Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ANA MÓNICA MENDONÇA PAVÃO | ||
Descritores: | EXECUÇÃO PENHORA JUNTA DE FREGUESIA IMPENHORABILIDADE FINS DE UTILIDADE PÚBLICA | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 12/19/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÕES | ||
Decisão: | IMPROCEDENTES | ||
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Sumário: | I. Por força da impenhorabilidade (relativa) estabelecida no n.º 1 do artigo 737º do Código de Processo Civil, estão isentos de penhora os bens (i) de pessoas colectivas públicas ou de utilidade pública (ii) que se encontrem especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública; II. Compete ao executado/oponente o ónus de alegar e provar os factos concretos que traduzam o preenchimento de determinada categoria de impenhorabilidade (art.º 342º, nº 2 do Código Civil). III. Para tal não basta que o executado/oponente alegue genericamente que os bens estão afectos à realização de fins de utilidade pública, sendo necessário que alegue o específico fim a que os mesmos se destinam. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I. RELATÓRIO A, executada na acção executiva para pagamento de quantia certa, que lhe foi movida pela exequente B, deduziu a presente oposição à execução, mediante embargos de executado, que cumulou com oposição à penhora, invocando, em síntese, a inexequibilidade do título e a impenhorabilidade das verbas penhoradas, por visarem exclusivamente o interesse público. Peticionou a embargante/oponente a procedência da oposição à penhora, julgando-se impenhoráveis as quantias penhoradas; e a procedência dos embargos, considerando-se o título executivo inexequível, com a consequente absolvição da executada da instância. Após recebimento dos embargos de executado e oposição à penhora, foi a exequente/embargada notificada, tendo apresentado contestação, pugnando pela improcedência dos embargos e pedindo a condenação da executada/embargante como litigante de má fé. Foi proferido despacho-saneador e fixado o objecto do litígio e os temas da prova. Foi realizada audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo: “Pelo exposto, atentas as disposições legais citadas e as considerações expendidas, julgo parcialmente procedentes os presentes embargos e, consequentemente: A. Determino a prossecução da execução, reduzindo à quantia exequenda inicial o montante de €29.620,18. B. Determino a manutenção das penhoras aos saldos bancários, lavradas no auto de 24/07/2019. C. Absolvo a embargante do pedido de condenação como litigante de má fé. * Custas pela embargante e embargada na proporção de 2/3 – 1/3, respetivamente. Valor da ação – o da execução * Registe, notifique e oportunamente comunique ao agente de execução.” Inconformada com tal decisão, veio a embargada B dela interpor recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões [transcrição]: A) Por sentença proferida, em 27 de Março de 2023, julgou o Tribunal a quo parcialmente procedentes os presentes embargos de executado, tendo determinado a prossecução da execução, reduzindo à quantia exequenda inicial o montante de €29.620,18. B) Não tem razão o Tribunal a quo, não se conformando a Recorrente com a decisão no que se refere à parte em que determinou que fosse reduzido à quantia exequenda inicial o montante de €29.620,18. C) Conforme resulta da matéria dada como provada, do total que foi pago pela Recorrida, a aqui Recorrente apenas recebeu a quantia de €117.379,82. D) O remanescente no valor de €29.620,18 nunca foi recebido pela Recorrente, tendo tal quantia sido paga à massa insolvente da. E) A Recorrente tinha direito a receber em pagamento todos os valores que lhe foram entregues pela devedora, em pagamento do seu crédito, mas esses valores foram apenas aqueles a que se refere a Alínea H) da matéria de facto, no valor de € 117.379,1, como nela se afirma, e nenhuns outros. F) Os restantes valores entregues ao administrador de insolvência da B, só quem os recebeu, os deve restituir à Recorrida, mas nunca a B que não os recebeu. G) A Recorrente, como ficou provado nestes embargos, apenas recebeu da Embargante a quantia de €117.379,82 e nenhuma outra, logo, não pode ser descontado à dívida exequenda o valor de € 29.620,18, que a Recorrente nunca recebeu da Recorrida, como se fez, por erro de julgamento, quer de facto, quer de direito, na sentença. H) Em consequência, nunca poderá ser descontado ao valor do crédito da exequente um valor que não foi recebido pela Exequente, ora Recorrente, pelo simples princípio de que ninguém pode ver o seu crédito diminuído de valores que não recebeu em pagamento. I) Ao vir considerar que a quantia de €29.620,18, que foi paga pela Recorrida à massa insolvente da B, deve ser reduzida à quantia exequenda inicial, o Tribunal a quo cometeu um erro de facto e de julgamento. J) É ainda manifesta a contradição entre a matéria de facto provada no processo e a decisão a que se chegou na sentença, pois ficou provado que a Recorrente só recebeu a quantia €117.379,82, e, portanto, nenhum outro valor pode ser descontado no seu crédito exequendo. Conclui pugnando pela revogação da sentença recorrida na parte em que determinou que fosse reduzido à quantia exequenda inicial o montante de €29.620,18. * Inconformada com a sentença, também a executada/embargante A dela interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões [transcrição]: “I. DO ERRO DE JULGAMENTO E DO INTERESSE PÚBLICO a) Objetiva, como infra se requererá e é motivação do presente Recurso, a anulação da presente Sentença, que determinou a prossecução da execução, reduzindo à quantia exequenda inicial o montante de €29.620,18 (vinte e nove mil e seiscentos e vinte euros e dezoito cêntimos), e a manutenção das penhoras aos saldos bancários, lavradas no auto de 24/07/2019. b) No prisma da Constituição da República, a preservança do interesse público é muito significativa, havendo inúmeras disposições com incidência e proteção direta. c) Princípio fundamental que não foi totalmente valorado, nem respeitado na presente Sentença, desrespeitando a interpretação extensiva e a aplicação das normas jurídicas relevantes para o presente caso. d) A decisão que determinou a prossecução da execução e a manutenção das penhoras aos saldos bancários, lavradas no auto de 24/07/2019, é um ato decisório que deve ser devidamente fundamentado, respeitando os preceitos e princípios consagrados na Constituição da República Portuguesa. e) Neste domínio, desenvolveu-se uma jurisprudência abundante, hoje consolidada, com uma formulação bastante precisa das diretrizes a observar. f) O interesse público é um fator determinante e fundamentador do próprio sentido da decisão da questão de constitucionalidade, no âmbito da aplicação do princípio da proteção da confiança. g) Porquanto, a A move-se e funciona para prosseguir o interesse público, aliás, o interesse público é o seu único fim, isto é, também, os interesses próprios da sua população. h) A aqui Recorrente demonstrou que as verbas, receitas ou outros benefícios recebidos ou na sua posse estão afetos à realização de fins de utilidade pública, o que se justifica ante os fins prosseguidos pelas Juntas de Freguesia. i) Bem como demonstrou que, os saldos bancários concretamente penhorados estavam, desde antes da penhora, especialmente afetos a determinado fim. O fim de interesse publico. j) Porquanto, os valores presentes nas respetivas contas bancárias, suportam, na grande maioria, despesas com pessoal e aquisição de bens e serviços, distribuídos por várias orgânicas, nomeadamente, limpeza urbana, manutenção de espaços verdes e parques, atividades sociais, atividades recreativas e culturais, educação e ATL, atividades desportivas, cemitérios, obras. k) Além dos serviços expostos, a A, suporta também, designadamente, o desenvolvimento de ações sociais para, nomeadamente, melhorar as acessibilidades da freguesia e especial acessos a escolas, infantários, hospitais e centros de saúde, tanto de crianças, jovens, idosos e como pessoas com dificuldades motoras que dependem das verbas que a pretendem ver penhoradas, l) Mais, são as verbas penhoradas que fazem face ao pagamento de transportes de ambulâncias e que pagam os serviços e bens necessários para colocar ou retirar degraus, e/ou fazer rampas de acesso para as cadeiras de rodas, para que a Freguesia se torne inclusiva e um espaço comum para todos os cidadãos. m) Tudo o que foi dito, visa a prossecução de interesses próprios da população respetiva. n) Ou seja, são verbas e receitas afetas exclusivamente ao interesse público! o) Não correspondendo à verdade, quando se afirma que “as contas penhoradas não têm uma afetação especial” - sendo que, as contas da aqui Recorrente, têm todas, uma afetação especial, porquanto todas respondem para, e com exclusividade, suportar tudo o que anteriormente foi referido! Neste sentido, requer-se que seja revogada a sentença proferida e em sua substituição proferido acórdão pelo Venerando tribunal da Relação de Lisboa em que seja reconhecida a impenhorabilidade das contas bancárias pertencentes à A, atendendo ao seu caráter público e por serem afetos à realização de fins de utilidade pública, nomeadamente da população respetiva. III. Reapreciação da prova gravada: p) Na sentença proferida, em 28.03.2023, com referência 15567419, resulta provado que a testemunha MJP, confirmou o seguinte: “(...) que as contas penhoradas não têm uma afetação especial, servindo também para pagar dívidas.” q) Assim, impugna-se a decisão de facto, porquanto a referida testemunha somente afirmou que face a penhora sobre os saldos bancários, a A, viu-se no dever de cortar valores, o que significa, reduzir de forma avultada ou, deixar de suportar certas obrigações e/ou ações! r) Abdicaram e bambolearam por setores, que apesar de fazerem toda a diferença, são os únicos que, infelizmente, se podiam mexer! s) Mais, seria suposto e requisito para o douto Tribunal, que a A, corta-se no salário ao seu pessoal, ou não tivesse meios financeiros para pagar salários? t) Resulta cristalino que, a A optou pela afetação da ação social, porque era a ÚNICA solução viável. u) Não se pode viver numa sociedade onde não existe limpeza urbana, manutenção de espaços verdes, cemitérios e as obras necessárias! v) Face ao exposto e perante o depoimento prestado pela testemunha MJP, dever-se-ia ter dado como provado que os saldos bancários penhorados, estão especialmente afetos a determinado fim – ao interesse público, isto é, a prossecução de interesses próprios da população respetiva! w) Na sentença proferida, em 28.03.2023, com referência 15567419, resulta provado que a testemunha RL, confirmou o seguinte: “entre 2017 e 2021 desempenhou funções de tesoureiro na embargante, os quais realçaram as funções “públicas” desempenhadas pela embargante, colocando a tónica no impacto negativo que a penhora de saldos bancários teve, obstando à realização de algumas atividades/apoios, nomeadamente na área social, mas também cemitérios, guarda noturno, entre outros.” e “e confirmou a testemunha RL que foi o executivo da Junta de Freguesia que, após a penhora de saldos bancários, optou pela afetação do apoio social.” x) Resulta cristalino, mais uma vez, que a A optou pela afetação da ação social, porque era a ÚNICA solução viável. y) E com essa mesma obrigação perante a via judicial e com o dever de realizar uma boa gestão e garantir a prossecução de interesse próprio da sua população, foi a única decisão possível. z) Assim, impugna-se a decisão de facto, porquanto a referida testemunha afirmou que face a penhora sobre os saldos bancários, a A, viu-se no dever de cortar valores, o que significa, reduzir de forma avultada ou, deixar de suportar certas obrigações e/ou ações! aa) Bem como, atuou sempre, pelo interesse da sua respetiva população, e consequentemente pelo interesse público, sendo obrigado a tomar decisões e ser um bom gestor, atuando sempre de boa-fé e com respeito pelos princípios da adequação e proporcionalidade. bb) Visando a promoção e salvaguarda dos interesses próprios da população, de serviços e atividades de proximidade e apoio direto aquela mesma população, melhorando as suas condições de vida. Nestes termos e nos demais de direito, deverá considerar-se uma alteração da decisão sobre a matéria de facto – e, consequentemente, a alteração da fundamentação e decisão jurídicas, impondo que a douta decisão proferida seja totalmente anulada e ordenando-se a repetição da mesma em conformidade IV. Impenhorabilidade das verbas penhoradas, por visarem exclusivamente o interesse público: cc) As verbas da A encontram- se especialmente afetadas à realização de fins de utilidade pública. dd) As verbas recebidas, são recebidas no âmbito das atribuições próprias das autarquias, visando a promoção e salvaguarda dos interesses próprios da população, de serviços e atividades de proximidade e apoio direto aquela mesma população, melhorando as suas condições de vida. ee) Estas verbas visam pagar os salários dos trabalhadores, famílias necessitadas e carenciadas que precisam de ajuda para seu sustento, garantir que todos os idosos e pessoas com deficiência têm todas as acessibilidades necessárias, efetivar que todas as pessoas necessitadas e com deficiências motoras conseguiam ter transportes, bem como ter transportes de ambulância, garantir que todas as crianças e jovens tenham acessibilidade fácil e efetiva para se deslocarem para a escola, funcionamento parcial de limpeza do cemitério, impedindo os apoios sociais as famílias e Associações, entre muitas outras! ff) Seria suposto, que a Junta optasse pela afetação dos salários dos seus trabalhadores? Considerando que pouco faltou para que tal acontecesse, sendo que a penhora foi realizada no dia 25, e a Junta pagou aos seus trabalhadores dois dias antes, gg) Nestes termos, podemos questionar se seria uma boa gestão e afirmação dos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé, se a Junta optasse por outras necessidades que não reduzir a afetação social? hh) Melhor, se efetivasse tal decisão, iria estar na linha da prossecução do interesse da sua população e do interesse público? ii) Ou seja, são verbas e receitas afectas exclusivamente ao interesse público! jj) São, pois, verbas impenhoráveis, estando isentas de penhora as verbas recebidas pela Recorrente A, pois estão afetas à realização de fins de utilidade pública. kk) Não existindo nenhuma verba, receita ou outro benefício recebido ou na posse da Recorrente que não esteja afeto à realização de fins de utilidade pública. ll) Concluindo pela manutenção das penhoras aos saldos bancários, lavradas no auto de 24/07/2019, tem a potencialidade de produzir danos e efeitos irreversíveis, começando pelo desespero económico dos seus trabalhadores e seres humanos, a falta de sustento e subsistência para as famílias, a falta de apoio às famílias carenciadas, principalmente a nível de saúde e alimentação, o aumento do abandono dos idosos por falta de acessibilidades e transportes, a falta de transporte hospital e de ambulâncias, colocando em riscos os Direitos de população mais desfavorecida como crianças e idosos, a segurança da respetiva população, entre outras consequências gravíssimas e irreversíveis. mm) Consequentemente, irá aumentar em níveis absurdos a criminalidade, marginalidade e pobreza! nn) É importante, nunca esquecer, que não nos encontramos perante uma empresa e/ou sociedade. oo) Mas estamos perante uma entidade administrativa que tem como função o interesse público, conforme se encontra preceituado na Constituição da República Portuguesa. pp) Porquanto, a A move-se e funciona para prosseguir o interesse público, aliás, o interesse público é o seu único fim, isto é, também, os interesses próprios da sua população. qq) A aqui Recorrente demonstrou que as verbas, receitas ou outros benefícios recebidos ou na sua posse estão afetos à realização de fins de utilidade pública, o que se justifica ante os fins prosseguidos pelas Juntas de Freguesia. rr) A Constituição Portuguesa não institui expressamente um princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança, mas este princípio é incontroversamente uma dimensão essencial do Estado de direito democrático, como tal inscrito no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa – caso se determine pela manutenção da penhora dos saldos bancários, viola-se o disposto na Constituição da República Portuguesa, bem como se efetiva a violação dos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé, aos quais os órgãos administrativos estão obrigados. Conclui que este Tribunal deve: a) Reconhecer a impenhorabilidade das contas bancárias pertencentes à A, atendendo ao seu caráter público e por serem afetos à realização de fins de utilidade pública, nomeadamente da população respetiva, caso assim não se entenda estamos perante uma violação dos princípios consagrados constitucionalmente, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé, bem como de uma clara violação do interesse público. b) Considerar a existência de uma alteração da decisão sobre a matéria de facto, porquanto as contas penhoradas têm uma afetação especial – a da prossecução do interesse próprio da população, bem como do interesse público, sendo muito diferente dar como provado que não tem afetação especial, somente porque se viram obrigados a realizar escolhas entre os interesses da população – e, consequentemente, a alteração da fundamentação e decisão jurídicas, impondo que a douta decisão proferida seja totalmente anulada. c) Nestes termos e nos demais de direito, deverá V.Exa julgar procedente o presente Recurso, e consequentemente, revogar a presente Sentença e substitui-la por outra que declare, que em virtude das quantias penhoradas, atendendo ao seu carácter encontram-se exclusivamente afetas à realização de fins de utilidade pública, porquanto são impenhoráveis à luz do direito vigente. * A embargada B – SOCIEDADE de INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS S.A apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso interposto pela executada/embargante. * Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. * II. QUESTÕES A DECIDIR Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados nos artigos 635º/4 e 639º/1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importa, no caso, apreciar e decidir das seguintes questões: I - Recurso da exequente/embargada: - Se deve ser mantida a decisão recorrida na parte em que determinou a redução da quantia exequenda; II - Recurso da executada/embargante: - Impugnação da decisão sobre a matéria de facto; - Se os saldos bancários identificados no auto de penhora de 24/7/2019 são bens impenhoráveis; III – Contra-alegações da embargada: - se devem ser aditados factos ao acervo factual provado. * III. FUNDAMENTAÇÃO III.1. FACTOS PROVADOS O tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos [transcrição]: A. Por sentença proferida em 04/01/2001, no processo 299/00, que correu termos no (extinto) Tribunal Judicial da Comarca de Loures, foi julgada procedente a ação intentada pela aqui exequente/embargada, e, nessa sequência, condenada a ré, aqui executada/embargante: . No reconhecimento de que a autora é titular do direito de propriedade do prédio referido no art.º 1º da petição inicial; . Na entrega desse prédio à autora, livre e devoluto de pessoas e bens; . A pagar uma indemnização à autora no valor de Esc. 53.500.000$001, pelos prejuízos causados até outubro de 2000. . A pagar à autora uma indemnização de Esc. 500.000$00 por mês desde novembro de 2000 até à entrega do prédio B. A sentença referida em A foi confirmada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05/11/2002, e pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/06/2003. C. A mesma sentença está transitada em julgado desde 30/06/2003. D. A execução de que os presentes autos constituem apenso foi instaurada em 17/06/2019, para pagamento da quantia de € 1.218.886,41, sendo: . €266.856,87, referente a indemnização pelos prejuízos causados até outubro de 2000, acrescido de €53.371,37 de juros de mora à taxa legal desde o trânsito em julgado da sentença até 30/06/2008 . €384.074,40, referente a indemnização pela ocupação do prédio entre novembro de 2000 e 01/09/2004, acrescido de €76.814,88 de juros de mora à taxa legal desde novembro de 2000 até setembro de 2004 . €536.768,89, referente a sanção pecuniária compulsória E. No âmbito do processo de insolvência da exequente nestes autos, que correu termos com o n.º 621/10.3TYLSB, na 1ª Secção do Comércio de Lisboa, J3, foi, em 29/06/2015, outorgado “Termo de fixação de dívida e de pagamento de prestações” entre a Massa Insolvente da B, S.A. e a A, nos termos do qual a dívida foi fixada em €200.000,00, a ser paga em 66 prestações mensais de € 3.000,00 e a última (67ª) no valor de €2.000,00. F. O acordo referido em E foi declarado ineficaz por sentença proferida no processo de insolvência, posteriormente confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em Acórdão de 18/09/2018, e do Supremo Tribunal de Justiça (Acórdão de 23/05/2019, transitado em julgado em 11/06/2019). G. Entre junho de 2015 e junho de 2019 (inclusive), a embargante procedeu ao pagamento mensal de €3.000,00, num total de €147.000,00. H. A embargada recebeu, do total referido em G, €117.379,82, sendo: . €54.380,86 foram transferidos em 06/09/2017 da massa insolvente da B para a conta da exequente . €8.998,96 foram transferidos em 05/12/2017 da massa insolvente da B para a conta da exequente . €54.000,00 foram transferidos pela embargante para a conta da B I. Por auto de 24/07/2019, foram penhorados os seguintes depósitos bancários, num total de €89.312,34: Verba 1 - PT 00350703002318000300000 (CGD) - €64.924,71 Verba 2 - 0018000335632520020 (TOTTA) - €13.933,16 Verba 3 - 5047670001001 (BPI) - €1.662,27 Verba 4 - 0018000335632520020 (TOTTA) - €8.553,75 Verba 5 - 5047670001001 (BPI) - €238,45 J. As verbas da embargante suportam, na grande maioria, despesas com pessoal e aquisição de bens e serviços, distribuídos por várias orgânicas, nomeadamente (entre outros) limpeza urbana, manutenção de espaços verdes e parques, atividades sociais, atividades recreativas e culturais, educação e ATL, atividades desportivas, cemitérios, obras. * III.2. MÉRITO DO RECURSO III.2.1. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto (recurso da embargante) Nos termos do disposto no art.º 662º/1 do Cód. Proc. Civil, “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”. Dispõe, por sua vez, o art.º 640º/1 do Cód. Proc. Civil que: “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: “a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.” Tais ónus são de cumprimento cumulativo, sob pena de imediata rejeição do recurso, não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento quanto ao recurso da decisão da matéria de facto (neste sentido, v. António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª edição, Almedina, pág. 199; e os seguintes acórdãos: do STJ de 27/10/2016, Ribeiro Cardoso; de 27/09/2018, Sousa Lameira; de 3/10/2019, Maria Rosa Tching; e de 2/2/2022 - revista n.º 1786/17.9T8PVZ.P1.S1-1ª Secção, Fernando Samões; e do TRG de 19/06/2014, Manuel Bargado; de 18/12/2017, Pedro Damião e Cunha; e de 22/10/2020, Maria João Matos – todos acessíveis em www.dgsi.pt.) Acresce que, a reapreciação do julgamento de facto pela Relação, destina-se primordialmente a corrigir invocados erros de julgamento que, atento o preceituado no citado artigo 662º/1 do CPC, se evidenciem a partir dos factos tidos como assentes, da prova produzida ou de um documento superveniente, impondo decisão diversa. Significa que não basta que a prova produzida nos autos permita decisão diversa, necessário é que a imponha. Por esta razão, a lei exige ao recorrente que motive as alegações de recurso, dizendo as razões que determinam, em seu entender, diverso juízo probatório, para que a Relação possa aquilatar se os meios de prova por aquele indicados impõem ou não decisão diversa da recorrida quanto aos concretos pontos de facto impugnados. No que tange à rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 200-201, elenca as situações em que deve verificar-se tal rejeição: “a) Falta de conclusão sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (art.ºs 635º, nº 4, e 641º, nº 2, al. b)); b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art.º 640º, nº 1, al. a)); c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.): d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda; e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.” Como sustenta o mesmo autor, estas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor, sendo “uma decorrência do princípio de autorresponsabilidade das partes, impedindo que a decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo” (ob. cit. pág. 201). Conforme se afirmou no acórdão do STJ de 24.04.2018 (P.140/11.0TBCVD.E1, disponível em www.dgsi.pt), «o art.º 640º, nº 1 do CPCivil impõe um certo número de ónus à parte que impugne a decisão sobre a matéria de facto. Compreendem-se sem dificuldade estas exigências legais, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não está concebido em termos de reescrutínio indiscriminado ou global da materialidade subjacente à causa, mas sim em termos de aferição de pontuais erros de julgamento (os concretamente identificados pelo recorrente). E, de outro lado, visa a lei o rigor na forma de acusação do mau julgamento dos factos, de modo a obviar a impugnações dilatórias, levianas ou carecidas de fundamento probatório objectivo». À luz deste enquadramento, cumpre verificar se a ora apelante deu cumprimento aos ónus previstos no art.º 640º do Código de Processo Civil. Analisada a alegação recursória, constatamos que, sob o ponto III - intitulado “reapreciação da prova gravada” - das conclusões do recurso interposto pela ora embargante/executada, invoca a apelante: p) Na sentença proferida, em 28.03.2023, com referência 15567419, resulta provado que a testemunha MJP, confirmou o seguinte: “(...) que as contas penhoradas não têm uma afetação especial, servindo também para pagar dívidas.” q) Assim, impugna-se a decisão de facto, porquanto a referida testemunha somente afirmou que face a penhora sobre os saldos bancários, a A, viu-se no dever de cortar valores, o que significa, reduzir de forma avultada ou, deixar de suportar certas obrigações e/ou ações! r) Abdicaram e bambolearam por setores, que apesar de fazerem toda a diferença, são os únicos que, infelizmente, se podiam mexer! s) Mais, seria suposto e requisito para o douto Tribunal, que a A, corta-se no salário ao seu pessoal, ou não tivesse meios financeiros para pagar salários? t) Resulta cristalino que, a A optou pela afetação da ação social, porque era a ÚNICA solução viável. u) Não se pode viver numa sociedade onde não existe limpeza urbana, manutenção de espaços verdes, cemitérios e as obras necessárias! v) Face ao exposto e perante o depoimento prestado pela testemunha MJP, dever-se-ia ter dado como provado que os saldos bancários penhorados, estão especialmente afetos a determinado fim – ao interesse público, isto é, a prossecução de interesses próprios da população respetiva! w) Na sentença proferida, em 28.03.2023, com referência 15567419, resulta provado que a testemunha RL, confirmou o seguinte: “entre 2017 e 2021 desempenhou funções de tesoureiro na embargante, os quais realçaram as funções “públicas” desempenhadas pela embargante, colocando a tónica no impacto negativo que a penhora de saldos bancários teve, obstando à realização de algumas atividades/apoios, nomeadamente na área social, mas também cemitérios, guarda noturno, entre outros.” e “e confirmou a testemunha RL que foi o executivo da Junta de Freguesia que, após a penhora de saldos bancários, optou pela afetação do apoio social.” x) Resulta cristalino, mais uma vez, que a União das Freguesias de Sacavém e Prior Velho optou pela afetação da ação social, porque era a ÚNICA solução viável. y) E com essa mesma obrigação perante a via judicial e com o dever de realizar uma boa gestão e garantir a prossecução de interesse próprio da sua população, foi a única decisão possível. z) Assim, impugna-se a decisão de facto, porquanto a referida testemunha afirmou que face a penhora sobre os saldos bancários, a União das Freguesias de Sacavém e Prior Velho, viu-se no dever de cortar valores, o que significa, reduzir de forma avultada ou, deixar de suportar certas obrigações e/ou ações! aa) Bem como, atuou sempre, pelo interesse da sua respetiva população, e consequentemente pelo interesse público, sendo obrigado a tomar decisões e ser um bom gestor, atuando sempre de boa-fé e com respeito pelos princípios da adequação e proporcionalidade. bb) Visando a promoção e salvaguarda dos interesses próprios da população, de serviços e atividades de proximidade e apoio direto aquela mesma população, melhorando as suas condições de vida. Como decorre do alegado, a apelante insurge-se genericamente contra a decisão sobre a matéria de facto, sem, contudo, identificar concretamente qual ou quais os factos que pretende impugnar, incumprindo, assim, o ónus imposto pela alínea a) do art.º 640º do Código Processo Civil. A leitura conjugada da motivação e conclusões permite depreender que a embargante pretende pôr em crise o facto constante da alínea J) dos factos provados (Facto J - As verbas da embargante suportam, na grande maioria, despesas com pessoal e aquisição de bens e serviços, distribuídos por várias orgânicas, nomeadamente (entre outros) limpeza urbana, manutenção de espaços verdes e parques, atividades sociais, atividades recreativas e culturais, educação e ATL, atividades desportivas, cemitérios, obras.), pese embora a própria apelante alegue de modo conducente a aceitar o facto em questão (cf. pontos 26 da motivação do recurso), resultando da análise dos argumentos invocados que a mesma discorda, isso sim, das conclusões retiradas pelo tribunal da factualidade apurada. Por outro lado, a recorrente não indica os concretos meios probatórios que determinam uma decisão diversa, limitando-se a remeter para os depoimentos prestados pela testemunha MJP e RL, transcrevendo excertos de tais depoimentos, não procedendo à apreciação crítica dos meios de prova. Acresce que a apelante não indica, em sede de conclusões, o concreto sentido da modificação pretendida, o que de acordo com a jurisprudência recentemente firmada pelo STJ (no AUJ nº 12/2023, de 17/10/2023, publicado no DR, 1ª série, de 14/11/2023, rectificado pela Declaração de rectificação nº 25/2023, de 28/11/2023, passando o sumário do aresto a ter a seguinte redacção: “«Nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações»), não constitui violação do ónus da alínea c) do nº 1 do art.º 640º/1 do CPC, desde que se possa retirar da motivação do recurso a decisão alternativa pretendida. Sucede que no caso vertente, não retiramos das alegações o sentido da decisão alternativa, porquanto apenas é afirmado, no ponto 41, que “(…) dever-se-ia ter dado como provado que os saldos bancários penhorados estão especialmente afectos a determinado fim – ao interesse público, isto é a prossecução de interesses próprios da população respectiva.”, o que não encerra um facto concreto propriamente dito (não sendo indicado qual a finalidade específica das verbas em causa), mas antes um segmento meramente conclusivo (tal como já constava do requerimento inicial dos embargos). Flui de todo o exposto que a apelante incumpriu cada um dos ónus a que se reportam as citadas alíneas a), b) e c) do art.º 640º/1. Ora, impendendo sobre a recorrente o cumprimento das apontadas exigências legais e não o tendo feito, não delimitou o objecto do recurso. Como sumariado no acórdão do TRE de 12/7/2018 (P. nº 581/15.4T8ABT.E1, relatado por Albertina Pedroso, publicado in www.dgsi.pt), que se subscreve: “(…) III - Ao tribunal da Relação não incumbe ir identificar de entre aqueles pontos de facto, provados e não provados, onde previsivelmente se poderia encontrar o dissentimento do Recorrente relativamente à matéria de facto que vem fixada da primeira instância. IV - De facto, não só isso significaria obrigar o tribunal ad quem a substituir-se ao recorrente na concretização do objeto do recurso, como se nos afigura que a tal sempre obstaria o princípio do pedido que enforma todo o processo civil e não pode deixar de ser aplicado na fase de recurso, sob pena de potencial violação de outros princípios processuais como seja o princípio da igualdade das partes. Acresce que, como se escreveu no acórdão do TRP de 4/11/2011, P. 3319/17.8T8PRT.P1, Jerónimo Freitas, “o recorrente não cumpre os ónus impostos pelo art.º 640º/1 do Código Processo Civil quando procede a uma mera indicação genérica da prova que, na sua perspetiva, justifica uma decisão diversa daquela a que chegou o Tribunal de 1.ª Instância, em relação a um conjunto de factos, sem especificar quais as provas produzidas quanto a cada um dos factos que, por as ter como incorretamente apreciadas, imporiam decisão diversa, fazendo a apreciação crítica das mesmas” (no mesmo sentido, v. acórdão do TRG de 22/10/2020, P. n.º 5397/18.3T8BRG.G1 - Maria João Matos). É este o caso dos autos, em que a recorrente se limita a proceder à indicação genérica da prova e não a uma apreciação crítica dos meios probatórios que justificasse uma decisão diversa (que também não indica em concreto), sendo manifesto que a apelante não concorda, isso sim, com a valoração dos factos efectuada na sentença, em sede de fundamentação jurídica, o que não constitui fundamento de impugnação dos factos. Pelo exposto, atento o incumprimento pela ora apelante dos ónus a que alude o artigo 640º/1 alíneas a), b) e c) do CPC, impõe-se a imediata rejeição do recurso interposto pela embargante na parte relativa à impugnação da matéria de facto, o que se determina. * III.2.2. impugnação da matéria de facto (contra-alegações da embargada) Na resposta à alegação da recorrente A (ora embargante), veio a embargada B, SA invocar que “deverão considerar-se igualmente provados os seguintes factos, com manifesto interesse para a decisão da causa, por caracterizarem o importante volume financeiro da Recorrente, em contraste com o diminuto valor das importâncias penhoradas: Alínea L) - que o Orçamento da Recorrente para 2022 é de 3.228.793,00 Euros e que o de 2021 foi de 2.652.022,00 Euros (como se comprova pelo referido na pág. 18 do Orçamento, junto aos autos em 2/12/2022); Alínea M) - que só em taxas, multas e outras penalidades e na venda de serviços correntes que presta, a Recorrente vai receber no ano de 2022, o montante de 563.537,00 Euros (como se comprova pelo referido na pág. 19 do Orçamento, junto aos autos em 2/12/2022); Alínea N) - que só em prémios, condecorações e ofertas, a Recorrente vai despender a módica quantia de 34.250,00 Euros, no ano de 2022 (conforme demonstrado pág. 23 do Orçamento, junto aos autos em 2/12/2022); Mais aduz, no final das contra-alegações, que “por mera cautela de patrocínio se requer que a matéria referida no parágrafo anterior [as verbas das cinco contas bancárias da Recorrente, no BPI de 238,45€ e de 1.662,27€, no Santander Totta de 8.553,75€ e 13.933,16€ e na CGD de 64.924,71€, constantes da Alínea I) da matéria de facto provada, estavam todas destinadas a uma utilização geral pela Junta, naquilo que fosse necessário pagar, inclusive as dívidas da mesma, e não especialmente afectas à realização de um fim específico da Junta,] seja considerada matéria provada e designada como Alínea O), caso este Tribunal Superior entenda que tal se afigura necessário.” Apreciemos. O art.º 636º do CPC (sob a epígrafe “ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido”) permite à parte recorrida suscitar nas contra-alegações do recurso a reapreciação dos fundamentos em que tenha decaído, prevenindo os riscos de uma eventual resposta favorável do tribunal de recurso às questões que tenham sido suscitadas pelo recorrente ou mesmo a outras questões de conhecimento oficioso. Pode ainda requerer a ampliação do objecto do recurso no que respeita à matéria de facto provada ou não provada com relevo para a defesa dos interesses do recorrido (v. António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Almedina, 2ª edição, vol. I, pág. 790). Neste caso, à semelhança do que ocorre quanto ao recurso principal, cumprirá ao recorrido impugnar, em sede de ampliação do objecto do recurso, nas contra-alegações, a decisão da matéria de facto, nos termos do art.º 638º/5 do CPC, devendo, então, observar os requisitos legais previstos para a impugnação da decisão da matéria de facto que estão previstos no art.º 640º, incluindo a formulação de conclusões, pois são estas que delimitam o objecto da pretendida ampliação. E por outro lado, apenas fará sentido apreciar as questões suscitadas se, porventura forem acolhidos os argumentos arrolados pelo recorrente com repercussão na modificação recorrida (v. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 7ª edição, pág. 149). Ora, em primeiro lugar, não invoca a embargada/recorrida o fundamento jurídico do aditamento factual requerido em sede de contra-alegações, não invocando nem o art.º 636º, nem o art.º 638º/8, limitando-se a indicar, no início da sua contra-alegação, o art.º 638º/1, 5 e 7 do CPC. Em segundo lugar, a embargada não apresenta conclusões, nem cumpre os supra apontados ónus de impugnação especificada impostos pelo art.º 640º/1 do CPC, designadamente na alínea b), porque não indica os concretos meios probatórios que determinam uma decisão diversa, não procedendo à apreciação crítica da prova. Ainda que assim não fosse analisado o teor da resposta apresentada, constatamos que não está em causa o conhecimento de fundamentos da acção ou da defesa em que a embargada tenha decaído, como pressupõe o art.º 636º. Acresce que, tendo sido rejeitada a impugnação da decisão sobre a matéria de facto deduzida pela recorrente embargante, menor relevância assumiria o aditamento de factos pretendido, sendo ainda certo que tais factos se reportam a documentos juntos ao processo, que o Tribunal sempre poderá atender independentemente de o seu conteúdo ser vertido no acervo provado. Pelos motivos expostos, rejeita-se o aditamento de factos requerido. * III.2.2. Apreciação jurídica III. 2.2.1. Recurso interposto pela embargada A exequente/embargada B-Sociedade de Investimentos Imobiliários, S.A. imputa à decisão recorrida erro de julgamento na parte em que determinou que fosse reduzido à quantia exequenda inicial o montante de €29.620,18, pugnando pela revogação da sentença nessa parte. Alega, para tanto, que resulta da matéria dada como provada [factos G) e H)], que do total que foi pago pela executada/embargante, a exequente apenas recebeu a quantia de €117.379,82, pelo que o remanescente no valor de €29.620,18 nunca foi recebido pela mesma, tendo tal quantia sido paga à massa insolvente da B. Mais frisa a embargada que os restantes valores entregues ao administrador de insolvência da B, só quem os recebeu, os deve restituir à recorrida, mas nunca a B, que não os recebeu. Vejamos. Está provado que: G. Entre junho de 2015 e junho de 2019 (inclusive), a embargante procedeu ao pagamento mensal de €3.000,00, num total de€147.000,00. H. A embargada recebeu, do total referido em G, €117.379,82, sendo: . €54.380,86 foram transferidos em 06/09/2017 da massa insolvente da B para a conta da exequente . €8.998,96 foram transferidos em 05/12/2017 da massa insolvente da B para a conta da exequente . €54.000,00 foram transferidos pela embargante para a conta da B (realces nossos) Em sede de fundamentação jurídica da oposição à execução, pode ler-se na decisão recorrida: “O título executivo que está na base da execução é uma sentença condenatória, proferida em ação de reconhecimento de direito de propriedade e de indemnização, transitada em julgado em 2003. A exequente nestes autos, que foi autora da ação declarativa donde emanou a sentença referida, esteve insolvente entre 2010 e 2016, tendo sido, no âmbito da insolvência, outorgado um acordo de fixação de dívida e pagamento em prestações entre a massa insolvente a e aqui embargante. Tal acordo foi declarado ineficaz – não obstante, facto é que, entre junho de 2015 e junho de 2019, a embargante pagou à massa insolvente (prestações de junho de 2015 a dezembro de 2017) e à embargante (prestações de janeiro de 2018 a junho de 2019), as prestações mensais acordadas, num total de €147.000,00. “Do total pago pela embargante, a embargada apenas considerou o montante de €117.379,82, correspondente à soma de €54.380,86 (montante transferido em 06/09/2017 da massa insolvente da B para a conta da exequente), €8.998,96 (montante transferido em 05/12/2017 da massa insolvente da B para a conta da exequente) e €54.000,00 (transferência direta da embargante para a conta da B). A quantia de €29.620,18, correspondente à diferença entre os €147.000,00 e os €117.379,82, tem igualmente de ser abatida à dívida exequenda, não sendo oponível à embargante (devedor de devedor) a circunstância de tal montante ter sido utilizado no pagamento das despesas da massa insolvente da exequente. Procedem, nesta parte, os embargos, havendo que reduzir à quantia exequenda inicial o montante de €29.620,18.” (realces nossos) O tribunal a quo fundamentou, assim, a redução da quantia exequenda tendo em consideração o valor efectivamente pago pela executada, ora embargante, que procedeu ao pagamento da quantia total de €147.000,00. E bem andou aquele tribunal ao decidir neste sentido. Com efeito, o que aqui releva é o montante liquidado pela executada, independentemente do destino dado a essa quantia. Como resultou da factualidade assente, na pendência do processo de insolvência que correu termos entre 2010 e 2016, foi celebrado em 29/6/2015 acordo de pagamento entre a massa insolvente da B, SA e a Junta de Freguesia, ora embargante (sendo fixado o valor da dívida em €200 000, a ser paga em 66 prestações mensais de €3000 e a última (67ª) no valor de €2000 – cf. facto provado E), acordo que foi sendo cumprido até Junho da 2019, sendo que a sentença que veio a declarar ineficaz esse acordo transitou em julgado em 11/6/2019 (cf. facto F). Ora, existindo processo de insolvência (tendo a exequente/embargada sido declarada insolvente em 22/9/2010 – cf. doc. junto em 15/6/2020 ao processo principal de execução – ref. citius 9709753), os pagamentos dos devedores não podiam deixar de ser feitos à massa insolvente (cf. art.ºs 36º/1 m), 46º/1 e 81º/4 e 7 todos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo DL n.º 53/2004, de 18 de Março, na versão actual, estabelecendo o art.º 36º/1 m) expressamente que “ na sentença que decretar a insolvência o juiz adverte os devedores do insolvente de que as prestações a que estejam obrigados deverão ser feitas ao administrador da insolvência e não ao próprio insolvente”), cabendo ao administrador de insolvência, na sua qualidade de representante do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência (art.º 81º/4 CIRE), dar destino às quantias recebidas, podendo, pois, essas quantias ser afectas às despesas da massa insolvente. Como estatui o art.º 46º/1 do CIRE, “A massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo.” Conforme entendeu o tribunal recorrido, a circunstância de a quantia de €29.620,18 (correspondente à diferença entre os €147.000,00 pagos e os €117.379,82 transferidos da massa insolvente para a conta da exequente – facto H) ter sido utilizada no pagamento das despesas da massa insolvente da exequente não é oponível à embargante, porque, acrescentamos nós, a tal é, evidentemente, alheia a executada. Aliás, os montantes recebidos pelo administrador de insolvência para a massa insolvente não têm/devem ser transferidos para a empresa insolvente, apenas o tendo sido certamente porquanto a empresa se veio a reabilitar, em face do encerramento do processo de insolvência por cessação da situação de insolvência em 12/10/2016 (cf. mencionado doc. junto em 15/6/2020 no processo principal – ref. citius 9709753). Perante o exposto, para efeitos de apuramento da quantia exequenda da presente execução instaurada em 17/6/2019, tem de considerar-se, como fez o tribunal a quo, o valor total pago pela executada (quantia indicada no facto provado G - €147.000,00), independentemente do destino dado a este montante. Assim, mediante o pagamento da mencionada quantia, ficou a executada exonerada da dívida nessa parte, não cabendo no objecto dos presentes embargos discutir os motivos pelos quais apenas foi transferida da massa insolvente para a exequente o montante a que alude o facto provado H. Trata-se de questão que deveria ser apreciada e decidida em sede do processo de insolvência. Em síntese conclusiva, nenhuma censura nos merece o decidido, acompanhando-se o decidido pelo tribunal de 1ª instância no segmento atinente à oposição à execução, no sentido de dever ser reduzida a quantia exequenda, mediante o abatimento da quantia de €29 620,18. Consequentemente, improcedem as conclusões do recurso e concretamente a conclusão J), por não se detectar qualquer contradição entre a matéria de facto e a decisão, sendo certo que não foi sequer invocada a nulidade da sentença a que alude o art.º 615º/1 b) do CPC). Concluímos pela improcedência do recurso interposto pela embargada. * III. 2.2.2. Recurso interposto pela embargante Pretende a executada/embargante a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que declare a impenhorabilidade das contas bancárias pertencentes à (embargante/oponente) União das Freguesias de Sacavém e Prior Velho, atendendo ao facto de se encontrarem exclusivamente afectas à realização de fins de utilidade pública, estribando-se no art.º 737º/1 do CPC. Alega no ponto IV das conclusões recursórias (nas alíneas infra indicadas): cc) “As verbas da Junta da União de Freguesias de Sacavém e Prior Velho encontram-se especialmente afetadas à realização de fins de utilidade pública. dd) As verbas recebidas, são recebidas no âmbito das atribuições próprias das autarquias, visando a promoção e salvaguarda dos interesses próprios da população, de serviços e atividades de proximidade e apoio direto aquela mesma população, melhorando as suas condições de vida. ee) Estas verbas visam pagar os salários dos trabalhadores, famílias necessitadas e carenciadas que precisam de ajuda para seu sustento, garantir que todos os idosos e pessoas com deficiência têm todas as acessibilidades necessárias, efetivar que todas as pessoas necessitadas e com deficiências motoras conseguiam ter transportes, bem como ter transportes de ambulância, garantir que todas as crianças e jovens tenham acessibilidade fácil e efetiva para se deslocarem para a escola, funcionamento parcial de limpeza do cemitério, impedindo os apoios sociais as famílias e Associações, entre muitas outras. ii) são verbas e receitas afectas exclusivamente ao interesse público. jj) São, pois, verbas impenhoráveis, estando isentas de penhora as verbas recebidas pela Recorrente – União das Freguesias de Sacavém e Prior velho, pois estão afetas à realização de fins de utilidade pública. kk) Não existindo nenhuma verba, receita ou outro benefício recebido ou na posse da Recorrente que não esteja afeto à realização de fins de utilidade pública. ll) Concluindo pela manutenção das penhoras aos saldos bancários, lavradas no auto de 24/07/2019, tem a potencialidade de produzir danos e efeitos irreversíveis, começando pelo desespero económico dos seus trabalhadores e seres humanos, a falta de sustento e subsistência para as famílias, a falta de apoio às famílias carenciadas, principalmente a nível de saúde e alimentação, o aumento do abandono dos idosos por falta de acessibilidades e transportes, a falta de transporte hospital e de ambulâncias, colocando em riscos os Direitos de população mais desfavorecida como crianças e idosos, a segurança da respetiva população, entre outras consequências gravíssimas e irreversíveis.” Antes de prosseguirmos com a apreciação deste segmento do recurso, importa assinalar que a recorrente afirma na 1ª página da alegação do recurso, quando se refere ao respectivo objecto, no nº 2 do ponto I., que “não se conforma com a redução da quantia exequenda apenas no valor de 29.620,18 Euros”. Todavia, como refere a exequente em sede de contra-alegações, “depois desta afirmação, nunca mais se refere na sua alegação a esta questão, não apresentando qualquer fundamento de impugnação, de facto ou de direito, da decisão a que chegou a sentença recorrida, o que significa que, na realidade, não apresentou qualquer alegação sobre esta questão.” Assim, além do declarado no ponto I, nº 2, a recorrente não apresenta fundamentação de facto e/ou de direito em que se estribe a sua oposição ao decidido na sentença sobre o desconto do referido valor de €29.620,18 (matéria, aliás, objecto do recurso interposto pela embargada, supra decidido). De igual modo, nada consta das conclusões do recurso sobre esta matéria. Assim, sem necessidade de maiores considerações, impõe-se indeferir o recurso nesta parte, nos termos do art.º 641º//2 a) do CPC, o que se decide. Cumpre, então, apreciar a supra enunciada questão atinente à impenhorabilidade dos saldos bancários penhorados. Está em causa o fundamento de oposição à penhora previsto no art.º 784º/1 a) do CPC [em conjugação com o art.º 737º/1 do mesmo diploma], que o tribunal a quo considerou não verificado, por entender que a embargante não alegou nem demonstrou que os saldos bancários concretamente penhorados estavam especialmente afectos a determinado fim de utilidade pública, julgando, assim, improcedente a oposição à penhora. Importa, pois, decidir se são bens impenhoráveis os depósitos bancários penhorados no processo executivo a que os presentes embargos estão apensos, identificados no auto de penhora de 24/7/2019, num total de €89 312,34 (facto I do acervo provado). A acção executiva visa assegurar ao credor a satisfação da prestação que o devedor não cumpriu voluntariamente, através do produto da venda executiva de bens ou direitos patrimoniais daquele devedor (art.º 817 do Código Civil). A regra em matéria de penhora é a da sujeição à execução de todos os bens do devedor susceptíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondam pela dívida exequenda (art.ºs 601º do C.Civil e 735º do C.P.C.). A lei consagra, porém, a impenhorabilidade de certos bens: total ou absoluta (art.º 736º do C.P.C.); relativa (art.º 737º do C.P.C.) e parcial (art.º 738º do C.P.C.). O art.º 784º/1 a) do CPC abarca as situações de impenhorabilidade, absoluta ou relativa, enquanto fundamentos de oposição à penhora. Sob a epígrafe “Bens relativamente impenhoráveis”, estipula o art.º 737º/1 do CPC que: 1 - Estão isentos de penhora, salvo tratando-se de execução para pagamento de dívida com garantia real, os bens do Estado e das restantes pessoas coletivas públicas, de entidades concessionárias de obras ou serviços públicos ou de pessoas coletivas de utilidade pública, que se encontrem especialmente afetados à realização de fins de utilidade pública. Do referido preceito decorrem, pois, dois requisitos, cumulativos, quanto à impenhorabilidade dos bens: i) que os mesmos pertençam a pessoa colectiva pública ou de utilidade pública; ii) que se encontrem afectados à realização de fins de utilidade pública. António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa (ob. cit., vol. II, pág. 104 e 105) esclarecem, em anotação ao preceito em análise, que: “Bens relativamente impenhoráveis são aqueles que apenas podem ser objecto de penhora, verificadas que sejam determinadas circunstâncias. Assim, estão isentos de penhora, salvo tratando-se de execução para pagamento de quantia em dívida com garantia real, os bens do Estado e das restantes pessoas colectivas públicas, de entidades concessionárias de obras ou serviços públicos ou de pessoas colectivas de utilidade pública que se encontrem especialmente vinculados à realização de fins de utilidade pública. Sem embargo dos casos em que essa afectação constitua facto notório ou seja do conhecimento geral, a sua demonstração compete à entidade executada, concretizando o fim específico a que se destinam mediante oposição à penhora, nos termos do art.º 784º/1 a) (STJ 20-1-20, 642/04, RE 14-6-18, 115/12, RL 28-5-13, 164183/11).” (…) Será penhorável o saldo bancário de um município que não esteja especialmente afeto a fins de utilidade pública (RL 13-5-20, 4399/2005, RE 5-6-14, 58-11).” [sublinhado nosso] Em caso semelhante ao presente, subscrevendo a decisão aí recorrida e citando-a, escreveu-se no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 14/6/2018, P. nº 115/12.2TTBJA-C.E1, relator João Nunes, acessível em www.dgsi.pt: “A lei consagra, porém, a impenhorabilidade de certos bens: total ou absoluta (art.º 736º do C.P.C.); relativa (art.º 737º do C.P.C.) e parcial (art.º 738º do C.P.C.). No que respeita aos bens do domínio público existe uma salvaguarda absoluta – impenhorabilidade total – assente, obviamente, na presunção “iuris et de iure” de que tais bens estão, pela sua própria natureza, afectos exclusivamente a fins de utilidade pública e consequentemente justifica-se plenamente o sacrifício do particular em prol do bem comum. Já quanto aos bens do domínio privado do Estado e demais Pessoas Colectivas Públicas, a sua natureza não permite concluir pela afectação exclusiva ou sequer predominante a fins de utilidade pública e daí que, norteado pelos princípios da proporcionalidade e da necessidade/adequação, entre o interesse do credor/exequente e a salvaguarda do interesse público, o legislador tenha isentado de penhora apenas os bens afectos concretamente à utilidade e satisfação do interesse público. Daqui decorre que só os bens que estiverem afectos a fins de utilidade pública beneficiarão da prerrogativa da impenhorabilidade. Para beneficiar da isenção da penhora, será necessário ao beneficiário a alegação e prova da afectação concreta dos bens a fins de utilidade pública (trata-se de matéria de excepção e como tal o ónus da prova cabe a quem aproveita – art.º 342º, nº2 do C.Civil). A utilidade pública do bem tem que decorrer do uso directo que dele se fizer e tal uso concreto, se em certos casos pode inferir-se da natureza do próprio bem, se devidamente identificado (p. ex., uma escola pública, um posto de saúde público) na maioria dos casos assim não sucederá, porquanto na identificação dos bens não é exigível a indicação do uso que lhe é dado. Se dos elementos constantes dos autos não resulta inequívoca a afectação do bem a fins de utilidade pública, impõe-se ao executado, em sede de oposição, que alegue e prove essa concreta afectação, sob pena de manutenção da penhora (neste sentido, vide, acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 12.01.2006 e de 05.06.2014, in www.dgsi.pt). (…) No caso em apreço não foi alegado, por parte da Executada, que as quantias monetárias penhoradas estivessem afectadas à realização de fins de utilidade pública. A mesma limitou-se a alegar que, sendo uma Instituição Particular de Solidariedade Social de reconhecida utilidade pública, prossegue os fins na localidade em que se insere, tendo a funcionar nas suas instalações uma creche e um estabelecimento de ensino pré-escolar. Ora, desta alegação não se descortina o fim concreto por si atribuído às quantias monetárias que foram penhoradas, não se podendo presumir que as mesmas estão afectas a qualquer fim de utilidade pública. O uso conferido às quantias monetárias não se apresenta como um facto notório ou do conhecimento geral e, portanto, sendo um facto impeditivo do direito da Exequente incumbia à Executada a sua alegação e prova. Não tendo apresentado qualquer alegação quanto ao uso conferido às quantias monetárias, não poderão esses bens ser qualificados como impenhoráveis.” Mais enfatizou o aludido aresto que: “Já quanto ao segundo dos requisitos, competia desde logo à oponente alegar o concreto fim a que o saldo da conta bancária se destinava, não bastando afirmar genericamente que se destinava a fins de utilidade pública: de outro modo, como se assinala na sentença recorrida, bastaria uma executada alegar e provar que é pessoa de utilidade pública para que um bem (por exemplo, saldo da conta bancária), ipso facto, não lhe pudesse ser penhorado. É certo que se poderá sustentar que sendo uma pessoa colectiva de utilidade pública todos os bens que lhe pertencem estão afectos, lato sensu, à realização desses fins de utilidade pública. Contudo, manifestamente não é essa a interpretação que decorre do referido artigo 737.º do Código de Processo Civil, pois tal conduziria à impenhorabilidade, ipso facto, de todos os bens pertencentes a uma pessoa colectiva de utilidade pública: como estatui o preceito em causa é necessário que os bens «se encontrem especialmente afetados à realização de fins de utilidade pública», o que vale por dizer que terá que ser alegado, e consequentemente provado, o concreto fim a que se destina o bem penhorado.” Na mesma linha decidiu o acórdão proferido nesta Secção em 20/12/2018, no âmbito do P. 621/06.8TCFUN.L1, relator Carlos Oliveira, em cujo sumário se pode ler: 1.“A “impenhorabilidade relativa” estabelecida no Art.º 823.º n.º 1 do C.P.C. pretérito (correspondente ao atual Art.º 737.º n.º 1 do C.P.C.) só impede a satisfação do crédito do exequente na estrita medida em que os concretos bens penhorados estão (eles mesmos) especialmente afetos à satisfação das necessidades públicas ou sociais prosseguidas pela pessoa coletiva em causa. 2.Não basta que o titular da conta objeto de penhora seja uma pessoa coletiva de utilidade pública, é necessário que esta, como executada, suscite em incidente de oposição à penhora a impenhorabilidade relativa e aí prove que os valores depositados estão especialmente afetados a uma determinada finalidade de interesse público geral que não possa ser satisfeita doutro modo. 3.O propósito da impenhorabilidade relativa é apenas de evitar que os bens destinados a fins de utilidade pública sejam desviados da finalidade a que estão afetos, caindo sobre o executado o ónus de prova quanto a essa especial afetação. Sufragamos a orientação jurisprudencial assim definida, afigurando-se que as situações de impenhorabilidade (relativa) previstas no citado art.º 737º/1 dependem da prova cumulativa dos respectivos requisitos, sob pena de, assim não se entendendo e presumindo-se que os bens penhorados a qualquer pessoa colectiva pública se encontram especialmente afectados a fins de utilidade pública, se subverter a ratio legis (salvaguarda da prossecução do interesse público, mediante a impenhorabilidade dos bens especificamente afectos concretamente a utilidade e satisfação do interesse público), o que conduziria a uma impenhorabilidade (absoluta e subjectiva), ipso facto, de todo e qualquer bem pertencente àquelas pessoas colectivas. Ao invés do que sustenta a recorrente, a interpretação do art.º 737º deve ser rigorosa e restrita, sob pena de violação de princípios fundamentais com assento na Constituição da República Portuguesa [v.g. princípio da proporcionalidade e proibição do excesso ínsitos no art.º 18º/2 da CRP; e garantia constitucional do direito de propriedade privada prevista no artigo 62.º, de onde se extrai a garantia (constitucional também) do direito do credor à satisfação do seu crédito (Acórdãos do Tribunal Constitucional 494/94, de 12/07/1994, da 2.ª secção e 770/2014, de 12/11/2014)], pelo que a interpretação constante da decisão recorrida não incorreu em inconstitucionalidade material. No caso dos autos, provou-se que por auto de 24/07/2019, foram penhorados depósitos bancários, num total de €89.312,34, correspondentes ao saldo de cinco contas de diferentes instituições bancárias, como consta do facto provado I. Mais se provou que “As verbas da embargante suportam, na grande maioria, despesas com pessoal e aquisição de bens e serviços, distribuídos por várias orgânicas, nomeadamente (entre outros) limpeza urbana, manutenção de espaços verdes e parques, atividades sociais, atividades recreativas e culturais, educação e ATL, atividades desportivas, cemitérios, obras.” – facto J. Contudo, não logrou a executada/embargante alegar e demonstrar, como lhe competia, que as concretas quantias depositadas nas contas bancárias penhoradas estavam afectas a determinada(s) finalidade(s) de utilidade pública, não bastando, como vimos, afirmar genericamente que se destinavam a fins de utilidade pública. Subscrevemos o que, neste conspecto se afirmou no mencionado acórdão de 20 de Dezembro de 2018: “Por isso as contas bancárias destas entidades podem ser penhoradas, salvo se provarem que estão “especialmente afetadas a uma determinada finalidade de interesse público geral que não possa ser satisfeita doutro modo” (vide, a propósito: Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo in “A Ação Executiva Anotada e Comentada”, 2.ª Ed. 2017, pág. 271). O propósito da impenhorabilidade relativa é apenas de evitar que os bens destinados a fins de utilidade pública sejam desviados da finalidade a que estão afetos, caindo sobre o executado o ónus de prova quanto a essa especial afetação (vide, neste sentido: Marco Carvalho Gonçalves in “Lições de Processo Civil Executivo”, 2016, págs. 250 a 251).” Flui do que vimos expondo que, não tendo, no caso vertente, sido provado o concreto fim a que se destina cada uma das quantias monetárias depositadas nas contas bancárias penhoradas, não podemos concluir pela sua impenhorabilidade. Consequentemente, não nos merece censura a sentença recorrida, que julgou improcedente a oposição à penhora, por não se mostrarem preenchidos os pressupostos do art.º 737º/1 do CPC. Destarte, improcedem ambos os recursos totalmente, impondo-se a confirmação da decisão recorrida. * IV. DECISÃO Pelo exposto, acordam em julgar improcedentes os recursos de apelação e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida. Custas do recurso interposto pela embargada, a cargo desta (artigo 527º/ 1 e 2 do CPC). Custas do recurso interposto pela embargante, a cargo desta (artigo 527º/ 1 e 2 do CPC). Registe e notifique. Lisboa, 19 de Dezembro de 2023 Ana Mónica Mendonça Pavão Ana Rodrigues da Silva Luís Filipe Pires de Sousa |