVO
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
CRIME DE CONSUMO
DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
DA EXECUÇÃO DA PENA EM REGIME DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
A APLICAÇÃO DA LEI DO PERDÃO DE PENAS E AMNISTIA DE INFRAÇÕES - LEI Nº 38-A/2023 DE 02 DE AGOSTO - É DA COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL A QUO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/11/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I–A mera detenção pelo arguido de 5.086 gramas (peso líquido) de cannabis (resina), que excede a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de dez dias, desligada de meios de prova complementares e corroborantes – mais ainda se nem sequer se apurou que o arguido fosse consumidor de haxixe -, é insuficiente para considerar demonstrado que aquele destinava aquele produto estupefaciente ao seu consumo exclusivo.

II–O tipo de ilícito objectivo do crime de tráfico de estupefacientes preenche-se com a mera detenção dos produtos estupefacientes, desde que não se comprove que se destinam ao exclusivo consumo pessoal, não sendo, pois, necessário que a detenção do produto estupefaciente se destine à posterior venda ou cedência a terceiros.

III–A simples circunstância de o arguido deter a referida substância estupefaciente, sem que tivesse ficado demonstrado que por ele era destinada ao seu exclusivo consumo, basta para preencher o tipo objectivo do crime de tráfico de estupefacientes.

IV–A reiteração do mesmo comportamento delituoso decorrido pouco tempo depois desde a última condenação por crime de idêntica natureza, denota desrespeito pela advertência contida na condenação de que fora alvo, desconsideração e desinteresse pela pena de prisão que cumpriu, e revela acentuadas exigências de socialização.

V–Por conseguinte, mostra-se insustentável a formulação de um juízo de prognose favorável quanto ao comportamento futuro do arguido, além do que a suspensão da execução da pena se revela insuficiente para satisfazer as exigências de prevenção geral.

(Sumário da responsabilidade da relatora)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordaram, em conferência, os Juízes Desembargadores da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:


I.–RELATÓRIO


1.–Por sentença proferida em ........2023, além de outro, foi o arguido AA absolvido da prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, alínea a), e 132.º, n.º 1, alínea l), do Código Penal, e condenado:
na pena de 60 (sessenta) dias de prisão, pela prática como autor material de um crime de injuria agravada, p. e p. pelos art.ºs 181.º, n.º 1, 184.º, por referência ao art.º 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea l), todos do Código Penal;
na pena de 60 (sessenta) dias de prisão, pela prática como autor material de um crime de injuria agravada, p. e p. pelos art.ºs 181.º, n.º 1, 184.º, por referência ao art.º 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea l), todos do Código Penal;
na pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão, pela prática, como autor material, de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, por referência ao disposto no artigo 21.º, n.º 1 do mesmo diploma, à Tabela I-C anexa ao mesmo,
na pena única de 2 (dois) anos de prisão.
*

2.–Inconformado com o decidido, o arguido interpôs o presente recurso, rematando a motivação com as seguintes conclusões:
1.-Foi o arguido condenado pela prática dois crimes de injúria agravada, p. e p. pelos art.ºs 181.º, n.º 1, 184.º, por referência ao art.º 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea l) todos do Código Penal, e um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25.º, alínea a), do Decreto Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à Tabela I-C anexa ao mesmo, na pena única (em cúmulo jurídico) de 2 (dois) anos de prisão efetiva.
2.-O Tribunal de 1ª Instância fundamentou-se no depoimento das duas testemunhas, militares da GNR, na prova documental inerente à apreensão de haxixe e no seu registo criminal.
3.-Entende que existe erro na qualificação jurídica relativamente ao crime de tráfico de menor gravidade bem como no juízo de prognose elaborado pelo tribunal recorrido na determinação da medida da pena.
4.-O arguido vem recorrer da douta sentença, no que toca à determinação da medida da pena dizendo, ainda, que a respetiva pena deveria ser suspensa ou, caso assim não se entenda, ser cumprida em OPHVE.
5.-Razão pela qual, se entende que o douto Tribunal “a Quo” não andou bem ao aplicar uma pena de prisão efetiva, devendo a mesma ser suspensa na sua execução ou, no limite, cumprida em regime de OPHVE.
6.-Mais pretende o arguido recorrido ver ser-lhe aplicado o perdão da pena de um ano no âmbito da entrada em vigor da Lei n.º 38-A/2023 de 2 de Agosto, que estabelece o regime de perdão de penas e amnistia de infrações.
7.-Entendeu o tribunal recorrido dar como provado que o arguido recorrente praticou um crime de tráfico de menor gravidade na sequência de apreensão de cerca 0,5 g de haxixe resina.
8.-Fundamentou para isso que “(…)tanto mais que não ficou provado que o material detido era para exclusivo consumo dos arguidos. Ao invés, tendo aqueles sido surpreendidos à entrada de um espaço de diversão nocturna, o que resulta fortemente indiciado (e provado) é que tal material teria como destino a ulterior cedência/venda a terceiros. (…)”
9.-O que não se pode aceitar simplesmente pelo facto de o arguido se encontrar na porta de um estabelecimento noturno.
10.-Até porque, e fazendo o mesmo raciocínio lógico, o arguido tinha a droga consigo para, também ele, consumir, já que se encontrava na entrada de um estabelecimento de diversão noturna.
11.-O raciocínio lógico é precisamente o mesmo!
12.-A forma como se encontrava o produto não era a própria ou esperada, segundo as regras da experiência, para proceder a uma venda imediata e isso é visível da fotografia constante dos autos a fls. 13.
13.-O arguido detinha o haxixe em vários pedaços soltos, alguns desfeitos, provavelmente por estarem no bolso das calças.
14.-Nos termos do art. 9.º e mapa correspondente da Portaria n.º 94/96, de 26 de Março, o limite máximo diário de haxixe resina para consumo individual é de 0,5 gramas.
15.-Após perícia ao produto estupefaciente foi determinada uma THC de 19.3, ou seja, o produto tinha uma taxa de pureza muito baixa.
16.-O arguido recorrente incorreu na prática de uma contraordenação nos termos do disposto no artigo 2.º da Lei n.º 30/2000 de 29 de Novembro – Regime Jurídico do Consumo de Estupefacientes.
17.-A conduta do arguido não tem natureza penal mas sim contraordenacional.
18.-Ainda assim, e por cautela de patrocínio, sempre se dirá que caso V. Exas. entendam que está ultrapassado o consumo para 10 dias, então o arguido apenas poderá ser condenado por um crime de consumo p. e p. pelo art. 40.º do Decreto Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à Tabela I-C.
19.-Vem dado como provado, nos factos 13, 14 e 15 que o arguido recorrente não compareceu no julgamento, bem como nos serviços da DGRSP, ainda que devidamente notificado.
20.-Foram cumpridas todas as exigências legais relativamente às notificações, razão pela qual o arguido não invoca a sua nulidade.
21.-Bem como foi validada a constituição de arguido com a recusa de assinatura pelo arguido.
22.-No entanto, e no que à DGRSP toca, é fundamental referir que o arguido não compareceu junto da mesma para elaboração de relatório social por sua livre vontade.
23.-Consta da informação DGRSP remetida ao tribunal recorrido com a ref.ª citius 22948301 de 13.03.2023 que “No âmbito do solicitado, informa-se que após envio de convocatória para o arguido comparecer nos serviços no dia 10-03-2023, veio a mesma a ser devolvida pelos CTT com indicação de “endereço insuficiente” pelo que nos vemos impossibilitados, por ora, de dar seguimento à elaboração do relatório social.”
24.-Significa isto que, o arguido nem sequer tinha conhecimento que iria ser elaborado relatório social sobre as suas condições pessoais e por isso seria impossível o arguido ter comparecido junto da DGRSP.
25.-O tribunal recorrido ser insensível a esta questão e ter tomado por certo que o arguido não tinha qualquer interesse neste processo e que não quis, deliberadamente, que fosse realizado relatório social sobre si.
26.-Dizer-se que o arguido não compareceu porque não quis é diferente de não ter comparecido por desconhecimento, ainda que não possa arguir a nulidade das notificações.
27.-Na determinação da medida da pena deve atender-se, para além da culpa do agente, as necessidades de prevenção, nos termos do disposto no artigo 71° do Código Penal.
28.-A prevenção está intrinsecamente ligada à necessidade comunitária de punição do caso concreto, pelo que a pena deverá ser sempre aplicada na medida exacta da sua necessidade e proporcional aos factos cometidos.
29.-A pena de prisão efetiva aplicada, in casu, é excessiva na medida em que será cumprida em meio prisional.
30.-O Tribunal recorrido tomou como prioritária a função retributiva da pena, olvidando a função ressocializadora da mesma que tenderia a considerar que as finalidades da punição deverão ser executadas com o sentido pedagógico e ressocializador.
31.-A doutrina tem entendido que a legitimidade das penas criminais deve depender da sua necessidade, adequação e proporcionalidade, em sentido estrito, para a proteção de bens ou interesses constitucionalmente tutelados, salientando que o espaço prisional é estigmatizante, estimulando a criminalidade.
32.-No caso em apreço o cumprimento da pena de 2 anos em meio prisional terá consequências devastadoras na vida do recorrente, impossibilitando desta forma o cumprimento das finalidades da prevenção especial.
33.-A pena aplicada ao arguido não deverá ser cumprida no meio prisional, entendendo-se que a suspensão na sua execução ou, no limite, cumprida em regime de Obrigação de Permanência na Habitação com recurso a Vigilância Eletrónica, assegura igualmente de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, tanto da perspectiva da prevenção geral como da prevenção especial.
34.-O artigo 50.º do Código Penal faz menção aos requisitos necessários para a aplicação da suspensão, referindo que a mesma pode ser subordinada a regras de conduta ou determinado regime de prova.
35.-O arguido recorrente entendeu que existiu um erro na qualificação jurídica relativamente ao crime de tráfico de menor gravidade pelo qual foi condenado.
36.-Em suma, entende-se que a detenção daquela quantidade de produto não consubstancia um crime mas sim uma contraordenação.
37.-Sendo certo que, em caso de entendimento da prática de um crime, o mesmo deverá ser qualificado como crime de consumo, baixando substancialmente a pena aplicada individualmente e consequentemente na pena única.
38.-Ainda assim, e independentemente da posição que V. Exas. tomarem relativamente à qualificação jurídica, facto é que a pena única pelo qual foi condenado é de dois anos.
39.-No caso em concreto os pressupostos para aplicação de pena de prisão suspensa na sua execução estão verificados, devendo prevalecer o regime mais favorável ao arguido nos termos do disposto no art. 2.º, n.º 4, do Código Penal.
40.-Veja-se o sumário do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra – Processo n.º 1162/16.0PCCBR.C1 – Relator ORLANDO GONÇALVES – de 23-05-2018 (unanimidade): “I- Pressuposto formal de aplicação da suspensão da execução da prisão é apenas que a medida concreta da pena aplicada ao arguido não seja superior a 5 anos.
II-Pressuposto material da suspensão da execução da pena de prisão é que o tribunal conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido, ou seja, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
III-A prognose exige a valoração conjunta de todas as circunstâncias que tornam possível uma conclusão sobre a conduta futura do arguido, pois a finalidade político-criminal visada com o instituto da suspensão da pena é o afastamento da prática pelo arguido, no futuro, de novos crimes.
IV-A proteção, o mais eficaz possível, dos bens jurídicos fundamentais, implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, positiva ou de integração, servindo para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal.
V-A reintegração do agente na sociedade está ligada à prevenção especial ou individual, isto é, à ideia de que a pena é um instrumento de atuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que no futuro, ele cometa novos crimes, que reincida.
VI-A suspensão da execução da pena é um poder vinculado do julgador, que terá de a decretar sempre que se verifiquem os respetivos pressupostos.”
41.–Ainda com o mesmo entendimento pronunciou-se o Tribunal da Relação do Porto – Processo n.º 129/14.8GAVLC.P1 – Relatora MARIA DOLORES DA SILVA E SOUSA – de 01-07-2015 (unanimidade):I– A imposição de deveres e regras de conduta, condicionantes da pena suspensa, constitui um poder/ dever, sendo quanto aos deveres condicionado pelas exigências de reparação do mal do crime e quanto às regras de conduta vinculado à necessidade de afastar o arguido da prática de futuros crimes.
II–A exigibilidade de tais deveres e regras deve ser apreciada tendo em conta a sua adequação e proporcionalidade em relação com o fim preventivo visado.
III–A regra de conduta consistente no não cometimento de quaisquer infracções rodoviárias, nomeadamente, de caracter contraordenacional, pela sua extensão e implicação no direito de deambulação do arguido, é utópica, desproporcionada e desadequada face aos fins preventivos de reintegração do agente e sua socialização e de protecção dos bens jurídicos que implica o afastamento do arguido da prática de crimes.”
42.–Quanto à prevenção especial entendeu Figueiredo Dias, in As Consequências Jurídicas do Crime, P.332, que, “…Prevalência decidida não pode deixar de ser atribuída a considerações de prevenção especial de socialização, por serem sobretudo elas que justificam, em perspetiva politico-criminal, todo o movimento de luta contra a pena de prisão. E prevalência, anote-se, a dois níveis diferentes:
Em primeiro lugar, o tribunal só deve negar a aplicação de uma pena alternativa ou de uma pena de substituição quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquelas penas;”
43.–É esta oportunidade que aqui se pede a este Tribunal da Relação para que suspendendo a pena, possa o recorrente ser sujeito a um regime de prova se necessário.
44.–É facto que o arguido possui registo criminal mas apenas deverá ser tido em conta a sua última condenação em virtude da natureza do crime ser semelhante.
45.–O facto de ter sido condenado a uma pena de prisão efetiva por crimes de roubo cometidos há dez anos atrás, em ..., não deverá ter relevância na decisão da aplicação da medida da pena.
46.–O crime constante de CRC (cometido em ...) de crime de infrações relacionadas com o tráfico de estupefacientes, de substâncias psicotrópicas e de percursores não destinados exclusivamente ao consumo pessoal, em francês detention non autorisee de stupefiants, não pode ser entendido e traduzido à letra como crime de tráfico de estupefacientes tal como é considerado na lei penal portuguesa.
47.–A condenação de 4 meses de prisão demonstra uma ilicitude acentuadamente diminuída que se entende ser incompatível com a conceção de tráfico de estupefacientes na lei penal portuguesa.
48.–Não colhe a fundamentação de que o arguido deve cumprir pena de prisão efetiva em detrimento de uma pena suspensa, em primeira linha, e em OPHVE em última análise.
49.–Ainda que V. Exas. entendam não ser de aplicar a pena suspensa na sua execução, a aplicação de Obrigação de Permanência na Habitação sujeito a Vigilância Eletrónica (OPHVE) deverá ter sempre prevalência sobre o cumprimento da pena em meio prisional tendo em conta a inserção do recorrente no seio familiar, social e laboral.
50.–O recorrente presta o seu consentimento para a OPHVE.
51.–Relativamente à OPHVE veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa – Processo n.º 310/15.2SILSB-5 - Relator JOÃO CARROLA – de 29-01-2019 (unanimidade): “(…) Com o regime de permanência na habitação pretende evitar-se, o mais possível, os efeitos criminógenos da privação total da liberdade, evitando ou, pelo menos, atenuando os efeitos perniciosos de uma curta detenção de cumprimento continuado.
Se à data da prolação da decisão recorrida se encontrava já em vigor o novo regime de permanência na habitação, atualmente previsto no artigo 43º do Código Penal, deveria a 1ª instância (…) equacionar a aplicação do regime de permanência na habitação, designadamente ponderando a “adequação e suficiência” desta forma de execução ou de cumprimento da pena, de 1 ano e 8 meses de prisão a cumprir pelo condenado, eventualmente subordinada ao cumprimento de regras de conduta previstas no nº 4 do citado artigo 43º, bem como, se necessário, da viabilidade de instalação de meios técnicos de controlo à distância, já que se verifica o consentimento do próprio condenado.”
52.–Veja-se também o sumário do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães –Processo n.º 17/16.3PFGMR.G1 – Relatora TERESA COIMBRA – de 05-11-2018 (unanimidade), que tem o mesmo entendimento:1.- Para que o tribunal conclua pela possibilidade de cumprimento de pena de prisão não superior a dois anos, em regime de permanência na habitação, nos termos do art 43 do Código Penal na redação da Lei 94/2017 de 23.08, é necessário, além do mais, poder afirmar que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades visadas com a execução da pena ( art. 42º do Código Penal).
2.- Se apesar dos antecedentes criminais que possui, um arguido demonstra capacidade de trabalho, tem estabilidade familiar e cumpre, com avaliação positiva por parte da DGRSP, pena de prisão em regime de permanência na habitação, não deverá ser reintroduzido em ambiente prisional para cumprimento de pena de 1 ano e 11 meses de prisão imposta pela prática de crimes de condução sem carta e em estado de embriaguez, por tal constituir um retrocesso no esforço de reintegração social do condenado.”
53.–Pretende, ainda o arguido ver ser-lhe aplicado o perdão de 1 ano na pena única que vier a ser determinada ou confirmada por V. Exas.
54.–Pese embora, não seja esta matéria da decisão pela qual se recorre, até porque a entrada em vigor é posterior à prolação de sentença, entendemos que por mera cautela de patrocínio, deve ser incluída no presente recurso.
55.–Até ao término do prazo para submissão do presente recurso não existe qualquer despacho ou promoção relativamente à eventual aplicação da lei do perdão das penas.
56.–No âmbito da entrada em vigor da Lei n.º 38-A/2023 de 2 de Agosto, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos que tenham sido praticadas até dia 19.06.2023 por pessoas entre os 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto.
57.–Quanto aos dois crimes de injúria agravada, dos quais o arguido não recorre, não podem estes ser objecto de perdão por terem sido cometidos contra membro das forças policiais e de segurança, no exercício das respetivas funções – n.º 2 do art. 7.º da mencionada lei.
58.–Já quanto ao crime de tráfico de menor gravidade p. e. p. pelo art. 25.º caso V.Exas. mantenham a decisão do tribunal recorrido ou no caso de alterarem a qualificação jurídica e for qualificado como crime de consumo p.e.p. pelo art. 40.º, ambos do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, sempre se dirá o seguinte:
59.–Nenhum dos mencionados crimes (tráfico de menor gravidade e de consumo) se encontra elencado no art. 7.º da Lei n.º 38-A/2023 de 2 de Agosto, relativamente às exceções de aplicação do dispositivo legal, bem como em ........2023, data da prática dos factos, o arguido tinha 27 anos.
60.–Assim, caso se entenda que estamos perante um crime de consumo ou um crime de tráfico de menor gravidade, em detrimento da aplicação de contraordenação nos termos do disposto no artigo 2.º da Lei n.º 30/2000 de 29 de Novembro, deverá ao arguido ser aplicado o perdão de um ano na pena única nos termos dos arts. 2.º, n.º 1, n.º 2 alínea d), 3.º n.ºs 1 e 4 e 14.º da Lei n.º 38-A/2023 de 2 de Agosto.
Nestes termos e demais de direito deverá o presente recurso obter provimento e, em consequência ser o arguido recorrente absolvido do crime de tráfico de menor gravidade, baixando assim a pena única em que foi condenado, bem como deverá essa pena ser suspensa na sua execução ou, caso assim V. Exas. não entendam, ser cumprida em OPHVE.
Caso seja mantida a decisão recorrida relativamente ao crime de tráfico de menor gravidade, ou sendo alterada a qualificação jurídica para um crime de consumo, deverá ser aplicado ao arguido o perdão de um ano na pena única.
NORMAS JURÍDICAS VIOLADAS:
• Artigos 2.º, n.º 4, 42.º, 43.º, 50.º, 51.º, 52.º, 53.º, 71.º, 72.º e 73.º do Código Penal;
• Artigo 9.º e mapa anexo da Portaria n.º 94/96, de 26 de Março;
• Artigo 2.º da Lei n.º 30/2000 de 29 de Novembro;
• Art. 40.º do Decreto Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro
• Arts. 2.º, n.º 1, n.º 2 alínea d), 3.º n.ºs 1 e 4, 7.º e 14.º da Lei n.º 38-A/2023 de 2 de Agosto;
V. EXAS. FARÃO ASSIM A COSTUMADA JUSTIÇA!
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3.O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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4.O Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância apresentou resposta a essa motivação, pugnando pelo não provimento do recurso.
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5.Nesta Relação, o Ex.mo Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso interposto.
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6.Cumprido o disposto no art.º 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o recorrente respondeu a tal parecer, repetindo, basicamente, os argumentos antes vertidos nas suas alegações.
*
Após exame preliminar e colhidos os Vistos, realizou-se a conferência, que correu dentro dos trâmites legais, cumprindo agora apreciar e decidir.
***

II.FUNDAMENTAÇÃO

II.1.Questões a decidir
Conforme jurisprudência constante e assente, é pelas conclusões apresentadas pelo recorrente que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior (cfr. por todos, o Acórdão do STJ, de 15/04/2010, acessível em www.dgsi.pt), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95).
No caso concreto, o recurso suscita, de acordo com a ordem lógica de conhecimento, as questões seguintes:
1ª-Impugnação da matéria de facto;
2ª-Erro notório na apreciação da prova, por referência ao artigo 410º, nº 2, alínea c), do Código de Processo Penal;
3ª-A qualificação dos factos como crime de consumo de estupefacientes ou contra-ordenação;
4ª-Suspensão da execução da pena de prisão;
5ª-Na negativa, determinar qual o meio de execução da pena de prisão: ou em reclusão no estabelecimento prisional ou em confinamento pelo regime de permanência na habitação.
6ª-Aplicação do perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 02/08.
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II.2.Decisão recorrida

Tendo em conta as questões objecto do recurso, afigura-se relevante proceder à transcrição dos seguintes segmentos da sentença recorrida:
Realizado o julgamento, o Tribunal de 1.ª Instância deu com provados os seguintes factos:
1.-No dia ... de ... de 2022, cerca das 04h00m, os militares da Guarda Nacional República BB e CC, devidamente fardados e no exercício das suas funções, deslocaram-se à discoteca denominada “Infinity Club”, sita na ..., em ..., por haver notícia de desacatos à porta do referido estabelecimento comercial.
2.-Quando os militares chegaram ao local, foram abordados pelo arguido AA que colocou as duas mãos no peito do militar BB e empurrou-o diversas vezes, ao mesmo tempo que dizia “saiam já daqui, eu tenho todo o direito em aqui estar, sou preto mas sou Português”.
3.-Nessa sequência, o militar BB informou o arguido que tinham sido chamados aquele local para cessar com os desacatos.
4.-Em acto continuo, o arguido AA disse aos militares BB e CC “vocês são racistas, são uns merdas que aqui andam, desapareçam” e “filhos da puta”.
5.-O militar BB informou o arguido que deveria sair do local, tendo este de imediato desferido um número não apurado de pancadas com as mãos no peito do militar, ao mesmo tempo que dizia “não vou a lado nenhum”.
6.-No local encontrava-se também o arguido BB que ao aperceber-se da presença dos militares, dirigiu-se ao militar CC e desferiu-lhe um número não apurado de empurrões, ao mesmo tempo que dizia aos militares BB e CC “filhos da puta, saiam daqui se não vou chamar o meu grupo e já não saem daqui”, “filhos da puta, vou-vos apanhar lá fora, vão se foder”, “saiam daqui, vamos chamar o grupo, filhos da puta” e “se vocês tentarem fazer alguma coisa contra nós, vocês vão ficar mal”.
7.-Nas circunstâncias de tempo e lugar supra referidas o arguido AA tinha na sua posse, pertencendo-lhe, guardado no bolso das calças, vários pedaços de canábis, com o peso liquido total de 5.086g (L), com um grau de pureza de THC de 19,3%, correspondente a 19 (dezanove) doses médias individuais diárias.
8.-Nas circunstâncias de tempo e lugar supra referidas o arguido BB tinha na sua posse, pertencendo-lhe, guardado no bolso das calças, vários pedaços de canábis, com o peso liquido total de 35.116 g (L), com um grau de pureza de THC de 19,5%, correspondente a 136 (cento e trinta e seis) doses médias individuais diárias.
9.-Os arguidos destinavam aquele produto estupefaciente à venda a terceiros.
10.-Os arguidos não possuíam qualquer autorização que lhe permitisse adquirir e deter aquelas substâncias, conhecendo estes as características do produto estupefaciente que respectivamente tinham na sua posse, designadamente a sua natureza estupefaciente, sabendo que a sua posse, venda ou cedência a terceiros era proibida e punida por lei.
11.-Os arguidos sabiam que dirigiam aos militares da Guarda Nacional Republicana BB e CC expressões ofensivas da honra e consideração destes enquanto agentes de autoridade, tendo-lhes dirigido as referidas expressões com tal propósito.
12.-Os arguidos agiram sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punida por lei e tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
13.-Os arguidos não compareceram na audiência de julgamento, ainda que regularmente notificados.
14.-De igual modo não compareceram junto da DGRSP, de modo a que fosse elaborado relatório social com vista à aplicação de eventual sanção.
15.-Mostrou-se igualmente infrutífera a sua detenção, com o intuito de assegurar a sua presença em juízo.
16.O arguido DD apresenta os seguintes antecedentes criminais:
16.1.-Foi condenado por acórdão proferido no Processo Comum Colectivo n.º 1308/13.0..., datado de .../.../2014, transitado em julgado em .../.../2014, pela prática em ..., de 3 crimes de roubo, numa pena única de 3 anos e 6 meses de prisão.
16.2.-Por decisão de .../.../2018, proferida no Processo 1656/13.0...-B, do Juízo de Execução de Penas de Lisboa, foi-lhe concedida liberdade definitiva e declarada extinta a pena com referência ao dia .../.../2017.
16.3.-Foi condenado por sentença proferida no processo n.º ..., datada de .../.../2021, transitada em julgado em .../.../2021, que correu termos em ..., na pena de prisão de 4 meses, que cumpriu, pela prática do crime de tráfico de estupefacientes.
17.Não são conhecidos antecedentes criminais ao arguido BB.
II.2.2.-Na decisão recorrida foi dada como não provada a seguinte matéria de facto:
A)- Como consequência direta e necessária da descrita conduta dos arguidos, os militares sofreram dores nas zonas do corpo atingidas;
B)- Os arguidos agiram com o propósito de molestar o corpo e a saúde dos militares BB e CC.
II.2.3.-E consignou-se a seguinte Motivação:
Para responder à matéria de facto, o tribunal atendeu ao apurado em sede de audiência de julgamento, analisando global e criticamente, segundo as regras da experiência e da livre convicção do tribunal, nos termos do artigo 127.º, do Código de Processo Penal, a saber:
i)-Na prova pericial, em concreto o relatório de exame toxicológico, junto aos autos a fls. 51, que apurou o tipo dos estupefacientes apreendidos na posse de BB [canábis (resina)], com o peso de 35,116 gramas, que permite 139 doses, dado o grau de pureza de 19,5% de THC] e de DD [canábis (resina), com o peso de 5,086 gramas, que com o grau de pureza de 19,3 de THC, corresponde a 19 doses individuais e;
ii)-No auto de notícia por detenção, junto aos autos a fls. 2 e 35;
iii)-Auto de pesagem de fls. 12 e 26;
iv)-Relatório fotográfico de fls. 13 e 27 ao material estupefaciente apreendido;
v)-Auto de apreensão de fls. 11 e 24;
vi)-Testes rápidos de fls. 14 e 28;
vii)-Certificados de registo criminal, junto aos autos a fls. 108 (arguido BB) e de 109 a 112 (arguido AA);
viii)- Nas declarações prestadas pelas testemunhas de acusação BB e CC, militares da GNR que de modo seguro, coerente e lógico relataram os factos em apreço, não se suscitando qualquer dúvida quanto à genuinidade desses testemunhos.
A ausência dos arguidos na audiência de julgamento, estando estes regularmente notificados, não teve a virtualidade de infirmar os depoimentos das testemunhas de acusação.
Importa salientar que lhes competia a prova do elemento negativo do tipo do crime por que vinham acusados, ou seja, recaia sobre os arguidos o ónus de provar que os produtos estupefacientes (haxixe) que respectivamente detinham não se destinava senão ao seu consumo exclusivo – não apenas ao seu consumo, mas ao seu consumo exclusivo (Acórdão do STJ de 21/6/1989, disponível em www.dgsi.pt). E nesse particular, como foi dito, os arguidos não compareceram em julgamento, prescindindo de apresentar a sua versão dos factos, nem sequer foi possível assegurar a sua presença mediante o cumprimento de mandados de detenção.
Relativamente aos factos subjectivos, por presunção natural e regras da experiência comum, permite-se dá-los como materialmente verdadeiros, sendo amplamente propalado o conhecimento da ilicitude da detenção de material estupefaciente, bem como de se dirigirem aos militares da GNR do modo como o fizeram, do que os arguidos estavam naturalmente cientes.
Não restaram assim quaisquer dúvidas acerca do cometimento dos factos pelos arguidos, conforme supra se expôs de 1. a 12.
O mencionado em A) e B) decorre da ausência de prova suficientemente credível e que demonstrasse tal realidade, a qual não foi confirmada pelos militares da GNR inquiridos.
II.2.4.-No «Enquadramento jurídico-penal», consta, além do mais, o seguinte:
«(…)

III.3.Do crime de tráfico de menor gravidade:
A par dos já referidos crimes, a cada um dos arguidos é atribuído o cometimento de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, sendo que relativamente ao arguido AA este vem acusado como reincidente, previsto e punido pelas disposições conjugadas do artigo 25.º, alínea a) e 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na redacção dada pela Lei n.º 7/2017, de 02/03, por referência à tabela I-C anexa ao referido diploma legal.
O tipo matricial ou tipo-base do crime de tráfico de estupefacientes é o do art. 21.º, n.º 1 do DL 15/93 – tipo esse que, pela amplitude da respectiva moldura penal – 4 a 12 anos de prisão - e pela multifacetada descrição típica, abrange os casos mais variados de tráfico de estupefacientes, considerados dentro de uma gravidade mínima, mas já suficientemente acentuada para caber no âmbito do padrão de ilicitude requerido pelo tipo, cujo limite inferior da pena aplicável é indiciador dessa gravidade, e de uma gravidade máxima, correspondente a um grau de ilicitude muito elevada – tão elevada que justifique a pena de 12 anos de prisão. Esse tipo fundamental corresponde, pois, genericamente, a casos que são já de média e de grande gravidade.
Os casos excepcionalmente graves estão previstos no art. 24.º, pela indicação taxativa das várias circunstâncias agravantes, de natureza heterogénea e, por isso, insubsumíveis a uma teoria unificadora, que se estendem pelas diversas alíneas do art. 24.º, enquanto que os casos de considerável diminuição da ilicitude estão previstos no art. 25.º, aqui por enumeração exemplificativa de algumas circunstâncias que, fazendo baixar a ilicitude para um limiar inferior ao requerido pelo tipo-base, não justificam (desde logo por violação do princípio da proporcionalidade derivado do art. 18.º da Constituição) a grave penalidade prevista na moldura penal estabelecida para o tráfico normal, considerando como tal o previsto pelo legislador e que, como vimos, engloba o médio e grande tráfico.
Frequentemente designado como um tipo privilegiado de tráfico, não o será em termos próprios, se atendermos ao que FIGUEIREDDO DIAS assinala a propósito da teoria das circunstâncias (Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas Do Crime, Editorial de Notícias, p. 199), afirmando que «estas situações ⌠circunstâncias modificativas agravantes ou atenuantes⌡distinguem-se das consideradas de qualificação ou privilegiamento, porque, enquanto nestas a modificação da moldura penal se opera por efeito de alterações ao nível do tipo ou dos elementos típicos – seja, como é geralmente, do tipo-de-ilícito, seja, menos frequentemente, do tipo-de-culpa - , na situação de que agora tratamos ela verifica-se por força de circunstâncias modificativas. Circunstâncias são, nesta acepção, pressupostos ou conjuntos de pressupostos que, não dizendo directamente respeito nem ao tipo-de-ilícito (objectivo ou subjectivo), nem ao tipo-de-culpa, nem mesmo à punibilidade em sentido próprio, todavia contendem com a maior ou menor gravidade do crime como um todo e relevam por isso directamente para a doutrina da determinação da pena».
Por conseguinte, de acordo com tal doutrina, do que estamos em face, quer no caso do art. 24.º, quer no caso do art. 25.º, é de circunstâncias modificativas, agravantes (art. 24.º) e atenuantes (art. 25.º).
No caso dos autos, ocorrem circunstâncias que se enquadram no art. 25.º (tráfico de menor gravidade).
Assim, a qualidade da substância estupefaciente – cannabis ou, mais vulgarmente, haxixe) remete-a para o elenco das menos nocivas à saúde e socialmente menos danosas, a ponto de se considerar menos prejudicial do que a nicotina e de se referenciarem movimentos sérios no sentido da sua despenalização.
No caso vertente:
- o arguido AA detinha vários pedaços de canábis, com o peso liquido total de 5.086g (L), com um grau de pureza de THC de 19,3%, correspondente a 19 (dezanove) doses médias individuais diárias; e
- BB detinha vários pedaços de canábis, com o peso liquido total de 35.116 g (L), com um grau de pureza de THC de 19,5%, correspondente a 136 (cento e trinta e seis) doses médias individuais diárias.
Esse comportamento não revela astúcia nem um refinamento ao nível do carácter dissimulatório que dariam à conduta um tónus mais acentuado de ilicitude.
Porém, essa forma de detenção é hoje uma vulgaridade pela frequência com que se põe em prática e pela difusão que alcançou através dos meios de comunicação social, ao noticiarem casos desse tipo. Deste modo, esse tipo de conduta é em grande parte mimética. Tal não significa, porém, que se deva subestimar o seu alcance em termos de ilicitude, mas também não deve ser sobrevalorizada.
Certo é que as circunstâncias referidas, globalmente consideradas e com particular acento para a quantidade e qualidade do produto estupefaciente, apontam para uma ilicitude consideravelmente diminuída, sendo desproporcionado punir a conduta em conformidade com o padrão de ilicitude pressuposto pelo tipo-base consagrado no art. 21.º do DL 15/93.
Deste modo, os factos deverão ser qualificados como tráfico de menor gravidade do art. 25.º, alínea a) do DL 15/93, de 22/01, tanto mais que não ficou provado que o material detido era para exclusivo consumo dos arguidos. Ao invés, tendo aqueles sido surpreendidos à entrada de um espaço de diversão nocturna, o que resulta fortemente indiciado (e provado) é que tal material teria como destino a ulterior cedência/venda a terceiros.
Mais resulta claro dos factos provados que a conduta dos arguidos se subsume também no tipo de ilícito subjectivo do crime, sendo na modalidade de dolo directo.
Ao não se verificarem quaisquer causas de exclusão de ilicitude e/ou da culpa, nem falta qualquer condição de punibilidade, deverão os arguidos ser condenados pela prática deste crime que lhe era imputável.»
*

II.3.Apreciação do Recurso

Apreciemos as questões enunciadas (pela ordem de lógica jurídica).
II.3.1.- Do recurso em matéria de facto
Em sede de recurso o Tribunal da Relação conhece de facto e de direito, conforme dispõe o artigo 428º do Código de Processo Penal.
Como é sabido a matéria de facto pode ser sindicada de dois modos. Um mais restrito, a chamada «revista alargada», que abrange os vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal. Outro, a chamada impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º, nºs 3, 4 e 6, do Código de Processo Penal.
Insurge-se o recorrente quanto à demonstração positiva do facto dado como provado no ponto 9, no que a ele lhe toca, cujo teor é o seguinte: «9.- Os arguidos destinavam aquele produto estupefaciente à venda a terceiros.», afirmando que não é concebível que o tribunal recorrido dê como assente que as cerca de 0,5 gramas de haxixe encontradas na sua posse eram para venda porque este se encontrava à porta de um estabelecimento de diversão nocturna. Acresce que alega ainda que a forma em que se encontrava o produto estupefaciente não era a própria ou esperada, segundo as regras da experiência comum, para proceder a uma venda imediata, remetendo para a fotografia constante dos autos a fls. 13.
Se o recorrente pretendia proceder à impugnação alargada da matéria de facto, como parece decorrer da argumentação recursiva, cabe desde já referir que não deu cumprimento aos ónus consagrados no artigo 412º, n.º 3 e 4, do Código de Processo Penal.
Com efeito, dispõe o artigo 412.º, n.º 3 que “Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a)- Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b)- As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c)- As provas que devem ser renovadas.”.
E, no seu n.º 4 que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”
Ora, não tendo o recorrente indicado (nas suas motivações e conclusões) o específico conteúdo da prova e efectuado a correspondência ao facto que entende erroneamente julgado, não tendo explicado o erro de julgamento em face dos meios de prova indicados pelo tribunal na sua motivação da decisão da matéria de facto, nem indicando as passagens da gravação em que se funda a impugnação, não é possível proceder à apreciação do eventual erro de julgamento nos termos da impugnação alargada da matéria de facto.
No entanto, o insucesso da arguição recursiva nos moldes em que foi formulada, não impede este tribunal de apreciar a decisão recorrida nos termos da impugnação restrita da matéria de facto prevista no artigo 410º, n.º 2 do Código de Processo Penal e indagar oficiosamente da existência de vícios decisórios aí previstos.
De acordo com esta norma, mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova.
O vício que estiver em causa, tal como resulta da norma, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos estranhos à decisão.
Em particular, o erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410º, n.º 2, al. c), ocorre quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar (cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed. pág. 341 e Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques “Recursos Penais”, Rei dos Livros, 9ª edição, pág. 78).
Em suma, com a invocação do vício de erro notório questiona-se não o conteúdo da prova em si, nomeadamente do que foi dito no depoimento ou nas declarações prestadas, cujo teor se aceita, mas a utilização que foi dada à referida prova, no sentido de a mesma suportar a demonstração de um determinado facto, na medida em que o tribunal valorizou a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados ou então quando da decisão se extrai de modo óbvio que optou por decidir, na dúvida, contra o arguido.
Importa também salientar que, tal como acontece com os vícios da sentença a que alude o nº 2 do art. 410º do CPP, a eventual violação do princípio in dubio pro reo há-de-resultar, claramente, do texto da decisão recorrida e, portanto, ocorrerá quando se puder constatar que o tribunal decidiu contra o arguido apesar de tal decisão não ter suporte probatório bastante, o que há-de decorrer, inequivocamente, da motivação da convicção do tribunal explanada naquele texto.
Vejamos, então se, como pretende o recorrente, o Tribunal recorrido errou notoriamente ao considerar que o estupefaciente que detinha na sua posse - 5.086 gramas (peso líquido) de cannabis (resina), vulgarmente designada por "haxixe” se destinava à venda a terceiros.
Na sentença recorrida, o Tribunal a quo fundamentou nos seguintes moldes a sua convicção quanto à demonstração da factualidade atrás transcrita:
«Para responder à matéria de facto, o tribunal atendeu ao apurado em sede de audiência de julgamento, analisando global e criticamente, segundo as regras da experiência e da livre convicção do tribunal, nos termos do artigo 127.º, do Código de Processo Penal, a saber:
i)- Na prova pericial, em concreto o relatório de exame toxicológico, junto aos autos a fls. 51, que apurou o tipo dos estupefacientes apreendidos na posse de BB [canábis (resina)], com o peso de 35,116 gramas, que permite 139 doses, dado o grau de pureza de 19,5% de THC] e de DD [canábis (resina), com o peso de 5,086 gramas, que com o grau de pureza de 19,3 de THC, corresponde a 19 doses individuais e;
ii)- No auto de notícia por detenção, junto aos autos a fls. 2 e 35;
iii)- Auto de pesagem de fls. 12 e 26;
iv)- Relatório fotográfico de fls. 13 e 27 ao material estupefaciente apreendido;
v)- Auto de apreensão de fls. 11 e 24;
vi)- Testes rápidos de fls. 14 e 28;
vii)- Certificados de registo criminal, junto aos autos a fls. 108 (arguido BB) e de 109 a 112 (arguido AA);
viii)- Nas declarações prestadas pelas testemunhas de acusação BB e CC, militares da GNR que de modo seguro, coerente e lógico relataram os factos em apreço, não se suscitando qualquer dúvida quanto à genuinidade desses testemunhos.
A ausência dos arguidos na audiência de julgamento, estando estes regularmente notificados, não teve a virtualidade de infirmar os depoimentos das testemunhas de acusação.
Importa salientar que lhes competia a prova do elemento negativo do tipo do crime por que vinham acusados, ou seja, recaia sobre os arguidos o ónus de provar que os produtos estupefacientes (haxixe) que respectivamente detinham não se destinava senão ao seu consumo exclusivo – não apenas ao seu consumo, mas ao seu consumo exclusivo (Acórdão do STJ de 21/6/1989, disponível em www.dgsi.pt). E nesse particular, como foi dito, os arguidos não compareceram em julgamento, prescindindo de apresentar a sua versão dos factos, nem sequer foi possível assegurar a sua presença mediante o cumprimento de mandados de detenção.
Relativamente aos factos subjectivos, por presunção natural e regras da experiência comum, permite-se dá-los como materialmente verdadeiros, sendo amplamente propalado o conhecimento da ilicitude da detenção de material estupefaciente, bem como de se dirigirem aos militares da GNR do modo como o fizeram, do que os arguidos estavam naturalmente cientes.»

A questão está em saber se permitia a prova produzida, devidamente conjugada com as regras da experiência comum, concluir que o arguido destinava o produto de estupefaciente que detinha à venda a terceiros.
Resulta, claramente da leitura da decisão recorrida que o tribunal a quo, não recolheu prova concludente de que o arguido/recorrente destinava o produto estupefaciente que detinha à venda ou cedência a terceiros. Deve recordar-se que não vem comprovado qualquer acto de venda, ou sequer de movimentações que se destinassem a tal finalidade.
E como parece decorrer das considerações vertidas na motivação da decisão de facto da sentença, o tribunal recorrido considerou provado que o produto estupefaciente apreendido ao arguido se destinava à venda a terceiros, com base em duas circunstâncias: a de o arguido não ter cumprido o ónus de provar que tal produto se destinava ao seu consumo exclusivo e a de ter sido surpreendido à entrada de um espaço de diversão nocturna.
Mas este raciocínio, contido na fundamentação do juízo probatório da sentença sob recurso no segmento em que julgou provado que o arguido destinava a cannabis que detinha à venda a terceiros, assenta numa apreciação manifestamente destituída de lógica e de razoabilidade e que não resiste à observação do cidadão comum.
Com efeito, por um lado não consta da motivação da decisão de facto que alguma das testemunhas tenha conotado o arguido com a venda de produtos estupefacientes nem que tal matéria tenha sido objecto de outros meios de prova e que, por si, seriam susceptíveis de conduzir à sua demonstração. Por outro lado, também não foi detectada na posse do arguido dinheiro proveniente de eventuais vendas e/ou instrumentos habitualmente associados ao narcotráfico. Por fim, a própria quantidade detida, 5.086g (L), com um grau de pureza de THC de 19,3%, correspondente a 19 (dezanove) doses médias individuais diárias (como é sabido, o limite quantitativo das dez doses diárias apenas poderá funcionar como mero indício de tráfico) e as circunstâncias da sua detenção, não permitem concluir, ainda que recorrendo a regras de experiência comum, pela prova de que destinava o estupefaciente à venda e/ou cedência a outros indivíduos. Assim, e porque não se pode presumir uma conduta que seja prejudicial ao arguido e porque o princípio in dubio pro reo opera, outra solução não resta que não seja dar como não provado o facto que está relacionado com a venda do estupefaciente a terceiros. Ou seja, da posse de estupefaciente pelo arguido pouco se pode retirar para além da demonstração desse mesmo facto.
Como é referido no Acórdão da Relação do Porto de 14.01.2015 (relatado por Eduarda Lobo – Processo n.º 502/12.6PJPRT.P1, acessível in www.dgsi.pt.):
«INa formação da convicção judicial intervêm provas e presunções. As primeiras são instrumentos de verificação direta dos factos ocorridos, e as segundas permitem estabelecer a ligação entre o que temos por adquirido e aquilo que as regras da experiência nos ensinam poder inferir.
IINa avaliação da prova indiciária há que ter presente três princípios:
a)-o princípio da causalidade, segundo o qual a todo o efeito precede uma causa determinada, ou seja, quando nos encontramos face a um efeito podemos presumir a presença da sua causa normal; b)-o princípio da oportunidade, segundo o qual a análise das características próprias do facto permitirá excluir normalmente a presença de um certo número de causas pelo que a investigação fica reduzida a uma só causa que poderá considerar-se normalmente como a única produtora do efeito; c)- o princípio da normalidade, de acordo com o qual só quando a presunção abstracta se converte em concreta, após o sopesar das contraprovas em sentido contrário e da respetiva valoração judicial, se converterá o conhecimento provável em conhecimento certo ou pleno.
IIISe não for possível formular um juízo de certeza, mas de mera probabilidade, por subsistir mais do que uma causa provável, sem que os indícios existentes permitam excluir todas as restantes, depois de analisados à luz dos referidos princípios, então valerá o princípio da presunção de inocência, já que para a condenação se exige um juízo de certeza e não de mera probabilidade.»
No caso concreto, a factualidade provada não permite ultrapassar o limiar da mera probabilidade relativamente à veracidade do facto ínsito do ponto do elenco dos factos provados, razão pela qual, à luz do princípio da presunção de inocência, se impõe concluir pela sua não demonstração.
Diga-se, entretanto, que conforme resulta da leitura da decisão recorrida o tribunal a quo, também não recolheu prova de que o recorrente destinava o produto que detinha ao seu exclusivo consumo.
É que embora a quantidade de droga encontrada na posse do arguido seja reduzida - 5.086 gramas (peso líquido) de cannabis (resina) -, tal circunstância, desligada de meios de prova complementares e corroborantes – mais ainda se nem sequer se apurou que o arguido fosse consumidor de haxixe -, afigura-se insuficiente para considerar demonstrado que o recorrente destinava aquele produto estupefaciente ao seu consumo exclusivo.
Ou seja. A prova produzida, devidamente conjugada com as regras da experiência comum também não permite concluir que o arguido destinava todo o produto estupefaciente ao seu consumo exclusivo.
Nessa sequência, considerando a quantidade que o arguido detinha de canabis, que excedia a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de dez dias (de acordo com os valores que resultam do exame pericial, em conjugação com os parâmetros fixados no mapa anexo à Portaria nº 94/96, de 26.03, que fixam os limites quantitativos máximos do consumo médio individual), na ausência de prova quanto ao consumo diário concreto do arguido, este detinha canabis resina em quantidade que daria para 19 dias, e atendendo à ausência de prova quanto aos seus hábitos de consumo, não se pode também concluir, face às regras da experiência comum, que aquela quantidade era exclusivamente destinada ao seu consumo.
Donde, concluindo: os elementos probatórios apenas permitem dar por provado que o arguido tinha na sua posse o produto estupefaciente apreendido.
Impõe-se, pois, concluir, que o tribunal errou, manifestamente, na apreciação que fez da prova ao considerar provado o facto do ponto 9, valoração que agora importa corrigir, ma vez que a decisão recorrida contém os elementos necessários para correção do vício decisório, ao abrigo do art.º 426.º, n.º 1, a contrario, do Código de Processo Penal, considerando-se como não provado:
- que o arguido AA destinava o produto estupefaciente referido no ponto 7 dos factos provados à venda a terceiros.
- que o arguido AA destinava o produto estupefaciente referido no ponto 7 dos factos provados ao seu consumo exclusivo.
A alteração da matéria de facto não está dependente de prévio cumprimento do disposto no artº 424º nº 3 do C.P.P., porquanto se trata de alteração objeto de discussão no próprio recurso, relativamente à qual o recorrente teve a oportunidade de se pronunciar.
*

II.3.2.Preenchimento dos elementos típicos do crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade
Encontrando-se fixada a matéria de facto, vejamos o direito.
Considera o recorrente que o tipo de ilícito do crime de tráfico de estupefacientes, por que foi condenado, não se encontra preenchido.
Analisando.
Como dispõe o art. 21º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro (crime base), «Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.
O crime de tráfico de estupefacientes configura-se como um crime de perigo comum e abstrato, na medida em que visa antecipar a protecção legal de diversos bens jurídicos com dignidade penal, como por exemplo a vida, a integridade física e a liberdade de determinação dos consumidores de estupefacientes (em suma, visa-se a protecção da saúde pública), ainda que em concreto não se tenha verificado o perigo de violação desses bens jurídicos.
O tipo de ilícito objectivo preenche-se com a mera detenção daqueles produtos estupefacientes, desde que não se comprove que se destinam ao exclusivo consumo pessoal, não sendo, pois, necessário que a detenção do produto estupefaciente se destine à posterior venda ou cedência a terceiros.
É o que se retira, entre outros, do acórdão do S.T.J. de 17.04.2013 (proferido no Processo nº 38/09.9JELSB.L1.S2, relatado pelo Conselheiro Pires da Graça, disponível in www.dgsi.pt) “O crime de tráfico de estupefaciente abarca todas as condutas não autorizadas previstas no art. 21.º do DL 15/93, de 22-01. À sua consumação é-lhe indiferente a intenção lucrativa, ou o destino do produto estupefaciente, desde que não para consumo, sendo, porém, relevante, a quantidade total do produto integrante da acção proibida. O crime de tráfico como crime de perigo abstracto, centraliza-se na perigosidade da acção, uma vez que o perigo, não sendo elemento do tipo, se apresenta como “motivo da proibição”, sem que disso resulte qualquer violação do princípio constitucional da presunção de inocência.
Ou seja. o crime de tráfico de estupefacientes tratando-se de um crime de perigo abstrato ou presumido a consumação ocorre com a mera detenção das substâncias ilícitas que não se destinem na totalidade ao consumo pessoal do agente e ainda que se não se demonstre a intenção de venda (neste sentido, além do já citado aresto, veja-se ainda o Ac. do S.T.J. de 05.11.2009 e do T.R.L. de 26.09.2018, consultáveis em www.dgsi.pt).
Por conseguinte, no que concerne à ilicitude do facto praticado pelo arguido, a simples circunstância de o arguido deter a referida substância estupefaciente, sem que tivesse ficado demonstrado que por ele era destinada ao seu exclusivo consumo, basta para preencher o tipo objectivo do crime de tráfico de estupefacientes.
Não se tendo provado essa finalidade exclusiva, não resta outra solução senão a de reconhecer que a pretensão recursória do arguido tem de improceder, sendo manifesto que o crime de tráfico de estupefacientes se encontra integralmente perfectibilizado.
Concluindo, o arguido cometeu um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, a variante privilegiada do artigo 25º, al. a) do D.L. nº 15/93, como se decidiu na sentença recorrida, a qual não merece censura na qualificação jurídica efectuada.
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II.3.3.Suspensão da execução da pena de prisão

Preliminarmente ao conhecimento da indicada matéria importa esclarecer que o recorrente embora não formule nenhuma pretensão com esse fundamento, apenas reclamando a alteração da sentença no segmento que nega a suspensão da execução da pena, tece considerações atinentes à alegada circunstância de não ter comparecido na audiência de julgamento e nos serviços de reinserção social por desconhecimento das convocatórias.
Não obstante, impõe-se esclarecer que especificamente para os casos, como o dos autos, cumpridos que foram os requisitos da prestação do termo de identidade e residência, nele tendo livremente indicado o arguido a morada para a qual deveriam ser realizadas as notificações por via postal simples, não vemos como a frustração da entrega efetiva das respetivas cartas, não imputável ao Tribunal ou aos serviços dos correios, e apenas imputável ao arguido, possa afastar as consequências legais de legitimação da representação do arguido por defensor em todos os atos processuais, e no caso dos autos a realização da audiência na sua ausência, nos termos do art.º 333º e a não elaboração do relatório social.
Dúvidas não há de que as referidas notificações devem considerar-se efetivadas porque podendo o arguido escolher o local que entender para ser notificado, responsabilizou-se pela indicação correcta do endereço. Não o tendo feito, todas as consequências legais daí decorrentes são-lhe imputáveis.
Analisemos agora a questão suscitada.
Insurge-se mais o recorrente contra a imposição de pena de prisão efetiva, pugnando pela suspensão da pena ou ainda pelo cumprimento da pena em regime de permanência na habitação.
Vejamos se lhe assiste:
Dispõe o artigo 50º, do Código Penal, sob a epígrafe “pressupostos e duração”, que:
1- O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
2- O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.
3- Os deveres e as regras de conduta podem ser impostos cumulativamente.
4- A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições.
5- O período de suspensão é fixado entre um e cinco anos.

Como é orientação uniforme da doutrina e da jurisprudência, incumbe ao tribunal o poder-dever de substituir a pena de prisão por pena de suspensão de execução da prisão, quando verificados os respetivos pressupostos legais.
Refere o Prof. Figueiredo Dias (Direito Penal Português, p. 331), «sendo a suspensão da execução da pena “a mais importante das penas de substituição” – não apenas pela frequência com que é aplicada, mas também pelo âmbito lato de aplicação que comporta – a lei, nos termos do art. 50º do Cód. Penal, exige não só a verificação de um requisito objectivo (condenação em pena de prisão não superior a 5 anos) como também requisitos subjectivos, determinados por finalidades de política criminal, que permitam concluir pelo afastamento futuro do delinquente da prática de novos crimes, através da sua capacidade de se reintegrar socialmente».
O tribunal só pode suspender a pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Em causa já não estão considerações sobre a medida da culpa do agente, mas antes prognósticos acerca do desempenho da sua personalidade perante as condições da sua vida, o seu comportamento e as circunstâncias de facto, sendo necessário determinar se existe esperança fundada de que a socialização em liberdade pode ser alcançada.
E ainda, como refere o Prof. Figueiredo Dias (ob. cit., p. 344) «apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável - à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial e socialização – a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção do crime, pois estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral, sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita – mas por elas se limita sempre – o valor da socialização em liberdade, que ilumina o instituto em análise». Assim, quando se mostre comprometida a satisfação das exigências de prevenção geral é de afastar a aplicação de tal pena substitutiva, de molde a assegurar que a comunidade não encare, no caso, a suspensão, como sinal de impunidade, retirando toda a sua confiança ao sistema repressivo penal.
Pressuposto básico da aplicação da suspensão da execução da pena, é a existência de factos que permitam um juízo de prognose favorável em relação ao comportamento futuro do agente, em termos de que o tribunal se convença de que a censura expressa na condenação e a ameaça da pena aplicada sejam suficientes para afastar o arguido de uma opção desvaliosa em termos criminais para o futuro. Mas tal juízo de prognose quanto ao comportamento futuro do arguido não deve assentar necessariamente numa certeza, mas antes se deve bastar com uma expectativa fundada de que a socialização em liberdade se consiga realizar. Todavia, tem de se fundamentar em factos concretos que apontem para uma forte probabilidade de inflexão em termos de vida.
Na sentença em crise entendeu-se que as necessidades de prevenção geral são acentuadas, sobretudo no que toca ao crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade (pelos efeitos nefastos e consequências associadas à disponibilização de produtos estupefacientes) e as exigências de prevenção especial são também elas elevadas atendendo às duas condenações de que o arguido foi alvo, sua natureza e medidas das penas que lhe foram aplicadas, que não constituíram suficiente advertência.
Assiste toda a razão ao julgador. No caso presente, a ponderação da natureza dos ilícitos conjugadamente com as circunstâncias concretas em que o arguido cometeu os factos, e bem assim a valoração do seu comportamento anterior convergem no sentido da existência de acentuadas necessidades de prevenção geral e especial que se opõem à suspensão da pena. Efectivamente, o recorrente tem um percurso existencial limitado pela aplicação de duas penas efectivas de prisão, sendo a primeira de 3 anos e 3 meses, executada até ........2017 e a segunda de 4 meses de prisão, sofrida em ..., por decisão transitada em julgado em ........2021, que cumpriu, pela prática do crime de tráfico de estupefacientes. Revelam tais circunstâncias uma gritante insensibilidade às penas aplicadas no passado, uma menor suscetibilidade de ser por elas influenciado e, assim, acentuadas exigências de socialização.
Contra tal entendimento se manifesta o recorrente, afirmando que o tribunal não deve valorizar a condenação anterior por crimes de roubo cometidos há cerca de 10 anos. Sustenta ainda que a última condenação reportada a crime de detenção não autorizada de substâncias psicotrópicas e de percussores não destinados exclusivamente ao consumo pessoal cometido em território francês não poderá entendida como crime de tráfico tal como é considerado na lei penal portuguesa.
Começando por este último argumento, importa, desde já afirmar que não assiste razão ao recorrente. E isto porque, com o devido respeito, não se vê como não possa ser subsumido ao crime de tráfico de estupefacientes a detenção de substâncias estupefacientes que não se destinem ao consumo exclusivo do próprio. Da argumentação recursiva extrai-se que, na perspectiva do recorrente, só os actos de cedência a terceiro são susceptíveis de integrar a prática de um crime de tráfico de estupefacientes. Contudo, como já vimos, não é assim. É quanto basta para que se conclua pela falta de razão do recorrente.
Além disso, a anterior condenação por crimes de roubo, tendo cumprido pela sua prática prisão efectiva, é bem reveladora da sua persistência delituosa. Por outro lado, a reiteração do mesmo comportamento delituoso decorrido pouco tempo depois desde a última condenação por crime de idêntica natureza, denota desrespeito pela advertência contida na condenação de que fora alvo, desconsideração e desinteresse pela pena de prisão que cumpriu.
A ponderação dos factores mencionados evidencia a existência de intensas necessidades de prevenção especial que previsivelmente não serão suficientemente acauteladas mediante a censura da ilicitude dos factos e a simples ameaça da pena, face à comprovada ineficácia demonstrada pela anterior condenação em pena de prisão suspensa na sua execução.
Por conseguinte, mostra-se insustentável a formulação de um juízo de prognose favorável quanto ao comportamento futuro do arguido, além do que a suspensão da execução da pena se revela insuficiente para satisfazer as exigências de prevenção geral.
Assim, não merece censura a decisão de não suspender a execução da pena de 2 anos de prisão imposta ao arguido.
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II.3.4.Da execução da pena em regime de permanência na habitação

O recorrente pugna ainda pela aplicação do regime de execução da pena de prisão aplicada em permanência na habitação.
De acordo com os quadros normativos relativos à finalidade das penas e determinação da sua medida, deve à pena, nela se incluindo a sua fase de execução ser imputada uma dinâmica para que cumpra o seu especial dever de prevenção.
Relativamente às sanções criminais detentivas (nelas se incluindo a sua fase de execução) opera ainda neste domínio um critério de preferência (que impõe a subsidiariedade justificada e motivada da execução da pena de prisão) em relação à prossecução das finalidades da execução da pena de prisão através da sua execução em regime de permanência na habitação, critério plenamente transposto para a legislação ordinária através da Lei nº 94/2017, de 23 de Agosto, em relação às penas de prisão efectiva não superior a dois anos – cfr. artigo 43º do Código Penal.
Tal preferência foi objecto de tradução pelo legislador na Exposição de Motivos da proposta que originou a Lei nº 94/2017 – ultrapassada a fase operativa de determinação da adequação e suficiência, face às finalidades da punição, da pena de prisão (excluindo as penas substitutivas) «(…) ficam à sua disposição duas possibilidades de execução, pela ordem seguinte: ou em regime de permanência na habitação, ou dentro dos muros da prisão, em regime contínuo (…)».
Independentemente da natureza jurídica do regime de permanência na habitação (pena de substituição da pena de prisão – cfr. P. Pinto de Albuquerque, CPP, 3ª edição, pág. 288 – ou incidente (ou medida) da execução da pena de prisão – cfr. Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, Almedina, 2017, pág. 94), deve ser procurada, essencialmente, nas finalidades preventivas especiais de ressocialização, reintegração, do agente na sociedade estabelecidas para a execução da pena de prisão – art. 42º do Código Penal e artigo 2º, nº1 do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade - sem prejuízo da equação das exigências de prevenção geral positiva – art. 40º do Código Penal – a adequação e suficiência da aplicação de tal regime – art. 43º, nº1, do Código Penal.
No presente caso, como se disse, são muito elevadas as necessidade de prevenção especial. Perante o percurso criminal do recorrente, a execução em regime de permanência na habitação da pena de prisão aplicada não iria satisfazer a finalidade de restabelecer a confiança comunitária na validade da norma violada e na eficácia do sistema jurídico-penal.
Ademais, as suas condenações anteriores, permitem concluir a sua manifesta incapacidade de adequação comportamental e que as penas em que o recorrente foi condenado não serviram para que não voltasse a delinquir, revelando-se insuficientes para a sua ressocialização.
Os argumentos do recorrente não são de todo relevantes para se determinar o cumprimento da pena de prisão em regime de permanência na habitação. Os antecedentes criminais do arguido encarregam-se de liminarmente afastar tal possibilidade. Ao arguido já foram aplicadas penas de prisão efectiva que cumpriu em regime de reclusão em estabelecimento prisional, e mesmo assim, continuou a praticar crimes.
Por conseguinte, o percurso criminal do recorrente e a sua personalidade indiferente ao ordenamento jurídico e ao sistema de justiça penal comprometem, em absoluto, a realização adequada e, seguramente, suficiente, das finalidades de prevenção geral e de prevenção especial que se fazem sentir no caso em apreço através do referido regime de permanência na habitação, não merecendo pois qualquer reparo a sentença recorrida.
Improcede, por isso, também nesta parte, o recurso interposto pelo arguido.
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II.3.4.Aplicação do perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto
A aplicação da Lei do Perdão de penas e amnistia de infrações, Lei n º 38-A/2023 de 02 de agosto e sua análise ao caso é da competência do tribunal a quo.
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II.4.Das custas
Mercê de ter decaído totalmente, o arguido deverá suportar as inerentes custas, tendo-se como adequado, em virtude do correspondente labor exigido, fixar em 4 UC`s a respectiva taxa de justiça - cfr. arts. 513º, n.º 1 e 514º, do Código de Processo Penal, e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III a este Anexa.
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III.–DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os juízes da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso do arguido AA e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
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Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 UC`S (artigo 513º, nº 1 do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9 do RCP, com referência à Tabela III).
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Lisboa, 11 de Janeiro de 2024


(texto processado a computador, composto e revisto pela relatora)



Os Juízes Desembargadores

(Amélia Carolina Teixeira - Relatora)
(Jorge Manuel da Silva Rosas de Castro - 1º Adjuntovencido nos termos da declaração que junto)

Declaração de voto vencido
Concordo com a conclusão a que o acórdão chegou quanto à retirada, do elenco de factos provados, da afirmação de que o Recorrente destinava o produto estupefaciente à venda a terceiros; e concordo ainda que se acrescente aos factos não provados que o produto se destinava ao consumo exclusivo do Recorrente, sem prejuízo, quanto a este último segmento, do que diremos adiante.
Já não acompanhamos o acórdão na afirmação de que se encontram preenchidos os requisitos típicos do crime de tráfico de menor gravidade; entendo que o Arguido devia ser objeto de condenação pela prática de um crime de consumo.
Por outro lado, mesmo considerando verificado um crime de tráfico de menor gravidade, entendo que a medida da pena que o acórdão confirma quanto a ele (1 ano e 9 meses de prisão) é excessivamente elevada, face à natureza (canábis) e quantidade de produto em apreço (a correspondente a 19 doses de consumo médio diário).
Por fim, mantendo-se a pena na medida encontrada, tenderia a admitir o seu cumprimento em regime de permanência na habitação.
Expondo muito sumariamente as razões da minha discordância, direi o seguinte.
Considera o acórdão recorrido, em síntese, que, não estando demonstrado que o produto detido pelo Arguido se destinava ao seu consumo exclusivo, mostram-se verificados os requisitos típicos do art. 21º, nº 1, do D.L. nº 15/93, de 22/01, para o qual o art. 25º do mesmo diploma remete,no segmento «detenção ilícita».
Entendo, para o que aqui releva, que a mera detenção do produto pode integrar a prática do crime de tráfico, sim, mas apenas se «fora dos casos previstos no artigo 40º» - é esta a expressão que consta do tipo legal.
Ou seja, e cingindo-me à redação legal vigente ao tempo dos factos:
- se soubermos que o produto se destinava à venda ou cedência a qualquer título a terceiro, haverá crime de tráfico;
- se soubermos que o produto se destinava ao consumo exclusivo do arguido, haverá crime de consumo se a quantidade for superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias (aqui dando aplicação ao Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 8/2008), ou, se inferior, haverá a contraordenação prevista e punível pelos arts. 2º, nº 1, 15º e 16º da Lei nº 20/2000, de 29/11.
E se não soubermos a que pretendia o detentor destinar o produto? Isto é, para o que aqui releva, que fazer se não soubermos se o produto se destinava a qualquer forma de cedência a terceiros ou a consumo exclusivo do próprio?
Neste caso, parece-me que a solução não deve passar pelo recurso ao crime de tráfico, na medida em que o preenchimento típico deste exige que possa afirmar-se, no plano dos factos, que estamos «fora dos casos previstos no artigo 40º», ou seja, os factos têm que pôr a descoberto que o produto não se destinava ao consumo exclusivo do detentor, pois esse requisito - o não se destinar o produto a um tal consumo próprio exclusivo - é um elemento positivo do tipo legal.
Enveredar pelo caminho trilhado pelo acórdão traduz-se nisto: não sabemos a que o detentor destinava o produto, mas assume-se, apesar disso, que este não era destinado ao consumo exclusivo do próprio.
Significa o exposto que a dúvida quanto à destinação do produto é resolvida, em termos prático-jurídicos, em prejuízo do arguido, pois que se assume que a situação concreta cai «fora dos casos previstos no art. 40º».
A solução que preconizo, nesta matéria, seria a de acolher a fórmula da chamada dupla negativa, ou seja, dar como não provado que o produto se destinava ao consumo próprio exclusivo, como no acórdão se faz, sim, mas acrescentando-lhe ainda como não provado que não se destinava ao consumo próprio exclusivo, desse modo expondo toda a amplitude real da dúvida que o caso suscita ao tribunal no plano dos factos; e depois, no plano jurídico, extrairia a consequência mais favorável ao arguido, numa lógica concretização do princípio in dubio pro libertate, fazendo uso do tipo legal do consumo.
É certo que, ao assim proceder, estaria a dar à situação concreta o mesmo tratamento que lhe daria se tivesse ficado provado que o produto se destinava ao consumo exclusivo do detentor, o que não deixa de envolver uma componente de ficção; mas a alternativa acolhida pelo acórdão, é, creio eu, pior, pois raciocina como se tivesse ficado provado que o produto não se destinava ao consumo exclusivo do detentor, na medida em que com isso chega a uma moldura de pena extraordinariamente mais gravosa, mesmo não se achando resolvida a apontada dúvida. Esta solução do acórdão está aliás perigosamente em cima da fronteira de violação do princípio in dubio pro reo, se é que a não transpõe mesmo, na medida em que, estando perante uma dúvida quanto aos factos, resolve-a em termos prático-jurídicos num sentido penalizador para o arguido, como se tivesse ficado provado que o produto não se destinava exclusivamente ao consumo próprio (neste sentido vide os Acs. do STJ de 5-02-2003 e da RC de 18-03-2020, relatados por Virgílio Oliveira e Maria José Nogueira, respetivamente, permitindo-nos, quanto a este último, discordar da asserção de que os factos favoráveis ao arguido que sejam duvidosos devam ser julgados provados, ainda que a consequência prática a que se chega nesse acórdão esteja próxima em termos prático-jurídicos da que perfilho).
Condenaria pois o Arguido pela prática de um crime de consumo.
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Em qualquer caso, mesmo adentro a condenação por tráfico de menor gravidade, afigura-se-me que a pena encontrada pela 1ª Instância e que o acórdão confirmará tem uma medida que reputo excessiva.
1 ano e 9 meses de prisão pela detenção (apenas) de cerca de 5 gramas de canábis não se me prefigura como uma pena necessária para satisfazer as exigências preventivas que o caso convoca, particularmente na vertente da prevenção geral positiva, e parece-me ainda, muito honestamente, que ultrapassa o limite intransponível da culpa.
Aliás, se me é permitido um certo entorse na exposição dos fundamentos desta declaração de voto, o próprio limite mínimo legal de um ano de prisão parecer-me-ia excessivo no caso concreto para sancionar a detenção de cerca de 5 gramas de canábis, mesmo tendo presentes os antecedentes criminais do Arguido, o que constitui no meu espírito mais um sinal, se bem que algo empírico, de que a incriminação acolhida pelo acórdão não corresponde ao pensamento legislativo, visto que este, em matéria de definição das molduras penais, procura (e deve) sempre reger-se por princípios de necessidade, adequação e proporcionalidade na ingerência em direitos fundamentais.
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Por fim, admitindo por hipótese de raciocínio a incontornabilidade da pena confirmada pelo acórdão, tenderia a acolher o recurso ao cumprimento da mesma em regime de permanência na habitação. É certo que o Arguido terá já um antecedente criminal nesta matéria e até já esteve preso; mas não o é menos que a forma de cumprimento de uma pena privativa da liberdade tem também de ser congruente com o peso das exigências punitivas e das finalidades da execução da pena no caso concreto.
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(Ana Marisa Arnêdo - 2ª Adjunta)


(assinaturas eletrónicas)