Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2146/21.2 T8LSB-H.L1-1
Relator: ISABEL MARIA BRÁS FONSECA
Descritores: INSOLVÊNCIA
ALIENAÇÃO
BEM IMÓVEL
DEVER DE INFORMAR
GARANTIA REAL
NULIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/26/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. Procedendo o administrador da insolvência à alienação de imóveis pertencentes à insolvente e apreendidos para a massa, incumprindo o dever de informação do credor com garantia real sobre esse bem, consagrado no art.º 164.º, nº2, 2ª parte do CIRE, pratica uma irregularidade que é suscetível de ser contextualizada no campo das nulidades processuais, em ordem à aplicação do regime processual civil (art.º 195.º, nº 1 do CPC, ex vi do disposto no art.º 839.º, nº1, alínea c), nos termos do art.º 17.º, nº1 do CIRE); a não se entender assim, vedando liminarmente ao credor com garantia real a possibilidade de ver apreciada, no processo de insolvência, com esse fundamento, pretensão tendente à anulação da venda – remetendo o credor para outro tipo de mecanismos de tutela do seu direito, seja por via da responsabilização civil do administrador pelos prejuízos causados, seja pela formulação de pedido de destituição deste –, estaria configurada uma violação do princípio do processo equitativo consagrado no art.º 20.º, n.º 4 da CRP, conjugado com o art.º 18.º, n.º 2 da mesma lei fundamental.

2. Reclamando o credor com garantia real pela prática dessa nulidade processual, invocando que tem intenção de adquirir o imóvel, propondo a aquisição do bem por preço superior, em função do que dispõe o nº 3 do art.º 164.º do CIRE, deve a pretensão de anulação da venda ser acompanhada, em simultâneo, da apresentação de proposta de compra, com indicação do respetivo valor e pagamento da caução exigida pelo art.º 164.º, nº4; não pagando nem oferecendo a caução, por meio de cheque visado à ordem da massa insolvente, não é viável a pretensão de anulação da venda.

3. Não pode configurar-se tal exigência como excessiva ou inadequada porquanto, se remontássemos o processo à sua fase inicial, expurgado do vício apontado, sempre se imporia ao credor, no prazo de sete dias, a formulação de uma proposta de aquisição do bem acompanhada de caução, a prestar por meio de cheque visado à ordem da massa insolvente, no valor de 10% do montante da proposta, sob pena de ineficácia desta.

(Da responsabilidade da relatora (art.º 663.º, nº 7 do CPC))
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 1ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I.RELATÓRIO
Ação
Processo de insolvência (apenso de liquidação do ativo/ apenso F).

Insolvente
L…- Comércio de Pronto a Vestir SA, declarada insolvente por decisão proferida em 26-01-2021.

Comissão de credores
Pela mesma sentença foram nomeados os membros da Comissão de Credores, a saber:
Presidente: Banco Santander Totta;
Vogal efetivo: Instituto da Segurança Social;  
Vogal efetivo: Parque Península-Exploração de Espaços Comerciais SA;
Vogal suplente: LX Investment Partners II SARL;
Vogal suplente:  Lisgarante-Sociedade de Garantia Mútua SA.
Por despacho de 30-06-2021 foi nomeado para vogal efetivo, em substituição de Parque Península-Exploração de Espaços Comerciais SA, a sociedade LX Investment Partners II SARL.
Em 16-07-2021 foi proferido despacho com o seguinte teor:
“Para representantes dos credores nomeados para integrarem a comissão de credores nomeio:
Presidente da Comissão de credores Banco Santander Totta SA:
Dr. TB, advogado (…).
Vogal efetivo Instituto de Segurança Social IP
Dra. DR, advogada (…).
Vogal efetivo LX Investment Partners II SARL
Dr. FC, advogado, (…)
Os representantes ora nomeados para integrar a comissão de credores entram em funções a partir da notificação do presente despacho e ficam vinculados aos deveres de zelo e lealdade no exercício das funções que lhes foram confiadas.
 Notifique.
(…)” [ [1] ].

Credor reclamante/recorrente
a) Em 02-05-2023 (Ref.: 45451940) veio BANKINTER S.A - SUCURSAL EM PORTUGAL, Credora Reclamante peticionar o seguinte:
1. Na presente data, e após consulta voluntária ao citius, a aqui Credora Reclamante tomou conhecimento de que foi apresentada uma proposta para aquisição das verbas 2 e 3 – verbas sobre as quais a aqui credora goza de garantia real.
2. A proposta para aquisição das referidas verbas é bastante inferior ao valor de venda determinado pela Sra. Administradora da Insolvência. [1 O valor mínimo de venda da verba n.º 2 é EUR 1.920.915,00 e foi apresentada proposta pelo montante de EUR 1.200.000,00. O valor mínimo de venda da verba n.º 3 é EUR 586.135,20 e foi apresentada proposta pelo montante de EUR 400.000,00.] 
3. Contudo a Sra. Administradora da Insolvência aceitou a referida proposta, sem a validação da Comissão de Credores.
4. Deste modo, e em cumprimento do disposto no artigo 161.º CIRE requer-se a V. Exa. que ordene a suspensão de todas as diligências de venda das referidas verbas, nomeadamente a realização da escritura, até que tal venda seja ratificada pela Comissão de Credores.

b) Em 05-07-2023 (Ref.: 46059401) [ [2] ] BANKINTER, S.A. – SUCURSAL EM PORTUGAL, apresenta requerimento concluindo como segue:
“VI – DA ADJUDICAÇÃO POR BANDA DO ORA CREDOR HIPOTECÁRIO
 130. Na senda do supra exposto, o aqui Credor pretende a adjudicação das verbas 2 e 3 pelo valor global de € 3.059.200,00, nos seguintes moldes:
Verba n.º 2 – € 580.548,00
Verba n.º 3 – € 2.478.652,00
Total :  3.059.200,00€
 Em face do supra exposto requer a ora Credora a V. Exa., que seja declarada nula a venda das verbas n.º 2 e 3, correspondentes aos imóveis CRP ...5 e CRP ...6 de Águeda, Valongo do Vouga, uma vez que o procedimento e venda não respeitou as formalidades impostas nos termos art.º 161.º, art.º 164º/1, 2 e 3 do CIRE, e consequentemente, que seja ordenada a notificação da Exma. Sra. Administradora, para promover nova diligência de venda, dando da mesma conhecimento aos credores. 
 Mais se requer, ainda, a adjudicação das verbas nº 2 e 3 por parte do aqui Credor”.

Causa de pedir  
A requerente invoca, em síntese, beneficiar de garantia real sobre os imóveis apreendidos como verbas 2 e 3, sitos em Águeda, Valongo do Vouga e que a administradora da insolvência procedeu à venda com desrespeito pelas formalidades impostas pelos artigos 161.º e 164.º, n.º 1, 2 e 3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas [ [3] ].

Administradora da insolvência/apelada (AI)
Por resposta apresentada em 02-08-2023 (Ref.: 46251470), a AI indica não assistir razão ao credor, a quem prestou informações sobre a venda, respeitando as regras previstas nos artigos 161.º e segs. do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Junta documentos alusivos a correspondência eletrónica trocada com a apelante.

Resposta
Em 22-09-2023 BANKINTER, S.A. – SUCURSAL EM PORTUGAL, apresenta requerimento com o seguinte teor:
“(…) vem expor e requerer o seguinte:
1. Compulsados os autos, observa o ora Credor que a Sra. Administradora de Insolvência exerceu o contraditório quanto ao requerimento que o Credor dirigiu aos autos, em 05/07/2023, arguindo a nulidade da venda das CRP ...5 e CRP ...6 de Águeda, Valongo do Vouga, sobre as quais incidiam ónus de hipoteca a favor do Credor.
2. O ora Credor impugna, para todos os efeitos, todo o conteúdo vertido no requerimento da Sra. Administradora de Insolvência, remetendo para o teor do seu requerimento, e sua fundamentação, conforme junto aos autos a 05/07.
3. Na mesma senda, impugnam-se os documentos juntos pela Sra. Administradora de Insolvência, na medida em que não permitem extrair a conclusão e pretensão a que a Sra. Administradora de Insolvência almeja, já que as comunicações juntas são de data anterior aos leilões ocorridos.
4. Certamente não olvida a Sra. Administradora de Insolvência que os imóveis acabaram por ser vendidos por valor inferior ao aportado nos leilões e que não notificou o ora Credor para, querendo, adjudicar, na qualidade de credor hipotecário. 
5. Na mesma senda, o ora Credor reitera que pretende a adjudicação das sobreditas verbas, tendo, inclusivamente, no requerimento de 05/07 aventado valores para a mesma, nos seguintes moldes:
Adjudicação das verbas 2 e 3 pelo valor global de € 3.059.200,00: 
Verba n.º 2 – € 580.548,00 
Verba n.º 3 – € 2.478.652,00 
Total: 3.059.200,00”.
 
Adquirente/ recorrida  
A 02-11-2023 a adquirente dos imóveis J.L.A.Z. Invest, Lda. apresentou requerimento a pedir o cancelamento do registo da ação intentada pelo credor BANKINTER, S.A. – SUCURSAL EM PORTUGAL a pedir a declaração de nulidade de venda.  
Na sequência do despacho de 30-11-2023, que ordenou a notificação do adquirente J.L.A.Z. Invest, Lda. para se pronunciar quanto ao pedido de nulidade da venda, veio este apresentar requerimento, em 21-12.-2023 (ref.: 47487276), pugnando pelo indeferimento do pedido de nulidade da venda, por entender não haver violação das regras aplicáveis. 

Decisão recorrida
Em 27-02-2024 foi proferida decisão com o seguinte segmento dispositivo:
“Pelo exposto, indefiro à requerida declaração de nulidade da venda da verba n.º 2 e 3. 
Notifique a Insolvente, o adquirente, o credor e a Sra. Administradora da Insolvência.
Custas do incidente anómalo pela requerente BANKINTER, S.A., fixando-se a taxa de justiça devida em 2 UC’s.
Valor: 1 600 000,00 [artigo 296.º, n.º 1 e 304.º, n.º 1, do Código de Processo Civil]
Registe e notifique” [ [4] ].

Recurso
Não se conformando, BANKINTER S.A - SUCURSAL EM PORTUGAL apelou, formulando as seguintes conclusões:
“1) O ora Recorrente goza de um crédito, no montante global de €3.130.733,90 (três milhões, cento e trinta mil, setecentos e trinta e três euros e noventa cêntimos), de natureza garantida pelas hipotecas a incidir sobre os CRP ...5 e CRP ...6 de Águeda, Valongo do Vouga, correspondentes às verbas 2 e 3 do auto de apreensão.
2) A liquidação dos bens imoveis das verbas 2 e 3 apenas se iniciou em Outubro de 2022, sendo que a Sra. Administradora de Insolvência, em 11/10/2023, comunicou aos autos que havia dado início ao leilão eletrónico, através da plataforma da leiloeira ‘Vias & Rumos’, entre 10/10/2022 e 07/11/2022.
3) Neste leilão, foram fixados os seguintes valores para cada uma das verbas:
Verba nº 2:
Valor   mínimo:        € 2.371.500,00       Valor base: € 2.790.000,00
Verba nº 3:
Valor   mínimo:         € 851.322,00         Valor base: € 723.623,70
4) Por não se terem verificado propostas neste primeiro leilão, foi promovido um segundo leilão, através da mesma plataforma eletrónica, com início a 23/11/2022 e fim a 23/01/2023, com redução dos valores mínimos e valores base para cada um dos imoveis, nos seguintes termos:
Verba nº 2:
Valor   mínimo:       € 2.134.350,00        Valor base: € 2.511.000,00
Verba nº 3:
Valor   mínimo:        € 651.261,33         Valor base: € 766.189,80
5) Também neste segundo leilão, não foi possível obter propostas para a aquisição dos sobreditos imóveis, pelo que foi promovido um terceiro leilão, através da mesma plataforma, com início a 07/02/2023 e fim a 28/03/2023, com os seguintes valores publicitados:
Verba nº 2:
Valor   mínimo:        € 1.920.915,00       Valor base: € 2.569.900,00
Verba nº 3:
Valor mínimo:         € 586.135,20          Valor base: € 689.570,80
6) Em 15/04/2023, após o término do leilão, cujos resultados foram relegados para segundo plano, a Sra. Administradora de Insolvência informou ter sido proposto o valor de € 1.600.000,00 para a verba 2 e € 400.000,00 para a verba 3.
7) A Sra. Administradora de Insolvência não demonstra ponderar, sequer, a recusa da proposta, nem tão pouco notificou o Credor hipotecário, ora Recorrente, da proposta arrecadada, concluindo, como é patente em tal requerimento, pela comunicação aos autos de que “vai proceder-se à adjudicação da verba 2 e 3 do proponente assim que o mesmo faça o deposito dos 20%”.
8) O Ora Recorrente requereu que fosse ordenada a suspensão da venda e insurgiu-se contra os valores apresentados. 
9) Em 21/05/2023, veio a Senhora Administradora informar os autos que as verbas 2 e 3 haviam sido vendidas, através de escritura pública realizada em 18/05/2023, com o montante advindo de tal transação, no valor global de € 1.600.000,00 pelas duas verbas, depositado na conta da Massa no dia 19/05/2023.
10) Tendo o ora Recorrente sido notificado, em 21/06/2023, do requerimento junto aos autos pelo Credor Esperto & Original, S.A., dá-se conta da realização da escritura, pagamento do preço da mesma e, nessa senda, do pedido de rateio parcial entre os credores, por força da venda das verbas 2 e 3,
11) E tomando, nessa data, conhecimento do estado dos autos e da venda das verbas 2 e 3, sobre a qual recai hipoteca a seu favor, pelo valor global de € 1.600.000,00, sem o seu conhecimento, com expressa oposição, sem que tenha sido notificado, nos termos do disposto no artigo 164º, nº 2 do CIRE e sem que lhe fosse dada a oportunidade de adjudicação dos imóveis, o que pretendia – e ainda pretende – fazer.
12) Assim, em 05/07/2023, o ora Recorrente arguiu a nulidade da decisão de venda, proferida pela Sra. Administradora de Insolvência, e da escritura celebrada a 18/05/2023.
13) Veja-se que, a Sra. Administradora de Insolvência não notificou o ora Recorrente para se pronunciar sobre o valor base e modalidade de venda, tendo decidido sem consultar o ora Recorrente.
14) Nem foi, aquando da colocação dos imóveis em venda, o ora  Recorrente notificado para informar os autos se pretendia a adjudicação.
15) Ora, estamos assim perante várias nulidades.
16) Nulidade por violação do disposto no artigo 161, n.º 1 do CIRE.
17) Com efeito, A comissão de Credores e o Credor Hipotecário, aqui Recorrente nunca se pronunciaram quanto aos valores bases, reduções desses valores e modalidade de venda.
18) Tendo a Senhora Administradora agido por sua vontade, o que levou a um enorme prejuízo para a massa insolvente. 
19)      Nulidade por violação do disposto no artigo 161, n.ºs 4 e 5 do CIRE.
20) De facto, O aqui Recorrente não foi notificado do resultado do leilão, nem das propostas obtidas, nem foi notificado para adjudicar, face aos valores oferecidos em tais propostas.
21) O aqui Recorrente requereu a suspensão imediata da venda e a suspensão implicava, claramente, a não realização da escritura sem o pressuposto do nº 5 do artigo 161º do CIRE estar cumprido
22) Após mera comunicação, a Sra. Administradora outorgou a escritura de compra e venda sem ter em atenção a impugnação expressa e o requerimento expresso do aqui Credor para que a venda fosse suspensa.
23) Nulidade por violação do disposto no artigo 164, n.º 2 e 3 do CIRE
24) A Sra. Administradora de Insolvência não notificou o aqui Recorrente da apresentação da proposta final que aceitou, o que deveria ter feito, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 164º, nºs 2 e 3 do CIRE.
25) E, bem assim, não notificou o ora Recorrente da proposta apresentada para que este tivesse a oportunidade de adjudicar os imóveis por conta do seu crédito.
26) Nulidade por violação do disposto no artigo 164, n.º 1 do CIRE.
27) A Sra. Administradora da Insolvência não notificou o credor hipotecário da proposta que foi apresentada no leilão que foi realizado para venda dos imóveis apreendidos para a massa e, quando esteve teve conhecimento da proposta, se insurgiu contra a mesma, posição que a Sra. Administradora de Insolvência desvenerou, é indiscutível que violou o estatuído no art.º 164.º, n.º 2, parte final, do C.I.R.E.
28) Ainda que se possa discutir que o aqui Recorrente tem acesso ao apenso da liquidação e que tem, assim, acesso aos desenvolvimentos dos autos, é certo que o aqui Recorrente não tem obrigação de diariamente estar a consultar o processo por forma a verificar se a Sra. Administradora da Insolvência criou mais algum apenso.
29) A Sra. Administradora da Insolvência é que tem obrigação de, tomada alguma decisão quanto à venda, a comunicar ao Credor hipotecário; e tem obrigação de, recebida alguma proposta para aquisição de bens hipotecados, comunicar a proposta obtida ao Credor hipotecário para que o mesmo possa, se assim o entender, apresentar proposta por preço superior.
30) A verdade é que a Sra. administradora da insolvência não cumpriu com essas obrigações e nos presentes autos ao Credor hipotecário apenas foi do estado da liquidação já com a decisão de venda tomada, não tendo o aqui Recorrente tido qualquer intervenção processual antes dessa notificação.
31) Face ao exposto, a preterição das omissões acima descritas, nos arts. 164º/1, 2 e 3 do CIRE, acarretam necessariamente a nulidade da venda, tal como dispõem os artigos 819.º e 195.º n.º 1 do CPC e 165.º do CIRE, nulidade que se invocou para todos os efeitos legais.
32) De facto, o ora Recorrente pretende adjudicar os imóveis pelo valor total de € 3.059.200,00. 
Nestes termos e nos demais de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o Despacho proferido, só assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.”
 
J.L.A.Z. INVEST, LDA apresentou contra-alegações, com as seguintes conclusões:
“I - Quando a ora Apelante interpõe recurso de uma decisão jurisdicional passível de Apelação ficou automaticamente vinculado à observância de dois ónus: o da alegação e o da conclusão.
II  - Quanto ao primeiro, o Recorrente não indicou os pontos da matéria de facto de que discorda, não indicou nenhum facto que tenha sido dado como provado e que, no seu entendimento e pelos motivos que deveria ter exposto, não o deveria ter sido, incumprindo assim o postulado no artigo 640.º, n.º 1 do C.P.C.
III - Limitando-se meramente a expor nas suas Alegações a sua versão dos factos, repetindo, ipsis verbis, o teor do requerimento por si apresentado onde requereu a nulidade da venda das verbas n.ºs. 2 e 3 do auto de apreensão.
IV - Quanto ao ónus da Conclusão, e salvo o devido respeito, a Recorrente limitou-se a reiterar tudo o já alegado por si nas suas Alegações de Recurso,
V   - Contrariando o postulado no artigo 639.º n.º 2 do C.P.C e tendo assim como consequência natural a rejeição do presente Recurso, nos termos do artigo 641.º, nº 2, al. b) também do mesmo diploma,
VI - Sendo esta omissão presentemente e ao abrigo do presente Código de Processo Civil insuprível por convite ao Recorrente para que proceda à sua (re)formulação, de modo que as Conclusões de recurso não podem proceder, quer do ponto de vista formal, quer do ponto de vista material ou substantivo
VII - Votando assim o presente Recurso, salvo o devido respeito e melhor opinião, inexoravelmente à sua rejeição.
Sem Prejuízo,
VIII - A decisão Recorrida, na nossa humilde opinião, fez uma correta interpretação e aplicação do direito ao caso concreto.
IX - Tal, aliás Douta, Sentença, que a Recorrida também acompanha (e aparentemente, também a Recorrente não encontra qualquer reparo de forma convenientemente fundamentada), merece os maiores elogios.
X - A Meritíssima Juiz a quo explicou devidamente todo o circunstancialismo de facto que rodeia a questão em consideração nestes autos e convenceu, pelo menos a Apelada, da justeza da decisão.
XI - De forma alguma nos pareceu arbitrária; pelo contrário, seguiu um raciocínio lógico e devidamente fundamentado quer na análise prova, quer na subsunção dos factos provados que daí retirou ao Direito.
XI - A Decisão não merece, por assim dizer, quaisquer reparos e, além disso, absolutamente nada justifica uma alteração do decidido, isto porque
XII - Andou bem a Ex.ma Senhora Administradora da Insolvência, dando estrito cumprimento ao postulado nos números 2 e 3 do artigo 164º.
XIII - Por outra banda, menos bem andou a ora Recorrente, quer ao não dar cumprimento ao postulado no n.º 4 do mesmo artigo, inexistindo cheque caução à ordem da massa insolvente, bem como porque invocou tardiamente a nulidade que pretende desde o início ver reconhecida, precludindo tal direito e sanando a mesma.
XIV - Insista-se que a Recorrida, de boa fé e sem qualquer relação com o credor hipotecário, Administradora de Insolvência e demais intervenientes processuais, adquiriu os imóveis através de leilão publicado no site da leiloeira Vias & Rumos, custeou todas as despesas de aquisição e procedeu de acordo com todos os ditames legais. Uma qualquer decisão de anulação destruiria a confiança nas vendas em processos de Insolvência.
XV - Face ao exposto, resulta claro, quer por uma banda (Rejeição do Recurso) ou por outra (Impugnação da Alegação), que o recurso apresentado pelo Recorrente carece de fundamento, não colhendo a argumentação de direito aí apresentada, devendo o mesmo ser rejeitado na integra, nos termos que aqui vão melhor requeridos e defendidos.
XVI - Deverão, assim, ser julgadas improcedentes as Conclusões de recurso apresentadas pela Apelante.  
TERMOS EM QUE:
REQUER-SE A Vªs EXªs SE DIGNEM REJEITAR O RECURSO APRESENTADO PELO RECORRENTE, NOS TERMOS SUPRA MELHOR DESENVOLVIDOS E, CONSEQUENTEMENTE, DECIDAM MANTER A DOUTA DECISÃO RECORRIDA COM AS DEMAIS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS, SÓ ASSIM SE FAZENDO COMO É APANÁGIO DE V/ EX.AS,
SEMPRE, INTEIRA E Sà
 JUSTIÇA!”

Cumpre apreciar.
II. FUNDAMENTOS DE FACTO
Releva a seguinte factualidade que o tribunal de 1ª instância considerou relevante:
1. Para os autos foram apreendidos os seguintes imóveis:
Verba 2 - Prédio urbano, composto de um edifício de rés do chão, 1º e 2º andar e logradouro com uma área coberta de 16.548m² e área descoberta de 2.830m², sito …, Quinta da …., da freguesia de Valongo do Vouga, concelho de Águeda, Inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Valongo do Vouga sob o artigo ….42 que teve origem no artigo …55 da mesma freguesia e descrita na Conservatória do Registo Predial de Águeda da mesma freguesia sob o nº ...5. 
Verba 3- Prédio urbano, destinado a armazéns e atividade industrial, composto de um edifício de rés do chão com 2 pavilhões e sanitários destinados a indústria de cardação de fios e logradouro, com uma área coberta de 7.985m² e área descoberta de 4.000m², sito …, Quinta da …, da freguesia de Valongo do Vouga, concelho de Águeda. Inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Valongo do Vouga sob o artigo …53 e descrita na Conservatória do Registo Predial de Águeda da mesma freguesia sob o nº ...6.
2. Imóveis com hipoteca registada a favor de BANKINTER, S.A., por cessão de crédito do BARCLAYS BANK, PLC.
3. Por requerimento Ref.: 43525604, de 11.10.2022, a Sra. Administradora de Insolvência junta o Anúncio de leilão eletrónico das verbas 1, 2 e 3.
4. A 10.11.2022 informa o resultado do leilão - Ref.: 43842048, sem propostas para as verbas 2 e 3.
5. A 22.11.2022 apresenta a Sra. Administrador(a) de Insolvência requerimento com Ref.: 43959842, com o teor seguinte: (…)
6. Bens que não foram vendidos - Ref.: 44531715, de 27.01.2023
7. A 08.02.2023, Ref.: 44664954, é junto novo anúncio: (…)
 
8. A 17.03.2023 informa a Sra. Administradora de Insolvência ter informado a Comissão de Credores do seguinte: (…)
9. Com a Ref.: 45303406, a 15.04.2023 apresenta a Sra. Administradora de Insolvência relatório do artigo 61.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que comunicou aos membros da Comissão de Credores, por email – comprovativo junto com o requerimento.
Relatório com o teor seguinte:
“(…) A 17 de Abril de 2023 a ADMINISTRADORA JUDICIAL VEM CUMPRIR A DETERMINAÇÃO PREVISTA NO ART.º 61º DO CIRE DO TRIMESTRE, INFORMANDO QUE:
1.º
Os inquilinos mantêm-se no arrendado da verba 2 e 3 apesar da denúncia por eles efetuada que iriam deixar os locados em 31 de março de 2023
Informaram no mês de Fevereiro, após o anuncio do leilão, que irão manter-se ate ao final do ano de 2023
A CC foi informada desta alteração quanto aos locados
2.º
O anúncio do leilão publicitava que os locados (verba 2 e 3) ficariam livres de arrendatários em 31 de março de 2023
Nestas condições houve uma proposta de compra, no valor total de 1.600.000€ (1200.000€ + 400.000€)
3.º
a- Decorreram 3 leilões
b- No decorrer deste período de tempo veio a tomar-se conhecimento que a cobertura da verba 2 tem na sua maioria, amianto; este facto é relevante para a desvalorização da avaliação e obriga a diminuição do valor da venda
c- os inquilinos não abandonam o locado o que diminui o setor de compra que terá de ser só para investimento excluindo a vertente de uso próprio, sem ser pelas vias judiciais
d- O mercado imobiliário não está favorável à venda de grandes espaços para indústrias ou comercio, como é o caso
e- A guerra num país Europeu não permite certezas quanto ao futuro no mercado
f- os proponentes compradores avisados do c) mantiveram o interesse na compra
Face aos fatores supra expostos parece-nos de boa administração a venda das verbas ao proponente
g- Segue relatório de encerramento de leilão
h- Segue mail do proponente comprador que afirma manter o interessa na compra e ao mesmo preço, apesar dos armazéns encontrarem-se ocupados
4.º
Marca Lanidor
Foi contactado o escritório do Dr. AD que detém o processo de registo da marca Lanidor, para que viesse fazer uma exposição a apresentar nos autos e disseram o seguinte:
"Fazemos referência ao email datado de 10/03/2023 no qual foi solicitado um breve resumo do processo em epígrafe.
Em conformidade, informamos que a Câmara de Recurso decidiu pela baixa do processo à instância competente para reapreciação uma vez que no âmbito da tramitação administrativa referente à mudança de titularidade (L… Lanidor L…) não foram tidos em conta pelo Instituto todos os documentos relevantes e os argumentos das partes.
Como tal, compete agora ao Instituto apreciar todos os elementos e proferir decisão, da qual seremos notificados.
Na esperança que o exposto esclareça as questões suscitadas, apresentamos os nossos melhores cumprimentos,
VS
Departamento Jurídico Legal Department
Junta-se o mail
5.º
A massa insolvente foi notificada pelas finanças para proceder ao pagamento dum valor que tem de ser contestado pois não tem base legal para o efeito.
Junta-se notificação
Requer por isso que seja aceite a contratualização dum auditor para contestar tal pretensão

O valor depositado na conta da massa insolvente é 614.580,41€, sendo que já foi pago ao credor hipotecário da verba 1 nos termos do 174º do CIRE o valor de 391.993,76 €
Junta-se extrato
ESTE RELATÓRIO AGORA ENTREGUE NOS AUTOS, SEGUIU PARA OS 3 MEMBROS DA COMISSÃO DE CREDORES VISAREM — junta notificação aos membros da CC
Concluindo:
1. Vai proceder-se à adjudicação da verba 2 e 3 ao proponente assim que o mesmo faça o deposito dos 20%
Ao realizar-se a escritura será cumprido o 174.º do CIRE com o credor hipotecário
2. Aguarda-se por tempo indeterminado a conclusão das diligencias da marca da Lanidor
3. vai proceder-se à contestação do conteúdo da notificação da AT por auditor” [  [5] ].
 10. A 21.05.2023 vem a Sra. Administradora de Insolvência juntar a escritura pública, datada de 18.05.2023, de compra e venda das verbas 2 e 3, pelos valores de 1.200.000,00 e 400.000,00 à sociedade comercial J.L.A.Z. Invest, Lda. - Ref.: 45623965 [ [6] ].
11. A Sra. AI enviou ao credor BANKINTER, S.A. a comunicação seguinte [email junto a 02.08.2023]: (…)
12. A 08.11.2022 comunicou a Sra. Administradora de Insolvência o relatório da venda das verbas 2 e 3 terminado em 07.11.2022 ao credor BANKINTER, S.A. – cfr. email junto a 02.08.2023 [ [7] ].
                                                                   
III- FUNDAMENTOS DE DIREITO
1. Sendo o objeto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela apelante e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – arts. 635.º e 639.º do CPC – salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 5.º, nº 3 do mesmo diploma.
No caso, ponderando as conclusões de recurso, impõe-se apreciar:
- Da impugnação do julgamento de facto;
- Se a venda dos bens imóveis apreendidos, efetuada pela administradora da insolvência, padece de irregularidades e, em caso afirmativo, aferir das respetivas consequências.
Importa precisar que a apelada sustenta, nas contra-alegações de recurso, que a apelante não cumpriu com o ónus de formular conclusões (art.º 639.º do CPC), propugnando a rejeição do recurso (art.º 641.º, n.º 2, alínea b) do CPC) (cfr. as conclusões IV e V), sem qualquer sentido em face do teor do recurso interposto – texto das alegações e das conclusões; tratar-se-á de conclusões minimalistas, mas satisfazem inteiramente a apontada exigência legal, tanto mais que a sua leitura deve ser enquadrada pela alegação anterior, vertida no corpo das alegações.
Nada obsta, pois à apreciação do recurso, sem prejuízo da análise que segue.

2. No corpo das alegações de recurso, a apelante indica que “não pode também deixar de recorrer quanto à matéria de facto, propugnando pela sua alteração”, sustentando a apelada a rejeição do recurso nessa parte.
Quando seja impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas – art.º 640º, nº 1, que tem correspondência com o que anteriormente dispunha o art.º 685º-B, nº1 da lei processual civil. 
Temos por evidente que a apelante não deu cumprimento ao disposto no referido preceito porquanto não cuidou de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, indicando, com precisão:
- Quais os factos que o tribunal deu, indevidamente, como provados, e cuja eliminação pretende;
- Quais os factos que o tribunal devia ter dado como provados e erradamente omitiu, com vista ao seu aditamento e consequente ampliação (da factualidade assente);
- Quais os factos que, dados como assentes pelo tribunal, o deviam ser em termos diferentes, ou seja, qual o conteúdo de texto que pretende ver modificado.
A verdade é que a afirmação feita é desprovida de qualquer conteúdo relevante, limitando-se a apelante, sob a epígrafe “II. Enquadramento” (arts. 1.º a 31.º) a tecer um conjunto de considerações (ora de facto, ora de direito) que mais não são senão a repetição ipsis verbis da alegação vertida no seu requerimento de 05-07-2023, limitando-se a substituir a expressão “ora credor” pela expressão “ora Recorrente”. Por seu turno, em sede de conclusões, limita-se a repetir conforme consta dos nºs 1 a 14. 
A apelante não tece qualquer crítica aos termos em que o tribunal de 1ª instância fixou a matéria tida por relevante para apreciação do incidente deduzido pela apelante, não se alcançando em que moldes a apelante pretende que seja alterada a decisão sobre a matéria de facto por parte desta Relação, nos vários sentidos possíveis (eliminação, aditamento e modificação de texto).
Consequentemente, rejeita-se o invocado recurso quanto à matéria de facto.

3. Incumbe ao administrador da insolvência proceder à liquidação do ativo (art.º 55.º, nº 1, alínea a) do CIRE, diploma a que aludiremos quando não se fizer menção de origem), tendo em vista o pagamento aos credores e considerando a natureza do processo de insolvência e a sua finalidade (art.º 1.º, nº 1)[ [8] ].
A lei processual civil constitui direito de aplicação subsidiária à insolvência – art.º 17.º, nº1 –, o que significa que a resolução das questões que se colocam nos autos passa, em primeira linha, pela aplicação das disposições do CIRE, nomeadamente, no que ao caso importa, os artigos que regem a liquidação do património do insolvente (cfr. os arts. 156.º a 170.º, sob o Capítulo III), só se justificando a convocação do regime processual geral na falta ou insuficiência dessa regulação especial.
A apelante vem arguir a invalidade da venda tendo por objeto dois bens imóveis (verbas nºs 2 e 3), invocando:
- A “[n]ulidade por violação do disposto no artigo 161, n.º 1 do CIRE” (conclusões 15 a 18 inclusive); 
- A “[n]ulidade por violação do disposto no artigo 161, n.º 4 e 5 do CIRE” (conclusões 19 a 22 inclusive);
- A “[n]ulidade por violação do disposto no artigo 164, n.º 2 e 3 do CIRE” (conclusões 23 a 25 inclusive);
- A “[n]ulidade por violação do disposto no artigo 164, n.º 1 do CIRE” (conclusões 26 a 30 inclusive).

4. Quanto à necessidade do AI obter prévio consentimento da comissão de credores e/ou do devedor, previamente à realização da venda, relativamente à prática de atos “que assumam especial relevo para o processo de insolvência” (art.º 161.º, nºs 1, 2 e 3 alínea g) e n.º 4), decorre da factualidade assente que a comissão de credores – da qual o apelante não faz parte –, teve conhecimento dos termos em que a venda estava a ser efetuada, não tendo suscitado, a esse propósito, qualquer questão ou incidente; também não resulta dos autos que o devedor se tenha insurgido quanto aos termos em que a AI realizou a venda dessas verbas.
Assim sendo, com referência ao disposto no art.º 161.º, nºs 1, 2, 3 alínea g) e 4, nem sequer o apelante tem legitimidade para, com fundamento na violação da audição da comissão de credores e/ou do devedor, suscitar incidente de nulidade da venda. Tudo isto independentemente da cominação que emerge do art.º 163.º, porquanto a sua ponderação pressupõe que se conclua pela violação do disposto no art.º 161.º, o que, no caso, não é viável.
Consequentemente, não tem cabimento a invocada violação do n.º 5 do mesmo preceito, nos termos do qual “[o] juiz manda sobrestar na alienação e convoca a assembleia de credores para prestar o seu consentimento à operação, se isso lhe for requerido pelo devedor ou por um credor ou grupo de credores cujos créditos representem, na estimativa do juiz, pelo menos um quinto do total dos créditos não subordinados, e o requerente demonstrar a plausibilidade de que a alienação a outro interessado seria mais vantajosa para a massa insolvente”.
Acrescente-se que a apelante peticionou, em requerimento anterior (de 02-05-2023) e invocando a violação do disposto no art.º 161.º – alega que a AI “aceitou a referida proposta, sem a validação da Comissão de Credores” – que o juiz “ordene a suspensão de todas as diligências de venda das referidas verbas, nomeadamente a realização da escritura, até que tal venda seja ratificada pela Comissão de Credores”  [ [9]  ]; ou seja, a apelante deduziu pretensão com vista a que o juiz sobreste na alienação, mas não se vislumbra que estejam reunidos os pressupostos para a dedução desse pedido desde logo considerando o valor do crédito reclamado pela apelante, claramente inferior ao montante reportado no indicado preceito, em que se exige que o crédito do requerente represente, no universo dos créditos, “pelo menos um quinto do total dos créditos não subordinados”: no caso, a apelante reclamou créditos no valor de 3.130.733, 90€, invocando estar o crédito garantido, na totalidade, por hipoteca sobre as verbas aludidas, sendo que, de acordo com o que resulta do apenso de verificação do passivo (apenso C) e tendo em conta a lista apresentada pela AI, em cumprimento do disposto no art.º 129.º, a totalidade dos créditos reclamados atinge o valor de 39.514.776, 75€, que a AI julgou reconhecidos (valor que inclui capital e juros), não tendo ainda sido proferida decisão sobre as impugnações, nem de verificação e graduação dos créditos.
Improcede, pois a arguição de invalidade com base na imputada violação do art.º 161.º.
                                                                    
5. Apreciemos agora da invocada violação do disposto no art.º 164, n.ºs 1, 2 e 3.
Está em causa apreciar se o administrador da insolvência cumpriu as exigências legais alusivas à audição e informação do credor com garantia real [ [10] ] porquanto, ainda que incumba exclusivamente ao administrador da insolvência a fixação da modalidade de venda e do valor base da alienação, não estamos perante poder discricionário, devendo o administrador:
- Notificar o credor com garantia real convocando-o a pronunciar-se, querendo, sobre a modalidade de alienação (art.º 164.º, nº2, primeira parte); só depois de cumprida essa formalidade pode decidir sobre a modalidade de venda e, ainda assim, no condicionalismo que decorre do número 1 do art.º 164.º, a saber, preferencialmente, a venda deve ser feita por leilão eletrónico, devendo a opção por outra modalidade mostrar-se “justificada”. Em suma, a audição do credor com garantia real é obrigatória, ainda que não vinculativa [ [11] ] [ [12] ].
- Notificar o mesmo credor informando-o do valor base fixado para a venda ou do preço da alienação projetada a entidade determinada (art.º 164.º, nº 2 segunda parte), exigência que se compreende atenta a faculdade que é conferida a tal credor, de propor a aquisição do bem, por si ou por terceiro, nos moldes previstos nos nºs 3 e 4 do art.º 164.º; atente-se que o dever de audição do credor com garantia real é imposto igualmente no âmbito da ação executiva (art.º 812.º, nº 1 do CPC).
A apelante entende, em síntese, que a AI, não cumpriu o dever de informação porquanto não deu conhecimento à credora garantida do valor da proposta final que foi apresentada no leilão e que foi aceite, isto é, o valor de alienação proposto pela entidade que veio a adquirir o imóvel, para que a credora “tivesse a oportunidade de adjudicar os imóveis por conta do seu crédito” (cfr. as conclusões 23 a 30). Conclui que a violação do disposto nos números 1, 2 e 3 do art.º 164.º acarreta a nulidade da venda, convocando o disposto nos arts. 819.º e 195.º, n.º 1 do CPC (conclusão 31).
Lendo a decisão recorrida, não é inteiramente percetível o raciocínio da 1ª instância quanto à afirmação, ou não, da existência de irregularidades.
Da factualidade dada como relevante (sem impugnação), não resulta que a AI tenha cumprido o dever de informação perante o credor hipotecário, porquanto não está demonstrado que deu conhecimento à apelante da proposta final apresentada, nem o valor de alienação proposto pela entidade que veio a adquirir o imóvel, valores esses inferiores aos valores mínimos fixados para cada imóvel, sendo que, tratando-se de facto positivo, pessoal à AI, perante a alegação do credor de que não ocorreu essa comunicação, incumbia à AI o ónus de alegação e prova do facto contrário – pela afirmativa. A AI prestou essa informação no processo, em 15-04-2023 (cfr. o número 9 dos factos provados), mas não alegou que o tivesse feito relativamente à credora garantida, em tempo oportuno – concretamente, quando e em que termos –, nem juntou qualquer documento comprovativo de comunicação direta ao credor, tendo em vista o disposto no art.º 164.º, nº 2, parte final.
Afigura-se-nos, pois, podermos concluir que, quanto a esta matéria, a posição da AI na resposta que apresentou não tem correspondência com a realidade que o processo evidencia (cfr. os números 9 a 12 dos factos provados). Acrescente-se que o credor não tem de ser notificado dos relatórios que são apresentados pelo administrador da insolvência no processo, competindo-lhe, ao invés, consultar os autos para se inteirar do estado da liquidação – ao contrário do que parece entender a apelante –, mas esta constatação é irrelevante para o efeito em apreço porquanto, independentemente da violação desse elementar dever de cuidado, a lei é clara em impor ao administrador da insolvência o dever de comunicar ao credor com garantia real os elementos aludidos, para os efeitos indicados.
Afigura-se-nos, pois, podermos assentar que não foram cumpridas as formalidades exigidas pelo art.º 164.º, nº 2 e, portanto, que a alienação do imóvel em causa padeceu de irregularidades, cumprindo apreciar das consequências respetivas. 
Vejamos [ [13] ].
A aferição das consequências da venda de bens onerados com direitos reais de garantia nos casos de incumprimento pelo administrador da insolvência do disposto no número 2 do art.º 164.º não tem sido objeto de resposta uniforme, o que não surpreende ponderando a regulação que o legislador imprimiu aos arts. 161.º a 164.º, sendo certo que a lei nº 9/2022 de 11-01 não introduziu qualquer alteração relevante a este nível, o que significa que a controvérsia nesta matéria subsistirá.
Assim, o art.º 161.º versa sobre os atos jurídicos que assumem “especial relevo para o processo de insolvência”, cuja prática exige o consentimento da comissão de credores ou, na sua falta, da assembleia de credores, impondo ainda o legislador o dever de comunicação ao devedor [ [14] ] e no art.º 162.º regula-se a alienação da empresa. Ora, nos termos do art.º 163.º, a violação do disposto nos dois artigos (161.º e 162.º) “não prejudica a eficácia dos actos do administrador da insolvência, excepto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte”. O que significa que “para lá das consequências a nível dos atos praticados, a violação de qualquer dos dois citados artigos, consubstanciando a prática de um ilícito e o incumprimento de um dever a cargo do administrador, suscetibiliza a respetiva responsabilidade e constitui sempre justa causa de destituição” [ [15] ].  
Já quanto às exigências impostas no art.º 164.º (sob a epígrafe “[m]odalidade da alienação”), o legislador omitiu qualquer referência à cominação associada à violação pelo administrador das formalidades aí consignadas quanto ao dever de informação permitindo, pois, a discussão sobre se a questão deve ser resolvida encontrando respostas no âmbito do próprio direito insolvencial – seja por via da aplicação do art.º 163.º, seja pela aplicação analógica da cominação estabelecida na segunda parte do nº 3 do art.º 164.º, para outro tipo de situação – ou, ao invés, se é necessário/justificado convocar o regime geral previsto para a execução singular considerando, no que ao caso interessa, o disposto no art.º 839.º, nº1, alínea c) do CPC, nos termos do qual a venda “fica sem efeito” “[s]e for anulado o ato da venda, nos termos do art.º 195.º”, preceito este alusivo às “regras gerias sobre as nulidades dos atos” (cfr. os arts. 186.º a 202.º do CPC) [ [16] ] [ [17] ] [ [18] ].
Temos, atualmente, como incontornável a orientação definida pelo acórdão nº 616/2018 do TC, de 21-11-2018 [ [19] ], com o seguinte segmento dispositivo:
“3. Em face do exposto, decide-se:
a) julgar inconstitucional, por violação do artigo 20.º, n.º 4, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, a norma contida nos artigos 163.º e 164.º, n.ºs 2 e 3, do CIRE, na interpretação segundo a qual o credor com garantia real sobre o bem a alienar não tem a faculdade de arguir, perante o juiz do processo, a nulidade da alienação efetuada pelo administrador com violação dos deveres de informação do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada; e, consequentemente,
b) julgar improcedente o recurso.
Sem custas”.
O acórdão sintetiza as três grandes vias interpretativas sobre os vícios decorrentes da violação do disposto no artigo 164.º, n.º 2, do CIRE nos seguintes termos: “(i) a que sustenta que os mesmos ficam a salvo da anulação; (ii) a que aponta para o regime da nulidade, pelo menos tendencialmente; (iii) e a que, no pressuposto da primeira, afirma a inconstitucionalidade da solução legal, alcançando a segunda por essa via. Só a última constitui, é certo, objeto do recurso de fiscalização concreta que ora apreciamos, mas o enquadramento do problema interpretativo geral e os argumentos da sua discussão relevam, como se verá, para melhor compreender os fundamentos da presente decisão”.
Considerando a norma em análise no citado aresto e que constitui objeto do recurso, com a delimitação feita no acórdão e que assume particular relevância [ [20] ], entendeu-se sujeitar a mesma ao controlo da proporcionalidade.
Como se sabe, o princípio da proporcionalidade, enquanto decorrência do princípio do Estado de direito democrático - art.º 2.º da Constituição da República Portuguesa (CRP)- decompõe-se em três critérios instrumentais (ou subprincípios) que se encontram conjugados numa sequência relacional integrada pelo que, quando se submete uma norma ao “teste” de proporcionalidade, importa verificar se a mesma respeita (i) o critério da adequação, (ii) se respeita o critério da necessidade e, por último, (iii) se respeita o critério da proporcionalidade em sentido estrito, bastando “que a mesma norma colida ostensivamente com um só destes princípios (podendo ser conforme aos restantes) para poder ser julgada inconstitucional, por desconformidade com o parâmetro constitucional da proporcionalidade” [ [21]  ][ [22] ].
Indagando se a norma colide com alguns destes princípios, o TC concluiu no citado aresto que a norma em causa “satisfaz, assim, o primeiro teste de proporcionalidade”, como também concluiu que “satisfaz-se, deste modo, o segundo teste de proporcionalidade”, mas, quanto ao teste final (proporcionalidade em sentido estrito) concluiu, então, que “a norma não logra ultrapassar o terceiro e derradeiro patamar da proporcionalidade”, com a seguinte fundamentação:
“2.5.3. Quanto ao teste final de balanceamento (proporcionalidade em sentido estrito), que necessariamente nos conduz a um processo de ponderação de razões ou argumentos, não poderá o Tribunal deixar de notar, desde logo, que o propósito da celeridade se encontra, no domínio de aplicação da norma, desviado do seu sentido.
Com efeito, se a celeridade é como vimos um interesse a proteger no regime da insolvência “[…] seja em benefício dos credores cujos direitos se prosseguem e protegem, seja em benefício do próprio devedor, assim se definindo o seu estatuto” (como já disse o Tribunal no Acórdão n.º 401/2017), dificilmente se encontra na norma um benefício para o processo de insolvência, isto é, para os interesses que o processo de insolvência visa servir. Consolidar os atos de liquidação dos quais ficaram arredados os credores garantidos não serve, como é evidente, o interesse destes. Por outro lado, só em reduzida, mediata e incerta medida poderá servir os interesses do devedor - eventualmente, tornando mais expedito o processo que definirá a sua situação patrimonial. Principalmente, a solução redunda, em sinal contrário aos fins do processo (designadamente, a satisfação dos credores), na proteção do terceiro que negociou e contratou com o administrador da insolvência (cfr. Luís Alberto Carvalho Fernandes e João Labareda, excerto citado no item 2.2., supra), salvaguardando a sua posição no caso de ter adquirido bens por valor inferior ao que resultaria da intervenção regular dos credores no processo, apesar de saber que negoceia para adquirir bens da massa insolvente. 
Temos, assim, que da aplicação da norma pode decorrer, de um lado, o efetivo prejuízo dos credores garantidos, que veem os bens serem alienados sem possibilidade de influenciarem os termos da alienação e sem poderem exercer os direitos processuais correspondentes, designadamente o previsto no artigo 164.º, n.º 3, do CIRE. Ocorrem estas omissões determinantes num momento central e decisivo para realização dos seus direitos patrimoniais, podendo ser prejudicada seriamente ou, no limite, destruída a utilidade económica da sua garantia e comprometida a satisfação do seu crédito, finalidade única da sua atuação no processo e resultado único que, no limite do valor do património a alienar, cumpriria ao processo assegurar. A este propósito, salientam David Sequeira Dinis e Luís Bértolo Rosa (A proteção dos credores, cit., pp. 22/23), que “[a] alienação de um bem onerado com garantia real é, do ponto de vista do credor garantido, um ato de especial relevo. A experiência demonstra que a satisfação dos credores garantidos depende principalmente (em regra, até depende total ou quase-totalmente) do desfecho da liquidação dos bens onerados com garantias reais. [ ] [A] alienação de um bem com garantia real sem respeitar as formalidades previstas no n.º 2 do artigo 164.º do CIRE implica violar de forma direta e imediata direitos subjetivos individuais (ou garantias processuais individuais) do credor garantido, que são manifestações/corolários do seu direito real de garantia”.
A par desta posição, encontramos um interesse eventual e marginal para o devedor. Do outro lado da relação jurídica de alienação, protege-se o adquirente do bem, eventualmente com aproveitamento de uma vantagem à custa dos interesses que, em primeira linha, caberia proteger.
Neste contexto, a possibilidade de se introduzir limites ao princípio da proibição de indefesa, ínsito na garantia de acesso ao direito e aos tribunais, consagrada no artigo 20.º da Constituição, existiria apenas na medida em que a celeridade tivesse um sentido tendente à salvaguarda da realização de outros fins do processo com suficiente intensidade para justificar a restrição do direito dos credores garantidos a um processo equitativo, o que, bem vistas as coisas, não acontece.
Não existe, consequentemente, uma relação equilibrada entre o valor em causa na prossecução do objetivo subjacente à atuação (a celeridade do processo, que resultou desviada dos fins do processo) e o nível de restrição da posição afetada por essa mesma atuação (no limite, a destruição do valor económico da garantia e o esvaziamento do direito de crédito, cuja satisfação constitui uma das finalidades centrais do processo concursal). Tal conclusão não se altera mediante a possibilidade de recorrer a meios de tutela indiretos (como seja a responsabilidade pessoal do administrador da insolvência ou a sua destituição), sujeitos a contingências de vária ordem, a condições adicionais e à demora de procedimentos, o que, longe de restabelecer o pretendido equilíbrio, só vem realçar que não existe justificação para restringir o direito do credor garantido ao ponto de o sujeitar a meios de tutela indiretos e imperfeitos.
Vale o exposto por dizer que a norma não logra ultrapassar o terceiro e derradeiro teste de proporcionalidade”.
Estamos perante caso de fiscalização concreta da constitucionalidade - art.º 280.º da CRP e 70.º da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82 de 15-11) -, pelo que o julgamento de inconstitucionalidade só produz efeitos vinculativos no processo em que foi proferida (art.º 80.º, nº1 da Lei Orgânica). Acresce que não se trata de jurisprudência estabilizada a nível do TC, quer porque o tribunal sofreu, depois da sua prolação alteração da sua composição, quer porque não logramos encontrar, a nível do TC, outros acórdãos/decisões sumárias reafirmando essa orientação, em ordem à intervenção do Plenário, tendo até em conta o disposto no art.º 82.º da referida Lei Orgânica [ [23] ].
O certo, porém, é que não só impressionam as razões explanadas no citado aresto, como o mesmo não configura um pronunciamento isolado, já que vem no seguimento de outros acórdãos dos tribunais superiores, nomeadamente do Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão de 04-04-2017 [  [24]  ], concluiu igualmente que “[a] interpretação que o acórdão recorrido acolhe, no que respeita ao art.º 163.° do CIRE, sentenciando que um credor hipotecário, alegadamente prejudicado pela actuação do administrador da insolvência, no contexto de venda por negociação particular de dois imóveis, não pode suscitar tal questão perante o juiz do processo, e que a decisão judicial proferida na 1.ª instância, que decretou a pedida nulidade daquela venda, é ilegal por o acto ser eficaz, restando ao lesado intentar acção de responsabilidade civil contra o administrador da insolvência, e/ou pedir a sua destituição com justa causa, como únicas sanções para os actos ilegais praticados; viola o art.º 20.°, n.ºs 1 e 5, da CRP, por não assegurar, imediatamente no processo, tutela efectiva para o direito infringido, desconsiderando a possibilidade de pronta intervenção do julgador”.
Tudo em ordem a aderirmos à orientação plasmada no citado acórdão do TC, dando efetividade à exigência legal de interpretação e aplicação uniformes do direito aos casos análogos (art.º 8.º, nº 3 do Cód. Civil) [ [25] ].
Em suma, procedendo o administrador da insolvência à alienação de imóvel pertencente ao insolvente e apreendido para a massa, incumprindo o dever de informação do credor com garantia real sobre esse bem, consagrado no art.º 164.º, nº 2, 2ª parte, pratica uma irregularidade que é suscetível de ser contextualizada no campo das nulidades processuais, em ordem à aplicação do regime processual civil (art.º 195.º, nº 1 do CPC, ex vi do disposto no art.º 839.º, nº1, alínea c), nos termos do art.º 17.º, nº 1); a não se entender assim, vedando liminarmente ao credor com garantia real a possibilidade de ver apreciada, no processo de insolvência, com esse fundamento, pretensão tendente à anulação da venda – remetendo o credor para outro tipo de mecanismos de tutela do seu direito, seja por via da responsabilização civil do administrador pelos prejuízos causados, seja pela formulação de pedido de destituição deste –, estaria configurada uma violação do princípio do processo equitativo consagrado no art.º  20.º, n.º 4 da CRP, conjugado com o art.º 18.º, n.º 2 da mesma lei fundamental.
É, pois, de aceitar o enquadramento jurídico proposto pela apelante, de que a irregularidade que aponta se situa no campo das nulidades processuais, convocando para a resolução da questão o disposto no art.º 195.º do CPC.
Mas se assim é, então impõe-se analisar se se verificam, em concreto, todos os requisitos a que alude o art.º 195.º, nº1 do CPC, uma vez que só deve ser declarada a nulidade nos casos em que a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
É essa matéria que passamos a analisar, entroncando na fundamentação exposta pelo tribunal de 1ª instância, fundamentação à qual, verdadeiramente, a apelante nada contrapõe [ [26] ].    

6. Nos termos do art.º 195.º, nº 1 do CPC, a omissão de formalidade prescrita por lei só acarreta a nulidade “quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou decisão da causa”. Estando em causa ação executiva, importa saber se a omissão tem implicações na satisfação do interesse do credor, considerando a fase processual respetiva e o fim último da execução, a saber, o pagamento do credor, ou dos credores, salientando-se que mesmo no âmbito da execução singular pode abrir-se uma fase concursal em que se jogam os interesses de vários intervenientes que não apenas o exequente (arts. 788.º a 791.º do CPC). Pese embora o preceito em causa esteja pensado para a ação declarativa, “o problema põe-se também quanto à realização da função da acção executiva”, importando então verificar a influência que a omissão concreta pode ter “no processo executivo, na realização das providências executivas (penhora, venda, pagamento)” [ [27] ].
Adiantando-se que se entende que os elementos factuais do processo não suportam esse juízo valorativo, impõe-se prévia delimitação conceptual.
Estamos perante um procedimento de natureza incidental, inominado, incumbindo ao credor reclamante que vem arguir a nulidade o ónus de alegação e prova dos factos pertinentes (arts. 292.º a 295.º do CPC e 342.º, nº 1 do Cód. Civil).
A afirmação de relevância para a causa – que passa, na execução (singular ou de cariz universal) e na fase respetiva, por aferir as consequências em sede de liquidação e tendo em vista o pagamento, em primeiro lugar, da dívida garantida e, em segundo lugar, das demais, sendo esse o caso – não é meramente sequencial da constatação da irregularidade, sob pena de se esvaziar de conteúdo (útil) a regulação estabelecida pelo legislador no art.º 195.º, nº 1 do CPC; ao invés, implica uma análise casuística, só se justificando a anulação da venda com base na violação pelo administrador da insolvência do dever de informação do credor garantido (art.º 164.º, nº 2, segunda parte) se estiver minimamente indiciado no processo (a) que o imóvel foi vendido a um preço inferior ao seu valor (de mercado) e (b) que o credor com garantia real tem séria intenção de adquirir o imóvel pelo seu (correto) valor, em função do que dispõe o nº 3 do art.º 164.º,  o que implica que a pretensão  de anulação da venda seja em simultâneo acompanhada da apresentação de proposta de compra, com indicação do respetivo valor e pagamento da caução exigida pelo art.º 164.º, nº4 [ [28] ].
Repare-se que nem sequer se pode configurar tal exigência como excessiva ou inadequada porquanto, se remontássemos o processo à sua fase inicial, expurgado do vício apontado, sempre se imporia ao credor, no prazo de sete dias, a formulação de uma proposta de aquisição do bem acompanhada de caução, a prestar por meio de cheque visado à ordem da massa insolvente, no valor de 10% do montante da proposta [ [29] ], sob pena de ineficácia desta. Como se sabe, a prestação de caução, enquanto garantia especial das obrigações (art.º 623.º do Cód. Civil), tem associada a finalidade de prevenir o incumprimento, sendo que tem aqui uma fonte legal, assumindo-se como condição para o exercício do direito [ [30] ]. Ou seja, não basta ao credor com garantia real invocar que viu coartado pelo administrador da insolvência o exercício das faculdades conferidas pelo n.º 3 do artigo 164.º para assim concluir pelo prejuízo para a liquidação/pagamento; a seriedade do posicionamento do credor garantido quando formula proposta de aquisição, no condicionalismo a que aludem os números 3 e 4 do art.º 164.º está exatamente associada à prestação de caução.
Discordamos, pois, do entendimento sufragado no acórdão do TRC de 13-11-2019 [ [31] ] que, admitindo que a inobservância, pelo administrador da insolvência, do que lhe é prescrito pelo n.º 2 do artigo 164.º produz a nulidade da venda, por aplicação subsidiária do n.º 1 do artigo 195.º do CPC, considerou no entanto que “[a] nulidade da venda não está dependente da demonstração, pelo credor, em termos razoáveis de que, na hipótese de ter sido informado pelo administrador nos termos prescritos pelo n.º 2 do artigo 164.º, exerceria efectivamente as faculdades que o n.º 3 do mesmo preceito lhe reconhece e que desse exercício resultaria para ele uma situação mais favorável do que a interviria na ausência de cumprimento de tais deveres” [ [32] ].
Assim sendo, que dizer no caso dos autos?
A apelante alega que “[a] promoção da venda nestas circunstâncias, ou seja, à revelia do ora Recorrente, foi seguramente prejudicial à massa insolvente e constitui uma nulidade processual” (art.º 89.º das alegações de recurso) convocando, a seguir ao segmento de texto “[s]enão vejamos”, o disposto no art.º 164.º, n.º 2 e discorrendo sobre a falta de notificação ou comunicação direta com a credora quanto ao “resultado dos leilões”, ainda que “vertendo nos autos” esses “resultados” (arts. 90.º a 94.º), acrescentando que “não tem obrigação de diariamente estar a consultar o processo por forma a verificar se a Sra. Administradora da Insolvência criou mais algum apenso” (art.º 125.º).
Mais alega que “[a]exigência de comunicação do preço da alienação projetada ao Credor Hipotecário visa permitir a este credor propor a aquisição do bem em venda por si ou terceiro por preço superior ao da alienação projectada” (art.º 109.º) e que “como é evidente, esse credor apenas poderá apresentar essa proposta se a Sra. Administradora da Insolvência lhe comunicar que, no leilão realizado foi apresentada uma determinada proposta concreta ou, pelo menos, que lhe comunique que decidiu promover a venda através de leilão a realizar entre os dias x e y e qual a plataforma em que o mesmo decorrerá” (art.º 110.º).   
A apelante limita-se a invocar prejuízo para a massa com base num juízo de inferência que não está suportado em factos, salientando-se que não foi dado como provado qualquer facto alusivo ao valor dos imóveis, em ordem a concluir pela discrepância entre o valor (de mercado) do bem e o respetivo preço de transmissão e que do processo não constam elementos que permitam concluir pelo notório desacerto do valor da alienação, em ordem a enquadrar a pretensão da credora apelante, sendo que nem a apelante aludiu a essa matéria no requerimento em que deduz o incidente – cfr. o que a esse propósito é indicado pela AI no relatório que apresentou e referido no número 9 dos factos provados, omitindo a apelante qualquer apreciação a esse respeito, limitando-se a exercício de impugnação, quando exerceu o contraditório, nomeadamente quanto aos documentos [ [33] ] .
Isto é, para além da constatação de que o administrador da insolvência não deu cumprimento às exigências legais, informando o credor hipotecário, não vislumbramos indícios de uma situação patológica em que o negócio é realizado em fraude à lei, mormente por conluio entre os intervenientes processuais com vista, por exemplo, a influenciar o preço de venda.
Mas, independentemente disso e considerando que os valores agora oferecidos pela apelante são superiores àqueles pelos quais os bens foram vendidos – pelo que, pelo menos em abstrato, a apelante estaria a propor uma aquisição em melhores condições para a massa insolvente –, ainda assim a pretensão da apelante teria de improceder.
Num segundo plano de análise temos que, como bem indicou o tribunal recorrido [ [34] ], a credora apelante nunca ofereceu o pagamento da caução devida e a que já se aludiu, aquando da dedução do incidente.  
Assim, no requerimento que foi objeto de apreciação no despacho recorrido verifica-se que a apelante se limita a formular a seguinte proposta, em termos que até são contraditórios.
“129.Requer-se, assim, a anulação da venda realizada pela Sra. Administradora da Insolvência e, em consequência, mais se requer que seja determinado que a mesma cumpra o disposto nos nºs 2 do art.º 164 do CIRE relativamente ao ora Credor hipotecário, notificando-o da proposta apresentada no leilão para que a mesma possa, se assim o entender, propor a aquisição por preço superior nos termos do art.º 164.º, n.º 4, do C.I.R.E. 
 VI – DA ADJUDICAÇÃO POR BANDA DO ORA CREDOR HIPOTECÁRIO
 130. Na senda do supra exposto, o aqui Credor pretende a adjudicação das verbas 2 e 3 pelo valor global de € 3.059.200,00, nos seguintes moldes:
Verba n.º 2 – € 580.548,00
Verba n.º 3 – € 2.478.652,00
Total:  3.059.200,00€”.
E termina pedindo “que seja declarada nula a venda das verbas n.º 2 e 3”, “consequentemente, que seja ordenada a notificação da Exma. Sra. Administradora, para promover nova diligência de venda, dando da mesma conhecimento aos credores” e termina indicando “[m]ais se requer, ainda, a adjudicação das verbas nº 2 e 3 por parte do aqui Credor” [ [35] ].
Em suma, considera-se que a pretensão formulada pela apelante implicava que, em simultâneo com a dedução do incidente, a requerente oferecesse o pagamento da caução devida, que constitui condição de eficácia da proposta, o que não ocorreu, como salientou a 1ª instância.
Pelo que se conclui que não se mostram verificados todos os pressupostos para a anulação da venda ao abrigo do disposto no arts. 195.º, nº 1, ex vi do disposto no art.º 839.º, nº1, alínea c), todos do CPC.
*
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Notifique.
Lisboa, 26-11-2024
Isabel Maria Brás Fonseca
Nuno Teixeira
Fátima Reis Silva
_______________________________________________________ 
[1] No incidente de habilitação que correu termos sob o apenso B foi julgada habilitada a sociedade Perfil Expedito SA para prosseguir os autos em substituição do Banco Santander Totta SA., estando aquela representada pelo Dr. TB.   

[2] O requerimento data de 05-07-2023 e não de 07-07-2023 como por lapso evidente foi consignado no despacho recorrido, estando correta a indicação de referência.

[3] Constata-se que no corpo das alegações de recurso, a recorrente repete ipsis verbis a alegação vertida no requerimento em causa (arts. 1.º a 24.º) substituindo apenas a expressão “o ora credor” pela expressão “o ora recorrente”.   

[4] Na mesma data e previamente à prolação da decisão recorrida a 1ª instância proferiu o seguinte despacho, já transitado em julgado:
“Requerimentos de 22.01.2024, de 23.01.2024 e de 08.02.2024
BANKINTER, S.A. – SUCURSAL EM PORTUGAL, requerente do incidente de nulidade da venda e o adquirente dos imóveis, requerido no incidente, apresentaram sucessivos requerimentos de resposta, claramente inadmissíveis, nos termos das regras reguladoras dos incidentes– artigos 292.º e segs. do Código de Processo Civil, aqui aplicáveis ex vi artigo 17.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Termos em que ordeno o seu desentranhamento”.

[5] A 1ª instância consignou esse relatório em registo gráfico que não é legível.

[6] O tribunal recorrido incorreu em lapso porquanto indicou que a escritura se mostrava “datada de 18.05.2021”, e não de 18-05-2023, como expressamente consta do documento junto pela AI em 21-05-2023 e alusivo à escritura de compra e venda respetiva; esta Relação retificou esse lapso, que é evidente.

[7] A mensagem eletrónica foi remetida à mandatária judicial do credor, pela AI, em 08-11-2022 pelas 14:21, com o seguinte teor:
“ Exma Sra Dra
Envio relatório de promoção e venda das verbas 2 e 3 terminado a dia 7-11-22 pelas 15h
Com os melhores cumprimentos”.

[8] A atividade do administrador da insolvência é exercida sob a fiscalização do juiz, da comissão de credores e da assembleia de credores (arts. 58.º, 55.º, n.º 1, 79.º e 80.º), sendo o administrador responsável perante os credores e perante o devedor pela inobservância culposa dos deveres que lhe incumbem nos termos plasmados no art.º 59.º; ocorrendo justa causa, pode o tribunal proceder à destituição do administrador, salvaguardando o contraditório (art.º 56.º, n.º 1).

[9] Não foi proferido qualquer despacho expresso sobre esse requerimento. No entanto, deve ter-se o mesmo como implicitamente indeferido ponderando o teor da decisão recorrida, salientando-se que no relatório da decisão e em sede de fundamentação jurídica se alude a esse requerimento.

[10] A hipoteca confere ao credor o direito de ser pago com preferência sobre os demais credores nos termos consignados no art.º 686.º, nº 1 do Cód. Civil. 

[11] A propósito do nº1 do art.º 164.º referem Carvalho Fernandes e João Labareda:
“Esta opção insere-se no quadro geral do reforço dos poderes do administrador e satisfaz, de modo significativo, a intenção de desjudicialização do processo.
Há, a este propósito, duas considerações complementares que se justificam.
Uma, para sublinhar a circunstância de, cabendo a escolha da modalidade de alienação ao administrador, ele não estar vinculado a seguir deliberações que, sobre a matéria, tenham sido tomadas por outros órgãos da insolvência, mesmo que se trate da assembleia de credores. Outra, para advertir do facto de a decisão não ser censurável, através de qualquer tipo de impugnação, perante outros órgãos ou perante o juiz” (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2015, Quid Juris, p.616, nota 4).

[12] A propósito da primeira parte do nº 2 do art.º 164.º, referem os mesmos autores:
“Curiosamente por virtude da primeira parte do nº2 (…) o administrador deve sempre ouvir previamente os credores que tenham garantia real sobre os bens a alienar acerca do meio pelo qual devem ser vendidos. Contudo, a pronúncia dos credores notificados não é vinculativa, o que parece excluir relevância processual à eventual violação desse dever, apesar de esta poder comportar responsabilidade para o administrador e de constituir justa causa de destituição” (obr. cit., p. 617, nota 5).

[13] Segue-se de perto o que se escreveu no acórdão do TRL de 03/08/2022, processo:
150/19.0T8BRR-C. L1-1 (Relator: Isabel Fonseca) acessível in www.dgsi.pt, como todos os demais aqui indicados.
 
[14] Aproximando-se, pois, do regime geral (art.º 812.º, nº1 do CPC).

[15] Carvalho Fernandes e João Labareda, obr. cit. p. 612 (nota 3).

[16] Dessa discussão e das várias posições formadas na jurisprudência e doutrina deu nota o acórdão do TRG de 13-06-2019, processo: 231/17.4T8VNF-C.G1 (Relator: Alcides Rodrigues), acórdão assim sumariado, no que ora interessa:
“I - No tocante às consequências da venda de bens onerados com direitos reais de garantia em violação ao disposto nos n.ºs 2 e 3 do art.º 164º do CIRE perfilam-se, na jurisprudência e na doutrina, três vias interpretativas:
i) - Como posição maioritária, a que sustenta que a ilicitude decorrente daquelas omissões, em si, não afeta a validade ou eficácia da venda efetuada, apenas constituindo (ou podendo constituir) causa de destituição e de responsabilidade civil do administrador da insolvência perante o credor garantido que não foi ouvido sobre a modalidade da venda e/ou que não foi informado sobre o valor base fixado ou o preço da alienação projetada.
ii) - Outra corrente jurisprudencial, no pressuposto da primeira, recusa a aplicação da norma contida nos “arts. 163.º e 164.º, n.º 3, do CIRE”, na interpretação segundo a qual o credor com garantia real sobre o bem a alienar não tem a faculdade de arguir, perante o juiz do processo, a nulidade da alienação efetuada pelo administrador com violação dos deveres de informação do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada, por violação do artigo 20.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição, ao não assegurar uma tutela jurisdicional efetiva para o direito infringido.
iii) Uma outra posição minoritária tem defendido que a inobservância do n.º 2 do art.º 164º do CIRE pode consubstanciar uma nulidade processual suscetível de acarretar a anulação da venda”.
Cfr. ainda o acórdão do TRL de 16-11-2017, processo 2490/15.8T8PDL-E. L1-2 (Relator: Pedro Martins) e a jurisprudência que aí se dá nota.

[17] Carvalho Fernandes e João Labareda, obr. cit., p. 618 (nota 12) referem:
“Consideremos, por fim, a possibilidade de o administrador proceder à venda sem prévia notificação do valor fixado ou projetado ao credor garante.
Com essa omissão ilícita, o administrador inviabilizou a oferta ao credor.
Cremos que em tal situação, tendo em conta o objetivo da lei, clarificado nas linhas precedentes, o administrador responde perante o credor pelo diferencial entre o valor obtido e o total do crédito garantido, sem prejuízo da faculdade de provar que o credor preterido, se devidamente notificado, apresentaria proposta que não permitiria o ressarcimento integral do seu crédito, caso em que, então, responderá somente até a concorrência da proposta presuntiva”.
A propósito do interesse juridicamente protegido, referem: “Do que fundamentalmente se trata é de criar um procedimento peculiar de tutela do credor assistido de garantia para, em primeira mão, melhor lhe permitir cuidar da satisfação do seu crédito, embora isso se possa traduzir na possibilidade de aquisição do bem onerado para si próprio ou terceiro” (p. 617, nota 6). 
     
[18] Menezes Leitão entende “que a responsabilidade estabelecida no nº 3, deve ser analogicamente aplicada à hipótese de o administrador da insolvência omitir a notificação aos credores com garantia real, desde que estes demonstrem que essa omissão frustrou a possibilidade de apresentar proposta com essas consequências” (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, 2018, Coimbra: Almedina, p. 224).      

[19] O acórdão foi proferido na sequência de recurso do Ministério Público, ao abrigo do art.º 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei nº 28/82 de 15-11 e teve por base o julgamento de inconstitucionalidade que, no respetivo processo havia sido formulado; assim, o acórdão do TRE de 08-02-2018, proferido no referido processo (6426/12.0TBSTB-F.E1, Relator: Mário Coelho), considerou “inconstitucional o conjunto normativo que se extrai dos arts. 163.º e 164.º, n.º 3, do CIRE, impossibilitando ao credor com garantia real sobre o bem a alienar a faculdade de arguir perante o juiz do processo a nulidade da alienação efectuada pelo administrador com violação dos deveres de informação do valor base fixado ou do preço da alienação projectada a entidade determinada, por violação do art.º 20.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição, ao não assegurar tutela jurisdicional efectiva para o direito infringido”.
Estava em causa um pedido de declaração de nulidade da venda de um imóvel com fundamento na falta de informação ao credor hipotecário da redução do preço de transmissão e no seu valor diminuto, credor que, por essa razão, ficou privado de exercer a faculdade prevista no n.º 3 do art.º 164.º.

[20] Relativamente ao acórdão do TRE, o TC fez “uma precisão na delimitação da norma”. Assim, lê-se no aresto:
“De todo o modo, impõe-se uma precisão na delimitação da norma.
O Recorrente alegou, no recurso que dirigiu ao Tribunal da Relação, que, ao não ter sido notificado, na qualidade de credor garantido, sobre a modalidade da alienação e valor da venda, ficou privado de exercer a faculdade prevista no n.º 3 do artigo 164.º do CIRE – “[s]e, no prazo de uma semana, ou posteriormente mas em tempo útil, o credor garantido propuser a aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projetada ou ao valor base fixado, o administrador da insolvência, se não aceitar a proposta, fica obrigado a colocar o credor na situação que decorreria da alienação a esse preço, caso ela venha a ocorrer por preço inferior” –, compreendendo-se que o tribunal recorrido tenha feito expressa referência àquele n.º 3 como norma cuja aplicação foi recusada. No entanto, os deveres do administrador da insolvência omitidos, eventualmente causadores da invalidade do ato (que o tribunal de primeira instância se negou a apreciar e declarar e o Tribunal da Relação apreciou e declarou), estão previstos no n.º 2 do mesmo artigo – cuja redacção é a seguinte: “[o] credor com garantia real sobre o bem a alienar é sempre ouvido sobre a modalidade da alienação, e informado do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada”. É, pois, na articulação entre três preceitos que se encontra o arco normativo verdadeiramente correspondente à ratio decidendi: o n.º 2 do artigo 164.º do CIRE (ao prever certos deveres procedimentais do administrador da insolvência), o n.º 3 do mesmo artigo (ao estabelecer uma faculdade que o credor garantido viu preterida) e o artigo 163.º do CIRE (ao, no entender da decisão recorrida, limitar a possibilidade de controlo, pelo juiz, da omissão que sacrificou a identificada faculdade). Dito de outro modo, em substância, e ainda que implicitamente, a decisão recorrida recusou a aplicação também da norma prevista no n.º 2 do artigo 164.º do CIRE (e não apenas da norma contida no n.º 3). Todavia, a (re)construção dos pontos de referência da norma não altera os termos ou o sentido da discussão – tratando-se de um ajustamento meramente formal, não carece de prévio contraditório perante o recorrente, pois deixa intocado o recorte normativo relevante.
Temos, pois, que a norma cuja aplicação foi recusada com fundamento na respetiva inconstitucionalidade – e que, assim, constitui objeto do recurso – é a contida nos artigos 163.º e 164.º, n.ºs 2 e 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, na interpretação segundo a qual o credor com garantia real sobre o bem a alienar não tem a faculdade de arguir, perante o juiz do processo, a nulidade da alienação efetuada pelo administrador com violação dos deveres de informação do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada”.

[21] Carlos Blanco de Morais, 2014, Curso de Direito Constitucional, Teoria da Constituição em Tempo de Crise do Estado Social, Tomo II, Coimbra: Almedina, p.475. 

[22] Jorge Reis Novais enuncia nos seguintes moldes os subprincípios, elementos ou máximas contidas no princípio da proporcionalidade (em sentido lato), ou da proibição do excesso, designação que o autor considera preferível: “a idoneidade (muitas das vezes sob a designação de adequação), a necessidade e a proporcionalidade em sentido restrito.
Na sua utilização mais comum, ao princípio da idoneidade é atribuído o sentido de exigir que as medidas restritivas em causa sejam aptas a realizar o fim visado com a restrição ou contribuam para o alcançar; ao princípio da indispensabilidade ou da necessidade  o sentido de que, de todos os meios idóneos disponíveis e igualmente aptos a prosseguir o fim visado com a restrição, se deve escolher o meio que produza efeitos menos restritivos; por sua vez o princípio da proporcionalidade em sentido restrito respeitaria à justa medida ou relação de adequação entre os bens e interesses em colisão ou, mais especificamente, entre o sacrifício imposto pela restrição e o benefício por ela prosseguido” (Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, 2011, Coimbra: Coimbra Editora, pp. 162-163).

[23] Artigo 82.º
Processo aplicável à repetição do julgado
Sempre que a mesma norma tiver sido julgada inconstitucional ou ilegal em três casos concretos, pode o Tribunal Constitucional, por iniciativa de qualquer dos seus juízes ou do Ministério Público, promover a organização de um processo com as cópias das correspondentes decisões, o qual é concluso ao Presidente, seguindo-se os termos do processo de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade ou da ilegalidade previstos na presente lei.

[24] Proferido no processo 1182/14.0T2AVR-H.P1 (Relator: Fonseca Ramos).

[25] “A observância dos paradigmas ou modelos de decisão estabelecidos nas decisões dos tribunais dá origem à jurisprudência constante. Esta jurisprudência concretiza o desiderato da interpretação e aplicação uniformes do direito aos casos análogos (cf. art.º 8.º, nº3, CC), o qual é, aliás, uma imposição do princípio da igualdade (cf. art.º 13.º, nº 1, CRP). A jurisprudência constante também incrementa a confiança no sistema jurídico, na medida em que o sentido das decisões dos tribunais se torna previsível e expectável, e permite poupar trabalho aos tribunais, pois que estes podem limitar-se a reproduzir as decisões proferidas por outros tribunais na apreciação de casos semelhantes” (Miguel Teixeira de Sousa, Introdução ao Direito, 2013, Coimbra: Almedina, pp. 138-139).
O autor convoca ainda o princípio da confiança que decorre do Estado de direito democrático consagrado no art.º 2.º da CRP referindo que “[a]través da previsibilidade que fornece às decisões judiciais, a jurisprudência constante é um importante factor de confiança”.    

[26] Lê-se apenas, no corpo das alegações de recurso, como segue:
“29. Em primeiro lugar, considerou o Tribunal ad quo que, tendo o Recorrente tomado conhecimento da venda, conforme alegado no seu requerimento de 02.05.2022, não ofereceu o pagamento do montante correspondente a 10% do preço, o que é uma imposição legal de eficácia da proposta, nos termos do n.º 3, do artigo 164.º, caso quisesse usar dessa faculdade.
30. E, por outro lado, não existiu qualquer preterição do procedimento previsto no artigo 161., do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, tendo a Comissão de Credores tomado conhecimento das diligências de vendas dos imóveis.
31. Ocorre que, mal andou o Tribunal ad quo na prolação da sua sentença” (sublinhado nosso). 
Ora, a propósito da matéria que se sublinhou, entendemos que a apelante não tece qualquer argumentação crítica relativamente à decisão.

[27] Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais, à luz do Código Revisto, 1996, Coimbra: Coimbra Editora, p. 19, incluindo a nota 22; refira-se que o atual art.º 195.º nºs 1 e 3 reproduzem, sem alterações, o antigo art.º 201.º. 

[28] Neste sentido e no âmbito do processo de insolvência cfr. o acórdão do TRC de 07-09-2020, processo: 1958/15.0T8LRA-K.C1 (Maria João Areias), em que se conclui como segue:
“2. Podendo tal omissão, em abstrato, influir no resultado do processo para o credor garantido, suscetível de gerar uma nulidade processual nos termos do artigo 195º CPC e de acarretar a anulação da própria venda, a verificação dos respetivos pressupostos carece de ser aferida em função das circunstâncias do caso concreto.
3. Servindo a exigência de comunicação do valor base ou do preço da alienação projetada o propósito de permitir ao credor garantido atuar de forma a defender o valor do bem, promovendo a satisfação do seu crédito, a atribuição da faculdade de requerer a anulação da venda só faz sentido se se mostrar assegurada nos autos a sua venda a preço superior, ou seja, se a invocação da nulidade e o pedido de anulação da venda forem acompanhados da apresentação de uma proposta de aquisição e da respetiva caução legal”.

Cfr. ainda o referido acórdão do TRG de 13-06-2019, em que se considerou que:
“II - A verificação dos pressupostos da nulidade processual não se basta com uma apreciação em abstrato, carecendo de ser aferida em função das circunstâncias do caso concreto, de modo a poder concluir-se que a irregularidade verificada é suscetível de influir na decisão da causa (leia-se na venda ou no resultado da liquidação).
III - Relativamente à irregularidade consistente na falta de comunicação aos credores garantidos do valor base fixado ou do preço de alienação a entidade determinada, não demonstrando os credores garantidos, em termos plausíveis, que, se tivessem sido notificados atempadamente, teriam (ativamente) procurado interessados na aquisição do bem por valor superior ao preço efetivamente obtido ou teriam eles mesmo apresentado proposta de aquisição do imóvel por valor superior ao preço obtido na venda realizada, deve ter-se por inverificada a invocada nulidade processual”.

[29] Com a Lei nº 9/2022 de 11-01 o valor da caução passou de 20% para 10%.

[30] Cfr. Meneses Leitão, Garantias das Obrigações, 2016, Coimbra: Almedina, pp. 99-100  

[31] Processo 108/17.3T8LRA-N.C1 (Relator: Emídio Santos).

[32] Lê-se na fundamentação desse aresto:
“Aplicando esta interpretação ao caso podemos afirmar o seguinte: a audição do credor sobre a modalidade da alienação e a informação a prestar-lhe sobre o valor base fixado ou sobre o preço da alienação projectada a entidade determinada visa “… criar um procedimento peculiar de tutela do credor assistido de garantia para, em primeira mão, melhor lhe permitir cuidar da satisfação do seu crédito, embora isso se possa traduzir na possibilidade de aquisição do bem onerado, para si próprio ou terceiro” [Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, página 547].
Vê-se, assim, que o fim visado pelo n.º 2 do artigo 164.º do CIRE em combinação com o n.º 3 do mesmo preceito é dar ao credor o poder de influenciar a venda dos bens que garantem o seu crédito e dessa forma obter a melhor satisfação possível do seu direito de crédito. Na hipótese de os deveres prescritos pela norma não serem cumpridos pelo administrador da insolvência, a consequência imediata é óbvia: aquele não poderá exercer as faculdades que a lei lhe atribui no n.º 3 do artigo 164.º, ou seja, pronunciar-se sobre a modalidade da alienação, propor a aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projectada ou ao valor base fixado. E as consequências mediatas também são óbvias: fica frustrada a possibilidade de o credor influenciar a venda e de obter a melhor satisfação possível do seu direito de crédito. Assim sendo, a conclusão a retirar é a de que a inobservância de tais deveres pode influir na venda dos bens. É quanto basta aos olhos do n.º 1 do artigo 195.º do CPC para que a omissão de um acto ou formalidade que a lei prescreva produzam nulidade.
Exigir, como faz a decisão recorrida, que o credor demonstre em termos razoáveis que, na hipótese de ter sido informado pelo administrador nos termos prescritos pelo n.º 2 do artigo 164.º do CIRE, exerceria efectivamente as faculdades que o n.º 3 lhe reconhece e que, desse exercício resultaria para ele uma situação mais favorável do que a interviria na ausência de cumprimento de tais deveres, é acrescentar ao n.º 1 do artigo 195.º do CPC, combinado com o n.º 2 do artigo 164.º do CIRE, uma exigência sem apoio na respectiva letra”.

[33] Atente-se ao que alega a AI, na resposta ao incidente:
“i) A notificação pela AJ nos termos do 164º do CIRE ao credor hipotecário Bankinter foi realizada nos precisos termos em que anteriormente notificou o CH da verba 1
 j) Porém o Bankinter quando notificado:
- não se pronunciou sobre a modalidade de venda, 
- não veio dizer que queria ou não comprar naquela data ou posteriormente dentro dum determinado prazo, 
k) Em 31 de agosto pediu prazo até 12 de setembro para proceder a avaliação do imóvel porque a do banco já tinha um ano. Foi concedido o prazo
l) As avaliações quando bem feitas trazem o benefício, verificado na avaliação do imóvel do CH da verba 1, de informar do estado interior do imóvel 
m) A entrada no interior do imóvel que constitui a verba 2 e 3, estava àquela data a ser vedada á equipa da AJ; daí que o interesse em o Bankinter fizesse a avaliação.
Contudo:
Não foi entregue qualquer avaliação, nem a antiga nem a nova, 
O Bankinter passou a questionar a AJ se o bem já estava colocado em leilão; esta foi a reação do Bankinter á notificação ao 164º do CIRE.
Mais tarde e com as visitas ao imóvel foram os visitantes comentando que o imóvel estava praticamente coberto por amianto. Houve “passa palavra” e pessoas que se inscreveram para as visitas não apareceram.
É nesse momento que a AJ entende que lhe tinha sido ocultado pelo Bankinter algo tão fundamental, que desvaloriza qualquer imóvel em +30% ; nunca apareceram as avaliações.
Portanto as verbas foram à praça no 1º leilão sobrevalorizadas”.
E, mais adiante, “[o] amianto num imóvel é um fator que baixa automaticamente o valor de mercado do imóvel”.

[34] Lê-se na decisão recorrida:
“O credor tendo tomado conhecimento da venda, como alega no requerimento de 02.05.2022, não oferece o pagamento do montante correspondente a 10% do preço, o que é uma imposição legal de eficácia da proposta, nos termos do n.º 3, do artigo 164.º, caso quisesse usar dessa faculdade.
Neste sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.05.2023, o qual seguimos e aqui transcrevemos o sumário, in
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/9f9810ac3aa58e26802589a90036bfb1?OpenDocument
I- O artigo 164º, nº 2, do CIRE impõe as seguintes e individualizadas obrigações ao administrador da insolvência face ao credor hipotecário: ouvi-lo sobre a modalidade da alienação; informá-lo do valor base fixado ou do preço de alienação projectada a determinada entidade, não incluindo, portanto, outras suplementares ou adicionais.
II- Não existe disposição legal (mormente no âmbito do CIRE) que imponha ao administrador da insolvência a obrigação processual de avisar o credor hipotecário, quanto à concreta data do leilão (fixado dentro de uma baliza temporal alargada); ao teor das propostas que vão sendo concorrencialmente oferecidas; ao acto final de aceitação da proposta mais elevada ou mesmo da escritura pública subsequente e com ela conforme, quando os actos de licitação sejam registados em ambiente público e passível do conhecimento pelo credor hipotecário.
III- A circunstância do leilão haver acontecido com a inerente publicidade, durante o anunciado período de quase um mês, significa que os interessados – incluindo o credor hipotecário – poderiam ter acompanhado o desenrolar dos trabalhos e interagir em conformidade com os seus propósitos, não se vislumbrando o fundamento legal para concluir que o administrador da insolvência estaria nessas circunstâncias vinculado a ir informando, passo a passo, ponto por ponto, a pessoa do credor hipotecário Liquidação (CIRE)
em relação ao processamento do leilão (o que o mesmo poderia razoavelmente saber agindo pelos seus próprios meios).
IV – Havendo o leilão sido suficientemente publicitado; tendo sido recebidas diversas propostas de aquisição dos bens a alienar; sendo a maior (e que foi aceite) superior a 85% do valor base da venda; não tendo o credor hipotecário, no momento processual destinado ao efeito (uma semana depois da notificação que lhe foi realizada pelo administrador da insolvência, nos termos do artigo 164º, nº 3, do CIRE), proposto a aquisição do bem, por si ou por terceiro, por valor superior, nem atentado (como lhe competia), no momento útil em que poderia ainda exercer essa mesma faculdade, não se verificou na actuação do administrador da insolvência qualquer irregularidade processual anulável nos termos gerais do artigo 195º, nº 1, do Código de Processo Civil”.
O acórdão referido foi proferido no processo n.º 7028/20.2T8VNG-C. P1.S1 (Relator: Luís Espírito Santo).

[35] No corpo das alegações de recurso refere que com a falta de comunicação da AI ficou o credor sem “oportunidade” de “requerer a adjudicação, como era – e é – seu intento” (art.º 95.º, 96.º e 130.º) (sublinhado nosso).