Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
996/22.1PZLSB-A.L1-5
Relator: ISILDA PINHO
Descritores: MEDIDAS DE COACÇÃO
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
MEIOS DE PROVA INDICADOS
CONSULTA DOS AUTOS
NULIDADE
PRAZO PARA ARGUIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I.Quando os autos tenham sido disponibilizados, na integra, para consulta pelo arguido e seu defensor antes do início do 1.º interrogatório judicial, tendo, portanto, a defesa tido cabal conhecimento de todos os meios de prova que estiveram na base da fundamentação da decisão de aplicação da medida de coação, não existe qualquer violação do disposto nos artigos 194.º, n.º6, al. b), por referência ao artigo 141.º, n.º4, al. e) e 194.º, n.º7, todos do Código de Processo Penal, pelo facto de a Mm.ª Juíza a quo ter fundamentado a sua decisão com base nas declarações de testemunhas que não tinham sido identificadas nos meios de prova constantes do despacho de apresentação do arguido a 1.º interrogatório judicial.

II.O incumprimento do dever de fundamentação do despacho que aplica a medida de coação ao arguido constitui uma nulidade sanável, que tem de ser arguida no próprio ato a que o interessado assista, antes desse ato ter terminado, ou seja, após a prolação da decisão que aplica a medida de coação e antes de declarada encerrada a diligência em causa, conforme determinação do disposto no artigo 120.º n.ºs 1 e 3, alínea a), do Código de Processo Penal, sob pena de ficar sanada.

III.O mesmo será dizer que não pode o arguido invocar a referida nulidade em sede de recurso da decisão que lhe aplicou a medida de coação, pois o que deveria e poderia ter feito era argui-la junto da Mm.ª Juíza de Instrução, antes do primeiro interrogatório judicial ter terminado, e, se não se conformasse com o despacho que esta viesse a proferir relativamente ao conhecimento da invocada nulidade, por lhe ser desfavorável, então, sim, recorrer desse mesmo despacho.

[sumário elaborado pela relatora]

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordaram, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:


IRELATÓRIO


I.1No âmbito dos autos de inquérito n.º 996/22.1PZLSB que corre termos pelo TCIC – Juiz 3, a 19-09-2022, o arguido foi sujeito a primeiro interrogatório judicial de arguido detido, na sequência do qual foi-lhe aplicada, além do TIR, a medida de coação de prisão preventiva.

*

I.2Recurso da decisão
Inconformado com tal decisão, dela o arguido interpôs o presente recurso para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respetiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:
1)-“Foram violados os princípios da adequação e proporcionalidade, consagrados nos art. 193°, 202° e 204° do Código de Processo Penal;
2)-Foi igualmente violada a Convenção Europeia dos Direitos do Homem no que respeita às medidas de privação da liberdade (art. 3°, 5° e 9);
3)-Inexistem os requisitos estabelecidos no art.° 204° do Cód. Processo Penal para a aplicação da medida de coação de prisão preventiva;
4)-Com efeito, no douto despacho de apresentação não foram indicados como meios de prova as declarações de quaisquer testemunhas as vítimas.
5)-Ao não serem indicadas como meio de prova, não podem ser utilizadas para aplicação de medida de coação sob pena de violação do n.° 7 do art.° 194° do Cód. Processo Penal.
6)-Ao não serem indicadas como meio de prova as declarações das testemunhas não poderia a Mma Juíza utilizar as mesmas para fundamentar a aplicação da medida de coação de prisão preventiva.
7)-Sendo que dos demais meios de prova indicados no douto despacho de apresentação a primeiro interrogatório não resulta com clareza a existência de suficientes indícios da prática de qualquer crime.
8)-No seu douto despacho a Mma. Juíza à quo fundamentou a sua decisão em várias referências às declarações daquelas testemunhas, quando tais declarações não foram indicadas como meios de prova.
9)-Verifica-se assim a nulidade do artigo 194°, n° 6, alínea b), por referência ao artigo 141°, n° 4 alínea e), ambos do Código de Processo Penal"
10)-Pelo que deverá ser revogada a medida de coação de prisão preventiva e substituída pelas medidas de coação previstas no art.° 196°, reforçada com a medida do art.° 197° (prestação de caução em valor a determinar), art.° 198° (cujas apresentações poderiam ser diárias), todos os artigos do Código de Processo Penal.
11)-Caso assim se não entenda deverá ser aplicada ao arguido a OPHVE.
12)-Pelo que nos parece que com as medidas de coação que agora se propõe sempre ficarão salvaguardados todos os perigos do art.° 204° do CPP, tal como o perigo de continuação de atividade criminosa ou de perturbação do inquérito.
13)-Demonstrando-se as medidas de coação ora propostas suficientes, adequadas e proporcionais e evidentemente menos gravosas e menos traumatizantes.
14)-Violados se revelam, em consequência, salvo melhor opinião, os preceitos legais invocados nas presentes alegações de recurso.

Nestes termos e nos mais de direito, deve ser julgado procedente o presente recurso, revogando-se o despacho recorrido e aplicando medidas de coação conformes, tudo com as legais consequências, por ser de...
.. JUSTIÇA! ! !”.

*
O recurso foi admitido mediante despacho proferido a 31-10-2022.

*
I.3Resposta ao recurso
Efetuada a legal notificação, a Digna Magistrada do Ministério Público respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela sua improcedência, apresentando as seguintes conclusões [transcrição]:
CONCLUSÕES
1- O despacho recorrido faz uma aplicação correta do direito face aos indícios existentes e aos crimes em causa, nomeadamente os crimes de violação ou de coação sexual, entre outros, que são puníveis com pena de prisão superior a 5 anos.
2.- A medida de coação de prisão preventiva aplicada ao recorrente é, por ora, a única medida capaz de acautelar o perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova e perigo_ de continuação da atividade criminosa e de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas.
3.- O despacho fundamenta cabalmente a aplicação de tal medida, tendo sido comunicados durante o primeiro interrogatório todos os factos e elementos constantes do processo, fazendo-se por várias vezes referência ao depoimento das ofendidas/testemunhas pelo que não se mostra violado o disposto no art.194° n.°7 do Código de Processo Penal.
4.- A medida de prisão preventiva aplicada ao recorrente é a única adequada e proporcional à gravidade dos factos indiciariamente praticados pelo que, não se mostram violados os princípios de adequação ou de proporcionalidade, constantes do art.193° do Código de Processo Penal.
5.- Qualquer outra medida de coação que fosse aplicada ao arguido não acautelaria como se pretende os já indicados perigos.
6.-Por último o despacho recorrido não é merecedor de qualquer censura como pretende fazer crer o recorrente.
Contudo V. Exas. decidirão conforme for de Justiça”.

*

I.4Parecer do Ministério Público

Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, nos termos do qual, tal como a Digna Procuradora da República junto da primeira instância, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso, mais acrescentando que [transcrição]:
“Diremos que quanto à nulidade suscitada (art 194º, 6, b) e 7, CPP), centrada no desconhecimento/não informação dos depoimentos das testemunhas inquiridas durante o Inquérito, na fase investigatória antecedente à sua apresentação à Mmª JI, peca por falaciosa, pois que, como sustentado no douto Despacho judicial de 2.12.22, foram efetivamente enunciados todos os meios de prova (abrangendo os autos de inquirição integrantes do processo), irrestritamente, facultando-se, inclusivamente, os autos para leitura, consulta e ponderação à defesa, com vista ao contraditório e adoção da estratégia tida por conveniente, o que aqui e agora se enfatiza, oportunamente.
Mais: a final do Despacho de apresentação do arguido, como se constata documentalmente, lista-se o acervo probatório reunido, nele constando a notícia do crime, veiculada pelo OPC/PJ, fazendo parte dessa comunicação (art 248º, CPP), obviamente, todos os documentos (portanto os depoimentos já tomados) coligidos pelo OPC transmissor da notícia.
Ultrapassada esta virtual objeção, diremos que as demais também não têm melhor virtualidade, se bem repararmos no vasto material probatório (prova pessoal, documental e pericial), de que fazem parte, notar-se-á, a reportagem fotográfica, a inspeção judiciária, as apreensões e os vestígios biológicos pertinentes à demonstração da factualidade, conferindo, com larga exuberância, credibilidade às denúncias.
Ou seja, emerge já, pese a fase embrionária da Investigação, uma indiciação robusta e acrescida, conducente à autenticidade da (gravosa e múltipla) factualidade e da respetiva autoria, nos termos legalmente exigíveis para admitir a privação de liberdade (art 202º,CPP), que supera, mesmo, o grau probatório correspondente à dedução a Acusação ou da Pronúncia (arts 283º, 1 e 2, e 308º,1, 1ª parte, CPP).
Dado o ascendente físico e psicológico, de resto exercido durante a prática delituosa e o conhecimento que o arguido tinha e tem das vítimas, é fundado e sério o risco de poder interferir na sua futura liberdade de ambas deporem (pese hajam prestado declarações para memória futura), adulterando eventual audição em Audiência (arts 204º,b) e 271º,8, CPP), bem como é inegável e intenso o real perigo de voltar a agir identicamente (bastando ter em atenção os averbamentos criminais, em que se contam crimes de igual tipologia, com condenações em pena de prisão efetiva, que, claramente, se mostrou insuficiente para o dissuadir do cometimento deste tipo de ilícitos sexuais), sendo que revela uma personalidade desprendida com o “outro”, com níveis de agressividade instrumentais, visando a  satisfação egoística de ímpetos libidinosos, que não controla, circunstancialismo, ,naturalmente, gerador de preocupação social, mormente na comunidade local e vizinha (art 204º,c), CPP).
Perante este quadro, que reputamos muito autêntico, como conceber a opção por medidas coativas alternativas, que incrementariam, seguramente, a possibilidade de concretização dos apontados perigos?
Na verdade, conhecendo-se o carácter subsidiário da prisão preventiva (arts 202º,1, CPP, e 28º,2, CRP), é forçoso reconhecer-se a inaptidão doutro estatuto, porquanto só o vigente garantirá o acautelamento dos riscos diagnosticados.
Medida extrema que se exibe necessária, adequada e proporcional à gravidade dos crimes “sub judice” (arts 164º,1. A) e b), 3, 163º,1, 154º,1, e 158º,1, CP) e às previsíveis sanções que lhe caberão a final, com alta probabilidade de prisão efetiva, dados os (idênticos e gravosos) antecedentes criminais- art 193º,1, CPP.
Donde que se propugne pela inteira validação do estatuto judiciosamente fixado a 19.09.22.”

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I.5.Resposta
Pese embora tenha sido dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao sobredito parecer.

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I.6.Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.

Cumpre, agora, apreciar e decidir:

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IIFUNDAMENTAÇÃO
II.1-Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:
Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ[1]], são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal[2].
No presente recurso, face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso interposto, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:

Saber se a decisão recorrida padece da nulidade prevista no artigo 194.º, n.º6, al. b), por referência ao artigo 141.º, n.º4, al. e), ambos do Código de Processo Penal;

Saber se a medida de coação de prisão preventiva aplicada ao arguido deve ser substituída por outra menos gravosa, designadamente, pela obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica, por terem sido violados os princípios da adequação e da proporcionalidade.

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II.2Com relevo para a decisão, resultam dos autos as seguintes circunstâncias:
*Os factos que foram imputados ao arguido aquando da sua apresentação a 1.º interrogatório judicial de arguido detido e os meios de prova que os sustentam e lhe foram comunicados são os seguintes [transcrição]:
“(…)
O arguido foi detido fora de flagrante delito, no dia 18/9/2022, pelas 5:15 horas, pela prática dos seguintes factos:
As ofendidas B, de 19 anos de idade, e C, de 16 anos, são namoradas desde o final do ano passado.
As famílias das ofendidas não aceitam a relação de ambas, pelo que elas acabaram por ir viver para casa de um amigo de nome D, que reside na ..., em Lisboa.
A  conhece o arguido por ser amigo/conhecido do pai dela.
No dia 15/9/2022, pelas 23:30 horas, o arguido irrompeu pela casa do D dentro, arrombando a porta, e dizendo-lhes de forma agressiva: “ou vocês saem pelos vossos próprios pés ou vou ser eu próprio a levar-vos daqui.”
As ofendidas ficaram com medo, pegaram nas suas coisas e foram para casa dele, no ….., em Lisboa.
O arguido reside ali sozinho desde 2018. Ali perto reside a sua ex- companheira, N, com os dois filhos menores de ambos, com quem o arguido continua a dar-se.
No dia 16/9/2022, o arguido andou a beber álcool o dia todo, designadamente num café ali perto, e regressou a casa pelas 3:30 horas da madrugada já do dia 17, visivelmente alcoolizado.
Fez barulho, pôs a música alta, acordou as ofendidas e tentou convencer a  a despir-se e a entrar na piscina que tem em casa, o que ela recusou.
Ficou a deambular pela casa durante a noite e entrou no quarto das ofendidas, várias vezes, fazendo-lhes perguntas, até que lhes disse que “elas iam ter um susto e iam ver o que ia acontecer”.
Às 6:00 horas saiu de casa, foi a casa da ex-companheira, onde esteve a comer, acabando por voltar para casa ás 6:30 horas.
Dirigiu-se ao quarto onde as ofendidas dormiam, agarrou na  em peso e levou-a para um quarto de arrumos, sem janelas, onde a fechou á chave, dizendo que “se ela fizesse barulho ia amarrá-la e lhe partia os dentes todos”. Deu-lhe uns cobertores e um balde para ela fazer as necessidades. Ela, com medo, ficou ali às escuras.
Depois chamou a C para a sala de jantar e perguntou-lhe se ela tinha a vagina rapada. Abriu-lhe os calções para ver se ela estava depilada, mandou-a despir-se e tomar banho.
Na casa de banho obrigou-a a lavar-lhe o pénis e a segurar-lho enquanto ele urinava.
Depois levou-a para o quarto e obrigou-a a manter relações sexuais com ele, puxando-lhe os cabelos e ameaçando-a com uma colher de pau.
Concretizou a cópula vaginal sem utilizar preservativo e ejaculando na barriga dela.
De seguida foi buscar a , obrigou-a a tirar a roupa da cintura para baixo, levou-a para o quarto onde estava a C e obrigou-a a lamber a vagina da C, ao mesmo tempo que lambia as mamas e beijava esta última na boca.
Depois obrigou a C a fazer sexo oral á, tapando a cara da C com uma camisola.
De seguida, pegou na  á força e voltou a fechá-la no quarto dos arrumos.
Eram cerca das 8:00 horas, quando o arguido, após ter fechado a, voltou a obrigar a C a ter relações sexuais consigo, concretizando a cópula vaginal, sem preservativo e ejaculando na barriga dela.
Depois obrigou a C a entrar na piscina de água fria e foi buscar a, obrigando-a a entrar também na piscina, depois de a ter obrigado a despir-se e a depilar-se.
De seguida entrou ele também na piscina.
Mais tarde, a  conseguiu sair de casa dizendo ao arguido que ia tentar arranjar um cigarro.
O arguido deixou-a sair mas não autorizou que a C fosse com ela.
Cerca das 13:00 horas, depois da  sair, empurrou a C para a cama despiu-a e constrangeu-a novamente a ter consigo relações sexuais de cópula, sem preservativo, introduzindo e friccionando o pénis na vagina dela. Depois introduziu um pénis de borracha na vagina dela, cuspiu e lambeu-lhe a vagina e o corpo.
Entretanto a  bateu á porta mas ele não abriu pensando era a companheira.  Obrigou então a C a passar para a casa do lado subindo a um escadote e, mais uma vez, obrigou esta ofendida à prática de relações sexuais de cópula vaginal, sem preservativo, bem como a fazer–lhe sexo oral, vindo a ejacular para cima dela, após o que se limpou a um lençol.
Na rua, a  encontrou um conhecido, que ligou para a polícia.
A PSP acorreu ao local e quando arguido se apercebeu da presença da polícia deixou sair a C.
A PJ foi alertada, tomou conta da ocorrência e acabou deter o arguido fora de flagrante delito pelas 5:15 horas do dia 18/9/2022.
O arguido obrigou as ofendidas á prática dos actos acima descritos pela força e intimidação.
O arguido agiu intencionalmente, obrigando as ofendidas a praticarem actos sexuais de relevo com ele, relações sexuais de cópula com ele, incluindo a introdução de um objecto na vagina da C, bem como as obrigou a fazerem sexo oral uma à outra, tudo contra a vontade delas.
Agiu ainda intencionalmente obrigando as ofendidas a entrarem na piscina contra a sua vontade.
Agiu também intencionalmente quando prendeu a  no quarto de arrumos, contra a sua vontade.
Os factos indiciariamente apurados integram a prática pelo arguido de quatro crimes de violação, um crime de coação sexual e um crime de coacção, ps. e ps. pelos artºs 164, nº1, als. a) e b), e nº3, do C.P.; artº 163, nº1, do C.P.; e artº 154, nº1, do C.P. (em relação à ofendida C); e um crime de violação, um crime de coacção e dois crimes de sequestro, ps. e ps. pelos artºs 164, nº1, al. a), e nº3, do C.P; artº 154, nº1, do C.P.; e artº 158, nº1, do C.P. (em relação à ofendida B) – tal como descrito no mandado de detenção a fls. 97 a 99.

O arguido tem antecedentes criminais, além do mais, por crime de violação e roubo, tendo sido condenado em pena de prisão efectiva.
A matéria indiciariamente apurada resulta da comunicação da notícia de crime, inspecção e reportagens fotográficas de fs. 2 a 21, 29 a 38, 53, 77 A; dos autos de busca e apreensão de fls. 78 a 82; dos relatórios e mandados policiais de fls. 85 a 9;, e do CRC de fls. 103 e ss.
(…)”  [sublinhado nosso].

Em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, ocorrido a 19-09-2022, foram aplicadas ao arguido as seguintes medidas de coação:
  • “TIR já prestado;
  • Prisão preventiva;
ao abrigo dos artigos 191.º a 195º, 196.º, 202.º, n.º1, al. a) e b) e 204.º als. b) e c), todos do Código de Processo Penal”;
Por se entender existirem os perigos de:
  • perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova;
  • perigo de continuação da atividade criminosa e perturbação grave da ordem e a tranquilidade pública.
Pela indiciária prática pelo arguido de:
  • quatro crimes de violação, um crime de coação sexual e um crime de coacção, ps. e ps. pelos artºs 164, nº1, als. a) e b), e nº3, do C.P.; artº 163, nº1, do C.P.; e artº 154, nº1, do C.P. (em relação à ofendida C); e
  • um crime de violação, um crime de coacção e dois crimes de sequestro, ps. e ps. pelos artºs 164, nº1, al. a), e nº3, do C.P; artº 154, nº1, do C.P.; e artº 158, nº1, do C.P. (em relação à ofendida B) – tal como descrito no mandado de detenção a fls. 97 a 99.

A 02-12-2022, a Mm.ª Juíza de Instrução proferiu despacho que, no que aqui releva, se transcreve:
“(…) Consigna-se que na fundamentação da medida de coação aplicada apenas se consideraram os elementos constantes dos autos, destaque para os listados no despacho de apresentação, tendo sido, em qualquer caso, exercido o contraditório de modo pleno, já que os autos foram disponibilizados na íntegra para consulta pelo arguido e seu defensor antes do início do interrogatório.
(…)” [sublinhado nosso].

*
II.3Apreciação do recurso
Invoca o recorrente a inexistência, em concreto, dos supra indicados perigos que levaram a Mm.ª Juíza a quo a sustentar a aplicação da medida de coação de prisão preventiva [a saber: o perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova e o perigo de continuação da atividade criminosa e perturbação grave da ordem e a tranquilidade pública], pelo que, na sua ótica, poderão ser-lhe aplicadas medidas de coação menos gravosas, atento o princípio da adequação e da proporcionalidade explanados no artigo 193.º do Código de Processo Penal. 
Alega, para o efeito, não haver fortes indícios do crime em causa, ou pelo menos, fortes indícios resultantes dos meios de prova indicados no despacho de apresentação, pois a Mm.ª Juíza a quo fundamentou a sua decisão com base nas declarações de testemunhas/vítimas, quando estas não foram indicados como meios de prova, tendo, consequentemente, sido violado o artigo 194.º, n.º7, do Código de Processo Penal.
Não existe, portanto, no seu entender, qualquer razão para lhe aplicar a medida de coação de prisão preventiva, que deve, por isso, ser substituída por outra não privativa da liberdade, designadamente, TIR, reforçada com a prestação de caução, em valor a determinar; obrigação de apresentações periódicas, que poderão ser diárias, e, caso assim se não entenda, deverá ser aplicada ao arguido a OPHVE.

Vejamos:

Da invocada nulidade:
Defende o arguido/recorrente que a decisão que lhe aplicou a medida de coação de prisão preventiva padece da nulidade prevista no artigo 194.º, n.º6, al. b), por referência ao artigo 141.º, n.º4, al. e), ambos do Código de Processo Penal, invocando, para o efeito que a Mm.ª Juíza a quo fundamentou a sua decisão com base nas declarações de testemunhas/vítimas, quando estas não foram indicadas como meios de prova, tendo, consequentemente, sido violado o artigo 194.º, n.º7, do Código de Processo Penal.

Conforme decorre do mencionado artigo 194.º do Código de Processo Penal, no que aqui releva:
1- À exceção do termo de identidade e residência, as medidas de coação e de garantia patrimonial são aplicadas por despacho do juiz, durante o inquérito a requerimento do Ministério Público e depois do inquérito mesmo oficiosamente, ouvido o Ministério Público, sob pena de nulidade.
(…)
4- A aplicação referida no n.º 1 é precedida da audição presencial do arguido, ressalvados os casos de impossibilidade devidamente fundamentada, e pode ter lugar no ato de primeiro interrogatório judicial, aplicando-se sempre à audição o disposto no n.º 4 do artigo 141.º
(…)
6- A fundamentação do despacho que aplicar qualquer medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, contém, sob pena de nulidade:
(…)
b)- A enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser gravemente em causa a investigação, impossibilitar a descoberta da verdade ou criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime;
(…)
7- Sem prejuízo do disposto na alínea b) do número anterior, não podem ser considerados para fundamentar a aplicação ao arguido de medida de coação ou de garantia patrimonial, à exceção do termo de identidade e residência, quaisquer factos ou elementos do processo que lhe não tenham sido comunicados durante a audição a que se refere o n.º 4.
8- Sem prejuízo do disposto na alínea b) do n.º 6, o arguido e o seu defensor podem consultar os elementos do processo determinantes da aplicação da medida de coação ou de garantia patrimonial, à exceção do termo de identidade e residência, durante o interrogatório judicial e no prazo previsto para a interposição de recurso.
(…)”.
Por sua vez, no que aqui releva, decorre do artigo 141.º, do Código de Processo Penal que:
“(…)
4- Seguidamente, o juiz informa o arguido:
(…)
e)- Dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser em causa a investigação, não dificultar a descoberta da verdade nem criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime;
(…)
6- Durante o interrogatório, o Ministério Público e o defensor, sem prejuízo do direito de arguir nulidades, abstêm-se de qualquer interferência, podendo o juiz permitir que suscitem pedidos de esclarecimento das respostas dadas pelo arguido. Findo o interrogatório, podem requerer ao juiz que formule àquele as perguntas que entenderem relevantes para a descoberta da verdade. O juiz decide, por despacho irrecorrível, se o requerimento há-de ser feito na presença do arguido e sobre a relevância das perguntas.
(…)”. [sublinhado nosso]

Da conjugação dos mencionados preceitos legais decorre, assim, que o incumprimento do dever de fundamentação do despacho que aplica medida de coação constitui uma nulidade sanável, sendo, a nosso ver, incontroverso que tal nulidade tem de ser arguida no próprio ato a que o interessado assista, antes desse ato ter terminado, conforme determinação do disposto no artigo 120.º n.ºs 1 e 3, alínea a) do Código de Processo Penal, sob pena de ficar sanada.

No caso, a invocada nulidade, a existir, teria de ter sido arguida pelo arguido/recorrente perante a Mm.ª Juíza de Instrução, antes de ter terminado o primeiro interrogatório judicial a que foi sujeito e no âmbito do qual lhe foi aplicada a medida de coação de prisão preventiva, porém, este não o fez [conforme decorre da respetiva ata e da audição da gravação da diligência em causa], pelo que a, só agora, invocada nulidade sempre estaria sanada.
O mesmo será dizer que o arguido/recorrente não pode agora, em sede de recurso da decisão que lhe aplicou a medida de coação de prisão preventiva, vir arguir a nulidade em causa, pois o que o arguido deveria e poderia ter feito era arguir tal nulidade junto da Mm.ª Juíza de Instrução, antes do interrogatório judicial ter terminado, e, se não se conformasse com a decisão que esta viesse a proferir quanto ao conhecimento da arguida nulidade, por lhe ser desfavorável, então, sim, recorrer desse despacho. [3]
No caso vertente, o arguido/recorrente, devidamente representado pelo seu ilustre advogado, não arguiu a nulidade no próprio ato, pelo que a mesma, a existir, ficou sanada.
Nesta conformidade, não pode agora, em sede de recurso do despacho que lhe aplicou a medida de coação de prisão preventiva, vir arguir a referida nulidade, quando não a invocou na altura própria, ou seja, no ato de 1.º interrogatório de arguido detido.
De todo o modo, ainda que assim não se entendesse, sempre se dirá que o despacho em apreço obedece aos ditames do artigo 194.º, n.º6, do Código de Processo Penal, incluindo a enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados [alínea b), aqui posta em causa], bastando, para tanto, atentar que pese embora não se identifique cada uma das testemunhas ouvidas, o facto é que tal meio de prova foi dado a conhecer ao arguido, bem como ao seu ilustre defensor, cujas declarações por aquelas prestadas bem conheciam, pois:
só assim se explica que quando foi confrontado pela Mm.ª Juíza de Instrução com o facto de a narrativa das vítimas ser diferente daquela que estava a declarar em sede de primeiro interrogatório judicial, o arguido tenha tentado justificar que a versão trazida por aquelas aos autos se devia ao facto de ter posto a vítima na rua; e
só assim se explica que em sede de alegações o seu ilustre defensor tenha referido, designadamente, que “a testemunha  de alguma forma não confirma o que a C diz” e “atento o que as ofendidas dizem terão vindo de casa do D”  [sublinhado nosso].   
Além disso, conforme decorre do despacho proferido a 02-12-2022, foi “exercido o contraditório de modo pleno, já que os autos foram disponibilizados na integra para consulta pelo arguido e seu defensor antes do início do interrogatório[sublinhado nosso], pelo que houve cabal conhecimento de todos os meios de prova que estiveram na base da fundamentação da decisão ora recorrida.
Não se encontram, por conseguinte, violadas as disposições legais invocadas pelo recorrente.
Improcede, assim, este fundamento do recurso.

*
Da adequação e proporcionalidade da medida de coação de prisão preventiva aplicada ao arguido:
Invoca o arguido/recorrente que foram violados os princípios da adequação e proporcionalidade, consagrados nos artigos 193.º, 202.º e 204.º do Código de Processo Penal, pugnando pela aplicação de uma medida de coação não privativa da liberdade, ou, caso assim não se entenda, da aplicação da OPHVE.
Vejamos:
O direito à liberdade pessoal, no que tange à liberdade ambulatória, é um direito fundamental, com assento constitucional no art.º 27.º da nossa Lei Fundamental, de cujo nº 2 decorre que “Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança.».
Por sua vez, prevê-se no seu n.º 3, entre outras exceções a tal princípio, a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar, por aplicação da prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos.
Enquanto medida restritiva de direitos, liberdades e garantias do cidadão, qualquer medida de coação está sujeita ao princípio da legalidade, terá de ter consagração legal [artigos 18º, nºs 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa],  decorrendo, por sua vez, do n.º 1, do artigo 191.º do Código de Processo Penal, que “a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coacção e de garantia patrimonial previstas na lei”.

Versando sobre os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, prevê o artigo 193.º, do Código de Processo Penal que:
1- As medidas de coacção e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
2- A prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção.
3- Quando couber ao caso medida de coacção privativa da liberdade nos termos do número anterior, deve ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação sempre que ela se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares.
4- A execução das medidas de coacção e de garantia patrimonial não deve prejudicar o exercício de direitos fundamentais que não forem incompatíveis com as exigências cautelares que o caso requerer.”.

Com fundamento no princípio da proporcionalidade, o legislador processual penal condicionou a aplicação das medidas de coação mais restritivas dos direitos e liberdades do cidadão à existência de fortes indícios da prática de crime doloso [cfr. artigos 200º, 201º e 202º do Código de Processo Penal] e ao máximo da pena correspondente ao crime que justifica a medida [artigo 195º do Código de Processo Penal].
Por fim, em obediência ao princípio da subsidiariedade, as medidas coativas privativas da liberdade, ou seja, as mais gravosas [a saber: a obrigação de permanência na habitação e a prisão preventiva] só podem ser aplicadas quando as restantes se revelem, concretamente, inadequadas ou insuficientes [cfr. artigo 28º, nº2, da Constituição da República Portuguesa e artigos 193º, nº2, 201º, nº1, e 202º, nº2, do Código de Processo Penal] e, dentro destas, a prisão preventiva é, ainda, uma medida subsidiária a aplicar, em relação à obrigação de permanência na habitação [artigo 193º, nº3, do Código de Processo Penal].

Por outro lado, cumpre trazer à colação os requisitos gerais de aplicação das medidas de coação, diferentes do TIR, vertidos no art.º 204.º do mesmo Código de Processo Penal, do qual decorre que:
1– Nenhuma medida de coacção, à excepção da prevista no artigo 196.º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida:
a)- Fuga ou perigo de fuga;
b)- Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou
c)- Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.
2– Nenhuma medida de coação, à exceção da prevista no artigo 196.º, pode ser aplicada a pessoa coletiva ou entidade equiparada arguida se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida, perigo de perturbação do inquérito ou da instrução do processo ou perigo de continuação da atividade criminosa.
3– No caso previsto no número anterior, a adoção e implementação de programa de cumprimento normativo deve ser tida em conta na avaliação do perigo de continuação da atividade criminosa, podendo determinar a suspensão da medida de coação.”

Por fim, no que contende com a aplicação da medida de coação de prisão preventiva, estabelece o art.º 202.º do Código de Processo Penal que:
1–Se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas nos artigos anteriores, o juiz pode impor ao arguido a prisão preventiva quando:
a)- Houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos;
b)- Houver fortes indícios de prática de crime doloso que corresponda a criminalidade violenta;
c)- Houver fortes indícios de prática de crime doloso de terrorismo ou que corresponda a criminalidade altamente organizada punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos;
d)- Houver fortes indícios de prática de crime doloso de ofensa à integridade física qualificada, furto qualificado, dano qualificado, burla informática e nas comunicações, abuso de cartão de garantia ou de cartão, dispositivo ou dados de pagamento, recetação, falsificação ou contrafação de documento, atentado à segurança de transporte rodoviário, puníveis com pena de prisão de máximo superior a 3 anos;
e)- Houver fortes indícios da prática de crime doloso de detenção de arma proibida, detenção de armas e outros dispositivos, produtos ou substâncias em locais proibidos ou crime cometido com arma, nos termos do regime jurídico das armas e suas munições, puníveis com pena de prisão de máximo superior a 3 anos;
f)- Se tratar de pessoa que tiver penetrado ou permaneça irregularmente em território nacional, ou contra a qual estiver em curso processo de extradição ou de expulsão.
(…)”

Ou seja, aquando da aplicação de uma medida de coação impõe-se  determinar qual a medida que melhor se adequa à atenuação ou eliminação dos perigos que tais medidas visam acautelar e que, ao mesmo tempo, se revele proporcional à gravidade do crime e às sanções previsivelmente aplicáveis, tendo sempre presente que a prisão preventiva, bem como a obrigação de permanência na habitação, só deve ser aplicada se todas as demais se revelarem inadequadas ou insuficientes.

Aqui chegados, cumpre analisar a situação dos presentes autos:
No caso concreto, o Tribunal a quo considerou indiciada a prática pelo arguido/recorrente de quatro crimes de violação, um crime de coação sexual e um crime de coacção, ps. e ps. pelos artºs 164, nº1, als. a) e b), e nº3, do C.P.; artº 163, nº1, do C.P.; e artº 154, nº1, do C.P. (em relação à ofendida C); e um crime de violação, um crime de coacção e dois crimes de sequestro, ps. e ps. pelos artºs 164, nº1, al. a), e nº3, do C.P; artº 154, nº1, do C.P.; e artº 158, nº1, do C.P. (em relação à ofendida B) – tal como descrito no mandado de detenção a fls. 97 a 99.

Da análise da prova junta aos autos e mencionada aquando do primeiro interrogatório judicial de arguido detido, na sequência do qual veio a ser aplicada ao arguido/recorrente a medida de coação de prisão preventiva, só se pode chegar à conclusão a que chegou o tribunal a quo no sentido de que os autos indiciam que o arguido recorrente praticou os mencionados crimes.

Aliás, o arguido invoca a falta de indícios pelo simples facto de, na sua ótica, não se ter indicado como meio de prova os depoimentos das vítimas, mas na verdade, são diversos os meios de prova que indiciam os factos dos autos, elencados no despacho de apresentação do arguido a primeiro interrogatório judicial, indicando-se, a título de exemplo:
a comunicação da notícia de crime: desta constam identificadas as vítimas  B e C, bem como uma descrição sumária dos factos;
a inspeção e reportagens fotográficas de fls. 2 a 21: e desta constam o auto de inspeção judiciária, de onde decorre, além do mais:
  • a existência de contacto com o perito médico legal do INML à ofendida C, que confirmou que a vítima apresentava uma escoriação vulvar recente compatível com coito vaginal;
  • que inquirido D, este corroborou a versão das vítimas;
  • efetuada reportagem fotográfica à fechadura da porta de entrada da residência, são visíveis danos descritos pelas vítimas e por D;
  • no quarto descrito como sendo uma arrecadação, onde  alega ter sido mantida fechada à chave e impedida de sair pelo arguido foi encontrado um balde que continha no seu interior um liquido amarelo com forte odor a urina;
  • Neste mesmo quarto foi, ainda, localizada uma colher de pau, que se encontrava no chão, que, segundo a C, foi com esta que o arguido a ameaçou que lhe batia se não fizesse o que ele mandava.
Inexiste, portanto, qualquer dúvida de que a prova junta aos autos, indicada designadamente aquando do interrogatório judicial, indicia fortemente os factos aqui imputados ao arguido recorrente, infirmando o por si alegado em sede recursiva, no sentido de que os meios de prova indicados, desprovidos das declarações das vítimas, são insuficientes para se concluir da forma como o fez a Mm.ª Juíza a quo.

Aliás, diga-se, o arguido não alega qualquer facto suscetível de afastar a prova fortemente indiciária que os autos espelham da sua envolvência nos crimes que lhe vêm imputados, limitando-se a alegar que o tribunal fundamentou a sua decisão de aplicação da medida de coação de prisão preventiva com base em prova testemunhal que não lhe foi indicada, o que, como vimos, à mesma teve acesso e da mesma se pode defender, como, aliás, o fez.

Nestes termos, dúvidas não existem de que da conjugação dos elementos probatórios constantes dos autos, resulta fortemente indiciada a prática pelo arguido/recorrente dos crimes de que lhe vêm indiciariamente imputados, sendo o crime de violação punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos. 

No que respeita aos perigos considerados verificados no despacho recorrido, concretamente, perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova e perigo de continuação da atividade criminosa e perturbação grave da ordem e tranquilidade pública, cumpre dizer que estes encontram-se alicerçados na factualidade indiciada imputada ao arguido e nos traços de personalidade nela revelada, sendo, portanto, evidente a sua verificação.

Note-se que o arguido conhece as vítimas, os familiares de pelo menos uma delas, onde vivem, onde as pode encontrar, e, em sede de primeiro interrogatório judicial, não admitiu os factos, tendo antes adotado um discurso no sentido de responsabilizar as vítimas pela ocorrência dos factos que lhe vêm imputados,  dizendo que foi por estas aliciado à prática dos atos sexuais, o que demonstra uma personalidade mal formada e que não o inibirá de tentar contactar as vítimas com vista a alterarem o relato dos factos já efetuado nos autos, com vista à sua desresponsabilização, sendo, portanto,  premente o perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, pelo menos nesta fase embrionária do processo.

É, igualmente, premente o perigo de continuação da atividade criminosa, bastando, para tanto, atentar que o arguido não assumiu os factos, que diga-se, são graves, não tendo, portanto, demonstrado qualquer arrependimento, o que o poderá conduzir à reincidência, tanto mais que o seu passado criminal já vai longo, contando já com diversas condenações em juízo, designadamente pela prática dos crimes de roubo e de violação, tendo mesmo já cumprido prisão efetiva [em cúmulo jurídico já sofreu uma pena única de 8 anos de prisão], e, restituído à liberdade voltou a delinquir, ao praticar, entre outros diversos crimes [respeitantes a delitos rodoviários], um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, pelo qual foi condenado numa pena de prisão suspensa na sua execução, que não o inibiu da prática dos crimes indiciados nos autos, tanto mais que já nada levava a pensar que o fizesse, pois o registo mais grave do seu passado criminal ocorreu há cerca de 20 anos.

Além disso, o arguido revela traços de personalidade de indiferença para com as vítimas, cujas fragilidades de inserção social conhecia, o que não o inibiu de se aproveitar do contexto então vivenciado por estas.

O perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade pública é indiscutivelmente premente, bastando, para tanto, atentar que estamos perante crimes de natureza sexual, um deles na sua vertente mais grave [o crime de violação] sendo uma das vítimas menores, o que é de todo intolerável pela sociedade.
Neste quadro, perante a natureza e circunstâncias dos crimes e personalidade do arguido nelas revelada, fazendo um juízo de prognose quanto à perigosidade social do recorrente, consideram-se efetivamente verificados os aludidos perigos de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova e perigo de continuação da atividade criminosa e perturbação grave da ordem e a tranquilidade pública, previstos nas alíneas b) e c) do art.º 204.º do Código de Processo Penal, conforme se reconheceu na decisão recorrida.

Sempre se dirá que o ora recorrente não demonstrou qualquer ato de arrependimento ou interiorização do desvalor das condutas indiciadas, nada nos autos levando a concluir por qualquer propósito seu de pautar os seus comportamentos de acordo com o direito.
Não se diga que os perigos em causa poderiam ser perfeitamente reprimidos com qualquer outra medida de coação menos gravosa, designadamente com as invocadas prestação de caução ou apresentações periódicas perante a autoridade policial ou, diremos nós pela proibição de contactos com as vítimas, pois tal não impediria a continuação da atividade criminosa e, esta última, sem qualquer possibilidade de controlo eficaz.
A medida de coação de obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica, pese embora privativa da liberdade, também não permitiria salvaguardar as exigências cautelares que no caso se fazem sentir, pois perante a factualidade indiciada nos autos, a forma como o arguido abordou as vítimas, e o local onde os factos ocorreram, permite-nos concluir que essa medida de coação não tem a virtualidade de impedir os contactos com terceiros, de impedir a “intimidação” das vítimas, nem é suscetível de se proceder à sua vigilância durante 24 horas por dia, bastando para tanto pensar que os crimes de natureza sexual são muitas vezes cometidos na residência dos seus agentes, como, aliás, foi o caso,  ou mesmo através da internet, precisamente a coberto da facilidade de comunicações eletrónicas que hoje existem [muitas vezes através das redes socias cujo rasto não fica perpetuado no tempo].

Nestes termos, afigura-se que, no caso em apreço, tal como o refere a Mm.ª Juíza a quo, a prisão preventiva é a única medida que obstará aos perigos já supra anunciados, sendo insuficiente para acautelar tais receios qualquer medida não privativa da liberdade, tal como o é também a medida de obrigação de permanência na habitação, ainda que sujeita aos meios de vigilância eletrónica.

Acresce que a medida de coação de prisão preventiva mostra-se proporcional à gravidade dos crimes, concretamente do crime de violação, e à sanção que previsivelmente será aplicada ao arguido, porquanto mostra-se fortemente indiciada a prática pelo arguido/recorrente de crimes dolosos, punidos, pelo menos um deles, com pena de prisão de máximo superior a 5 anos e caracterizado pela lei como de criminalidade violenta [cfr. alíneas a) e b), do n.º 1, do artigo 202.º, por referência ao artigo 1.º, alínea j), todos do Código de Processo Penal].

Aqui chegados conclui-se que a medida de coação de prisão preventiva imposta ao recorrente é a única medida proporcional e adequada para proteger as exigências cautelares que no caso se fazem sentir, conforme foi decidido pelo Tribunal a quo, mostrando-se todas as demais inadequadas e insuficientes para salvaguardar tais exigências, pelo que se impõe manter a medida de coação que lhe foi aplicada.

Uma última palavra para dizer que como é consabido, estamos numa fase indiciária, competindo decidir sobre o despacho recorrido, sendo que se, designadamente, por via da investigação, quando a indiciação ou as exigências cautelares se alterarem, o tribunal, oficiosamente ou mediante requerimento, não deixará de apreciar a questão.

Improcede, pois, o recurso interposto pelo recorrente.

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IIIDISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os juízes da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido e, consequentemente, mantem-se a medida de coação de prisão preventiva que lhe foi aplicada.

Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 UCS [artigos 513º, n.ºs 1 e 3 e 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9, do RCP, com referência à Tabela III], sem prejuízo de se verificar o pressuposto a que alude a alínea j), do n.º1, do artigo 4.º, do Regulamento das Custas Processuais.

Comunique-se, de imediato, à 1.ª instância, com cópia.


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Lisboa, 07 de fevereiro de 2023


[Elaborado e revisto pela relatora - artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal]



(Os Juízes Desembargadores)

Isilda Pinho
Luís Almeida Gominho
Jorge Gonçalves



[1]Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010 in http://www.dgsi.pt,
[2]Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 7/95, de 28 de dezembro, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95.
[3]Neste sentido, veja-se:
O estudo do Ex.mº Conselheiro Dr. Manuel Joaquim Braz, “As medidas de Coacção no Código de Processo Penal revisto. Algumas notas”, in Colectânea de Jurisprudência, ano XXXII, tomo 4, pág. 6, a propósito da nulidade cominada no n.º 2 do citado artigo 194.º, e, entre outros:
O Acórdão do TRP de 20-10-2010, relatado pelo Desembargador Melo Lima, in www.dgsi.pt, e o
Acórdão do TRG de 10-03-2011, Processo n.º 189/08.OJABRG-B.G1, in www.dgsi.pt.