Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1253/21.6T8LSB.L2-7
Relator: MICAELA SOUSA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
PROCESSO ESPECIAL DE ACOMPANHAMENTO DE MAIORES
MEDIDAS DE ACOMPANHAMENTO
MEDIDAS DE SUBSTITUIÇÃO
VONTADE DO BENEFICIÁRIO
ESCOLHA DO ACOMPANHANTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/25/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - Em face do actual regime jurídico do maior acompanhado, introduzido pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, a regra é a da capacidade de exercício das pessoas maiores de idade, constituindo objectivo da medida de acompanhamento, tal como decorre do estatuído no artigo 140º, n.º 1 do Código Civil, a promoção do bem-estar do acompanhado, a sua recuperação e assegurar o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento de deveres, o que aponta para a preservação da capacidade jurídica do beneficiário, não obstante a aplicação da medida.
II – Em face do disposto no artigo 145º do Código Civil, o regime do acompanhamento goza de maior flexibilidade, devendo respeitar, sempre que possível, a vontade do beneficiário e a sua autodeterminação e reduzir-se ao necessário, tendo o Tribunal a possibilidade de escolher e adequar, em cada situação concreta, as medidas que melhor possam contribuir para alcançar o seu objectivo.
III – No entanto, tal regime não deixa de contemplar as situações de absoluta incapacidade do beneficiário, pelo que, em casos-limite e excepcionalmente, continuam a ser admitidas medidas de substituição, como o instituto da representação geral ou administração total de bens.
IV - No processo especial de acompanhamento de maiores, o juiz não está vinculado à medida de acompanhamento requerida, dado que apenas durante o processo é possível determinar, com rigor, a medida adequada para o beneficiário e que se deve restringir ao estritamente necessário
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
O MINISTÉRIO PÚBLICO intentou acção de acompanhamento de maior, com processo especial, relativa a A [MARIA ......], divorciada, titular do cartão de cidadão n.º 22..., contribuinte fiscal n.º 11..., nascida a ... de 1937, filha de Manuel ..... e de Marina ......, natural da freguesia de Setúbal (Bocage), concelho de Setúbal, residente, desde 6 de Novembro de 2020, na Estrutura Residencial para Pessoas Idosas “Casa ...”, sita na Rua ...Lisboa, pedindo que o Tribunal decrete o seu acompanhamento, por razões de saúde, com a aplicação da medida de representação geral, com administração total dos bens, incluindo a movimentação das suas contas bancárias, nos termos do art. 145º, n.º 2, alíneas b) e c), do Código Civil, e com limitação, nos termos do art. 147º, n.º 1, do Código Civil, do exercício, pela beneficiária, da celebração de negócios da vida corrente e, pelo menos, do direito pessoal de fixar domicílio e residência e de testar, excepto se, em sede de exame pericial cuja realização se requer, se vier a apurar que o seu estado de saúde lhe permite o exercício de tais direitos, propondo para acompanhante B [ .... Fátima .... ] , filha da beneficiária.
Alegou para tanto, em síntese, o seguinte:
- A par de outras patologias, a beneficiária padece de demência, que a impede de realizar, por si, qualquer actividade básica ou instrumental da vida diária, carecendo de apoio de terceiro para tanto;
- Apresenta dificuldades ao nível da comunicação, possuindo um discurso muito confuso, desconexo e maioritariamente de conteúdo obsceno;
- Sabe o seu nome e o dia e mês do seu nascimento, mas não o ano, nem sabe a sua idade; reconhece os seus familiares e as pessoas que lhe são próximas, mas não consegue dizer os seus nomes;
- Não se encontra situada temporalmente, desconhecendo os dias da semana, os meses e os anos;
- Não reconhece os espaços e não se orienta nem na via pública, nem no interior da instituição onde se encontra integrada;
- Já não consegue ler, escrever ou assinar o seu nome, fazendo apenas pequenos cálculos aritméticos;
- Não evoca factos do seu passado próximo ou longínquo nem memoriza factos novos;
- Não desempenha, de forma autónoma, nenhuma tarefa;
- Desconhece o dinheiro e não tem noção do seu valor nem do valor económico dos bens;
- Não adquire sozinha bens, nem consegue movimentar contas bancárias, efectuar depósitos ou fazer levantamentos e pagamentos;
- Não consegue lavar-se ou tomar banho sozinha, não sendo capaz de realizar a sua higiene pessoal e carece de utilizar fralda; não confecciona as refeições; carece de auxílio para se vestir e despir;
- Necessita de total ajuda relativamente à administração da medicação que toma diariamente, uma vez que não tem noção do seu estado geral nem consegue tomar decisões no seu dia-a-dia, estando impossibilitada de exercer plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos e de cumprir os seus deveres.
Após vicissitudes atinentes a uma alegada incorrecta distribuição e prolação de decisão a anular todo o processado, posteriormente revogada por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 29 de Março de 2021, foi determinada a citação pessoal da beneficiária através de funcionário judicial (cf. Ref. Elect. 404665409).
Em 18 de Maio de 2021 foi lavrada certidão negativa dando conta da não realização da citação da requerida, por se ter verificado que não se encontra em condições de receber a citação e de se aperceber do seu conteúdo e efeitos legais, não sabendo responder, quando questionada, qual a data do seu nascimento e o dia em que se encontrava (cf. Ref. Elect. 405621762).
Foi nomeada defensora oficiosa à beneficiária que, citada nos termos do art.º 21º do Código de Processo Civil[1], não deduziu resposta (cf. Ref. Elect. 406069799).
Em 27 de Junho de 2021 foi proferido despacho a solicitar informação sobre a existência de testamento vital e de procuração de cuidados de saúde e, bem assim, envio de informação social e clínica actualizada, tendo sido designado dia para audição da beneficiária.
Foi ainda solicitado ao Instituto de Medicina Legal a nomeação de perito para acompanhamento da diligência e realização de perícia médico-legal, nos termos do disposto nos art.ºs 897º, n.º 1, 898º, n.º 2 e 899º do CPC (cf. Ref. Elect. 406825472).
No dia 20 de Julho de 2021 procedeu-se à audição da beneficiária tendo ficado consignado no respectivo auto o seguinte (cf. Ref. Elect. 407501284):
“Iniciada a presente diligência às 14:13 horas, com a observância do formalismo legal, a Mm.ª Juíza iniciou o interrogatório da acompanhada, A nos moldes e para os efeitos do disposto nos artigos 897º e 898º do Código do Processo Civil, que decorreu nos seguintes termos:
Perguntado pelo nome da filha disse não soube responder.
Perguntado pelo estado civil disse ser casada e perguntado de novo se não será divorciada reafirmou ser casada.
Perguntado pelo nome do pai, disse ser Manuel ......
Perguntado pelo nome da mãe, respondeu Marina .......
Perguntado onde nasceu e em que data disse ter nascido em Setúbal, em 11 de Abril cujo ano não soube precisar.
Perguntado pela idade disse julgar ter 56 anos e que nasceu em 1937.
Perguntado se vive sozinha respondeu afirmativamente.
Perguntado quem lhe dá o pequeno-almoço respondeu que é a própria.
Seguidamente, pela Mm.ª Juíza foi dada a palavra à perita médica, Dra. Susana Almeida, a qual no uso da mesma solicitou alguns esclarecimentos à Acompanhada – A e à Acompanhante - B, que os prestaram. […]
No decurso do interrogatório supra, e por solicitação da Mm.ª Juiz de Direito, a Acompanhante/filha, declarou ainda ter 43 anos, ser auxiliar de acção médica, ter 12º ano de escolaridade, que só viveu com a mãe ( A/acompanhada) até aos 6 anos, passando a viver com uma tia. Disse ter dois irmãos que foram criados com a avó paterna de quem nunca foi próxima não conseguindo esclarecer muito dos percursos destes. […]
Dada a palavra aos presentes, por estes foi dito nada terem a requer.
Após o que, a Mm.ª Juíza, proferiu despacho determinando que os autos aguardem por 10 dias, para junção de relatório pela Senhora Perita […]”
Em 22 de Julho de 2021 foi remetida aos autos informação social elaborada pela assistente social, Dr.ª Vanessa ..., do Programa PILAR da Santa Casa Misericórdia de Lisboa (cf. Ref. Elect. 29876198).
Em 2 de Agosto de 2021 foi junto aos autos ofício remetido pelos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, que informa não terem sido detectados, relativamente à beneficiária, procuração de cuidados de saúde ou testamento vital (cf. Ref. Elect. 29944012).
Em 10 e 13 de Setembro de 2021 foi notificada a Delegação de Lisboa do Instituto Nacional de Medicina Legal para proceder à junção do relatório pericial, conforme determinado na audição de 20 de Julho de 2021 (cf. Ref. Elect. 408386923 e 408397841).
Sem que tal relatório fosse junto, em 20 de Setembro de 2021 foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, por não provada e absolveu a requerida A do pedido (cf. Ref. Elect. 408663847).
Inconformado com tal decisão, veio o Ministério Público dela interpor o presente recurso de apelação, apresentando no final das suas alegações as seguintes conclusões (cf. Ref. Elect. 30366626):
1. O presente recurso vem interposto da sentença proferida nos autos, que julgou a presente acção improcedente, por não provada e, em consequência, absolveu a requerida A do pedido formulado pelo Ministério Público, não tendo decretado a aplicação do regime de maior acompanhado.
2. O tribunal desconsiderou o relatório clínico junto com a petição inicial, de acordo com o qual a requerida apresenta um quadro de flutuação do estado de consciência e heteroagressividade, com incapacidade para gerir a sua pessoa e bens, quadro clínico confirmado pelo relatório social junto pelo Ministério Público com a petição inicial e pela informação social também junta aos autos.
3. O tribunal proferiu a sentença recorrida não obstante a Sra. Perita que realizou o exame pericial não ter junto o relatório pericial aos autos, apesar de a sua realização ter sido determinada pelo tribunal e ter sido concedido prazo à Sra. Perita para a junção do relatório pericial.
4. Ora, para o cabal esclarecimento do quadro clínico da requerida e das suas consequências na gestão da sua pessoa e bens, entende o Ministério Público que o tribunal apenas estaria habilitado a proferir a sentença recorrida após a junção do relatório pericial aos autos.
5. Ainda que assim não se entenda, sempre se dirá que analisados todos os elementos de prova já constantes dos autos e supra descritos (relatório clínico e relatório social juntos com a petição inicial, audição da requerida, relatório social relativo à actual situação da requerida), deveria o tribunal ter dado como provada toda a factualidade alegada pelo Ministério Público na petição inicial e em consequência, ter julgado a acção totalmente procedente por provada, e em consequência ter decretado a aplicação do regime de maior acompanhado à requerida e ter nomeado sua acompanhante a sua neta, com representação geral.
6. Nos termos e para os efeitos do disposto pelo artigo 639º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil, o Ministério Público entende que são as seguintes as normas violadas pela sentença recorrida: 138º, 139º, nº 1 e 140º, nº 1, todos do Código Civil, 897º, nº 1 e 899º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil.
7. O Ministério Público não concorda com a sentença recorrida, devendo assim esta ser revogada e em consequência ser substituída por outra que seja proferida apenas após a junção do relatório pericial aos autos e em conformidade com as suas conclusões que vierem a ser formuladas.
Conclui pela procedência do recurso e revogação da sentença, que deve ser substituída por outra a proferir apenas após a junção do relatório pericial ou, assim se não entendendo, ser proferida decisão que dê como provada toda a factualidade alegada pelo Ministério Público, julgando-se a acção procedente, sendo decretada a aplicação do regime de maior acompanhado à requerida e nomeada sua acompanhante a sua neta [tratar-se-á de lapso, sendo que a acompanhante proposta é filha da requerida], com representação geral.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Em 19 de Outubro de 2021 foi remetido aos autos o relatório pericial elaborado pela senhora perita médica indicada pelo Instituto Nacional de Medicina Legal, com data de 18 de Outubro de 2021, com o seguinte teor (cf. Ref. Elect. 30566807):
“Exame Indireto:
Da consulta das peças trazidas a conhecimento para este exame, salienta-se a informação considerada relevante:
a) Da Ação Especial de Acompanhamento: “(...) Padece, a par de outras patologias, de demência - cfr. documentos n.ºs 2 a 5. 4. Em consequência desta patologia, a beneficiária não consegue realizar, por si, qualquer actividade básica ou instrumental da vida diária, carecendo de apoio de terceiro para tanto - documentos n.ºs 2 a 5. 5. Com efeito, A apresenta dificuldades ao nível da comunicação, possuindo um discurso muito confuso, desconexo e maioritariamente de conteúdo obsceno. 6 Sabe o seu nome e o dia e mês do seu nascimento, mas não sabe a sua idade nem o ano do seu nascimento. 7. Reconhece os seus familiares e as pessoas que lhe são próximas, mas não consegue dizer os seus nomes. 8 Não se encontra situada temporalmente, não-compreendendo a sucessão do tempo, desconhecendo os dias da semana, os meses e os anos. 9. De igual modo, não reconhece os espaços e não se orienta nem na via pública, nem no interior da instituição onde se encontra integrada. 10. Já não consegue ler, escrever ou assinar o seu nome. 11. Com dificuldade, consegue contar e realizar pequenos cálculos aritméticos. (…) 20. Assim, a beneficiária necessita de total auxílio de terceiros para todas as actividades da sua vida diária, designadamente ao nível da sua higiene pessoal, da sua alimentação e do seu vestuário. 21. Identicamente, necessita de total ajuda relativamente á administração da sua medicação que necessita tomar diariamente, uma vez que não tem noção do seu estado geral nem consegue tomar decisões no seu dia-a-dia. 22. Desde 06/11/2020 que se encontra integrada na Estrutura Residencial Para Pessoas Idosas “Casa ...”, sita na Rua … Lisboa, sendo os funcionários dessa instituição que têm vindo a prestar-lhe o apoio de que carece, assegurando o seu bem-estar e auxiliando a mesma nas várias actividades da vida diária. 23. A, em virtude das doenças de que padece, encontra-se impossibilitada de exercer plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos e de cumprir os seus deveres, 24 tornando-se indispensável, com vista à sua protecção, nomear-lhe acompanhante que assegure o seu bem-estar e o pleno exercício dos seus direitos bem como o cumprimento dos seus deveres. (…) representação geral com administração total dos bens, incluindo a movimentação das suas contas bancárias, nos termos do art. 145°, n.º 2, alíneas b) e c), do Código Civil, e com limitação, nos termos do art. 147°, n.º 1, do Código Civil, do exercício, pela beneficiária, da celebração de negócios da vida corrente e, pelo menos, do direito pessoal de fixar domicílio e residência e de testar, excepto, se, em sede de exame pericial cuja realização se requer, se vier a apurar que o seu estado de saúde lhe permite o exercício de tais direitos (…).”
b) Da Informação Clínica nos Autos, págs. 55 e 56 (14/12/2020): constam os seguintes diagnósticos: -Demência; -Insuficiência Cardíaca Congestiva (ICC); Cardiopatia dilatada com hipocinesia global. De acordo com a médica da instituição onde a Examinanda reside (Dr.ª Margarida Proença (Ordem dos Médicos nº 49568), pode ler-se “A informação clinica supra-citada tem por base nota de alta do Centro Hospitalar de Lisboa Central (Hospital de Santa Marta), onde a doente esteve internada por descompensação de insuficiência cardíaca em contexto de fibrilação auricular com resposta rápida. A medicação é a prescrita à data de alta. Não foi prescrita anti coagulação, não sendo os motivos especificados de forma clara, ainda que haja referência a trombocitopenia (valor não especificado e etiologia não investigada), assim como falta de apoio social prévio. Não disponho de dados suficientes para tomar uma decisão neste contexto, carecendo a doente de reavaliação, nomeadamente analítica.”
c) Do Relatório Social, 16/12/2020: “(…) A utente A nascida a ... de 1937, encontra-se institucionalizada na Casa ... desde o dia 6 de Novembro do corrente ano. Utente apoiada pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Á data de entrada a utente não conseguia mobilizar-se sem qualquer ajuda, apesar de conseguir apoiar-se em pé com auxílio de terceiros. Veio provinda do hospital de St^ Marta acompanhada pelos tripulantes de ambulância do referido hospital, É de salientar que a utente até ter dado entrada na urgência hospitalar, não foi seguida em nenhuma consulta, por recusa própria, pelo que todos os dados clínicos existentes estão na nota de alta que segue em anexo. Numa primeira abordagem, foi notória a existência de uma demência, não conseguindo localizar-se no espaço e no tempo. Referiu também ter 59 anos. Devido à pandemia a utente teve de cumprir à entrada 14 dias de isolamento. Neste tempo foi bastante percetível a desorientação da utente. Referia estar no "Brás e Brás". À data de hoje a utente reconhece o quarto como sendo o seu espaço, mas contínua sem saber o nome da instituição. Foi realizado à utente o Mini Mental, cujo resultado foi de 14 pontos, o que para a sua escolaridade indica detioração do estado cognitivo.”
Exame Direto: encontra-se sentada em cadeira “diz que é a filha”, e inicia um discurso algo confuso e por vez incoerente. Diz ser casada, (é divorciada) e diz ser cega de uma vista… chama maluca à filha e insiste que é casada. Diz o nome do pai e o nome da mãe “já está enterrada aos anos”. Diz ter nascido em Setúbal a “11 de abril”. Questionada sobre a sua idade diz ter 56 anos e ter nascido em “1937”. Vê mal e diz que não vê as caras. E que mora sozinha. Diz que come o pequeno-almoço “com a mão que consegue mexer”. Não consegue apreender o sentido e alcance do processo e do exame em curso. Em entrevista com a filha, dada a franca incapacidade cognitiva revelada pela Examinanda em fornecer dados histórico-biográficos e demais informações, apura-se que sempre terá tido antecedentes psiquiátricos, segundo a filha a qual desconhece o diagnóstico de sua mãe, ora Examinanda.
Quanto às suas atuais capacidades, a filha informa que faz atividades no lar, mas não termina as mesmas porque se cansa ou porque não as percebe. Até há 2 anos atrás não tinha sido apoiada pela Santa Casa da Misericórdia, mas após as quedas passou a ter apoio domiciliário. No entanto, após a alta do último internamento, foi orientada para uma instituição – Lar onde ela se encontra desde então. Assim, apura-se que a Examinanda tem história de múltiplas quedas e Traumatismo Crânio-encefálico (TCE) com inicio há 2 anos e está medicada com psicofármacos - Fluoxetina, Risperidona - além de medicação para a tiróide e HTA. Não faz medicação antidemencial. Não terá ficado ligada a nenhuma consulta hospitalar após a alta.
Quanto aos antecedentes familiares, são desconhecidos e irrelevantes para o presente exame.
Exame do Estado Mental: calma e colaborante, estando na posse de linguagem, mostra-se desorientada alopsiquicamente, no tempo e no espaço, parcialmente orientada na pessoa. Aspeto cuidado. Mostra-se alheada ao contexto deste exame e ao propósito deste, não percebendo o seu sentido e alcance. Foi assim notório o alheamento da examinanda ao meio envolvente e todas as suas circunstâncias. Manteve-se sentada durante todo o exame, não revelando alterações ao nível dos movimentos ou agitação motora. Consegue responder a questões muito simples, com discurso por vezes incoerente e provocado. Sem discurso espontâneo, apenas fala se solicitada, com discurso pobre em conteúdo e restrito ao concreto. Apraxia, com anomia e discalculia, não demonstrando manter preservada a capacidade cognitiva de cálculo, nem lidar com o dinheiro de forma adequada. Sem atividade delirantes estruturada, mas com alterações do conteúdo do pensamento de tipo delirante em associação com os défices cognitivos referidos e sem alterações do comportamento. Foi ficando progressivamente mais alheada e distraída, revelando dificuldade em focar a atenção ao longo do exame, mas não mostrando alterações do comportamento, nem reações emocionais graves. Evidenciou assim, deterioração cognitiva franca, com défices cognitivos major. As principais esferas cognitivas como a memória, atenção e concentração encontram-se assim muito prejudicadas, tal como o raciocínio ou intelecto. Ausência de juízo crítico e da capacidade de autodeterminação.
E. DISCUSSÃO E CONCLUSÕES:
De acordo com a avaliação clínico-forense realizada, bem como da consulta dos elementos facultados no processo, resta evidente que a Examinanda apresenta um quadro compatível com o diagnóstico de Demência não especificada (na sua causa), mas de provável etiologia mista/senil (F 03, Classificação Internacional de Doenças, versão 10ª - F 00, Organização. Mundial de Saúde, 1992).
A Demência trata-se de uma doença neurodegenerativa caracterizada por grave compromisso cognitivo. Traduz-se numa afetação adquirida e irreversível das esferas cognitivas/intelectuais global. O défice cognitivo deve compreender a alteração de memória associado à alteração em pelo menos um outro domínio cognitivo, como praxia (capacidade de realizar atividades motoras), linguagem, funções executivas ou gnosia (capacidade de reconhecer ou identificar objetos). A Examinanda preenche critérios clínicos inequívocos para tal diagnóstico poder ser realizado sem necessidade de exames complementares atuais. Este quadro neuropsiquiátrico condiciona-lhe alterações graves ao nível do entendimento e compreensão, sendo que a sua autonomia se encontra ausente. É impeditiva em termos da gestão da sua pessoa e da capacidade de suprir as suas necessidades vitais (alimentação, higiene, vestuário). Pese embora possa ter tido o seu início há dois anos, ou mais, determina-se o ano de 2020 como data de instalação definitiva do quadro demencial, de acordo com informação clínica, com agravamento progressivo e necessidade de ser integrada num Lar. Encontra-se deteriorada cognitivamente, com incapacidade progressiva e atual nas atividades da vida diária e dependência total de terceiros. É uma anomalia psíquica atual, incapacitante, progressiva, crónica e irreversível e que interfere na capacidade de exercício pleno, pessoal e consciente, dos seus direitos e deveres. Assim, o prejuízo ao nível da autodeterminação da Examinanda inviabiliza o pleno exercício de direitos e cumprimento de deveres.
A documentação clínica junta aos autos, bem como a descrição da entrevista e observação são suficientemente eloquentes permitindo afirmar que as consequências da patologia de que sofre a Examinanda são muito significativas e que, em termos pragmáticos, o funcionamento social e autonomia se encontram seriamente prejudicados. Nesse sentido, consideramos que à Examinanda não deverá ser mantido o exercício de direitos e o cumprimento de deveres. De facto, as dificuldades que a mesma apresenta, são de tal forma graves e permanentes que importarão mesmo a necessidade de ser nomeado um Acompanhante, nos termos da redação conferida pela lei 49/2018 de 14/08, tendo em conta os vários atos ou categorias de atos, previstos nos artigos 145º e 147º, ambos do Código Civil. Não manifestou manter capacidade de compreensão e entendimento suficientes e necessários para compreender o conceito e alcance da figura do “acompanhante”, de acordo com o Regime de Maior Acompanhado (RMA).
Relativamente aos meios de apoio e tratamento adequados ao défice da Examinanda, a mesma deve manter o acompanhamento médico regular em consultas de Medicina Geral e Familiar ou outras que se revelem necessárias. Preferencialmente a inserção familiar deve ser privilegiada, em termos humanos e de acompanhamento e suporte, sendo que no caso em concreto, tal não se afigura possível devendo manter-se integrada em instituição adequada (Lar), dada a necessidade da Examinanda de permanente apoio, cuidados e suporte prestado. Do ponto de vista pericial um internamento deverá ter sempre uma indicação médica, sob risco de agravamento do estado de saúde.
Face ao exposto somos do parecer que a Examinanda beneficia da nomeação de um Acompanhante com poderes de representação geral e substituição da vontade, abrangendo todos os atos da vida em sociedade, que dela possa cuidar, com quem mantenha afetividade, e que possa garantir o exercício de direitos, cumprimento de deveres, assegurar o seu bem-estar. O quadro clínico supra é irreversível e tende à estabilização, pelo que do ponto de vista médico-legal não entendemos previsível a necessidade de revisão inferior a 5 anos.
O relatório pericial foi notificado ao Ministério Público e à defensora oficiosa da beneficiária em 21 e 20 de Outubro de 2021, respectivamente (cf. Ref. Elect. 409656858 e 409656887).
Em 15 de Novembro de 2021, a senhora juíza a quo admitiu o recurso, previamente ao que teceu considerações sobre os pressupostos necessários para a aplicação da medida de acompanhamento, mantendo a decisão proferida em face da matéria de facto provada (cf. Ref. Elect. 410366081).
Em 15 de Dezembro de 2021, a ora relatora proferiu despacho, ao abrigo do disposto no art.º 652º, n.º 1, d) do CPC, mediante o qual, fazendo uso dos poderes decorrentes do estatuído no art.º 662º, n.º 2, b) do mesmo diploma legal e perante as dúvidas decorrentes da prova produzida quanto a factos essenciais para a apreciação da causa, considerou necessária a produção de novo meio de prova – prova pericial –, para o que notificou as partes para se pronunciarem sobre o conteúdo do relatório pericial junto aos autos já depois de proferida a sentença pela 1ª instância (cf. Ref. Elect. 17776228).
O Ministério Público pronunciou-se no sentido de, atendendo ao resultado da perícia médico-legal efectuada, todos os elementos de prova permitirem dar como provados os factos que a sentença da primeira instância considerou não provados, pelo que deverá ser a acção declarada procedente, determinando-se o acompanhamento da requerida, em todos os actos da sua vida social (cf. Ref. Elect. 554409).
Notificada a ilustre defensora da requerida (cf. Ref. Elect. 17805170 e 17811553), esta nada veio dizer aos autos.
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II – OBJECTO DO RECURSO
Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil[2], é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. De notar, também, que o tribunal de recurso deve desatender as conclusões que não encontrem correspondência com a motivação - cf. A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, 3ª edição, pág. 95.
Assim, perante as conclusões das alegações do requerente/apelante há que apreciar as seguintes questões:
a) Da impugnação da matéria de facto.
b) Da necessidade de aplicação de medida de acompanhamento à beneficiária requerida.
Colhidos que se mostram os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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III - FUNDAMENTAÇÃO
3.1. – FUNDAMENTOS DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provados os seguintes factos (a que cuja renumeração se procede para mais fácil compreensão, dado que na sentença recorrida figuram com a numeração decorrente da alegação vertida na petição inicial):
1. A beneficiária A nasceu a ... de 1937 (cfr. assento de nascimento que ora se junta como documento n.º 1).
2. Padece de demência.
3. A beneficiária apresenta dificuldades ao nível da comunicação, possuindo um discurso pouco fluente.
4. Sabe o seu nome e o dia e mês do seu nascimento.
5. Reconhece os seus familiares e as pessoas que lhe são próximas.
6. Com dificuldade, consegue contar e realizar pequenos cálculos aritméticos.
7. De igual modo, não consegue movimentar contas bancárias, efectuar depósitos ou fazer levantamentos e pagamentos.
8. Não consegue lavar-se ou tomar banho sozinha, não sendo capaz de realizar a sua higiene pessoal e carece de utilizar fralda.
9. Alimenta-se sozinha mas não confecciona nenhuma das suas refeições.
10. De igual modo, carece de auxílio para se vestir e despir.
11. Desde 06/11/2020 que se encontra integrada na Estrutura Residencial para Pessoas Idosas “Casa ...”, sita na Rua ...Lisboa, sendo os funcionários dessa instituição que têm vindo a prestar-lhe o apoio de que carece, assegurando o seu bem-estar e auxiliando a mesma nas várias actividades da vida diária.
12. Com efeito, a beneficiária aufere uma pensão paga pelo Centro Nacional de Pensões através de transferência bancária para conta da sua titularidade – cfr. documentos n.ºs 6 e 7.
13. Existindo necessidade de providenciar e praticar todos os actos necessários à administração e gestão dos seus rendimentos e de providenciar pelo pagamento das mensalidades devidas pela integração da beneficiária no lar onde se encontra a residir.
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O Tribunal a quo deu como não provados os seguintes factos:
a. Não se encontra situada temporalmente, não compreendendo a sucessão do tempo, desconhecendo os dias da semana, os meses e os anos;
b. De igual modo, não reconhece os espaços e não se orienta nem na via pública, nem no interior da instituição onde se encontra integrada;
c. Já não consegue ler, escrever ou assinar o seu nome;
d. Não evoca factos do seu passado próximo ou longínquo nem memoriza factos novos;
e. Não desempenha, de forma autónoma, nenhuma tarefa;
f. Desconhece o dinheiro e não tem noção do seu valor nem do valor económico dos bens;
g. Não adquire, sozinha, bens de que necessite;
h. Identicamente, necessita de total ajuda relativamente à administração da sua medicação que necessita tomar diariamente, uma vez que não tem noção do seu estado geral nem consegue tomar decisões no seu dia-a-dia.
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3.2. – APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
Da Impugnação da Matéria de Facto
Estabelece o art.º 662º n.º 1 do CPC que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente, impuserem decisão diversa.
Ao assim dispor, pretendeu o legislador que a Relação fizesse novo julgamento da matéria de facto, fosse à procura da sua própria convicção e, assim, se assegurasse o duplo grau de jurisdição em relação à matéria de facto – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6-12-2016, processo n.º 437/11.0TBBGC.G1.S1[3].
Dispõe o art.º 640º, n.º 1 do CPC:
“Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
À luz do normativo transcrito, afere-se que em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.
Fundando-se a impugnação em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados (existem três tipos de meios de prova: os que constam do próprio processo – documentos ou confissões reduzidas a escrito -; os que nele ficaram registados por escritos – depoimentos antecipadamente prestados ou prestados por carta, mas que não foi possível gravar -; os que foram oralmente produzidos perante o tribunal ou por carta e que ficaram gravados em sistema áudio ou vídeo), o recorrente deve especificar, na motivação, aqueles que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.
O recorrente deve consignar, na motivação do recurso, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, o que é exigido no contexto do ónus de alegação, de modo a evitar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente.
De notar que a exigência de síntese final exerce a função de confrontar o recorrido com o ónus de contra-alegação, no exercício do contraditório, evitando a formação de dúvidas sobre o que realmente pretende o recorrente – cf. A. Abrantes Geraldes, op. cit., pág. 142, nota 228.
Abrantes Geraldes pugna no sentido de que “A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações:
a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º, n.º 4, e 641º, n.º 2, al. B));
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (art. 640º, n.º 1, al. a));
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v. g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.” – cf. op. cit., 2016, 3ª edição, pág. 142.
É conhecida a divergência jurisprudencial quanto a saber se os requisitos do ónus impugnatório previstos no normativo legal supra transcrito, devem figurar apenas no corpo das alegações ou se também devem ser levados às conclusões sob pena da rejeição do recurso (cf. art.ºs 635º, n.º 2 e 639º, n.º 1 do CPC).
No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2015, processo n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1 refere-se de modo esclarecedor:
“ […] a exigência da especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem questionar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio tem por função delimitar o objecto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto. Por sua vez, a especificação dos concretos meios probatórios convocados, bem como a indicação exacta das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, serve sobretudo de parâmetro da amplitude com que o tribunal de recurso deve reapreciar a prova, sem prejuízo do seu poder inquisitório sobre toda a prova produzida que se afigure relevante para tal reapreciação, como decorre hoje, claramente, do preceituado no n.º 1 do artigo 662.º do CPC. É, pois, em vista dessa função, no tocante à decisão de facto, que a lei comina a inobservância daqueles requisitos de impugnação com a sanção da rejeição imediata do recurso, ou seja, sem possibilidade de suprimento, na parte afectada, nos termos do artigo 640.º, n.º 1, proémio, e n.º 2, alínea a), do CPC. Não sofre, pois, qualquer dúvida que a falta de especificação dos requisitos enunciados no n.º 1 do referido artigo 640.º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada.”
Neste aresto, nomeadamente em face do seu sumário, afigura-se que se adopta o entendimento de que a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, não se afigurando que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objecto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.
Num outro acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-10-2015, processo n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1 aduz-se, a este propósito, ser “possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação []; e um ónus secundário – tendente, não tanto a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida – que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas – indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização das passagens da gravação relevantes.”
E o mesmo Tribunal afirmou no acórdão de 31-5-2016, processo n.º 1572/12.2TBABT.E1.S1:
“[] do art. 640º nº 1 al. b) não resulta que a discriminação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou da gravação realizada tenha que ser feita exclusiva e unicamente nas conclusões. Tem sim, essa especificação de ser efectuada nas alegações. Nas conclusões deve ser incluída a questão atinente à impugnação da matéria de facto, ou seja, aí deve introduzir-se, sinteticamente “os fundamentos por que pede a alteração (ou anulação) da decisão” (art. 639º nº 1), o que servirá para o recorrente afirmar que matéria de facto pretende ver reapreciada, indicando os pontos concretos que considera como incorrectamente julgados, face aos meios probatórios que indica nas alegações.”
Para além disto, importa realçar a distinção que se impõe efectuar entre aquilo que constitui requisito formal do ónus de impugnação da decisão de facto, cuja inobservância impede que se entre no conhecimento do objecto do recurso e o que se encontra já abrangido pelo âmbito da reapreciação da decisão de facto, devidamente impugnada, mediante a reavaliação da prova convocada e tida por relevante.
O recorrente identifica como objecto do presente recurso a sua discordância relativamente aos factos dados como não provados pelo tribunal recorrido, que reproduz – alíneas a. a h. dos factos não provados -, considerando que este proferiu decisão antes de ser junto o relatório pericial, sendo que, mesmo na ausência deste, face aos relatórios clínico e social juntos com a petição inicial, e em vista da audição da requerida, deveria ter sido dada como provada toda a factualidade alegada pelo Ministério Público.
Como se retira do acima expendido, os requisitos do ónus impugnatório cingem-se à especificação dos pontos de facto impugnados, dos concretos meios de prova convocados, da decisão que, no entender do recorrente, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, com expressa indicação das passagens dos depoimentos gravados em que se funda o recurso (cf. alínea a) do n.º 2 do art. 640º do CPC).
Apesar de o recorrente não ter adoptado a estrutura mais usual (e mais clara) em sede de alegação de recurso – distinguindo a impugnação da matéria de facto da impugnação da matéria de direito -, cumulando argumentos, seja de prolação intempestiva da sentença, seja de incorrecta ponderação da prova, sem uma linha clara e escorreita de argumentação recursória, certo é que, não obstante tais fragilidades, não deixou de indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados – todos os incluídos na matéria de facto dada como não provada - e a decisão que, no seu entender, deveria ter sido proferida sobre tais questões de facto – serem tais factos dados como provados.
Além disso, após sustentar que a sentença apenas deveria ter sido proferida após a junção do relatório pericial, o recorrente, ainda assim, concluiu que sempre o seu conteúdo teria de ser diverso, porquanto a prova documental junta ao processo teria de conduzir à prova dos factos ora impugnados, pronunciando-se sobre a valia probatória que àquela não foi conferida e que, na sua perspectiva, deveria ter sido, para afirmar que a conclusão que deles o tribunal a quo retirou foi errada. Ou seja, o recorrente analisou a prova documental junta aos autos para suportar aquelas que são as suas ilações, distintas da do Tribunal a quo, pugnando serem aquelas as que a prova produzida autoriza.
Se é certo que o recorrente não se pode demitir de efectuar uma apreciação crítica dos meios de prova que convoca para reapreciação, não bastando a sua mera enunciação, porquanto a decisão que indica como sendo aquela que deveria ter sido proferida deve resultar da análise que o próprio efectue sobre os meios de prova produzidos, apesar de alguma incipiência da argumentação aduzida, tal apreciação não deixou de ser efectuada, sendo que a apontada debilidade corresponderá antes a uma questão de procedência ou improcedência da impugnação da matéria de facto e não de cumprimento ou incumprimento do respectivo ónus impugnatório.
Importa notar que, não obstante as exigências inerentes à impugnação da matéria de facto deverem ser apreciadas “à luz de um critério de rigor”, enquanto decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, não se deve interpretá-las a um nível de exigência tal que seja violado o princípio da proporcionalidade, com a consequente denegação de reapreciação da decisão da matéria de facto – cf. neste sentido, A. Abrantes Geraldes, op. cit., pág. 143.
Além disso, deve considerar-se que “a insuficiência ou a mediocridade da fundamentação probatória aduzida pelo recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação.” – cf. acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2015 acima referido; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8-02-2018, processo n.º 8440/14.1T8PRT.P1.S1.
Assim, em face do conteúdo das alegações e conclusões do recorrente deve reconhecer-se que este cumpriu, ao menos minimamente, o ónus impugnatório e respectivos requisitos que sobre si impendia.
Impõe-se, assim, analisar os documentos juntos aos autos, a audição da beneficiária e, agora, também o relatório pericial, a propósito dos factos vertidos nas alíneas a. a h. da matéria de facto não provada, para verificar se tal factualidade deveria merecer decisão em consonância com o preconizado pelo apelante, ou se, ao invés, aquela não merece censura, atenta a fundamentação aduzida pelo Tribunal a quo.
Factos vertidos nas alíneas a. a h. da matéria de facto não provada
O Tribunal a quo julgou não provados os seguintes factos, relativamente às competências da requerida:
a. Não se encontra situada temporalmente, não compreendendo a sucessão do tempo, desconhecendo os dias da semana, os meses e os anos;
b. De igual modo, não reconhece os espaços e não se orienta nem na via pública, nem no interior da instituição onde se encontra integrada;
c. Já não consegue ler, escrever ou assinar o seu nome;
d. Não evoca factos do seu passado próximo ou longínquo nem memoriza factos novos;
e. Não desempenha, de forma autónoma, nenhuma tarefa;
f. Desconhece o dinheiro e não tem noção do seu valor nem do valor económico dos bens;
g. Não adquire, sozinha, bens de que necessite;
h. Identicamente, necessita de total ajuda relativamente à administração da sua medicação que necessita tomar diariamente, uma vez que não tem noção do seu estado geral nem consegue tomar decisões no seu dia-a-dia.
E fundamentou a sua convicção nos seguintes termos:
“Da audição da beneficiária A ficou-se com a impressão de que esta compreende, na globalidade, o que se pretende com a sua inquirição, não obstante ter colaborado com muita relutância, até ao final.
Acompanhava a beneficiária A, a sua neta C que a ajudou, sendo notório que entre ambas existe uma relação pessoal de auxílio mútuo e afectividade.
No julgamento dos factos não provados supra, arts. 8, 9, 10, 12, 13, 14, 15 e 21 da petição levou-se em consideração os meios de prova já mencionados, dos quais não se extrai com a necessária segurança que os factos alegados pelo Ministério Público, ocorram e, ainda, que ocorram como se mostram descritos.
A beneficiária A, nasceu em 1937, tem 84 anos de idade, pelo que não pontua como se tivesse 40 anos de idade.
Haverá, ainda, que ponderar que com a mudança de ambiente para o Lar, provinda de meio hospitalar, a beneficiária possa ter-se insurgido e piorado. Não obstante, crê-se que tal comportamento e atitude é transitória, mostrando-se a mesma integrada no Lar.”
O apelante sustenta, desde logo, que o relatório social junto com a petição inicial revela que a requerida apresenta um quadro clínico de flutuação do estado de consciência e heteroagressividade, não demonstrando capacidade para gerir a sua pessoa e bens, dando conta de um quadro de demência, com desorientação no espaço e no tempo, discurso confuso e sem nexo, o que foi confirmado pela informação social de 22 de Julho de 2021.
A decisão recorrida deu como não provados os factos acima enunciados invocando, precisamente, a falta de segurança que emergia do conteúdo de tais elementos documentais para dar como provados os factos, tal como foram alegados pelo Ministério Público, sendo certo que perante a obrigação que sobre si recaía de averiguar oficiosamente tais factos, com vista à determinação de eventual patologia da beneficiária que justificasse (ou não) a aplicação da medida de acompanhamento, optou por proferir decisão sem aguardar pela prova pericial que poderia esclarecer as dúvidas que entendia existir.
Aliás, note-se, que o tribunal recorrido louvou-se precisamente nos relatórios médicos, informações clínicas e relatórios sociais juntos aos autos para dar como demonstrado que a beneficiária padece de demência, tem dificuldades de comunicação, com um discurso pouco fluente, reconhece familiares, não consegue movimentar contas bancárias, efectuar depósitos ou levantamentos e pagamentos, não consegue tomar banho, vestir-se ou despir-se ou tratar da sua higiene diária, usando fralda, sendo que quanto aos demais factos, na perspectiva do tribunal, tais elementos já não possuem valia probatória – cf. pontos 2., 3., 5. e 7. a 10. dos factos provados.
Os documentos a que se alude são os seguintes:
- Documento n.º 2 junto com a petição inicial - informação clínica subscrita por Margarida Proença, inscrita na Ordem dos Médicos com o n.º 49568, médica que presta assistência na Casa ..., onde reside a beneficiária, que relata apenas o tratamento de que esta foi alvo durante o internamento no Centro Hospitalar de Lisboa Central (Hospital de Santa Marta), onde se identifica como problemas de saúde: demência, insuficiência cardíaca congestiva e cardiopatia dilatada, com hipocinésia global; refere ainda, entre os principais problemas, múltiplas quedas, com traumatismo crânio-encefálico.
- Documento n.º 3 junto com a petição inicial – relatório clínico do serviço de Medicina Interna do Hospital de Santa Marta, com data de 23 de Outubro de 2020, que dá conta da admissão da requerida nesse serviço, em 9 de Outubro de 2020, provinda do serviço de urgência do Hospital de São José, relatando a requerida como “dependente para as actividades da vida diária; residia no domicílio com apoio domiciliário para higiene e refeições; história recorrente de quedas, tendo sido assistida no serviço de urgência no contexto de nova queda com traumatismo”, consignando-se ainda: “por flutuação do estado de consciência e heteroagressividade foi pedida a observação pela Psiquiatria que considerou que a doente não demonstra ter capacidade para decidir sobre a sua pessoa e bens. Neste momento, do ponto de vista funcional, o doente encontra-se a tolerar levante para cadeirão, ajudando transferências. Alimenta-se autonomamente, no entanto, precisa de ajuda para a higiene pessoal”;
- Documento n.º 4 junto com a petição inicial – Nota de Alta – Medicina Interna – Hospital de Santa Marta, com data de 5 de Novembro de 2020, onde se refere como data de alta da Medicina, 29 de Outubro de 2020 e data da alta hospitalar, 5 de Novembro de 2020, reportando-se como motivo do internamento disritmia a condicionar queda da própria altura, onde se relata o seguinte: “Doente do sexo feminino, 83 anos de idade. Dependente nas actividades de vida diária. Reside sozinha com apoio domiciliário diário para medicação, refeições e higiene da Santa Casa, às vezes recusado pela própria. […] Doente levada ao Serviço de Urgência (SU) por queda da própria altura com TCE. À observação consciente, orientada na pessoa, desorientada no espaço e tempo. Com discurso desorganizado, hemodinamicamente estável, taquicardia, Sat02 96% em ar ambiente, apirética, auscultação cardíaca com tons arrítmicos sem sopros e auscultação pulmonar com murmúrio vesicular mantido, sem ruídos adventícios. […] Por quadro de FA com RVR foi iniciada perfusão de amiodarona e fez ainda sulfato de magnésio com controlo de frequência. Dada ausência de mais alterações foi, do ponto de vista clínico, decidida alta sob bisoprolol mas ficou com alta pendente da avaliação do serviço social. […] Por ausência de margem clínica para orientação em ambulatório foi internada na Unidade Funcional de Medicina 4 para continuação de cuidados e resolução social. […] Durante o internamento foi avaliada pela Psiquiatria de Ligação – “doente com demência mista em evolução e eventuais traços obsessivo-paranoides da personalidade, não demonstrando ter capacidade para decidir sobre a sua pessoa e bens.” Sugerida terapêutica com fluoxetina 20 mg de manhã e risperidona 1 mg ao jantar. Em SOS risparidona 0,5 mg sol oral. Dada a ausência de intercorrências a doente permaneceu internada com alta clínica aguardando resolução da situação social com vista a integração em instituição. […] Destino/Recomendações – Lar.”;
- Documento n.º 5 junto com a petição inicial – Relatório Social emitido pela Casa ... – Residência Geriátrica, com data de 16 de Dezembro de 2020, subscrito pela assistente social Leandra Cardoso, onde se refere que à entrada na instituição era notória a existência de uma demência, não conseguindo a requerida localizar-se no espaço e no tempo, tendo dito ter 59 anos; à data do relatório, reconhecia o quarto como sendo o seu espaço, mas continuava sem saber o nome da instituição; realizado à utente o Mini Mental, o resultado foi de 14 pontos, o que para a sua escolaridade indica deterioração do estado cognitivo; não consegue orientar-se no espaço no interior da instituição; apesar da pandemia e não tendo saído da instituição, sozinha não poderia fazê-lo; até então nunca conseguiu indicar o dia, mês ou ano em que nos encontramos; responde correctamente o nome, o dia e mês do nascimento, mas não o ano; o discurso é fluente e articulado, contudo muito confuso, sem nexo e a maioria das vezes bastante obsceno; não conseguiu escrever o nome ou qualquer outra frase, por falta de acuidade visual; foi capaz de realizar operações de subtracção por 5 séries; auxilia mas não consegue realizar as tarefas de higiene na totalidade; alimenta-se por mão própria e mobiliza-se em curtos espaços no interior da instituição; carece de material de incontinência durante o dia e noite; tem sempre ajuda das colaboradoras para se vestir; não parece possível confeccionar refeições; conhece os colaboradores da instituição mas não sabe os nomes; reconhece a filha e netos; não foi possível apurar até o momento a memorização de factos novos; não conseguiu distinguir moedas de botões; não consegue ter noção do valor económico dos bens, bem como de aquisição de bens. Conclui que a requerida não consegue tomar decisões conscientes referentes ao quotidiano;
- Documento junto aos autos a 22 de Julho de 2021 (cf. Ref. Elect. 29876198) – Informação Social subscrita pela assistente social da Santa Casa Misericórdia de Lisboa, Vanessa Sofie Santos, com data de 19 de Julho de 2021, onde se dá conta da integração da requerida na Casa ..., recebendo visitas quinzenais da filha, B, que gere os rendimentos da mãe e o pagamento à instituição, sendo que a directora da Casa refere que a idosa não é receptiva à presença da filha, adoptando vocabulário inapropriado, o que pode estar relacionado com o seu processo demencial; a utente está dependente de terceiros para a realização das actividades da vida diária; não consegue orientar-se no espaço no interior da instituição; nunca conseguiu indicar o dia, mês ou ano em que se encontra; responde acertadamente o seu nome, dia e mês do nascimento, mas não o ano; discurso fluente e articulado mas muito confuso.
Do conteúdo destas informações clínicas e sociais que, de modo confluente, indicam que a requerida não consegue mencionar o dia, o mês e o ano em que se encontra, assim como não identifica o ano do seu nascimento ou a sua idade, não sendo capaz de se orientar no interior da instituição, reconhecendo apenas o seu quarto, apesar de lá residir, por referência à data da última informação, há cerca de oito meses, é possível concluir estar suficientemente demonstrada a sua desorientação no tempo e no espaço, o que conduziria, desde logo, à formação de convicção diversa da obtida pelo tribunal recorrido, quanto aos factos vertidos nas alíneas a. e b. dos factos não provados.
Por sua vez, a incapacidade para fixar factos novos, desempenhar autonomamente tarefas, na sua totalidade, e conhecer o dinheiro e seu valor também decorre do conteúdo dos documentos supra mencionados.
Mas se tais documentos não se apresentassem bastantes, por si só, para dar como provados tais factos, a audição da beneficiária auxiliaria nesse sentido.
Com efeito, ouvida a gravação da diligência de audição da requerida, a percepção que dela se retira é totalmente inversa daquela que o tribunal recorrido reteve e manifestou na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto.
Na verdade, não se percebe como pôde a senhora juíza a quo afirmar: “ficou-se com a impressão de que esta compreende, na globalidade, o que se pretende com a sua inquirição, não obstante ter colaborado com muita relutância, até ao final”.
A audição da gravação revela algo inteiramente distinto.
Esta diligência foi efectuada através da plataforma de videoconferências Webex, o que, naturalmente, dificulta o estabelecimento de comunicação com uma pessoa que, por si só, já revela dificuldades nesse âmbito.
De todo o modo, foi possível manter essa comunicação. No entanto, ao contrário do que se afirma na decisão recorrida, nada aponta no sentido de que a requerida tenha percebido a finalidade da sua inquirição ou o contexto em que esta teve lugar, desde logo porque apenas no final da inquirição efectuada pela senhora juíza a quo, esta a informou de quem era e em que qualidade ali estava, ou seja, que estava a ser inquirida no âmbito de um processo judicial, com vista a prestar-lhe ajuda (cf. minuto 6.50 da gravação).
Confrontada com essa informação, a requerida nada respondeu, não tendo esboçado qualquer menção ou palavra que permita afirmar que compreendeu o que lhe foi transmitido.
Por outro lado, à beneficiária não foi sequer perguntado o seu nome no decurso da diligência, porquanto foi a senhora juíza quem o enunciou, perguntando quem era, o que gerou confusão sobre se era a filha, que se encontrava presente (e não neta, como se refere na decisão, e se pode aferir do documento n.º 8 junto com a petição inicial).
Indagada, a requerida não soube dizer o nome da filha, asseverou ser casada - sendo certo que é divorciada (cf. documento n.º 1 junto com a petição inicial) -, não conseguiu dizer correctamente o dia, mês e ano de nascimento (mencionou mais adiante o ano 1937 mas já fora do contexto desta pergunta) e tão-pouco indicou correctamente a sua idade (dizendo ter 56 anos); apenas foi capaz de dizer correctamente os nomes de pai e mãe; mais disse residir sozinha (não mencionou estar num lar) e que era a própria quem preparava o seu pequeno-almoço.
Inquirida pela senhora perita presente, a beneficiária não foi capaz de identificar o local onde mora e iniciou um discurso confuso e imperceptível, sobre inquilinos e obras; indagada sobre se padecia de alguma doença, disse sofrer do coração, desde pequena e que toma comprimidos, mas não soube dizer o nome de nenhum.
A partir do minuto 9.47 da gravação todas as perguntas foram dirigidas à filha da beneficiária, B, que acompanhava a mãe, e que revelou conhecimento sobre a situação desta na instituição, sobre as suas competências e capacidades.
Assim, a audição da beneficiária, em face do que foi possível constatar, revela, ao contrário do expendido na decisão recorrida, a sua manifesta dificuldade em manter um discurso coerente, a perda de noção das circunstâncias da sua vida, designadamente, idade, morada, estado civil e, bem assim, sobre as próprias competências para tratar dos actos da sua vida diária.
E contra isto não se diga, como parece resultar da fundamentação da decisão recorrida, que uma pessoa com 84 anos de idade apresenta, por si só, estas debilidades. Com efeito, a idade, isoladamente, ainda que avançada, não implica perda de consciência sobre se se é casado ou divorciado, ou falta de conhecimento do local onde se reside, ou ainda incapacidade de indicar a data de nascimento, ou se se reside sozinho em casa própria ou integrado em lar. O desconhecimento destas circunstâncias e a falta de discurso coerente e seguro revelam, pelo contrário, uma afectação clara da capacidade da beneficiária e das suas competências, que a idade, por si só, não determina.
Mas se estes elementos não fossem bastantes para demonstrar os factos alegados pelo Ministério Público, estes resultam amplamente comprovados pelo teor do relatório pericial.
É sabido que na nossa ordem jurídica a perícia é um meio de prova que visa a percepção de factos ou a sua valoração de modo a constituir prova atendível.
O perito é um auxiliar do juiz, sendo um intermediário entre a fonte de prova (pessoal ou real) e o tribunal, posto que os seus conhecimentos especializados são necessários para a compreensão correcta da prova atinente a uma determinada questão que se impõe apreciar.
O juízo técnico e científico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador, pela razão de que este apenas dele poderá divergir com um acrescido dever de fundamentação.
A perícia tem como finalidade auxiliar o julgador na percepção ou apreciação dos factos a que há-de ser aplicado o direito, sempre que sejam exigidos conhecimentos especiais que só os peritos possuem. No entanto, ainda que o relatório pericial esteja fundamentado em conhecimentos especiais que o juiz não possui, é este quem tem o ónus de decidir sobre a realidade dos factos a que deve aplicar o direito – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-09-2019, processo n.º 2009/17.6T8OER-C.L1-7.
Em termos valorativos, os exames periciais configuram elementos meramente informativos, de modo que, do ponto de vista da juridicidade, cabe sempre ao julgador a valoração definitiva dos factos pericialmente apreciados, conjuntamente com as demais provas.
Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22-03-2021, processo n.º 22295/19.6T8PRT.P1:
“A prova pericial destina-se, como qualquer outra prova, a demonstrar a realidade dos factos (artº 341º do Código Civil), sendo que essa demonstração que se pretende com a prova se traduz na convicção subjetiva, criada no espírito do julgador, de que aquele facto ocorreu. Não se trata de uma certeza absoluta acerca da realidade dos factos, que nunca seria alcançável, mas de um grau de convicção suficiente para as exigências da vida. Aquilo que a singulariza é o seu peculiar objeto: a perceção ou averiguação de factos que reclamem conhecimentos especiais que o julgador comprovadamente não domina (cfr. artº 388º, do Código Civil, que estatui que “A prova pericial tem por fim a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objeto de inspeção judicial.”).
E uma vez realizada a perícia, o resultado da mesma é expresso em relatório, no qual o perito se pronuncia, fundamentadamente, sobre o respetivo objeto (artº 484º), questão ou questões direta ou indiretamente ligadas à matéria de facto controvertida para posterior apreciação, pelo juiz, segundo as regras da livre convicção (art. 389º, do CC e art. 607º, nº 5, do CPC), que, no entanto, sofrerão uma importante restrição precisamente motivada pelo diferencial de conhecimentos técnicos.
Na verdade, a “prova pericial encontra-se sujeita ao princípio da livre apreciação da prova, o qual impõe ao julgador que decida os factos em julgamento segundo a sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação da prova trazida ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e do conhecimento das pessoas, utilizando, nessa avaliação, critérios objetivos, genericamente suscetíveis de motivação e controlo” sendo que “os factos puramente descritivos que constam do relatório pericial, isto é, que não envolvam conhecimentos especializados para a sua percepção (compreensão) e/ou apreciação (valoração), não gozam de qualquer força probatória especial em relação à dos restantes meios de prova. Já os factos cuja percepção (compreensão) e/ou apreciação (valorização) reclame conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos especializados, não acessíveis ao julgador médio, apenas podem ser infirmados ou rebatidos com fundamentos da mesma natureza aos utilizados pelos peritos”.
A perícia tem por objeto as questões de facto que se contêm no âmbito da causa de pedir e do pedido enunciados pelo Autor ou na defesa invocada pelo Réu, a que o juiz tem […] de dar resposta direta na sentença.”
Assim é que a força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal, nos termos do art. 389º do Código Civil.
Neste caso a especificidade das questões colocadas ao Tribunal no que concerne à capacidade de discernimento, de exercício de direitos e deveres e autodeterminação por parte da requerida passa necessariamente pela análise que a senhora perita médica efectuou e ponderação das conclusões a que chegou, por esta dispor de conhecimentos especializados na área da ciência em referência que o julgador não possui.
Como tal, em termos de juízo técnico e científico, o relatório pericial junto aos autos e supra transcrito permite aferir o seguinte, quanto ao estado de saúde actual da requerida:
- Não consegue apreender o sentido e alcance do processo e do exame efectuado;
- Tem antecedentes psiquiátricos, sem diagnóstico apurado;
- Está medicada com psicofármacos – fluoxetina e risperidona -, além de medicação para a tiróide e HTA; não faz medicação antidemencial;
- Mostra-se desorientada alopsiquicamente, no tempo e no espaço e parcialmente orientada na pessoa;
- Apraxia, com anomia e discalculia, não demonstrando manter preservada a capacidade cognitiva de cálculo, nem lidar com o dinheiro de forma adequada;
- Com alterações do conteúdo do pensamento de tipo delirante em associação com os défices cognitivos e sem alterações de comportamento;
- Deterioração cognitiva franca, com défices cognitivos major;
- As principais esferas cognitivas como a memória, atenção e concentração estão muito prejudicadas, tal como o raciocínio e o intelecto;
- Ausência de juízo crítico e da capacidade de autodeterminação.
Perante estes dados, a senhora perita médica concluiu o seguinte:
“A examinanda apresenta um quadro compatível com o diagnóstico de Demência não especificada (na sua causa), mas de provável etiologia mista/senil (F 03, Classificação Internacional de Doenças, versão 10ª – F00, Organização Mundial de Saúde, 1992)
A Demência trata-se de uma doença neurodegenerativa caracterizada por grave compromisso cognitivo. Traduz-se numa afetação adquirida e irreversível das esferas cognitivas/intelectuais global. O défice cognitivo deve compreender a alteração de memória associado à alteração em pelo menos um outro domínio cognitivo, como praxia (capacidade de realizar atividades motoras), linguagem, funções executivas ou gnosia (capacidade de reconhecer ou identificar objetos). A Examinanda preenche critérios clínicos inequívocos para tal diagnóstico poder ser realizado sem necessidade de exames complementares atuais. Este quadro neuropsiquiátrico condiciona-lhe alterações graves ao nível do entendimento e compreensão, sendo que a sua autonomia se encontra ausente. É impeditiva em termos da gestão da sua pessoa e da capacidade de suprir as suas necessidades vitais (alimentação, higiene, vestuário). Pese embora possa ter tido o seu início há dois anos, ou mais, determina-se o ano de 2020 como data de instalação definitiva do quadro demencial, de acordo com informação clínica, com agravamento progressivo e necessidade de ser integrada num Lar. Encontra-se deteriorada cognitivamente, com incapacidade progressiva e atual nas atividades da vida diária e dependência total de terceiros. É uma anomalia psíquica atual, incapacitante, progressiva, crónica e irreversível e que interfere na capacidade de exercício pleno, pessoal e consciente, dos seus direitos e deveres. Assim, o prejuízo ao nível da autodeterminação da Examinanda inviabiliza o pleno exercício de direitos e cumprimento de deveres.
A documentação clínica junta aos autos, bem como a descrição da entrevista e observação são suficientemente eloquentes permitindo afirmar que as consequências da patologia de que sofre a Examinanda são muito significativas e que, em termos pragmáticos, o funcionamento social e autonomia se encontram seriamente prejudicados. Nesse sentido, consideramos que à Examinanda não deverá ser mantido o exercício de direitos e o cumprimento de deveres. De facto, as dificuldades que a mesma apresenta, são de tal forma graves e permanentes que importarão mesmo a necessidade de ser nomeado um Acompanhante, nos termos da redação conferida pela lei 49/2018 de 14/08, tendo em conta os vários atos ou categorias de atos, previstos nos artigos 145º e 147º, ambos do Código Civil. Não manifestou manter capacidade de compreensão e entendimento suficientes e necessários para compreender o conceito e alcance da figura do “acompanhante”, de acordo com o Regime de Maior Acompanhado (RMA).
Relativamente aos meios de apoio e tratamento adequados ao défice da Examinanda, a mesma deve manter o acompanhamento médico regular em consultas de Medicina Geral e Familiar ou outras que se revelem necessárias. Preferencialmente a inserção familiar deve ser privilegiada, em termos humanos e de acompanhamento e suporte, sendo que no caso em concreto, tal não se afigura possível devendo manter-se integrada em instituição adequada (Lar), dada a necessidade da Examinanda de permanente apoio, cuidados e suporte prestado. Do ponto de vista pericial um internamento deverá ter sempre uma indicação médica, sob risco de agravamento do estado de saúde.
Face ao exposto somos do parecer que a Examinanda beneficia da nomeação de um Acompanhante com poderes de representação geral e substituição da vontade, abrangendo todos os atos da vida em sociedade, que dela possa cuidar, com quem mantenha afetividade, e que possa garantir o exercício de direitos, cumprimento de deveres, assegurar o seu bem-estar. O quadro clínico supra é irreversível e tende à estabilização, pelo que do ponto de vista médico-legal não entendemos previsível a necessidade de revisão inferior a 5 anos.
Em face destas conclusões, afigura-se evidente a perda de capacidade cognitiva, a falta de capacidade de realizar tarefas motoras, a dificuldade na linguagem, com alterações graves na capacidade de entendimento e compreensão, não sendo a beneficiária capaz de se autodeterminar, o que a impede de gerir a sua pessoa e satisfazer, por si, as suas necessidades básicas (alimentação, higiene, vestuário).
Sendo este o quadro técnico científico descrito pela senhora perita médica, mostram-se corroborados os demais elementos documentais supra mencionados e, bem assim, os dados que foram revelados através da audição da beneficiária, o que impõe um juízo probatório totalmente distinto daquele que foi o da 1ª instância e determina que sejam dados como provados os factos que foram por esta considerados como não provados.
Assim, deferindo a pretensão recursória no que concerne à impugnação da matéria de facto (com excepção do facto vertido na alínea c. dos factos não provados, que não resultou claramente demonstrado), consideram-se provados os seguintes factos (que transitam da matéria de facto não provada para a provada, e, por força dos quais serão introduzidas correcções na matéria de facto já apurada para evitar repetições e contradições):
13. Em consequência da patologia de que padece – demência – a beneficiária não consegue realizar, por si e na totalidade, as actividades básicas da vida diária, como sejam tomar banho, vestir-se, confeccionar refeições, carecendo para tanto do apoio de terceiros e, bem assim, para tomar a medicação diária.
14. Não consegue identificar o dia, mês e ano do seu nascimento, nem consegue indicar a sua idade.
15. Mostra-se desorientada no espaço, sendo apenas capaz de reconhecer o seu quarto, mas não sabendo deslocar-se na instituição onde reside e tão-pouco na via pública.
16. Desorientada também no tempo, não conseguindo indicar, o dia da semana, mês e ano em que se encontra.
17. Revela défices cognitivos ao nível da memória, atenção e concentração, tal como o raciocínio ou intelecto, não sendo capaz de evocar factos do passado ou memorizar factos novos.
18. Desconhece o valor económico dos bens, não sendo capaz de adquirir bens de que necessite.
19. Não revela capacidade para tomar decisões no seu dia-a-dia.
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Em conformidade com os factos que ora se dão como provados, impõe-se corrigir a matéria de facto já apurada, integrando-a com os agora apurados, tendo-se ainda em conta que no âmbito do processo de acompanhamento de maior cabe ao tribunal apurar os factos essenciais e outros complementares ou instrumentais, que resultem da instrução da causa, aditando-se, assim, outros que resultam da prova produzida – cf. Miguel Teixeira de Sousa, O Regime do Acompanhamento de Maiores: Alguns Aspectos Processuais, pág. 49[4] – “[…] atendendo à remissão feita no art.º 891.º, n.º 1, para o regime dos processos de jurisdição voluntária, o tribunal não está vinculado aos factos alegados pela parte e pode investigar quaisquer factos que considere relevantes (art.º 986.º, n.º 2 1.ª parte)”.
A matéria de facto provada a atender para a decisão da causa é, pois, a seguinte, devidamente reorganizada e renumerada:
1. A beneficiária A nasceu a ... de 1937.
2. Desde 6 de Novembro de 2020 que se encontra integrada na Estrutura Residencial para Pessoas Idosas “Casa ...”, sita na Rua ...Lisboa, sendo os funcionários dessa instituição que têm vindo a prestar-lhe o apoio de que carece, assegurando o seu bem-estar e auxiliando-a nas várias actividades da vida diária.
3. A beneficiária padece de demência, quadro clínico que se apresenta irreversível.
4. A instalação definitiva do quadro demencial ocorreu no ano de 2020.
5. Em consequência da patologia de que padece – demência – a beneficiária não consegue realizar, por si e na totalidade, as actividades básicas da vida diária, como sejam tomar banho, vestir-se, confeccionar refeições, carecendo para tanto do apoio de terceiros e, bem assim, para tomar a medicação diária.
6. Carece de utilizar fralda.
7. Alimenta-se sozinha.
8. Sabe o seu nome e reconhece os seus familiares e as pessoas que lhe são próximas.
9. Não consegue identificar o dia, mês e ano do seu nascimento, nem consegue indicar a sua idade.
10. Mostra-se desorientada no espaço, sendo apenas capaz de reconhecer o seu quarto, mas não sabendo deslocar-se na instituição onde reside e tão-pouco na via pública.
11. Desorientada também no tempo, não conseguindo indicar, o dia da semana, mês e ano em que se encontra.
12. Revela défices cognitivos ao nível da memória, atenção e concentração, tal como o raciocínio ou intelecto, não sendo capaz de evocar factos do passado ou memorizar factos novos.
13. A beneficiária apresenta dificuldades ao nível da comunicação, não fala de modo espontâneo, apenas se solicitada, com um discurso pobre e restrito ao concreto.
14. Não mantém a capacidade cognitiva de cálculo, não conseguindo lidar com o dinheiro ou reconhecer o seu valor.
15. Desconhece o valor económico dos bens, não sendo capaz de adquirir bens de que necessite.
16. Não consegue movimentar contas bancárias, efectuar depósitos ou fazer levantamentos e pagamentos.
17. Não revela capacidade para tomar decisões no seu dia-a-dia.
18. Aufere uma pensão paga pelo Centro Nacional de Pensões através de transferência bancária para conta da sua titularidade.
19. Existe a necessidade de providenciar e praticar todos os actos necessários à administração e gestão dos seus rendimentos e pagamento das mensalidades devidas pela sua integração no lar onde se encontra a residir.
20. Não existe notícia de testamento vital ou procuração para cuidados de saúde.
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Factos Não Provados
a. Sabe o dia e mês do seu nascimento;
b. Consegue contar e realizar pequenos cálculos aritméticos;
c. Já não consegue ler, escrever ou assinar o seu nome.
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Da necessidade de aplicação de medida de acompanhamento
Diz respeito o presente recurso a um processo especial de maior acompanhado intentado pelo Ministério Público relativamente à beneficiária A, em que alega que esta padece de demência, em virtude do que não consegue realizar, por si, qualquer actividade da vida diária, carecendo do apoio de terceiros, assim como está desorientada no tempo e no espaço, tendo apenas percepção da sua própria pessoa, com défice de linguagem e cálculo, que a impede de conhecer o dinheiro, o seu valor e gerir os seus bens e a sua pessoa, daí que tenha proposto a aplicação de medida de acompanhamento, por razões de saúde, com representação geral e administração total dos bens, incluindo a movimentação das suas contas bancárias e limitação do exercício dos direitos, designadamente, celebração de negócios da vida correntes e dos direitos pessoais de fixar residência e testar.
A decisão recorrida, tendo considerado não provados os factos alegados pelo Ministério Público, no que concerne às competências e capacidades da requerida, julgou a acção improcedente e absolveu-a do pedido.
Modificada a matéria de facto provada como resulta do acima exposto, impõe-se reapreciar o decidido à luz da factualidade apurada.
Relevam, pois, as disposições do regime jurídico do maior acompanhado, aprovado pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, que alterou diversos diplomas legais, entre os quais o Código Civil e o CPC, na parte atinente às interdições e inabilitações.
Tem sido recorrentemente afirmado que com a entrada em vigor daquela lei teve lugar uma alteração de paradigma no que concerne à rigidez do anterior sistema, que assentava em duas figuras - interdição e inabilitação -, que limitavam a capacidade de exercício do requerido de forma fixa e pré-definida na lei.
A esse sistema sucedeu a actual figura do maior acompanhado, que permite o preenchimento judicial do respectivo conteúdo de modo casuístico, em função da real situação e das capacidades e possibilidades da pessoa considerada em concreto.
Com efeito, à luz do sistema anterior a regra era a da incapacidade de exercício, o que se modificou para a posição oposta, ou seja, a regra é agora a da capacidade, como decorre, aliás, do objectivo da medida, traçado no art.º 140º, n.º 1 do Código Civil, de promoção do bem-estar do acompanhado, da sua recuperação e assegurar o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento de deveres, o que aponta para a preservação da capacidade jurídica do beneficiário, não obstante a aplicação da medida, tal como é exigido pelo direito internacional – cf. Paula Távora Vítor, Código Civil Anotado, Ana Prata (Coord.), Volume I 2ª Edição Revista e Atualizada, pág. 196.
Na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 110/XIII[5], que deu origem ao mencionado diploma, consignou-se que, eleita como objectivo estratégico a inclusão das pessoas com deficiência ou incapacidade, tal passa pelo “reconhecimento de que as diferentes situações de incapacidade, com graus diferenciados de dependência, carecem de respostas e de apoios distintos, devendo essa diversidade [deve] ser tida em conta no desenho das medidas e das respostas dadas a cada caso”, pelo que se impunha adequar o estatuto jurídico das pessoas carecidas de protecção por motivos de doença, superando as fragilidades apontadas aos regimes da interdição e inabilitação, e adequando a legislação nacional “quer à experiência de ordens jurídicas culturalmente próximas da nossa, quer aos instrumentos internacionais vinculantes para a República Portuguesa, com relevo para a Convenção das Nações Unidas de 30 de março de 2007 sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adotada em Nova Iorque, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n° 56/2009, de 7 de maio, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 71/2009, de 30 de julho.”
Conforme decorre dos considerandos n), o) e y) do preâmbulo Convenção[6] e dos seus art.ºs 12º, 13º, 19º e 21º a 23º, os princípios fundamentais relativos à capacidade jurídica das pessoas com deficiência reconduzem-se aos seguintes:
- Todas as pessoas com deficiência, sem excepção, têm capacidade jurídica, em condições de igualdade com as outras, em todos os aspectos da vida;
- A pessoa com deficiência deve ser apoiada nas suas decisões relativas ao exercício da capacidade jurídica;
- A pessoa com deficiência tem o direito a escolher a pessoa que a acompanhará na tomada de decisões da sua vida;
- A pessoa com deficiência tem o direito a participar activamente em todas as decisões que lhe digam respeito a nível pessoal, familiar e económico;
- A pessoa com deficiência tem o direito a ser ouvida sobre todas as questões que sejam decididas, por qualquer autoridade, sobre a sua capacidade jurídica;
- As medidas de apoio devem ser flexíveis e de acordo com as necessidades individuais de cada pessoa com deficiência;
- As medidas de apoio apenas devem ser tomadas se forem absolutamente necessárias e proporcionais;
- Todas as medidas de apoio devem respeitar os direitos, a vontade e as preferências da pessoa com deficiência.
Na decisão a proferir sobre a necessidade de aplicação de uma medida de acompanhamento à requerida haverá, pois, que ter presentes estes princípios – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27-01-2021, processo n.º 42/20.0T8HRT.L1-7.
Em face da transição do modelo de substituição para o modelo de acompanhamento ou de apoio na tomada de decisão pretende-se, pois, proteger sem incapacitar, reconhecendo à pessoa com deficiência a qualidade de sujeito de direitos, sem prejuízo de em situações mais graves, impor-se, em última instância, medidas de substituição, como disso dá conta António Pinto Monteiro[7]:
““Proteger sem incapacitar” constitui, hoje, a palavra de ordem […] Em vez da pergunta: “aquela pessoa possui capacidade mental para exercer a sua capacidade jurídica?”, deve perguntar-se: “quais os tipos de apoio necessários àquela pessoa para que exerça a sua capacidade jurídica?”
[…] impunha-se uma reforma do Código Civil no campo das incapacidades de exercício de direitos, pois os institutos da interdição e da inabilitação não davam resposta satisfatória nem adequada a estas novas exigências e a este novo paradigma. Havia que acolher aquelas novas figuras […] que permitem apoiar pessoas com deficiência, mantendo elas a sua capacidade de exercício de direitos.
Quid iuris, todavia, naquelas situações em que falte, de todo, a vontade ou a capacidade para entender e querer, ou ela está profundamente afectada, em termos tais que a deficiência de que a pessoa sofre a impossibilita de governar a sua pessoa e bens, sem que esta situação haja sido prevenida em momento anterior (se isso tivesse sido possível) através do mandato em previsão da incapacidade? Em situações destas, ainda que a título excepcional, deve continuar a recorrer-se ao instituto da representação, substituindo-se o incapaz, no interesse deste, pela actuação do tutor. Mas isso implica abandonar o regime da interdição, medida radical e rígida, substituindo-o por um regime flexível, que permita ao juiz, qual alfaiate, fazer um “fato à medida” do necessitado, adequando as medidas à situação concreta de cada pessoa […]
Tão prejudicial seria eliminar por sistema a capacidade de tomar decisões de uma pessoa com deficiência como atribuir plena capacidade de exercício a quem de facto carece dela. Como alguém disse, “deve-se respeitar a autonomia da pessoa com deficiência no alcance de suas possibilidades, mas também deve-se protegê-la na medida de suas vulnerabilidades”. […]
Em suma e para concluir este ponto, de um modelo, do passado, rígido e dualista, de tudo ou nada, em que prepondera a substituição, deve partir-se para um modelo flexível e humanista, baseado em medidas adoptadas casuisticamente e periodicamente revistas, prioritariamente destinadas a apoiar quem delas necessite, mas sem prejuízo de elas poderem vir a suprir a incapacidade em situações excepcionais, sempre com respeito pelos princípios da adequação, da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana.”
Há pois que partir de uma ideia de capacidade, “para dotar a pessoa dos instrumentos necessários para a sua tutela nos casos pontuais - e sempre tendo em conta as particularidades de cada actuação ou domínio de actuação - em que dela careça. A solução já não é generalizante, procurando, pelo contrário, preservar até ao limite a possibilidade de atuação autónoma do sujeito. No fundo, pretende-se proteger sem incapacitar»”- cf. Mafalda Miranda Barbosa, Maiores Acompanhados: da Incapacidade à Capacidade?, ROA, 2018, pág. 236[8].
Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 4-02-2020, processo n.º 3974/17.9T8FNC.L1-7, citando ainda António Pinto Monteiro:
“O mesmo autor escreve ainda […]: «Optou o legislador, como se vê, por uma formulação ampla, afastando-se claramente da posição fechada relativa aos fundamentos da interdição e da inabilitação. […] na atual formulação ampla que permite o recurso às medidas de acompanhamento cabem as pessoas idosas e/ou doentes». E ainda […]: «É claro que há razões de fundo, razões que estiveram presentes na tomada de posição de várias instâncias internacionais, no sentido de valorizar os direitos das pessoas deficientes, da sua dignidade e autonomia. Para lá dos avanços da ciência médica, também de um ponto de vista social foram vários os apelos – entre nós e por esse mundo fora - a uma nova compreensão dos problemas das pessoas com deficiências físicas ou mentais, ou com quaisquer outras limitações que afetem a sua capacidade jurídica.”
Dispõe o art.º 138º do Código Civil, com a redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto:
“O maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código.”
Estão, pois, em causa dois tipos de requisitos: por um lado, a causa da necessidade da medida radica em razões de saúde, deficiência ou ligadas ao seu comportamento; e, por outro, em termos de consequência, surge a impossibilidade de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de cumprir os seus deveres.
Como refere Paula Távora Vítor, para além das condições do sujeito - saúde, deficiência ou comportamento -, importa atentar no requisito de carácter funcional, isto é, a impossibilidade de o beneficiário de acompanhamento exercer plena, pessoal e conscientemente os seus direitos – cf. op. cit., pág. 169.
Estabeleceu-se no artigo 140º do Código Civil que o acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as excepções legais ou determinadas por sentença (n.º 1) e que a medida não tem lugar sempre que o seu objectivo se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam (n.º 2). Isto é, há situações que afastam o acompanhamento quando o seu objectivo já se encontre garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam (como os dos cônjuges, por exemplo[9]), pelo que se trata de uma medida supletiva, atendendo ao princípio da subsidiariedade, que exige a adopção dos meios menos formais, de carácter menos intrusivo, em detrimento das medidas de carácter institucional – cf. Paula Távora Vítor, op. cit., pág. 172; cf. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12-11-2020, processo n.º 58/19.9T8VPA-A.G1.
Conferiu-se ainda ao futuro acompanhado a escolha do acompanhante, sujeita, no entanto, a confirmação pelo Tribunal, conforme decorre do disposto no n.º 1 do artigo 143º do Código Civil.
Tendo presente o estatuído no art.º 145º do Código Civil verifica-se, claramente, que o regime do acompanhamento goza de maior flexibilidade, pois que respeita, sempre que possível, a vontade do beneficiário e a sua autodeterminação e cinge-se ao necessário, conferindo ao tribunal a possibilidade de escolher e adequar, em cada situação concreta, as medidas que melhor possam contribuir para alcançar o seu objectivo, que é, reitera-se, o de assegurar o bem-estar, a recuperação e o pleno exercício da sua capacidade de agir (cf. alíneas d) e e) do n.º 2 do art.º 145º).
Todavia, como é evidente, não deixa de contemplar as situações de absoluta incapacidade do beneficiário, pelo que, em casos-limite e excepcionalmente, continuam a ser admitidas medidas de substituição, como o instituto da representação geral ou administração total de bens (cf. alínea b) e c)).
Porque o processo especial de acompanhamento de maiores assume, em termos substantivos, as características de um processo de jurisdição voluntária, nele o juiz não está vinculado à medida de acompanhamento requerida pelo requerente que instaurou o processo, circunstância que se justifica porque apenas durante o processo é possível determinar, com rigor, a medida de acompanhamento adequada para o beneficiário.
Com efeito, a medida de acompanhamento deve-se restringir ao estritamente necessário, pelo que o juiz não deve decretar nem uma medida que seja excessiva atendendo às necessidades do beneficiário, nem uma medida que seja insuficiente considerando essas mesmas necessidades – cf. art.º 145º, n.º 1 do Código Civil.
Como dá conta o Professor Miguel Teixeira de Sousa, op. cit., pág. 51:
“A medida de acompanhamento de maior só é decretada se estiverem preenchidas duas condições:
─ Uma condição positiva (orientada por um princípio de necessidade): tem de haver justificação para decretar o acompanhamento do maior e, designadamente, uma das medidas enumeradas no art.º 145.º, n.º 2, CC; isto significa que, na dúvida, não é decretada nenhuma medida de acompanhamento;
─ Uma condição negativa (norteada por um princípio de subsidiariedade): dado que a medida de acompanhamento é subsidiária perante os deveres gerais de cooperação e assistência (nomeadamente, de âmbito familiar) (art.º 140.º, n.º 2, CC), o tribunal não deve decretar aquela medida se estes deveres forem suficientes para acautelar as necessidades do maior.
Tendo sempre presente que prevalece o princípio da necessidade, isto é, que as medidas de apoio apenas devem ser tomadas se forem absolutamente necessárias e proporcionais, na análise dessa necessidade deve ser cuidadosamente ponderado, mesmo que se verifiquem em abstracto os deveres de cooperação e assistência, se o maior é devida e efectivamente assistido, estando assegurado o seu bem-estar, a sua recuperação, assim como o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres.
Há, pois, que verificar se, face ao estado de saúde da beneficiária e ao cumprimento dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam, por parte dos seus familiares – in casu, a filha (artigo 140º, n.º 2 do Código Civil) -, se justifica a aplicação de uma medida de acompanhamento à requerida.
Para o efeito importa atender a três factores: acompanhamento, competências e limitações – cf. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13-01-2020, processo n.º 3433/18.2T8MAI.P1.
Como se explana de modo muito claro no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7-10-2021, processo n.º 1562/19.4T8CSC.L1-6, citando um outro acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26-09-2019, processo n.º 13569/17.1T8PRT.P1:
“” […] o decretamento de uma medida de acompanhamento decorra de uma impossibilidade suficientemente forte e não meramente indiciária de uma pessoa maior encontrar-se de modo pleno, pessoal e consciente impedida de exercer os seus direitos e cumprir os seus deveres no âmbito da sua capacidade jurídica e relativamente aos seus interesses pessoais (130.º; 138.º Código Civil). Para o efeito, o tribunal deve partir da presunção de que toda a pessoa adulta está habilitada a governar a sua pessoa e os seus bens, tendo as medidas de acompanhamento um carácter excepcional, de acordo com o princípio da intervenção mínima no âmbito da restrição dos direitos fundamentais (18.º, n.º 2 Constituição).
Deste modo, uma medida de acompanhamento de uma pessoa maior só se justifica quando esta revelar uma inaptidão básica para autogovernar e autodeterminar a sua vida, tanto pessoal, como patrimonial, existindo factores que, de um modo global ou particular, reduzem ou eliminam a voluntariedade e consciência dos seus actos, em função dos seus juízos de capacidade, os quais devem ser aferidos em concreto e não em abstracto. Assim, sempre que uma pessoa tenha a capacidade mental mínima para tomar decisões racionais e desempenhar tarefas como um agente racional, não se justifica qualquer medida limitadora da sua capacidade jurídica, podendo até serem implementadas outras medidas de apoio, mas fora do âmbito do acompanhamento legal, como a assistência pessoal, os cuidados informais ou o acolhimento familiar.
Por outro lado, as medidas de acompanhamento devem ser sujeitas a um teste de proporcionalidade, determinando-se em concreto o que é necessário, adequado e na justa medida para preservar os interesses legítimos da pessoa acompanhada e não de qualquer outra (145.º, n.º 1 Código Civil) - como sejam os interesses patrimoniais de terceiros, inclusivamente de familiares. Para que tal ocorra, o tribunal deve partir de um critério realista da capacidade natural na formação da livre vontade da pessoa que vier a beneficiar das medidas de apoio, mormente da sua capacidade mental e da heterogeneidade desta, mas não de critérios abstratos e ficcionados a partir de modelos estanques, como são aqueles que partem de uma leitura exclusivamente médica. Para o efeito, será de ponderar todas as circunstâncias endógenas e exógenas que em termos funcionais reduzem ou eliminam as suas aptidões mentais de autonomia pessoal (capacidade básica de autogoverno e autodeterminação) para dirigir a sua pessoa, administrar os seus bens e celebrar actos jurídicos em geral.
Destarte e como está em causa a aptidão funcional da capacidade jurídica e mental, essa avaliação deverá estar centrada na própria pessoa, o que passa pelo seguinte:
(a) realizar uma listagem das suas necessidades básicas, destrinçando aquelas para as quais está apta a realizar, daquelas outras que denota algumas limitações;
(b) estabelecer as prioridades de intervenção;
(c) elencar os recursos pessoais e patrimoniais disponíveis;
(d) avaliar as alternativas de intervenção não jurisdicionais existentes;
(e) respeitar os desejos e vontades manifestados pela pessoa a ser acompanhada.
Deste modo, a designação judicial do(s) acompanhante(s) deve estar igualmente centrada na pessoa maior que em concreto, e não em abstracto, vai ser legalmente acompanhada, concluindo-se que aquela está em melhor posição para assumir as funções de acompanhamento legal, o que passa por: (i) assegurar as medidas de apoio que foram determinadas pelo tribunal; (ii) prestar-lhe os cuidados devidos, atento o respectivo contexto pessoal, social e ambiental; (iii) participar juridicamente na representação legal determinada pelo tribunal; (iv) assegurar em todos os domínios a vontade e os desejos da pessoa acompanhada, tanto a nível pessoal, como patrimonial, que não foram judicialmente reservados ou restringidos.””
A decisão recorrida, ainda que se baseado em factos distintos, não escalpelizou as circunstâncias da beneficiária relativamente aos diversos parâmetros que importava aferir, com vista a determinar da necessidade ou não de acompanhamento, concluindo, sem justificar, que o “entendimento actual [da beneficiária] é suficiente para se bastar a si própria”, não havendo lugar à aplicação de qualquer medida, tanto mais que o Estado forneceu resposta social e a requerida beneficia de apoio de uma parente, para além de ser “capaz de expressar os seus intentos, em meio que a apoia”.
Ora, esta conclusão não encontra qualquer arrimo naquela que é a factualidade provada e que acima se deixou transcrita.
Ao nível das necessidades básicas diárias, apurou-se que a beneficiária, em virtude da demência de que padece, não consegue realizar, por si e na totalidade, as actividades da vida diária, como sejam tomar banho, vestir-se, confeccionar refeições, carecendo para tanto do apoio de terceiros e, bem assim, para tomar a medicação diária, sendo que apenas consegue alimentar-se sozinha, usando fralda. Isto é, a garantia do bem-estar mínimo, de saúde e de segurança da beneficiária dependem, desde logo, do auxílio de terceiros, não se bastando aquela a si própria para tanto.
Sabe o seu nome e reconhece os seus familiares e as pessoas que lhe são próximas, mas não consegue identificar o dia, mês e ano do seu nascimento, nem consegue indicar a sua idade, assim como está desorientada no espaço, sendo apenas capaz de reconhecer o seu quarto, não sabendo deslocar-se na instituição onde reside e tão-pouco na via pública.
Assim, seja para realizar tarefas básicas do dia-a-dia, seja para actos da vida corrente, a requerida não dispõe de recursos pessoais, pois que não os consegue realizar, seja por razões motoras, seja por incapacidade cognitiva e quadro demencial que lhe determinam défices cognitivos ao nível da memória, atenção e concentração, tal como o raciocínio ou intelecto, não sendo capaz de evocar factos do passado ou memorizar factos novos e apresentando dificuldades ao nível da comunicação (não fala de modo espontâneo, apenas se solicitada, com um discurso pobre e restrito ao concreto).
Não detém também capacidade cognitiva de cálculo, não conseguindo lidar com o dinheiro ou reconhecer o seu valor, assim como desconhece o valor económico dos bens, não sendo capaz de adquirir aqueles de que necessite.
Não consegue movimentar contas bancárias, efectuar depósitos ou fazer levantamentos e pagamentos, não tendo capacidade para tomar decisões no seu dia-a-dia.
Perante este quadro, ainda que a beneficiária mantenha algumas competências rudimentares (como o alimentar-se sozinha e o reconhecimento de familiares), seguro é que não tem capacidade para prover às suas necessidades básicas do dia-a-dia, assim como falha a sua capacidade de autodeterminação porque destituída de discernimento da realidade exterior.
Com efeito, a incapacidade da requerida para se situar no tempo e no espaço, para se orientar, ao menos na instituição onde reside, não tendo noção dos dias, semanas e meses e sucessão do tempo, retira-lhe autonomia, porque a torna incapaz de se posicionar perante a realidade exterior e para avaliar as suas necessidades, o que lhe convém e o que pode ou não fazer.
Por outro lado, porque não reconhece o dinheiro e o seu valor e tão-pouco o valor económico dos bens, não pode tomar decisões livres e conscientes sobre o seu património.
A beneficiária apresenta, assim, um quadro de ausência grave de competências para assumir o controlo da sua pessoa e bens, sendo que o estado actual da sua saúde inquinou os seus recursos pessoais para a execução de tarefas simples do dia-a-dia.
Em face da dimensão da perda de competências relatada, não se afigura possível que as suas necessidades sejam supridas apenas com recurso ao auxílio da instituição onde está inserida e da própria filha, porquanto, não tendo capacidade para tomar decisões no dia-a-dia, cumpre suprir essa falta de capacidade de exercício seja quanto ao governo do rendimento que aufere, seja quanto à sua própria pessoa, não se afigurando possível manter o estado actual, posto que aquela deverá ser representada por quem possa actuar em seu nome, na salvaguarda dos seus interesses pessoais e patrimoniais, o que não se basta com o simples apoio ou aconselhamento em situações pontuais, dado que está, de forma generalizada e irreversível, incapacitada para, de modo consciente, exercer os seus direitos e deveres.
Por outro lado, a beneficiária não manifestou qualquer vontade atendível, porquanto não chegou sequer a percepcionar o âmbito e finalidade deste processo, conforme se alcança de modo claro do conteúdo da sua audição.
Ainda que o modelo de apoio do acompanhante para a tomada ou execução de decisões ou com autorização prévia para a prática de determinados actos se assuma como regra ou o primeiro a ser considerado, no caso, face à ausência de discernimento e capacidade de estipulação livre e consciente por parte da requerida, tem-se por necessária a aplicação de medida de acompanhamento, em contrário do decidido em 1ª instância.
Na procedência do recurso interposto pelo Ministério Público importa revogar a decisão recorrida e, em substituição, proferir decisão que aplique a medida adequada.
Em consonância com o supra expendido, têm-se como necessárias e proporcionais à situação em que a requerida se encontra, por adequadas a assegurar o seu bem-estar, por um lado e, por outro, o exercício dos seus direitos e cumprimento de deveres, as seguintes medidas:
- Representação geral, nos termos da alínea b) do n.º 2 do art.º 145º do Código Civil;
- Administração total dos bens, onde se inclui, como é óbvio, a movimentação das contas bancárias da titularidade da requerida, nos termos da alínea c) do mencionado normativo legal.
Tendo em conta a falta de capacidade de decisão livre e consciente e, bem assim, o facto de a beneficiária não ser capaz de prover às necessidades básicas diárias, limita-se os seus direitos nos seguintes termos:
- A celebração de negócios da vida corrente fica sujeita a autorização do acompanhante – cf. art.ºs 145º, n.º 2, d) e 147º, n.º 1, in fine do Código Civil;
Limitam-se os seguintes direitos pessoais:
- O direito de fixar domicílio e residência;
- O direito de testar, nos termos dos art.ºs 147º, n.º 2, 85º, n.º 4 e 2189º, b) do Código Civil.
Não existindo pronúncia ou escolha por parte da requerida, a escolha da pessoa cuja designação melhor salvaguarde o interesse imperioso da beneficiária deve observar o estatuído no art.º 143º, n.º 2 do Código Civil, sendo que neste caso apenas se perfilha como podendo exercer tais funções a filha da beneficiária (cf. alínea e), Maria M…, que no decurso da audição revelou cabal conhecimento da situação da mãe, das suas capacidades e limitações e, conforme decorre dos relatórios juntos, a visita quinzenalmente.
Fixo o ano de 2020 como a data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes (cf. art.º 900º, n.º 1 do CPC).
Dado que a beneficiária reside na Casa ..., onde se encontra desde 6 de Novembro de 2020, resultando dos factos provados que não consegue prover, por si só, às actividades básicas diárias, carecendo do auxílio dos funcionários da instituição para esse efeito, sendo este o modo mais adequado e viável de assegurar o seu bem-estar e prover às suas necessidades essenciais, determino a sua residência nessa instituição – cf. art.º 148º, n.º 1 do Código Civil.
Não se afere interesse por parte da beneficiária ou de terceiros que exija a publicidade da decisão final deste processo, sendo certo, atendendo à protecção da vida privada, que a publicidade da decisão apenas deverá ocorrer nos casos estritamente necessários, pelo que não haverá lugar à publicação desta – cf. art.º 153º do Código Civil e art.º 893º, n.º 1 do CPC.
Dispenso a constituição do conselho de família, nos termos do art.º 145º, n.º 4 do Código Civil.
Não há notícia sobre a existência de testamento vital ou de procuração para cuidados de saúde (cf. art.º 900º, n.º 3 do CPC).
A acompanhante ora designada deverá visitar a beneficiária, no mínimo, com uma periodicidade mensal – cf. art.º 146º, n.º 2 do Código Civil.
Dado que a demência de que padece a beneficiária é, como se refere no relatório pericial, “uma anomalia psíquica actual, incapacitante, progressiva, crónica e irreversível e que interfere na capacidade de exercício pleno, pessoal e consciente, dos seus direitos e deveres”, tratando-se de um “quadro clínico irreversível” e que “tende à estabilização”, a revisão das medidas de acompanhamento terá lugar de cinco em cinco anos, nos termos do art.º 155º do Código Civil.
Transitada em julgado, a decisão deverá ser comunicada oficiosamente aos serviços do registo civil para registo das medidas de acompanhamento decretadas – cf. art.º 153.º, n.º 2 do Código Civil e art.º 902º, n.º 2 do CPC.
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Das Custas
De acordo com o disposto no art. 527º, n.º 1 do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
Nos termos do art. 1º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais[10], considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.
Todavia, o Ministério Público, porque age na defesa dos direitos e interesses que lhe são confiados por lei e a requerida, porque representada por defensora oficiosa e porque está em causa processo de instauração do acompanhamento, estão isentos de custas – cf. art.º 4º, n.ºs 1, a) e l) e 2, h) do RCP -, pelo que a estas não há lugar.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em julgar procedente a apelação, e, em consequência, revogar a decisão recorrida, decidindo, em substituição desta, o seguinte:
a. decretar a medida de acompanhamento relativamente à beneficiária A, divorciada, titular do cartão de cidadão n.º 22..., contribuinte fiscal n.º 11..., nascida a ... de 1937, filha de Manuel ...... e de Marina .................;
b. Deferir o acompanhamento à filha da beneficiária, B, a quem se comete o regime de:
b.1. Representação geral;
b.2. Administração total dos bens, incluindo a movimentação das contas bancárias da titularidade da requerida;
c. Sujeitar a celebração de negócios da vida corrente a autorização da acompanhante;
d. Limitar os direitos pessoais da beneficiária de fixar domicílio e residência e de testar;
e. Fixar o ano de 2020 como a data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes;
f. Determinar a residência da beneficiária na Estrutura Residencial para Pessoas Idosas “Casa ...”, sita na Rua ...Lisboa;
g. Dispensar a constituição de conselho de família;
h. Dispensar a publicidade da decisão, sem prejuízo do competente registo;
i. Não se detectaram testamento vital ou procuração para cuidados de saúde;
j. A acompanhante deverá visitar a beneficiária, no mínimo, com uma periodicidade mensal;
k. A revisão das medidas de acompanhamento terá lugar de cinco em cinco anos.
Sem custas.
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Transitada em julgada a decisão, comunique aos serviços do registo civil.
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Lisboa, 25 de Janeiro de 2022[11]
Micaela Marisa da Silva Sousa
Cristina Silva Maximiano
Amélia Alves Ribeiro
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[1] Adiante designado pela sigla CPC.
[2] Adiante mencionado pela sigla CPC.
[3] Acessível na Base de dados Jurídico-documentais do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, IP em www.dgsi.pt, onde se encontram disponíveis todos os arestos adiante mencionados sem indicação de origem.
[4] In O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado, ebook Fevereiro 2019, acessível, em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_Regime_Maior_Acompanhado.pdf.
[5] Disponível na página internet da Assembleia da República, no endereço
http://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063446f764c324679595842774f6a63334e7a637664326c756157357059326c6864476c3259584d7657456c4a535339305a58683062334d76634842734d5445774c56684a53556b755a47396a&fich=ppl110-XIII.doc&Inline=true.
[6] Acessível em https://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/instrumentos/pessoas_deficiencia_convencao_sobre_direitos_pessoas_com_deficiencia.pdf.
[7] Das incapacidades ao maior acompanhado - Breve apresentação da Lei n.º 49/2018, pp. 31-33, in O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado, ebook Fevereiro 2019, acessível, em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_Regime_Maior_Acompanhado.pdf.
[8] Acessível em https://portal.oa.pt/media/130218/mafalda-miranda-barbosa_roa_i_ii-2018-revista-da-ordem-dos-advogados.pdf.
[9] Paula Vítor, op. cit., pág. 173, refere que este tipo de deveres gerais de cooperação e de assistência pode ser encontrado no âmbito das relações familiares (entre cônjuges e entre pais e filhos – cf. art.ºs 1674º e 1874º do Código Civil), sendo difícil, porém, aferir da relevância do dever de assistência, que tem mais que ver com o sustento material e não responde às situações de necessidade de acompanhamento.
[10] Adiante designado pela sigla RCP.
[11] Acórdão assinado digitalmente – cf. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página.