Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
| Processo: |
| ||
| Relator: | ISILDA PINHO | ||
| Descritores: | CRIME DE ABUSO SEXUAL DE MENORES ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO ART.º 16º N.º3 CPP MÁXIMO DA PENA APLICÁVEL MEDIDA DA PENA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 02/22/2023 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | PARCIALMENTE PROCEDENTE | ||
| Sumário: | I. O vício do erro notório na apreciação da prova, a que alude o artigo 410.º, n.º 2, al. c) do Código de Processo Penal, tem de resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não se estendendo, pois, a outros elementos, nomeadamente que resultem do processo, mas que não façam parte daquela decisão, sendo, portanto, inadmissível o recurso a elementos àquela estranhos para o fundamentar. II. Quando o recorrente se socorre de segmentos dos depoimentos produzidos em audiência de julgamento ou de documentos para sustentar o desacerto que, no seu entendimento, existe na decisão tomada quanto à matéria de facto, extravasa os limites da sindicância previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, constituindo tal fundamentação um juízo sobre a valoração da prova produzida em audiência feita pela 1.ª instância, que é próprio do mecanismo consagrado no artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6 do Código de Processo Penal. III. Se o Tribunal a quo, que beneficiou plenamente da imediação e da oralidade da prova, explicou racionalmente a opção tomada, e o Tribunal da Relação entender que da reapreciação da prova não se impõe decisão diversa, nos termos do art.127.º do Código de Processo Penal, deve manter a decisão recorrida. IV. Quando o recorrente não concorda com a análise que o Tribunal a quo fez da prova produzida em audiência de julgamento, mas este, imbuído da imediação, explicitou, de forma lógica e ponderada, as razões da sua convicção, explicou a formulação do juízo que formou sobre a falta de credibilidade ou de credibilidade das declarações/depoimentos apreciados e, da respetiva fundamentação não decorre que tenha ficado com quaisquer dúvidas, não lhe cumpria fazer qualquer uso do princípio in dubio pro reo. V. Quando a moldura penal abstrata do crime, pelo qual o arguido foi acusado e vem a ser condenado, contempla uma pena de prisão de máximo superior a 5 anos, o uso, por parte do Ministério Público, do mecanismo previsto no artigo 16.º, n.º3, do Código de Processo Penal, não implica a redução dessa moldura penal abstrata ao máximo de 5 anos, o que ocorre é que a pena concreta a aplicar pelo tribunal singular não pode ser superior a 5 anos, o que configura duas realidades distintas. VI. In casu, tendo em conta que os factos integradores da prática do crime de abuso sexual de crianças não se afastam do limiar inferior da gravidade dos que integram o conceito de atos sexuais de relevo; que se traduziram num ato isolado da vida do arguido; que este, desde então, decorridos mais de três anos, se mantém afastado da vítima; é primário e encontra-se social, profissional e familiarmente inserido, afigura-se ser possível efetuar um juízo de prognose positivo e, como tal, ajustada a pena de 3 [três] anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 4 [quatro] anos, desde que sujeita a regime de prova, à condição de o arguido se submeter a avaliação especializada para aferir da necessidade de intervenção e acompanhamento médico na área da sexualidade e de se sujeitar à regra de conduta, no âmbito das suas atividades “pro bono”, de proibição de exercer essas atividades em instituições relacionadas com menores. [sumário elaborado pela relatora] | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordaram, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: I-RELATÓRIO I.1 No âmbito do processo comum singular n.º 482/20.4PLLSB que corre termos pelo Juízo Local Criminal de Lisboa [Juiz 2], do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, em 24 de fevereiro de 2022, foi proferida sentença, no que agora interessa, com o seguinte dispositivo [transcrição]: “4. Decisão Nos termos de facto e de direito expostos, o Tribunal decide julgar a acusação deduzida pelo Ministério Público procedente por provada e, em consequência: a) condenar o Arguido A pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 171º, nº1, do Código Penal, na pena de cinco (5) anos de prisão; b) condenar o Demandado A no pagamento à Menor B, legalmente representada pela Demandante C, da quantia de 5.400€, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal, que se vencerem desde a data da presente sentença e até integral pagamento; (…).” » I.2 Recurso da decisão Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o arguido para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respetiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]: “CONCLUSÕES: I. Vai o presente recurso interposto da sentença condenatória e que visa impugnar parte da matéria dada como provada, bem como ver alterada a pena de prisão em que o mesmo foi condenado pelo crime de abuso sexual de crianças, por se entender que as dúvidas resultantes da prova produzida em sede de audiência deveriam pelo menos ter gerado dúvidas insanáveis que pelo menos poderiam ter levado a questionar o tribunal a quo a colocar em crise as conclusões a que chegou; II. O recorrente foi condenado, em autoria material e na forma consumada, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 5 anos de prisão efetiva e no pagamento à menor B, legalmente representada pela demandante C, da quantia de 5.400,00€, a título de danos não patrimoniais; III. Ao longo da matéria de facto dado como provada, vários são os factos repetidos sendo que muitos deles estão apenas e tão só alicerçados na mera convicção do tribunal a quo sem qualquer prova concreta; as testemunhas apresentadas pelo arguido para sua defesa, por serem vizinhos, na sua maioria foram descredibilizadas, sem motivo lógico / fundado pelo tribunal a quo; IV. O facto de haverem factos provados repetidos demonstra a forma ligeira como o tribunal a quo procedeu à avaliação global da matéria constante das peças processuais (factos c) e t) // factos d) w) e y) // ; factos e) e z) // Factos f) e aa) // factos g) e cc) // factos h) e dd) // factos i) e ee) // factos j), hh) ii) e jj) // factos k) e kk) //factos l) e ll) // factos m) e mm); V. Aparentemente, o arguido parece condenado com base em maior número de factos do que aqueles que constam da acusação, tal como proferida nos termos do artigo 283º do Código do Processo Penal; VI. A acusação, já de si genérica, apesar de circunscrita a uma situação concreta e não a um comportamento reiterado ou continuado, e que viola as disposições do artigo 283º, n.º 3, al. b) do Código do Processo Penal, implicou uma condenação do arguido em número de factos acrescidos, sem que tenha sido dado cumprimento efetivo ao disposto no artigo 358º do Código do Processo Penal, o que se invoca, com as devidas consequências; VII. Deveria ter sido considerado não provado que o pai da menor e o arguido fossem amigos, tendo isso mesmo decorrido do depoimento do pai da menor (D – depoimento transcrito nas motivações de recurso) ou até que fossem visitas de casa (FACTOS C e T) da MATÉRIA DE FACTO PROVADA E QUE DEVERIA TER SIDO CONSIDERADA NÃO PROVADA); VIII. O pai da menor confirmou que a menor pedia dinheiro para gomas ao vizinho, e que ele até se aborrecia com a situação, tendo o tribunal a quo desconsiderado e desvalorizado o depoimento desta testemunha, dado que era consonante com a versão do arguido; IX. Factos d), w) e y) – “Em data que em concreto não foi possível apurar, mas que ocorreu no Verão do ano de 2019, quando a menor se encontrava a passar o fim-de-semana na residência do progenitor, aí compareceu o arguido, que a convidou a ir a sua residência, dizendo-lhe que que iria conhecer a sua progenitora, tendo a menor acedido, por ordem do progenitor” (semelhantes aos factos w) e y) da matéria de facto dada como provada) – deveria ter sido dado como não provado pois em momento algum a testemunha D refere este episódio. Até é dito que o arguido até terá ido a casa dele apenas uma vez para lhe levar uma garrafa de vinho, nem sabendo bem precisar quando, só dizendo que B estava lá nesse dia. Este episódio, nas palavras do próprio pai da menor, nunca existiu, não podendo sequer estes factos ser dados como provados. X. Conjugando aliás, com as declarações para memória futura da menor, B, que se sugere sejam ouvidas na íntegra, a mesma apenas diz que terá ido a casa do arguido uma ou duas vezes, e mesmo depois de lhe terem sido lidas as declarações prestadas junto da autoridade policial, continuou sem se lembrar de qualquer quantia monetária que lhe tivesse sido dada pelo arguido, não confirmando a mesma. - Pelo que o facto constante da alínea e) e da alínea z) deveriam ter sido dados como não provados. XI. Também o facto constante da alínea f) não poderia ter sido dado como provado, uma vez que o arguido não se deslocava sequer a casa do pai da menor, quanto mais para lhe dar gomas, como foi dado como provado. O próprio pai da menor o confirmou, como se referiu que o arguido não era sequer visita de casa, e que terá ido a sua casa apenas uma vez levar-lhe uma garrafa de vinho. - O facto f) “Noutras alturas, quando a Menor se encontrava na residência do progenitor e o arguido aí comparecia, este oferecia gomas à menor, que as aceitava” (facto semelhante à primeira parte do facto aa) também deve ser considerado não provado. XII. No que respeita aos factos alegadamente ocorridos em setembro de 2019, foram também estes considerados integralmente dados como provados, sendo considerado pelo tribunal a quo que o arguido apenas pretendeu dar justificações para pôr em causa a “versão” da menor, ou fazê-la passar por “mentirosa”. XIII. É certo que a menor à data em que supostamente os factos terão ocorrido tinha 10 anos, e alegadamente descreveu as circunstâncias em que os mesmos terão ocorrido, mas de forma clara também disse que a mãe do arguido se “encontrava na sala naquele dia”. XIV. No entanto, foi junto documento que provou que a mãe do arguido foi para um Lar / Casa de Repouso em 19 de julho de 2018, onde ficou até falecer em 8 de fevereiro de 2021. (Documento junto em 11/11/2021 – referência citius 40425094) – As testemunhas apresentadas pela defesa, E e F confirmaram isso mesmo (que a mãe do arguido nunca mais voltou a sua casa – que partilhava à data com o arguido – cfr. transcrições constantes das motivações de recurso), sendo que foram solicitadas as faturas à Casa de repouso para esse mesmo período. XV. Esta contraprova foi solicitada tanto pela mandatária da demandante como pelo Ministério Público, tendo sido cumprida pela referida Casa de Repouso, e não tendo sido impugnada ou contestada, ou seja, foi confirmado que a mãe do arguido esteve na Casa de Repouso naquele período conforme alegado. Havendo prova documental e testemunhal, como pode esta ser posta em causa apenas e tão só pela mera convicção da “possibilidade” de a mãe do arguido poder ter voltado a casa?! A mãe do Recorrente esteve de forma ininterrupta na Casa de Repouso (Doc. n.º 1), cfr o Tribunal poderia até oficiosamente ter confirmado, considerando insuficientes os documentos juntos anteriormente, em busca da VERDADE MATERIAL. XVI. Estar-se-á, assim, mais uma vez perante um erro notório na apreciação da prova, vício este que se alega desde já. XVII. Contrariamente ao entendido pelo Tribunal a quo não poderia ser considerado provado que “facto ff) A mãe do arguido (nas palavras da criança, uma “senhora muito velhinha”) encontrava-se na sala nesse dia.” XVIII. Assim, ou os alegados factos nunca se teriam passado em setembro de 2019, caindo por terra a contextualização dos factos da acusação como descrita no seu todo, ou nunca poderia ser dada como provado este facto em concreto, apenas e tão só pelas palavras da menor, pondo em causa a prova documental e a restante prova testemunhal produzida, porquanto terá entendido o tribunal a quo que as testemunhas de defesa não lhe mereciam credibilidade, pela longa vizinhança que detêm com o arguido. Nunca ponderou que a menor tivesse feito confusão ou outra explicação… descredibilizar a prova produzida, embora sem motivo ou fundamento aparente, para sustentar depois a condenação no seu todo, foi a forma de mais uma vez se considerar um facto provado, apesar da prova produzida em sentido contrário. XIX. Outro facto, que foi dado como provado, desconhecendo-se onde foi alicerçada a convicção do tribunal a quo para considerar provado o mesmo, é o facto enunciado em gg) “O Arguido disse à menor que precisava de alguém que cuidasse dele, manifestando assim a vontade em que fosse a menor a dar-lhe a referida assistência” – em qualquer momento da audiência de julgamento foi produzida qualquer prova que permitisse ao tribunal a quo considerar este facto como provado, pelo que se requer que o mesmo seja considerado como não provado para os devidos efeitos. XX. Aliás, da própria motivação da sentença, e tal como vem fundamentada a respetiva convicção como, do depoimento de cada testemunha, cada facto foi alegadamente dado como provado ou não provado, não poderá certamente decorrer poderem ser dados como provados os factos supra enunciados; XXI. Sendo os factos supra considerados não provados, e sendo a contextualização naturalmente diferente da constante na acusação, sempre se poderia equacionar se, a terem eventualmente ocorrido os factos como a menor relatou, se efetivamente teriam ocorrido envolvendo o arguido, dado que esta por receio, medo ou outro motivo poderia ter “criado” parte desta história; XXII. Quanto mais não fosse atendendo a todos os factos que se deveriam ter dado como não provados, ter-se-ia ou poderia, pela contextualização dos factos efetuada pela Menor, de não somenos importância, ponderar a aplicação do PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO. XXIII. O Tribunal fundamentou a sua convicção quanto à matéria de facto provada à luz das regras da experiência comum e do princípio da livre convicção do julgador, consagrado no art.° 127° do C. P. Penal. Este princípio não deve, nem pode ser entendido como a atribuição ao juiz de um poder discricionário na apreciação da prova com vista à fixação da matéria de facto provada e não provada, devendo ser perspetivado como o meio ao alcance do julgador para cumprir com o dever de alcançar a verdade material. XXIV. Como refere o Professor Figueiredo Dias, a livre apreciação "não pode de modo algum querer apontar para uma motivação imotivável e incontrolável, e portanto arbitrária, da prova produzida; se a apreciação da prova é, na verdade, discricionária, tem evidentemente esta discricionariedade os seus limites, que não podem ser licitamente ultrapassados; a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever, o dever de perseguir a chamada verdade material, de tai sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, reconduzível a critérios objetivos, e portanto, em geral suscetíveis de motivação e controlo..."(em Direito Processual Penal, pág. 202 e 203); XXV. A livre convicção não se pode confundir com a íntima convicção do julgador pois a lei impõe-lhe que extraia das provas um convencimento lógico e motivado, que avalie as provas com sentido de responsabilidade e bom senso e que as valore segundo parâmetros da lógica do homem médio e as regras de experiência ("a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade"); XXVI. Refere o Conselheiro Santos Cabral que "A prova indiciária pressupõe um facto, demonstrado através de uma prova direta, ao qual se associa uma regra de ciência, uma máxima de experiência ou uma regra de sentido comum. Este facto indiciante permite a elaboração de uma facto consequência em virtude de uma ligação racional e lógica" (em Prova indiciária e as Novas Formas de Criminalidade", em Revista Julgar, n° 17- 2012, pág. 13 e ss.). XXVII. A motivação de uma convicção apoiada num processo lógico impõe a conjugação de todos os indícios factuais constitutivos do tipo de crime, no sentido da sua conformidade com as regras da lógica, os conhecimentos científicos e as máximas da experiência crítica. XXVIII. Neste caso em concreto, a menor descreveu os factos, mas referiu ter ido alegadamente a casa do arguido uma ou duas vezes (cfr. declarações para memória futura – auto de declarações de fls. 115 a 117), mas referiu não se recordar de ele nunca lhe ter dado dinheiro. A menor referiu que a mãe do arguido estava na sala quando os factos terão acontecido no quarto, sendo que os mesmos terão ocorrido em setembro (verão) de 2019. Esta contextualização, desvirtua, quer queiramos quer não, a “história” vertida na acusação de que o arguido teria tentado ganhar a confiança da mesma e assim, depois de a mesma ter ido várias vezes a casa dele, ter acabado por levar a cabo os atos descritos; XXIX. Estas dúvidas gerariam, pelo menos, questões no espírito do julgador, que poderiam levar à absolvição do arguido / recorrente ou pelo menos, à ponderação clara da medida da culpa e consequentemente da pena; XXX. “Princípio in dubio pro reo – Considerações gerais José Penim Pinheiro – Revista JULGAR Online, janeiro de 2021 - páginas 21 e 22” - “(…) FIGUEIREDO DIAS defende que, no que concerne ao facto sujeito a julgamento, o princípio aplica-se não só aos elementos fundamentais e agravantes da incriminação, mas também às causas de exclusão da ilicitude e a todas as circunstâncias atenuantes. I.e., quando subsistir a dúvida acerca da concorrência de um facto impeditivo ou extintivo da responsabilidade do arguido, o juiz deve proferir decisão absolutória. Porquanto a conservação da dúvida razoável após a produção de prova tem de atuar em sentido favorável ao arguido. (…)” XXXI. O Tribunal a quo, ao debruçar-se sobre o conjunto de factos, deveria ter procurado uma dúvida evidente, resultando de uma valoração emergente da conjugação da totalidade dos factos, e de acordo com as regras da experiência comum, de acordo com aquilo que é usual acontecer, decorrendo um erro notório na apreciação da prova. XXXII. Como tem propugnado a jurisprudência, há violação do princípio in dubio pro reo “sempre que o juiz, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto desfavorável ao arguido o considerou como provado.” (Princípio in dubio pro reo – Considerações gerais José Penim Pinheiro – in Revista JULGAR Online, janeiro de 2021, pág. 23) XXXIII. Deveria o arguido ter sido absolvido do crime de que lhe foi imputado, porque, desconhecendo-se efetivamente, e a terem eventualmente ocorrido tais factos, quem os praticou e quando, a data de setembro de 2019, terá sido equacionada, para se ajustar à restante contextualização, embora o facto de a mãe do arguido se encontrar num lar residencial há muito mais tempo, não seja de todo consonante com essa versão. XXXIV. Entende-se existir, assim, um erro notório na apreciação da prova produzida em sede de julgamento, vício que se invoca nos termos do artigo 410º, n.º 2 al. c) do CPP, confluindo em consequência na necessária absolvição do arguido, decorrente igualmente da não aplicação do Princípio in dubio pro reo, do qual o tribunal a quo não fez uso, como entendemos deveria. Ainda que assim não se entendesse, não concedendo e por dever de patrocínio, XXXV. Mesmo que fosse entendido condenar o arguido pelo crime do qual vinha acusado, nos termos do artigo 171º n.º 1 do Cód. Penal (embora limitado ab initio à pena máxima possível abstrata de 5 anos de prisão, dado ter sido sujeito a julgamento em tribunal singular), não poderiam ter sido considerados provados os factos atrás enunciados, por não ter sido efetuada a devida prova em sede de audiência de discussão e julgamento. XXXVI. Desta forma, estar-se-ia perante um enquadramento completamente distinto do descrito pela acusação e que parece querer fazer crer que o arguido era amigo do pai da menor, que ia recorrentemente a casa do mesmo, que aliciava de forma constante a menor com gomas e dinheiro, o que na verdade não resulta provado. XXXVII. Aliás, será importante realçar que devem ser ouvidas e visualizadas as imagens das declarações para memória futura da Menor, prestadas e documentadas na íntegra e constantes do processo, a fls. 115 a 117 (prestadas em 14 de abril de 2021 – DVD constante dos autos), sendo que as audíveis em sede de audiência estão num volume bastante baixo e impercetível. XXXVIII. As declarações da menor, percebendo-se naturalmente que a mesma detendo na altura 12 anos de idade, e devendo deter-se o natural cuidado, foram devidamente encaminhadas para o sentido que se pretendia, respondendo maioritariamente a mesma de forma tímida e com monossílabos, confirmando maioritariamente aquilo que que lhe era questionado. XXXIX. A terem ocorrido os factos como alegadamente descritos em setembro de 2019, supostamente o arguido teria tocado num seio da menor e no genital, sendo que de imediato a mesma terá fugido e não mais se cruzou com o arguido. Aliás, este nem sequer a ameaçou em momento algum, nem nunca mais lhe dirigiu qualquer palavra, pois isso mesmo lhe foi questionado a instâncias da defensora do arguido no final das suas declarações, tendo a mesma confirmado. XL. INÊS FERREIRA LEITE considera que “o crime de abuso sexual de menores exige sempre uma lesão do bem jurídico, pois segundo o entendimento de bem jurídico seguido pela douta Professora haverá sempre a necessidade de ocorrer um efetivo abuso, e a lesão ou dano ao bem jurídico é desde logo o abuso em si, ou seja, a intromissão na liberdade sexual do menor. XLI. “Considerando que o bem jurídico é a liberdade sexual, pois todos têm direito à liberdade, num prisma direcionado para a proteção da personalidade e da infância, pois estamos perante crianças (…), nem sempre é totalmente reconduzível à prática de um comportamento (ilícito) a violação de um bem jurídico concreto, como se considera que seja a liberdade sexual. Tendo que atender a bens jurídicos supra-individuais que passam muito por analisar caso a caso a possível perturbação no desenvolvimento do menor, isto leva-nos a uma situação de incerteza quando ao dano em concreto. A solução avançada, em detrimento das considerações de crime de perigo abstrato, (…), é o do crime de perigo concreto ou como avança ANA RITA ALFAIATE, crime de perigo de pôr em perigo. A mesma conclui “Existe, na conduta punida do agente, um desvalor autónomo merecedor de tutela penal e que consiste num perigo de perigo para o bem jurídico ideário protetivo do legislador. Um perigo de pôr em perigo um bem jurídico digno de tutela penal que é preciso acautelar, prevendo-se a incriminação da conduta apta a produzir esse perigo.” XLII. Não podemos, independentemente da conotação do ato sexual, e independentemente da liberdade sexual da menor que teria resultado afetada, ponderar em face desta situação em concreto, e depois de ter resultado dos autos que não mais houve qualquer contacto entre arguido e menor até hoje alegadamente desde aquele mesmo dia, que o arguido (nas palavras da menor), nunca a ameaçou, nem sequer a seguiu ou gritou ou agarrou; O arguido está inserido familiar, social e profissionalmente; é economista e aufere em média cerca de 1200 euros mensais neste momento; não tem registo criminal, mesmo detendo já quase 60 anos de idade (tem praticamente 57 anos). XLIII. Tal como referido ao longo do presente recurso não se registou a tal atuação contínua de “conquista” como descrita na acusação e dada como provada, pois alegadamente o arguido iria por diversas vezes a casa do pai da menor dar-lhe gomas, quando na verdade concluímos que o arguido apenas foi a casa daquele uma única vez, levar uma garrafa de vinho. XLIV. Mesmo que, no limite, a ter ocorrido tal situação / tais factos, em setembro de 2019, haveria sempre que ponderar, nos termos da alínea d) do n.º 2 do artigo 72º do Código Penal, o facto de nos encontrarmos já no primeiro trimestre de 2022, não haver notícia de qualquer crime, transgressão ou facto (contra a menor ou qualquer outra pessoa), praticado pelo arguido, sendo que este mantém até hoje o seu Registo Criminal sem qualquer condenação e sem qualquer contacto prévio ou posterior com a Justiça, o que será sempre de ter em consideração. Tudo visto e ponderado sempre seria possível, ter sido aplicado o mínimo da pena, ou seja, um ano de prisão. XLV. Aliás, comparando com a jurisprudência existente e gravidade de outras situações, a condenação dos presentes autos viola claramente o princípio da Igualdade, por ser manifestamente excessiva, violando os princípios determinados pelo Código do Penal para a fixação e determinação da medida das penas. Em termos exemplificativos: Ac do STJ – Processo 239/11.3TALRS.L1, 3ª secção – condenação em 7 anos de prisão efetiva (prática de 1064 crimes de abuso sexual de menores p. e p. pelo artigo 172.º, n.º 1, do Código Penal (CP), 144 crimes de abuso sexual de menores p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 2, do CP, e 10 crimes de atos sexuais com adolescentes p. e p. pelo artigo 173.º, n.º 1, do CP); Ac. do STJ – Processo 427/18.1JACBR.C1.S1, de 12 de maio de 2021, Relator Sénio Alves – condenação por 4 crimes (dois crimes nos termos do artigo 171º n.º 2 e dois crimes nos termos do artigo 171º n.º 1 do Código Penal) – em cúmulo na pena única de 6 anos de prisão; XLVI. Não se absolvendo o arguido, seria justa a aplicação da pena de prisão de um ano de prisão, eventualmente ponderada a respetiva substituição por multa, nos termos do artigo 45º do Código Penal, ou até em alternativa, nos termos do artigo 58º do Código Penal, de substituição dessa mesma pena (não sendo superior a dois anos de prisão), por prestação de trabalho a favor da comunidade, o que o arguido aceita, em razão da idade do recorrente (e por se entender que se realizariam, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição). XLVII. Predispõe-se, ainda assim o arguido cumulativamente, a ser acompanhado em regime de prova, pelos Serviços de Reinserção Social ou outros adequados, podendo sujeitar-se a acompanhamento psicológico se o douto Tribunal entender adequado e necessário para a prossecução dos fins adequados à sua plena e integral socialização, como aliás pretende manter. Ainda sem conceder, XLVIII. Para a escolha e determinação da medida da pena o Tribunal a quo atendeu aos factos dados como provados (que na douta sentença foram considerados todos, e para os quais se remete), sendo que o tribunal a quo como se referiu, deveria ter também ter levado em conta os factos dados como não provados, enunciados nas alíneas c), d) e), f), t), w), y), z), aa) 1ª parte, ff) e gg). XLIX. Tudo isto conjugado, teria determinado a aplicação ao recorrente de uma pena de prisão sempre inferior a 5 anos de prisão, e nunca efetiva, conforme seguidamente se demonstrará. L. Como ensina o ilustre Prof. Figueiredo Dias in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, 1993, Coimbra, p. 198: “a determinação da medida da pena obedece a três fases, a saber: determinação da moldura penal (medida legal ou abstrata da pena) aplicável ao caso; escolha da espécie de pena que efetivamente deve ser imposta; determinação concreta da pena.” LI. Quanto à finalidade das penas, o artigo 40º, n.º 1 do Código Penal estabelece que a aplicação de qualquer pena visará não só a proteção de bens jurídicos, mas também a reintegração do agente na sociedade – a chamada prevenção geral positiva. Adicionalmente, o n.º 2 determina que a pena não possa ultrapassar a medida da culpa do agente. LII. A prevenção geral positiva traduz-se na ideia de que a pena aplicada ao agente deve manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e eficácia das normas jurídico-penais, como instrumento de tutela de bens jurídicos. Dito de outro modo, a pena tem, pois, de corresponder às expectativas e confiança da comunidade. LIII. O artigo 70º do Código Penal impõe sobre o julgador o dever de preferir à pena privativa da liberdade uma pena alternativa (no caso pena de multa), sempre que, verificados os respetivos pressupostos de aplicação, a pena alternativa se revele adequada e suficiente à realização das finalidades da punição. LIV. Como mais uma vez ensina o ilustre Prof. Figueiredo Dias in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2011, §497 a 499, págs. 331 a 332): a aplicação de uma pena alternativa à pena de prisão, no caso da pena de multa, depende tão só de considerações de prevenção especial, sobretudo de prevenção especial de socialização, e de prevenção geral sob a forma de satisfação do “sentimento jurídico da comunidade”. LV. O Recorrente, como resulta dos autos, tem 56 anos de idade, e nas suas quase seis décadas de vida não registou qualquer antecedente criminal de qualquer ordem, o que demonstra que a sua conduta sempre foi conforme o direito e dentro dos parâmetros socialmente exigidos. LVI. Este processo, independentemente do seu desfecho, consubstanciou o seu primeiro contacto real com o sistema judiciário. LVII. Todos estes factos deveriam ter levado a que o Tribunal a quo considerasse que a substituição da pena de prisão por pena de multa, nos termos do artigo 45º do Código Penal, ou até a substituição dessa pena por prestação de trabalho a favor da comunidade (nos termos do artigo 58º do Código Penal) responderia suficientemente quer às necessidades de prevenção geral e sobretudo às de prevenção especial, pois é mais do que certo que mediante este quadro factual o Recorrente não irá voltar a delinquir, sendo esse risco nulo. LVIII. Por todas estas razões a pena concretamente aplicada revela-se desadequada, razão pela qual deverá ser substituída, por este Tribunal ad quem, por uma pena de multa, em obediência ao que impõem os artigos 70º e 72º do Código Penal. LIX. Por fim, a aplicação ao Recorrente de uma pena de prisão efetiva pela prática deste crime, com o contexto descrito, demonstra-se como, com o devido respeito, inconcebível, e quase inédito, ou seja, em que um indivíduo, sem antecedentes criminais, julgado por um crime de abuso sexual de crianças concreto, não continuado, nunca mais repetido alegadamente, com as circunstâncias descritas como as dos presentes autos (toque nos seis e no genital, com fuga imediata da menor, sem mais contacto com a mesma até hoje, decorridos que estão alegadamente praticamente três anos), um tribunal condenasse em pena de prisão efetiva, tanto mais quando o arguido está plenamente inserido na sociedade, sendo aliás considerado por vizinhos e outros cidadãos, como foi demonstrado em sede de audiência de julgamento. LX. Não é o que a prática e experiência nos demonstram que sucede, nem tão pouco no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa ou do País. LXI. Arguidos primários, em contextos semelhantes, e alguns até mais graves diga-se, não são condenados em penas de prisão efetiva. Em momento algum foi ponderada a possibilidade de ser dada uma oportunidade ao arguido que, sendo primário, a ser-lhe dada uma oportunidade, seria única e exclusivamente agora, pois só agora teria a possibilidade de conformar a sua postura futura, a assim entender de acordo com os princípios da sociedade. LXII. A aplicação de qualquer pena visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, sendo certo que em caso algum a pena poderá ultrapassar a medida da culpa, devendo o juiz na operação de determinação da medida da pena conduzir-se por duas ideias fundamentais: a culpa e a prevenção - quer geral quer especial (art.º 40º e 71º do Código Penal). Várias são as orientações que procuram fornecer critérios para o juiz proceder a esta operação, destacando-se, por um lado, a corrente que atribui a culpa o papel preponderante na determinação da medida concreta da pena (vide, entre outros, Eduardo Correia, Direito Criminal, Vol. I. p. 62 e ss. Cavaleiro Ferreira, Lições de Direito Penal, II, p. 103 e ss. Maia Gonçalves. Código Penal Anotado. nota ao art.º. 72°. Jorge de Figueiredo Dias. As Consequências Jurídicas do Crime. p. 224 e ss. Ac. da RC de 17.1.96. CJ, Torno I. p. 38, Ac. do STJ de 24.5.95. CJ, Torno II. p. 210) e, por outro lado, a orientação expendida por Figueiredo Dias (ob. citada, p. 227 a 231) que, em síntese, confere as finalidades preventivas o papel preponderante na determinação da mesma sendo as exigências de ressocialização do delinquente os fatores decisivos da medida concreta da pena a aplicar. LXIII. São os critérios definidos por esta segunda tese que aplicaríamos neste caso considerando designadamente o papel relevante que a prevenção especial de ressocialização assume no nosso ordenamento jurídico. Nos termos do art.º 71º do Código Penal, na determinação da pena o tribunal atenderá a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo, deponham a favor ou contra o agente, considerando, designadamente, as enunciadas do nº 2 do referido artigo. LXIV. Apesar dos potenciais aspetos que possam neste tipo de crime militar contra o arguido, neste caso concreto sempre militarão a favor do mesmo, o facto de não deter quaisquer averbamentos no seu Certificado de Registo Criminal e estar familiar e profissionalmente inserido. Sopesados os fatores enunciados, estamos em crer que, não considerados que sejam os argumentos expendidos supra pelo recorrente, de que não se prescinde, uma pena sempre inferior a 5 anos como a que foi aplicada, mais próxima do mínimo ou no limite de dois anos de prisão, seria a mais adequada. LXV. Constitui princípio fundamental do sistema punitivo do Código Penal o da preferência fundamentada pela aplicação das penas não privativas da liberdade. consideradas mais eficazes para promover a integração do delinquente na sociedade e dar resposta as necessidades de prevenção geral e especial. Em diversos preceitos se encontram afloramentos de tal princípio, designadamente, no instituto da suspensão da execução da pena de prisão, previsto no art.º 50º do Código Penal. LXVI. A suspensão da execução da pena constitui uma dessas medidas de conteúdo pedagógico e ressocializante que exige, para além da moldura concreta inferior a cinco anos de prisão, que o Tribunal formule um juízo favorável ao arguido no sentido de considerar provável que a simples censura da sua conduta e a ameaça da pena são suficientes para que ele não volte a cometer crimes e para satisfazer as exigências de prevenção. Para esse efeito deverão ser tidas em atenção as condições pessoais do arguido a sua personalidade e conduta anterior e posterior aos factos bem corno as circunstâncias em que estes foram praticados. LXVII. No caso vertente e sopesada a inserção familiar do arguido, a inexistência de averbamentos no seu Certificado de Registo Criminal julga-se adequada a suspensão de execução da pena de prisão aplicada sendo possível, caso se entenda necessária que a mesma deve ser acompanhada de um regime de prova nos termos do art.ºs 53° e 54º do Código Penal, com possível procura de apoio ou tratamento psicológico ou psiquiátrico com vista a consciencializar-se da gravidade deste tipo de atuações e dos motivos subjacentes à mesma. LXVIII. Sendo o arguido absolvido, impor-se-á a absolvição do Pedido de Indemnização Civil pelo qual foi condenado; LXIX. A manter-se a condenação, com alteração da pena, deverá o Pedido de Indemnização Civil ser reduzido na proporção e em termos equitativos, atenta a redução da matéria de facto provada e consequentemente por se entender excessivo o valor indemnizatório fixado para o efeito. Nestes termos e nos mais de direito que V. Exas doutamente suprirão, deverá ser concedido provimento integral ao presente recurso e, consequentemente, a) a sentença ser revogada, absolvendo-se o arguido do crime de abuso sexual de crianças pelo qual foi condenado, e consequentemente do respetivo pedido de indemnização civil, dando como não provados os factos c), d), e), t), w), y), z), aa) 1ª parte, ff) e gg) com as devidas consequências; Em alternativa, e não concedendo, b) Dê como provados os factos enunciados na alínea anterior e ainda assim, julgue a pena aplicada ao arguido desadequada e violadora do disposto no artigo 70º e 72º do Código Penal e do princípio da igualdade (artigo 13º da CRP), fixando-a no mínimo legal, de um ano de prisão, sendo a mesma passível de substituição por pena de multa nos termos do artigo 45º do Código Penal; c) Em alternativa ponderar a possível substituição da pena de prisão, se fixada até dois anos, por trabalho a favor da comunidade, que o arguido aceita, nos termos do artigo 58º do Código Penal; d) Em alternativa, e sendo reduzida a pena que foi aplicada, não concedendo, e por dever de patrocínio, sempre se requereria a suspensão da pena de prisão, na respetiva execução, nos termos do artigo 50º do Código Penal. Fazendo-se desta forma a costumada JUSTIÇA!!!” » O recurso foi admitido, nos termos do despacho proferido a 30-03-2022. » I.3 Respostas ao recurso Efetuada a legal notificação, quer a Digna Magistrada do Ministério Público, quer a demandante responderam ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela sua improcedência. Apenas a Digna Magistrada do Ministério Público apresentou conclusões, o que fez nos seguintes termos [transcrição]: Resposta do Ministério Público: “(…) CONCLUSÕES 1. Não se conformando com a sentença proferida pelo Tribunal a quo, que o condenou pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art.º 171º, nº 1, do CP, na pena de cinco (5) anos de prisão efectiva, veio o Arguido interpor o presente recurso, alegando, em síntese, erro de julgamento, e até erro notório na apreciação da prova produzida (cfr. art.º 410º, nº 2, al. c), do CPP), impugnando parte da matéria de facto dada como provada, a qual, entende, devia ter sido dada como não provada, pelo que se imporia a sua absolvição da prática do crime pelo qual vinha acusado e foi condenado, de acordo, pelo menos, com o princípio do in dubio pro reo, o qual entente que foi violado. Sem prescindir, considera a pena concretamente aplicada excessiva e desproporcional. 2. Analisando a prova produzida, (com especial enfoque para as declarações para memória futura da Ofendida menor, B, e os depoimentos das suas irmãs, G e H, que costumavam acompanhar a Ofendida nas idas (e estadias) em casa do Pai das três, D, que também prestou depoimento, tendo afirmado que autorizava a Ofendida a ir a casa do Arguido e sabe este lhe oferecia gomas e dinheiro), entendemos, tal como na sentença recorrida, que “torna-se claro que o Arguido, ao praticar com a Menor Ofendida os actos descritos, valendo-se da proximidade que, paulatina e astuciosamente procurou ir criando com a mesma, por ser vizinho e conhecido do pai desta, a quem oferecia garrafas de vinho, e aproveitando-se da confiança, ingenuidade e jovem idade da Menor, a qual contava apenas 10 anos de idade, à data dos factos, atentou de modo intolerável contra a determinação sexual da mesma, praticando actos sexuais de relevo com uma pessoa particularmente indefesa” (o negrito e o sublinhado são nossos – cfr. pág. 23 da sentença recorrida). 3. Desta maneira, concorda-se com o elenco dos factos considerados provados na sentença recorrida, bem como com a fundamentação de facto e de direito expendida pelo Tribunal a quo, uma vez que se procedeu a um exame crítico da prova, respeitando, quer o princípio da livre apreciação da prova, plasmado no art.º 127º do CPP, quer o princípio da fundamentação das decisões judiciais, previsto no art.º 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP). 4. De resto, verifica-se que os argumentos aduzidos pelo Tribunal a quo quanto à fundamentação de facto e de direito tiveram por base toda a prova testemunhal e documental e produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, não se verificando, igualmente, nenhum dos vícios previstos no nº 2 do art.º 410º do CPP, que são de conhecimento oficioso, sendo que o Arguido parece confundir os vícios previstos no art.º 410º, nº 2, do CPP, com a mera divergência com a convicção do Tribunal sobre a prova produzida em sede de julgamento e respectiva tomada de posição quanto aos factos, questões que se enquadram no âmbito do princípio da livre apreciação da prova, plasmado no art.º 127º do CPP. 5. Finalmente, no que se refere à medida da pena, seguindo os critérios resultantes da conjugação dos art.ºs 40º, 70º e 71º do CP ponderadas todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime em apreço, abonam ou desfavorecem o Arguido, o MP entende que a pena aplicada, tal como a sua forma de execução, é adequada e proporcional ao caso sub judicie, por se considerar, tal como referido na sentença recorrida, que “o grau de ilicitude é muito elevado, tendo em conta os efeitos inevitáveis e perturbadores produzidos pelo arguido, com a sua conduta, na Menor Ofendida, a qual, ainda hoje, denota sofrimento, constrangimento, e angústia, mormente quando tem de recordar os factos”, sendo que “o dolo do Arguido é directo e intenso, denotando aquela atitude contrária ou indiferente ao Direito, Arguido que não hesitou em abusar de uma menina de 10 anos de idade, aproveitando-se da sua ingenuidade e confiança, para dar livre curso aos seus instintos sexuais” (o negrito é nosso – cfr. pág. 27 e 28 da sentença recorrida). 6. Deste modo, consideramos que o Tribunal a quo deu a correcta preferência à aplicação de uma pena de prisão efectiva ao Arguido, “por se entender que a ameaça de prisão não alcança realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição que se fazem sentir no caso. Nem as exigências de prevenção. O Arguido não denotou qualquer sentido crítico, em relação à gravidade dos seus actos, à repugnância que os mesmos provocam, pois de uma Menor de 10 anos de idade se tratava, ou qualquer arrependimento pelos mesmos” (o negrito é nosso cfr. pág. 28 da sentença recorrida). Nestes termos, não deverá ser dado provimento ao presente recurso, devendo manter-se a decisão recorrida, fazendo-se, desta forma, JUSTIÇA. (…)” » I.4 Parecer do Ministério Público Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, nos termos do qual, aderindo à posição da Digna Magistrada do Ministério Público na primeira instância, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso interposto pelo arguido. » I.5. Resposta Tendo sido dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, veio a demandante responder ao referido parecer, no sentido da improcedência do recurso. » I.6. Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal. Cumpre, agora, apreciar e decidir: » II- FUNDAMENTAÇÃO II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso: Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ[1]], são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal[2]. Assim, face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso interposto nestes autos, as questões a apreciar e decidir são as seguintes: - Se a sentença recorrida padece do vício do erro notório na apreciação da prova; - Se foi violado o princípio in dubio pro reo; - Se a pena concretamente aplicada se afigura desajustada; - Se a indemnização em que o arguido foi condenado é excessiva. » II.2- Da decisão recorrida [transcrição dos segmentos relevantes para apreciar as questões objeto de recurso]: “2 - FUNDAMENTAÇÃO 2.1. - Matéria de facto provada a) A Menor B nasceu no dia … e é filha de D e de C. b) Os progenitores da Menor separaram-se em data não concretamente apurada, ficando a Menor a residir com a progenitora, C e as duas irmãs gémeas, H e G, visitando o progenitor na residência daquele, sita na Rua …, Lisboa, aos fins-de-semana, de 15 em 15 dias. c) O Arguido A é amigo do progenitor da Menor, e reside, também, na Rua …., em Lisboa, sendo, por isso, vizinhos e amigos, frequentando o Arguido a residência do progenitor da Menor. d) Em data que em concreto não foi possível apurar, mas que ocorreu no Verão do ano de 2019, quando a Menor se encontrava a passar o fim-de-semana na residência do progenitor, aí compareceu o Arguido, que a convidou para ir à sua residência, dizendo-lhe que iria conhecer a sua progenitora, tendo a Menor acedido, por ordem do progenitor. e) Na sequência, o Arguido encaminhou a Menor para a sua residência, e, no interior da mesma, apresentou-a à sua progenitora, entregando, depois, à Menor a quantia de €5,00 (cinco euros), que a Menor recebeu e guardou consigo. f) Noutras alturas, quando a Menor se encontrava na residência do progenitor e o Arguido aí comparecia, este oferecia gomas à Menor, que as aceitava. g) Noutro dia, que em concreto não foi possível apurar, mas que ocorreu em Setembro do ano de 2019, quando a Menor se encontrava a passar o fim-de-semana na residência do progenitor, aí compareceu o Arguido, que a convidou para ir à sua residência assistir a vídeos de 'slime', ao que a Menor acedeu. h) Já no interior da residência do Arguido, supra indicada, sentaram-se ambos em frente a um computador que se encontrava no escritório, e assistiram a vídeos de 'slime', pintando posteriormente, em conjunto, um quadro. i) Neste período de tempo, o Arguido perguntou à Menor se tinha namorado, ao que esta respondeu que não. j) Depois, o Arguido disse à Menor que lhe ia mostrar as divisões da residência, tendo ambos percorrido as divisões da mesma, e, quando chegaram ao último quarto, o Arguido perguntou à menor se lhe podia mexer no “pipi”, tendo a Menor acedido, com receio dos males que aquele lhe poderia fazer. k) Acto contínuo, o Arguido ordenou à Menor que levantasse a camisola e se despisse da cintura para baixo, o que aquela fez, levantando a camisola até à zona do pescoço e baixando as calças e cuecas que trajava até à zona dos joelhos. l) Após, com a Menor inerte à sua frente, o Arguido, com as mãos, acariciou-lhe a vagina e um dos seios. m) Por se sentir assustada e com medo dos males que o Arguido lhe pudesse causar, a Menor puxou, de imediato, as cuecas e calças para cima, e saiu a fugir do interior da residência do Arguido. n) O Arguido bem sabia a idade da Menor, não só pela sua fisionomia, mas também por se amigo do seu progenitor e conhecer a Menor. o) Sabia, igualmente, que a Menor não tinha capacidade para se auto determinar sexualmente, procurando, com as condutas supra descritas, satisfazer os seus instintos libidinosos, o que logrou. p) Para além disso, o Arguido tinha conhecimento de que os actos que praticou com a Menor perturbavam o seu bem-estar emocional, a formação e estruturação da sua personalidade, prejudicando o seu normal desenvolvimento físico e psicológico, o que logrou. q) O Arguido agiu, em tudo, de forma livre, voluntária e deliberada, bem sabendo ser a sua conduta proibida e penalmente punida. r) A Menor B, actualmente com 12 anos de idade, reside com a sua mãe e com duas irmãs, estando a progenitora C separada do progenitor das suas filhas. s) A Menor visitava o pai, na sua residência, de 15 em 15 dias, passando lá o fim-de-semana. t) O Arguido é vizinho do pai da Menor, sendo seu amigo e, também, visita de casa do progenitor. u) O Arguido tem 56 anos. v) Em virtude das visitas que a Menor fazia ao progenitor, o Arguido conheceu a criança nessas circunstâncias, tendo-lhe sido apresentado como "amigo do pai". w) Com consentimento do pai da Menor, no Verão de 2019, o Arguido convidou-a para ir à sua residência, dizendo-lhe que lhe queria apresentar a sua mãe, pessoa doente. x) A mãe do Arguido tem alzheimer. y) A criança anuiu (por ordem do progenitor) e foi à residência do Arguido, onde conheceu a sua mãe. z) Nesse dia, o Arguido deu à menor €5,00 (cinco euros). aa) Por diversas vezes, quando a criança se encontrava em casa do pai, o Arguido oferecia gomas à Menor, algo que a sua mãe até chegou a estranhar, tal não era a quantidade exagerada. bb) C chegou a avisar a Menor para não aceitar nada de ninguém. cc) Em Setembro de 2019, num dos fins-de-semana em que a Menor se encontrava em casa do pai, o Arguido convidou-a para ir até à sua residência ver vídeos "slime", ao que a Menor anuiu, uma vez que o Arguido era amigo e vizinho do seu pai, e, por esses motivos "pessoa de confiança". dd) No dia em que viram os referidos vídeos "slime", o Arguido e a Menor também pintaram um quadro. ee) Neste mesmo dia, o Arguido perguntou à Menor se tinha namorado, respondendo-lhe a criança, que não. ff) A mãe do Arguido (nas palavras da criança, uma "senhora muito velhinha"), encontrava-se na sala nesse dia. gg) O Arguido disse à Menor que precisava de alguém que cuidasse dele, manifestando assim a vontade em que fosse a Menor a dar-lhe a referida assistência. hh) O Arguido disse também à Menor que lhe queria mostrar todas as divisões da casa, bem como o interior do seu quarto, tendo ambos percorrido as referidas divisões. ii) Porém, quando chegaram ao último quarto, o Arguido perguntou à Menor se lhe podia mexer no “pipi". jj) A Menor, com receio (pois percebeu que a atitude era errada, que não era normal), mas sem perceber bem a situação com que estava a lidar (a Menor tinha 10 anos na altura dos factos), consentiu, com medo de que o Arguido lhe fizesse mal (se recusasse). kk) De imediato, o Arguido ordenou à Menor que levantasse a camisola e se despisse da cintura para baixo, levantando a camisola até à zona do pescoço, e baixando as calças e cuecas até aos joelhos. ll) Nestes moldes, com a Menor inerte à sua frente, o Arguido acariciou-lhe a vagina e um dos seios. mm) A criança apercebeu-se que toda esta situação era errada, e, sentindo-se muito incomodada, com muito medo, puxou a roupa para cima e começou a correr, fugindo da residência do Arguido. nn) A Menor não informou, de imediato, os pais. oo) A explicação da Menor para não ter contado imediatamente aos pais foi a de que: aconteceu só uma vez, não se voltou a aproximar dele, e teve medo que a mãe se zangasse. pp) Foi C quem descobriu os factos, após ouvir uma frase da Menor, tendo já estranhado o comportamento da mesma. qq) Na escola, a Menor chegou a pretender ter uma conversa com a diretora de turma, que suspeitou de que algo se passava, mas a criança acabou por se retrair a revelar qualquer tema, o que suscitou alguma preocupação. rr) Contudo, como a Menor Ofendida é irrequieta, sua mãe pensou que o comportamento da Menor fosse próprio da sua idade. ss) No dia 17.05.2020, a Menor, no decurso de uma conversa a quatro, com a sua mãe e com as suas duas irmãs, disse à mãe: "Tenho uma coisa grave para contar.", "Fui violada.". tt) C, assustada, tentou perceber a afirmação da filha, questionando-a. uu) Foi nesse momento que a Menor Ofendida contou a sua mãe, C, o que tinha acontecido. vv) C questionou a criança sobre o motivo que a levou a não contar o sucedido antes, e a Menor disse-lhe que teve medo de que a mãe se zangasse. ww) C contactou o pai da criança, e contou-lhe o trágico episódio, contudo, o progenitor apenas lhe disse "O que é que queres que eu faça? Eu não sou polícia. Nem acredito nisso.”. xx) A Menor, a dado momento, antes mesmo de revelar o que lhe acontecera, chegara a questionar um familiar (o progenitor): "O que é que é violar?”. yy) Relativamente ao Arguido, o pai da Menor referiu que "O A é um bom vizinho.", o qual lhe chegou a oferecer garrafas de vinho, e que jamais adoptaria tal comportamento. zz) A Menor ficou profundamente traumatizada com este episódio. aaa) O Arguido sabia a idade da Menor; aliás, a criança nem sequer é uma menina desenvolvida para a idade, tendo ainda traços muito acriançados. bbb) O Arguido sabia que a Menor não tinha capacidade para se autodeterminar sexualmente, sabendo ainda que os actos libidinosos que praticou, iriam afectar a criança de forma emocional, perturbando o seu bem-estar, a formação da sua personalidade, prejudicando ainda o seu desenvolvimento físico e psicológico, que a partir deste momento nunca mais nada seria igual. ccc) O Arguido sabia que o seu comportamento iria traumatizar, de forma irreparável, a menor. ddd) A Menor, ora Ofendida, não sabia sequer o que são relações sexuais, aliás, sendo qualquer assunto relacionado com sexo, tema que a Ofendida jamais abordou. eee) A Menor apenas sabe que não é normal e correcto tocar em certas zonas do corpo. fff) O Arguido ceifou grande parte da inocência da Menor, destruindo-lhe a infância, algo que não se recuperar, uma vez que só temos uma hipótese de ter uma infância feliz. ggg) Existem episódios que nunca mais se esquecem (em especial aos 10 anos de idade). hhh) A Menor tem pesadelos (ainda acorda a meio da noite aos gritos), não consegue dormir de luz apagada, e perdeu, por completo, a confiança nos homens (a criança não consegue ficar sozinha com elementos do sexo masculino). iii) Esta criança, quando crescer, dificilmente, terá um relacionamento amoroso saudável no futuro, após o trauma de que foi vítima (é o que, infelizmente, acontece na esmagadora maioria deste tipo de abusos). jjj) Desde que esta situação aconteceu, a Menor não vai a casa do pai porque a mãe, por motivos óbvios, não consente e tampouco a Menor revela interesse em ir; não obstante, a Menor sente, naturalmente, a falta do pai. kkk) O quotidiano desta criança mudou drasticamente, devido a um comportamento altamente censurável e monstruoso. lll) A criança frequentava uma escola do ensino básico, da área da sua residência, contudo, devido a este inferno vivido nos últimos meses, teve de mudar de residência, pois a vizinhança não parava de falar no sucedido, fazendo a criança reviver diariamente a situação, e, a mãe achou que a Menor precisava de construir novas memórias, mais felizes. mmm) Isto sucedeu após o pai da Menor relatar aos pais das outras crianças (alunos da mesma escola que a Ofendida - …), o sucedido, e, consequentemente, os pais contaram aos filhos. nnn) Na escola, as outras crianças deixaram de brincar com a menor, gozando-a, humilhando-a, chamando-lhe nomes. ooo) A criança chegou, por várias vezes, a casa a chorar, e dizia à mãe "Não quero ir para a escola.". ppp) A Menor queixava-se à mãe: "Os meninos gozam comigo e empurram-me. Não me deixam brincar, e chamam-me nomes. Riem-se muito de mim"; a Menor foi, em virtude desta situação, vítima de bullying. qqq) Entretanto, a mãe da Menor mudou a criança de escola; a mudança de residência ocorrera no dia 1 de Abril de 2021. rrr) Actualmente, a Menor nega-se a praticar qualquer actividade física extracurricular (diz que não se quer relacionar com outras pessoas), passou a ser extremamente insegura, tem vários complexos com o seu corpo, continua com pesadelos e está cada vez mais ansiosa. sss) Quando a Menor teve de ir à Polícia Judiciária relatar os factos, referia-se sempre aos mesmos como "aquilo". ttt) A Menor recusa-se a conhecer pessoas novas e a relacionar-se com outras crianças. uuu) O Arguido é Economista, auferindo cerca de 1.200€ mensais; trabalha pro bono em Instituições sociais; não tem filhos; vive em casa de sua mãe. vvv) O Arguido não tem antecedentes criminais. * 2.2. - Matéria de facto não provada Com interesse para a decisão, nenhuma. * 2.3. – Motivação (…) O Tribunal formou a sua convicção com base nas declarações prestadas para memória futura da Menor Ofendida B, ouvidas em audiência de julgamento. Não obstante a sua jovem idade, mas exprimindo-se claramente e de uma forma singela e genuína, a Menor recordou os acontecimentos, não deixando ao Tribunal qualquer dúvida a respeito da prática, pelo Arguido, dos factos descritos. Das suas declarações resultou o quanto ficou transtornada e marcada com o sucedido, o que obrigou, e obrigará no futuro, ao seu acompanhamento psicológico. A sua descrição dos factos, não só a ouvida nestas declarações para memória futura, mas também a que verbalizou junto de sua mãe e de suas irmãs são coerentes, e mereceu todo o crédito ao Tribunal, afigurando-se que foram descritos pela Menor Ofendida tal como ocorreram, com a linguagem simples e límpida de uma criança sem astúcia, que se mostra profundamente marcada pela agressão sexual de que foi vítima. Atendeu o Tribunal ao depoimento de G, …, irmã da Menor Ofendida. A depoente recordou que, num dia de Verão, em que se encontravam a almoçar em casa do pai, a Menor perguntou o que era violar, tendo, depois, dito “O A violou-me.”. Mais afirmou a depoente que, algum tempo mais tarde, estavam com a mãe, e a Menor, a determinado momento, voltou a dizer que o A (ora Arguido) a tinha violado; que ele lhe tinha tocado no “pipi” e nas mamas, depois de, antes, ter estado num quarto do Arguido a ver vídeos de slime. Esclareceu a depoente que a Menor era, então, muito inocente, e, na sequência do que aconteceu, foi vítima de bullying, na Escola. Recordou a depoente que a Menor, que antes era muito enérgica, ficou com complexos. Mais disse a depoente que as três irmãs iam juntas, a casa do pai, o que era normal; mas, a Menor nunca gostara muito de ir a casa do pai, sem as irmãs. E, já nessa altura, a depoente não apreciava que a Menor fosse a casa do Arguido, e que este lhe oferecesse gomas e dinheiro. Sendo que a Menor não pedia nada, não sabendo a depoente se outros vizinhos lhe ofereciam alguma coisa. A depoente recordou que, em Agosto de 2019 se ausentou para …, tendo regressado em 31 de Janeiro de 2020. Por fim, esclareceu a depoente que a própria e a sua irmã gémea nunca entraram em casa do Arguido. A testemunha descreveu os factos de que tomou conhecimento, com clareza, bem como as repercussões que os mesmos tiveram no equilíbrio emocional, nas reacções, e na personalidade da Menor Ofendida, num depoimento que se afigurou objectivo e isento, não obstante ser irmã da Menor. Mereceu todo o crédito ao Tribunal. Atendeu o Tribunal ao depoimento de H, …, irmã da Menor Ofendida e gémea da testemunha anterior. A depoente recordou que, num determinado dia, em que se encontravam a almoçar em casa do pai, a Menor perguntou o que era violar; mas, mostrando-se receosa e sem querer aprofundar o assunto. Mais afirmou a depoente que, algum tempo mais tarde, não muito distante, estavam em casa com a mãe, e a Menor, a determinado momento, mostrando-se, de novo, muito receosa, voltou a abordar o mesmo assunto da violação, e disse que o A (ora Arguido) lhe tinha tocado. Era do conhecimento da depoente que o Arguido dava doces à Menor. Esclareceu a depoente que a Menor, na sequência do que aconteceu, ficou transtornada, incomodada, chorava, e ficou insegura, em relação ao seu próprio corpo. A testemunha descreveu os factos de que tomou conhecimento, com clareza, bem como as repercussões que os mesmos tiveram no equilíbrio emocional, nas reacções, e na personalidade da Menor Ofendida, num depoimento que se afigurou objectivo e isento, não obstante ser irmã da Menor. Mereceu todo o crédito ao Tribunal. Atendeu o Tribunal ao depoimento de D, …, pai da Menor. O depoente esclareceu que conhece o Arguido desde a infância, são vizinhos, e trata-o por tu. Afirmou que autorizava a sua filha Menor a ir a casa do Arguido, e sabe que este lhe oferecia gomas e dinheiro; mas não sabe como a Menor conheceu o Arguido (!). É do seu conhecimento que o Arguido fazia pinturas com a Menor, e estava a ensiná-la a pintar. Após, num certo dia, a Menor ter estado em casa do Arguido, este, depois, foi a casa do depoente, oferecer-lhe uma garrafa de vinho; mas, não achou estranho. Na sequência, quando a mãe da Menor foi a sua casa dizer-lhe que a filha tinha sido violada, o depoente respondeu-lhe que não era Polícia. As filhas mais velhas … só iam a casa do depoente quando lhes apetecia. Mas, numa ocasião, estando todas as suas filhas presentes, a Menor perguntou-lhe o que era violação. O depoente afirmou que, não obstante esta pergunta formulada pela Menor, nunca mais falou com a mesma sobre este assunto; assim como não falou com o Arguido (!). O Tribunal reconhece a sua própria dificuldade em qualificar o depoimento do pai da Menor, o qual se afigurou absolutamente indiferente ao que possa ter acontecido a sua filha, uma criança de 10 anos de idade, à data dos factos. A testemunha prestou um depoimento absolutamente tributário da proximidade e amizade que tem com o Arguido, o qual parece estimar mais do que a sua própria filha, e o que deixou ao Tribunal as maiores dúvidas a respeito da sua credibilidade, mas uma certeza a respeito da sua questionável personalidade. Atendeu o Tribunal às declarações da mãe da Menor Ofendida e Demandante C, …, a qual recordou que, no ano de 2019, as suas três filhas faziam visitas, de 15 em 15 dias, ao pai, ao fim-de-semana; presentemente, tal já não acontece. A Menor não gostava de ir sozinha para casa do pai, mas apenas acompanhada pelas irmãs. Também recordou a depoente o Arguido era vizinho do pai das suas filhas, e que, já antes, o mesmo dava gomas e dinheiro à Menor, o que a declarante achava estranho. E sendo que a Menor não tinha por hábito pedir gomas e dinheiro aos vizinhos. A Menor gostava muito de slimes, e o pai da mesma deixava-a ir para casa do Arguido, que era simpático para ela, e que também oferecia garrafas de vinho ao pai (que tinha um problema de alcoolismo). Em Maio de 2020, a declarante encontrava-se com as suas filhas em casa, em confinamento. A determinado momento, a Menor disse que tinha uma coisa muito grave para lhe contar, continuando: “O A violou-me.”, esclarecendo que tal ocorrera no anterior mês de Setembro, no Verão. Fora a casa do Arguido, onde estiveram a ver vídeos de slime, e, depois, o Arguido apalpou-a no “pipi” e nas mamas. Percebeu a declarante que a Menor teve medo de lhe contar mais cedo o que acontecera, porque achou que a mãe iria zangar-se com ela. Também tomou conhecimento de que a Menor já abordara, antes, o pai e as irmãs, perguntando sobre o que era violar. Na sequência do relato da Menor, a declarante foi dar conhecimento ao pai da mesma, do que se passara; mas, este reagiu, perguntando, nomeadamente:”O que queres que eu faça? Não sou Polícia?”. Esclareceu a declarante que a Menor era uma menina de 10 anos, muito inocente, e que nunca foi mentirosa. Na sequência destes factos, estava em pânico, e passou a ter vergonha de tudo, tendo necessitado de ser assistida psicologicamente. Quando se encontrava na Escola, telefonava para casa, a chorar, porque os colegas souberam do que acontecera, e era vítima de bullying; pelo que a declarante a mudou de Escola. Mas ficou muito ansiosa, passou a dormir mal, e fica em pânico, enojada com a figura masculina. A Demandante descreveu os factos de que tomou conhecimento, através da sua filha B, com toda a clareza, bem como as repercussões que os mesmos tiveram no equilíbrio emocional, nas reacções, e na personalidade da Menor Ofendida, a assistência médica da qual a mesma careceu e carecerá ainda no futuro, em declarações que se afiguraram objectivas e isentas, não obstante ser mãe da Menor, tendo merecido todo o crédito ao Tribunal. No que às testemunhas de Defesa diz respeito: Atendeu o Tribunal ao depoimento de E, …, vizinho e amigo do Arguido, uma vez que reside no … do prédio onde o Arguido mora. Frequentam a casa um do outro; o depoente considera o Arguido íntegro e amigo do seu amigo. O depoente afirmou que o Arguido lhe contou o que lhe era imputado, mas o depoente não acreditou. Só conhece a Menor de vista, mas nunca a viu entrar no prédio deles. Sabe que o pai da mesma mora na parte de trás. Diz saber que a mãe do Arguido foi para um Lar em 2018 (o que não obsta a que a Senhora tenha, ocasionalmente e desde então, voltado à sua casa). E que a residência do Arguido tem três quartos, e nenhum escritório (o que é surpreendente, pois, a um aposento de uma casa, facilmente se muda o uso a que se destina, bastando, p. ex., substituir uma secretária por uma cama.). Mais afirmou que voltou a ver a Menor e as irmãs a visitar o pai (não obstante a casa deste ser na parte de trás). A testemunha prestou um depoimento aparentemente tributário da proximidade e amizade que tem com o Arguido, o que deixou ao Tribunal dúvidas a respeito da sua credibilidade. Atendeu o Tribunal ao depoimento de I, …, a qual conhece o Arguido, uma vez que esta colabora na obra social de uma Congregação que trabalha com prostitutas. A depoente afirmou que conhece o Arguido há quatro anos, desde que veio para Lisboa. Esclareceu que o mesmo trabalha na parte da assessoria económica daquela Instituição, nomeadamente no relacionamento com o Estado. A depoente considera o Arguido uma pessoa correcta, sensível, responsável, com iniciativa, e agradável no trato. A testemunha demonstrou conhecimento relativamente ao modo-de-ser habitual do Arguido, naturalmente no enquadramento da Instituição em que a testemunha trabalha e o Arguido colabora. Afigurou-se objectiva e isenta. Atendeu o Tribunal ao depoimento de J, …, amigo e vizinho do Arguido, há cerca de quarenta anos. Recordou o depoente que já conhecia os pais do Arguido. Este ausentou-se do país, durante algum tempo, e, depois de ter regressado, organizaram-se para tratar de assuntos do Bairro; pelo que o depoente ia a casa dos pais do Arguido. Esclareceu que nada presenciou, mas, no Bairro, ouviu falar do assunto. Conhece a Menor; porém, ultimamente, não a vê. Sabe que a mãe da Menor explorava, ali, uma Colectividade, mas pensa que o seu contrato terminou. O Arguido afigura-se-lhe ser uma pessoa integrada na sociedade, e não lhe parece que fosse capaz daquilo que lhe é imputado. A testemunha demonstrou conhecimento relativamente ao modo-de-ser habitual do Arguido, naturalmente no enquadramento da colaboração que desenvolvem há anos, no interesse do Bairro. Afigurou-se que prestou depoimento de forma objectiva e isenta. Atendeu o Tribunal ao depoimento de F, …, vizinha do Arguido há cerca de 22 anos, uma vez que reside no … do prédio onde o Arguido mora. A depoente afirmou que se dá bem com o Arguido. Recordou que a Menor vinha, com as irmãs, a casa do pai; mas nunca a viu a bater à janela dos vizinhos. Disse a depoente que a mãe do Arguido esteve, durante algum tempo, num Centro de Dia, e, em 2018, foi para um Lar. A depoente ouviu dizer que o Arguido tinha abusado sexualmente da menor; e, num certo dia, ouviu uma grande gritaria no prédio, tendo-a a mãe da Menor avisado de que a depoente tinha uma filha. A depoente considera o Arguido uma pessoa boa, exemplar, e um bom vizinho. A testemunha prestou um depoimento aparentemente tributário da proximidade e longa vizinhança que tem com o Arguido, o que deixou ao Tribunal dúvidas a respeito da sua credibilidade. Atendeu o Tribunal às declarações do Arguido A quanto aos factos, cuja prática negou, num discurso progressivamente ansioso e prolixo, de “fuga para a frente”, refugiando-se em assuntos sem relevância para o apuramento dos mesmos, p. ex., a questão dos três aposentos de sua casa, e a negação da existência de um escritório (o que é surpreendente, pois, a um aposento de uma casa, facilmente se muda o uso a que se destina, bastando, p. ex., substituir uma secretária por uma cama.), mas procurando, desse modo, desviar a atenção do Tribunal do essencial e da verdade. O Arguido não sabe o que são vídeos de slime, nunca encaminhou a Menor para sua casa, nem nunca lhe tocou. O esgrimido argumento de que a sua mãe fora para um Lar, em Julho de 2018, não é apto a provar que a senhora nunca mais regressou à sua casa. Afirmou o Arguido que a Menor, um dia, lhe bateu à janela, pedindo-lhe doces e dinheiro. Neste concreto aspecto, até o pai da Menor esclareceu que o R/C onde vive o Arguido tem janelas altas; e sendo que da demais prova produzida o que resultou foi que a Menor não tinha por hábito pedir nada aos vizinhos. A estratégia do Arguido procurou, como é comum nestes casos de crimes sexuais, fazer passar a Vítima por mentirosa, invertendo a realidade. Porém, a versão do Arguido não mereceu crédito ao Tribunal, pois é infirmada pela demais prova testemunhal e por declarações produzida, e, mormente, porquanto as palavras da Menor Ofendida foram absolutamente claras, e não nos suscitam qualquer dúvida de que os factos ocorreram tal como a Acusação os descreveu. Atendeu o Tribunal às declarações do Arguido, relativas às respectivas condições pessoais, familiares e profissionais. Atendeu o Tribunal a todos os documentos juntos aos autos, inclusive na fase de julgamento, mormente: - Auto de denúncia, de fls. 24 a 26; - assento de nascimento, de fls. 96 e 97; declarações prestadas para memória futura, de fls. 115 a 117. Antecedentes criminais: C.R.C. de fls. 203. * 2.4. - Aspecto jurídico da causa (…) Ao Arguido é imputada a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art.º 171º, nº1, do C. Penal. Dispõe o dispositivo legal citado: “1 – Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos.”. Como se afirma no Acórdão nº 411/18.5JAPDL.L1-3, da Relação de Lisboa, relatado pelo Ex.mo Desembargador Alfredo Costa (disponível nas Bases Jurídicas do IGFEJ): “São de salientar as prementes necessidades de prevenção geral no que concerne aos crimes de abuso sexual de incapaz, de abuso sexual de criança e de violência doméstica, atendendo à necessidade de defesa da sociedade perante os ilícitos em causa e à repugnância social por este tipo de ilícitos, com proeminente preocupação social exacerbada pela mediatização de situações similares, dentro e fora do meio familiar. O arguido não confessou os factos não revelando qualquer capacidade de autocensura, nem revelou qualquer arrependimento, o que revela a não interiorização da gravidade e censurabilidade das suas condutas; Na determinação da pena neste tipo de crimes há que ter em conta o inequívoco sentimento de repulsa da comunidade perante os abusos sexuais praticados dentro do ambiente familiar e/ou equiparado, e, também, da forte incidência da criminalidade de índole sexual com crianças e incapazes na sociedade portuguesa actual e do alarme social que lhe está hoje associado. Tendo em consideração que a pena fixada é de 6 anos de prisão, face à falta do requisito formal para a sua eventual aplicação (pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos – cfr. artigo 50º, nº 1 do Código Penal) fica prejudicada a sua apreciação. O Segredo, o silêncio e a consequente ocultação dos factos ocorridos e tipificados como abuso sexual de crianças são considerados os maiores impedimentos na intervenção das entidades competentes para proteção do menor. Sem conhecimento do crime não é possível auxiliar a vítima. O motivo que leva o menor a ocultar a realidade do abuso ou “síndrome do segredo”, incidindo em casos, na sua maioria, intrafamiliares assenta no pressuposto da ligação afetiva entre o abusador e a vítima, mormente a sua influência na criança.” Mais se pode ler no referido Acórdão: “Na verdade, o Segredo, o silêncio e a consequente ocultação dos factos ocorridos e tipificados como abuso sexual de crianças são considerados os maiores impedimentos na intervenção das entidades competentes para proteção do menor. Sem conhecimento do crime não é possível auxiliar a vítima. Neste contexto, o segredo releva como seguimento do abuso, tendo TILMAM FURNISS estudado o motivo que leva o menor a ocultar a realidade do abuso e tendo intitulado como “síndrome do segredo”, incidindo em casos, na sua maioria, intrafamiliares. Esta teoria é desenvolvida assentando no pressuposto da ligação afetiva entre o abusador e a vítima, mormente a sua influência na criança. O silêncio, após uma situação de abuso sexual, é devido ao medo sentido pela criança e incutido pelo abusador, na desacreditação por parte dos outros adultos ou no seu sentimento de culpa pelo abuso. O silêncio manifesta fatores externos e internos, sendo os primeiros ligados a ameaças por parte do agressor, castigos ou receio destes, bem como a tentativa frustrada de denunciar. Os fatores internos são respeitantes à própria vítima, encontrando-se manipulada e dominada pelo agressor (Cláudia Sofia Fortunato Saraiva, in A Tutela dos Interesses da Vítima Menor Nos Crimes de Abuso Sexual, pág. 75, disponível em http://repositorio.ual.pt/bitstream/11144/1180/1/Disserta%C3%A7%C3%A3o.pdf O segredo e o esforço do menor por manter o segredo (…) é, pois, próprio do crime de natureza sexual em que a vítima é uma criança e o agressor um familiar ou alguém com uma forte influência na vítima.” Citando, igualmente, o Acórdão nº 276/15.9PASCR.L1-5, da Relação de Lisboa, relatado pelo Ex.mo Desembargador João Carrola (disponível nas Bases Jurídicas do IGFEJ): “(…) – A pedofilia é um comportamento compulsivo, determinando esta circunstância a existência de um perigo concreto de continuação da actividade criminosa. – Tendo-se apurado que o arguido tinha todas as condições para adoptar uma conduta normativa e que nem mesmo assim deixou de cometer os crimes em causa, praticando uma pluralidade de graves actos de abuso, não tendo denotado, até hoje, qualquer juízo crítico quanto ao seu comportamento e atendendo à natureza e atendendo à gravidade dos crimes que cometeu, ao modo, circunstâncias em que ocorreram, à idade da vítima ao tempo dos factos, à culpa que demonstrou e às exigências de prevenção geral, está correcta a conclusão de que não seria possível formular um juízo de prognose favorável no sentido de suspender a execução da pena que lhe foi aplicada – Com base em juízos de equidade, mostra-se adequada a fixação da quantia de 15.000,00€ a título de indemnização compensatória dos vários danos não patrimoniais sofridos pelo menor, a saber os seguintes factos: que o menor passou a andar mais triste, introvertido, com dificuldade em dormir e apresentando diminuição no seu aproveitamento escolar, tendo tido necessidade de acompanhamento psicológico e tendo recuperado o seu aproveitamento escolar mas sendo agora muito mais triste e tendo problemas de sono, procurando frequentes vezes a cama dos pais e pedindo-lhes para aí dormir, comportamentos que não sucediam antes dos factos ajuizados e que, à medida que vai crescendo, vai tomando consciência desses factos e da violência psicológica por que o arguido o fez passar, o que o vai marcar para sempre, condicionando de forma negativa o desenvolvimento da sua personalidade e autodeterminação na sua esfera sexual. Mais se pode ler no referido Acórdão: “A pena encontrada para o arguido obriga a que se equacione a possibilidade de uma pena de substituição, em face do que dispõe o art.º 50º do Cód. Penal. Com efeito, nos termos do n.º 1 dessa norma “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. Este preceito consagra um poder-dever, ou seja um poder vinculado do julgador, que terá que decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização daquelas finalidades, sempre que se verifiquem os necessários pressupostos (Maia Gonçalves, Código Penal Anotado, 14ª edição, pág. 191). Sempre que esses pressupostos se verifiquem, o juiz tem o dever de suspender a execução da pena: esta é uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico. A suspensão da execução da pena deverá ter na sua base uma prognose social favorável ao arguido; a esperança de que sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime. Contudo, antes de se partir para uma avaliação desse juízo de prognose – que se prende essencialmente com a personalidade e o modo de vida evidenciados pelo agente, há que verificar se, no caso concreto, a suspensão da pena salvaguarda as demais e não menos importantes finalidades das penas, quais sejam as de reafirmar a necessidade da existência da norma punitiva e as de prevenção geral. Mais ainda, dir-se-á que a medida em causa, de conteúdo reeducativo e pedagógico e de forte exigência no plano individual, verificado que seja o pressuposto formal da sua aplicação, impõe que o Tribunal, no momento da prolação da decisão, que não o da prática da conduta ilícita, tendo em conta a personalidade do agente e as circunstâncias do facto, conclua que a simples censura dos factos e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Será em função de considerações exclusivamente preventivas – prevenção geral e especial – que o julgador tem de se orientar na opção pelo instituto da suspensão da execução da pena de prisão. Ou seja, não estão, aqui, em causa “quaisquer considerações relativas à culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção” (cfr. Figueiredo Dias, in “As Consequências Jurídicas do Crime”, § 520). Desde logo, considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, pois “só por estas exigências se limita mas por elas se limita sempre o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto ora em análise” (cfr. Figueiredo Dias, ibidem § 521 e 523). Por outro lado, com a socialização do arguido em liberdade, que entronca num critério de exigências de prevenção especial, logra-se alcançar a finalidade reeducativa e pedagógica, pela ameaça da pena. É, portanto, a prevenção especial que perante um prognóstico favorável nos termos do art.º 50º, nº l do Código Penal, determina a socialização em liberdade do condenado por ser adequada e suficiente às finalidades da punição. A formulação de um juízo de prognose assenta, obviamente, no pressuposto de que, por um lado, o que está em causa não é qualquer «certeza», mas, tão-só, a «esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser lograda» e de que, por outro, «o tribunal deve encontrar-se disposto a correr um certo risco - digamos: fundado e calculado - sobre a manutenção do agente em liberdade» (cfr. Figueiredo Dias, ibidem). A jurisprudência tem assim vindo a acentuar, que a suspensão da pena é uma medida penal de conteúdo pedagógico e reeducativo que pressupõe uma relação de confiança entre o tribunal e o arguido, estando na sua base um juízo de prognose social favorável ao condenado (cfr. o Ac. do STJ de 09/01/2002 e de 18/10/2007, disponíveis em www.dgsi.pt). Tal juízo deverá assentar num risco de prudência entre a reinserção e a protecção dos bens jurídicos violados, reflectindo-se sobre a personalidade do agente, as suas condições de vida, a sua conduta “ante et post crimen” e sobre todo o circunstancialismo envolvente da infracção. Para o efeito, será de atender a que a pena de prisão suspensa, sujeita ou não a certas condições ou obrigações, é a reacção penal por excelência que exprime um juízo de desvalor ético-social e que não só antevê, como propicia ao condenado, a sua reintegração na sociedade, que é um dos vectores dos fins das penas (função de prevenção especial de reinserção ou positiva). Porém, outros dos seus vectores é a protecção dos bens jurídicos violados e, naturalmente, a protecção da própria vítima e da sociedade em relação aos agentes do crime, de modo que, responsabilizando suficientemente estes últimos, se possa esperar que não venham a adoptar novas condutas desviantes (função de prevenção especial defensiva ou negativa). Na protecção dos bens jurídicos, será igualmente de destacar que a reacção penal a aplicar deve, tanto quanto possível, neutralizar o efeito do delito, passando este a surgir, sem sombra de dúvidas, como um exemplo negativo para a comunidade e contribuindo, ao mesmo tempo, para fortalecer a sua consciência jurídica (função de prevenção geral). Pretende-se, assim, dar satisfação ao sentimento de justiça do mundo circundante que rodeia o arguido, através do mínimo de prevenção geral de defesa da ordem jurídica (cfr. o Ac. do STJ de 26/09/2007, acessível no mesmo sítio). Daí que, muitas vezes, e sobrepondo-se à ressocialização, seja necessária a execução de uma pena de prisão para defesa do ordenamento jurídico, designadamente quando o comportamento desviante for revelador de uma atitude generalizada e consequente de não se tomar a sério o desvalor de certas condutas relevantemente ofensivas da vida comunitária, de acordo com os princípios constitucionais relevantes de um Estado de Direito Democrático [DIAS, Jorge de Figueiredo, “Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime” (2005), p. 344.]. Por outro lado, e muito embora o regime de suspensão da pena de prisão não seja graduado e condicionado materialmente em função do respectivo número de anos, não poderemos deixar de atender que o alargamento de 3 para 5 anos de prisão do pressuposto formal que possibilita essa suspensão, faz realçar, nesse excedente, a necessidade de uma ponderação mais criteriosa dos pressupostos materiais que regulam a sua aplicação, mormente quanto às circunstâncias em que ocorreram a conduta criminosa e a protecção adequada dos bens jurídicos violados (neste sentido, o Ac. do STJ de 03/04/2008, também disponível em www.dgsi.pt). E isto porque a suspensão generalizada e tida como “normal” ou “corrente” das penas de prisão de amplitude elevada, prejudica grandemente, por motivos óbvios de afrouxamento da reacção penal executiva, a eficácia preventiva do direito penal (no sentido do que vem de se expor, veja-se o Ac. do TRP de 11/02/2015, igualmente acessível em www.dgsi.pt, que acompanhámos de muito perto). Isto dito, vertendo agora ao caso sujeito, razões de prevenção geral constituem um sério obstáculo à suspensão da pena aplicada ao arguido. Como já antes se deixou dito, estamos perante crimes com forte repercussão negativa na sociedade, que espera do sistema judiciário uma resposta firme, peremptória e severa no combate ao flagelo que constitui, além de causador de um grande alarme e reprovação social. Por outro lado, agora no que toca à prevenção especial, estamos perante uma situação de pedofilia, por parte do arguido, pedofilia que tem uma natureza predominante de comportamento compulsivo, o que leva a recear que, se em liberdade, o arguido prossiga na sua actividade criminosa. Como de novo se escreveu no citado Acórdão do TRP de 11/02/2015, «Segundo o "Dicionário de Sexologia", Hugo G. Beigel, in Publicações D. Quixote, a pedofilia não é uma doença, mas antes, uma "... Anomalia sexual na qual o objecto preferido é uma criança. Esta perversão baseia-se, na maioria das vezes, em sentimentos de inadequação sexual, desejos incestuosos transferidos ou em fixações numa experiência sexual dos primeiros anos de vida." Há pedófilos de todas as condições sociais. Os mais perigosos são, certamente, aqueles em quem a criança/jovem confia por natureza ou admira - um professor, um médico, um artista conhecido, um familiar, “máxime” um pai (...). Por outro lado, e do ponto de vista moral, o pedófilo não é um doente mental isento de responsabilidades, nem um delinquente à margem das leis da vida social e familiar (podendo até ser um bom profissional e um bom pai de família), mas um homem ou uma mulher, diferentes na maneira de viverem a sexualidade, condicionados na liberdade pela estrutura da sua personalidade, ainda que responsáveis pelo mal que introduzem no mundo, quando actuam pedofilicamente. A luta contra a violência sexual com crianças passa, necessariamente, por dois aspectos: o lugar da criança na sociedade e a atitude dos adultos em relação às crianças, mas que convergem para o mesmo foco, qual seja, o direito da criança e sua violação - "A Pedofilia" - Gelson Francisco Alves da Costa, Cadernos jurídicos. A pedofilia é um comportamento compulsivo, determinando esta circunstância até a existência de um perigo concreto de continuação da actividade criminosa.» Ainda no que toca a razões de prevenção especial, é certo que o arguido não tem antecedentes criminais, revelando um percurso normativo, e encontra-se inserido social e familiarmente. No entanto, estas circunstâncias não o impediram de cometer os crimes em causa nos autos. Ademais, como é consabido, esta é uma característica comum às situações de pedofilia que acabam por chegar aos tribunais: os pedófilos são habitualmente pessoas integradas e sem história criminal, o que os torna potencialmente mais perigosos perante os outros, que erradamente neles confiam. Tal integração e ausência de mácula criminal fazem com que, na realidade, mais facilmente consigam atingir os seus objectivos sem serem detectados, pois são à partida pessoas confiáveis e, quando o são, valem-se precisamente desse estatuto. Reitera-se, o arguido tinha todas as condições para adoptar uma conduta normativa e nem mesmo assim deixou de cometer os crimes em causa, praticando uma pluralidade de graves actos de abuso. Por outro lado, recorde-se, o arguido não denotou até hoje qualquer juízo crítico ou de auto-censura quanto ao seu comportamento. Assim, perante todo o circunstancialismo referido, respeitante à personalidade do arguido, que manifestou total ausência de sentido crítico; à natureza e à gravidade dos crimes que cometeu; ao modo, circunstâncias em que ocorreram; à idade da vítima ao tempo dos factos; à culpa que demonstrou, atendendo às exigências de prevenção geral, entendemos não ser possível formular um juízo de prognose favorável no sentido de suspender a execução da pena que lhe foi aplicada. A censura do facto praticado e a ameaça da prisão não são suficientes para advertir o arguido contra a prática de novos crimes e para satisfazer as necessidades de prevenção. Como assim, será efectiva a pena de prisão em que foi condenado.” Neste caso, torna-se claro que o Arguido, ao praticar com a Menor Ofendida os actos descritos, valendo-se da proximidade que, paulatina e astuciosamente procurou ir criando com a mesma, por ser vizinho e conhecido do pai desta, a quem oferecia garrafas de vinho, e aproveitando-se da confiança, ingenuidade e jovem idade da Menor, a qual contava apenas 10 anos de idade, à data dos factos, atentou de modo intolerável contra a determinação sexual da mesma, praticando actos sexuais de relevo com uma pessoa particularmente indefesa. O Arguido diligenciou por tentar ganhar, gradualmente, a confiança, admiração e simpatia desta criança, ao dar-lhe atenção, oferecer gomas, brincar, etc.. Como certeiramente se encontra formulado no pedido de indemnização cível, “(…), este é o comportamento típico de um "predador": o oferecer doces, brincar, conquistar confiança e captar a atenção. Uma criança é, naturalmente, pura e ingénua, não tem a mínima percepção da maldade que um adulto poderá ter, muito menos um adulto "de confiança", amigo e vizinho do pai, alguém a quem o pai confia a sua guarda (por diversas ocasiões). Aliás, a inocência de uma criança não lhe permite sequer equacionar desfechos macabros.” O Arguido estava absolutamente ciente da reprovabilidade da sua conduta, mas não hesitou em, para satisfazer a sua líbido sexual, atrair a Menor Ofendida para uma situação que teve, tem e terá repercussões ao longo de toda a sua vida, e por muito que a mesma seja psicologicamente acompanhada. O Arguido integrou, com o seu comportamento, a previsão do normativo sobredito, sabendo este que tal era punível por lei, mas querendo deliberadamente assumir esse comportamento. Segundo as regras da experiência e fazendo apelo ao critério do homem comum, o Arguido não podia ignorar que assim impunha a uma menor de 14 anos o suportar de um acto sexual de relevo, violentando a vontade desta, e constrangendo-a à prática de actos sexuais não desejados, nem consentidos pela Menor. “A doutrina maioritária entende que uma criança com menos de 14 anos ainda não tem a sua personalidade totalmente desenvolvida, encontrando-se ainda em formação e estruturação, pelo que a sua possível concordância a práticas sexuais (que no caso em apreço não existiu) não deve ser valorada por falta de capacidade e discernimento para entender as consequências de tais actos. O consentimento (ou falta dele), da menor, no caso, seria juridicamente irrelevante: a conduta do Arguido foi uma conduta criminosa. Este crime é um crime contra a autodeterminação sexual: uma criança com menos de 14 anos não tem capacidade para dar consentimento.” O Arguido preencheu, com a sua conduta, a previsão do art.º 171º, nº 1, do C. Penal, sendo-lhe imputável o crime pelo qual vem acusado, mostrando-se verificados todos os elementos do tipo legal de crime. (…) Porém, dentro de uma visão tripartida do facto punível que perfilhamos (na esteira de vasta Doutrina, Portuguesa e Alemã, com a quem vem de ser citada supra), o facto além de ser típico, tem de ser ilícito e culposo. Todavia, não se verifica, no caso em apreço, nenhuma causa de justificação do facto nem de exclusão da culpa (não se vislumbra nenhuma actuação em legítima defesa, direito de necessidade, estado de necessidade desculpante, etc., ou seja, nenhum dos tipos justificadores consagrados no nosso Código Penal) susceptíveis de paralisar a responsabilidade penal do Arguido, o qual é imputável e actuou com plena consciência da ilicitude do facto, bem sabendo que a respectiva conduta era proibida por lei. (…). * 2.5 – Consequências Jurídicas do Crime Ao crime praticado pelo Arguido corresponde a punição com pena de um até oito anos. O Código Penal atribui à pena um conteúdo de reprovação ética, sem deixar de atender aos fins de prevenção geral e especial. A culpa é o limite inultrapassável da pena concreta; fundamenta e limita a pena. De acordo com os citados princípios, a pena visará a retribuição justa do mal praticado, a reinserção social do delinquente e a satisfação do sentimento de Justiça da comunidade, servindo como elemento dissuasor. A defesa do ordenamento jurídico exige que a pena se determine de tal modo que possa alcançar um efeito sócio-pedagógico na comunidade, ou seja, que corporize um exemplo, um contra-motivo à prática de idênticos ilícitos pelos demais indivíduos. A teoria da margem da liberdade, a qual encontra eco na nossa Jurisprudência, visando a concordância possível dos fins das penas no caso concreto, reconhece que a pena adequada à culpabilidade não é uma medida exacta. A pena concreta é fixada entre um limite mínimo (já adequado à culpa) e um limite máximo (ainda adequado à culpa) intervindo os outros fins das penas – prevenção geral e especial – dentro daqueles limites (cfr. Claus Roxin, in Culpabilidad Y Prevencion en Derecho Penal, pág. 4 e ss.). Segundo o ensinamento do Prof. Figueiredo Dias, a culpa dolosa é a expressão, documentada no facto, de uma atitude pessoal contrária ou indiferente ao dever-ser jurídico-penal; a culpa negligente é a expressão, documentada no facto, de uma atitude descuidada ou leviana em face das exigências daquele mesmo dever-ser. (…) A determinação da pena concreta far-se-á em função da culpa e das exigências de prevenção geral e especial, ponderando, para o efeito, as agravantes e atenuantes gerais apuradas relativamente ao Arguido. Na fixação concreta da pena, cumpre ponderar as circunstâncias a que alude o art.º 71º do C. Penal. Há a considerar que: - o grau de ilicitude é muito elevado, tendo em conta os efeitos inevitáveis e perturbadores produzidos pelo Arguido, com a sua conduta, na Menor Ofendida, a qual, ainda hoje, denota sofrimento, constrangimento, e angústia, mormente quando tem de recordar os factos; - o dolo do Arguido é directo e intenso, denotando aquela atitude contrária ou indiferente ao Direito, Arguido que não hesitou em abusar de uma menina de 10 anos de idade, aproveitando-se da sua ingenuidade e confiança, para dar livre curso aos seus instintos sexuais; - o Arguido é uma pessoa social, familiar e profissionalmente integrada, de confortável condição, uma vez que é Economista; - o Arguido não denotou qualquer arrependimento ou reflexão sobre a gravidade e a elevada reprovabilidade do seu comportamento, obstinando-se na negação dos factos. Ao nível da prevenção geral, o crime em causa, pela sua natureza, é um dos crimes que maior alarme social provoca, tendo em conta o bem ameaçado e a sua relevância: a liberdade sexual, mormente quando se trata de menor de 14 anos. Pelo que, as exigências de prevenção geral são fortíssimas, cumprindo tranquilizar e garantir à sociedade que este tipo de delito é exemplamente punido. Quanto às exigências de prevenção especial, ainda que seja de considerar a este nível que o Arguido não possui antecedentes criminais, são as mesmas já muito intensas. São objectivamente muito graves os factos praticados, e é elevado o perigo de continuação da actividade criminosa, pois o Arguido, como é comum neste tipo concreto de delinquência, apresenta-se como uma pessoa normal e simpática para com as crianças; o que o torna potencialmente mais perigoso, para quem nele confia. Deste modo, afigura-se adequado condenar o Arguido na pena de cinco (5) anos de prisão, pena que se não suspende na sua execução, por se entender que a ameaça de prisão não alcança realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição que se fazem sentir no caso. Nem as exigências de prevenção. O Arguido não denotou qualquer sentido crítico, em relação à gravidade dos seus actos, à repugnância que os mesmos provocam, pois de uma Menor de 10 anos de idade se tratava, ou qualquer arrependimento pelos mesmos. Parafraseamos as palavras do Ex.mo Sr. Desembargador João Carrola, no Acórdão supra citado, por, também aqui, tal entendimento ter absoluta pertinência: “Assim, perante todo o circunstancialismo referido, respeitante à personalidade do arguido, que manifestou total ausência de sentido crítico; à natureza e à gravidade dos crimes que cometeu; ao modo, circunstâncias em que ocorreram; à idade da vítima ao tempo dos factos; à culpa que demonstrou, atendendo às exigências de prevenção geral, entendemos não ser possível formular um juízo de prognose favorável no sentido de suspender a execução da pena que lhe foi aplicada. A censura do facto praticado e a ameaça da prisão não são suficientes para advertir o arguido contra a prática de novos crimes e para satisfazer as necessidades de prevenção.” * 3 – Pedido de Indemnização Cível Formulou a Demandante C, na qualidade de representante legal da Menor B, pedido de indemnização cível, nos termos sobreditos, ou seja, pedindo a condenação do Demandado no pagamento de 5.400€, a título de danos não patrimoniais e patrimoniais. Nos termos do art.º 129º do C. Penal, “a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil”. O direito que a Demandante pretende fazer valer inscreve-se, por conseguinte, no domínio da responsabilidade civil aquiliana. Nos termos do art.º 483º do C. Civil, são pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos: a prática de um facto voluntário ilícito, o nexo de imputação culposa do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade. Importa, por isso, averiguar se estão preenchidos os aludidos pressupostos da responsabilidade civil, de modo a poder concluir-se que a Demandante tem direito à indemnização que pede, e o Demandado a correspondente obrigação de indemnizar. Perante o circunstancialismo acima dado como provado, não há dúvidas de que estamos perante factos dependentes da vontade humana que só podem ser qualificados como ilícitos, pois o Demandado, com o objectivo de se excitar sexualmente, aproveitando-se da proximidade que gradual e astuciosamente criou com o Menor, por força da sua relação de vizinhança com o pai da mesma, abusando da sua confiança e ingenuidade, molestou esta na sua integridade psicológica e emocional, condicionando a sua liberdade de autodeterminação sexual, violando o direito que a mesma tinha e tem de não sofrer ofensa altamente censurável, cujos efeitos vão perdurar no tempo; sendo que a Menor era uma menina de 10 anos de idade, à data dos factos. Mas os factos praticados pelo Demandado além de serem ilícitos são, também, culposos. Na verdade, o Demandado, pela sua capacidade, pelo discernimento que tem e em face das circunstâncias concretas da situação, podia e devia ter agido de outro modo; por isso, merece a mais veemente reprovação e censura da ordem jurídica, pois, para satisfação da sua líbido sexual, aproveitou-se de uma pessoa débil, frágil, inocente, e particularmente vulnerável, em razão da idade. Por outro lado, também não oferece dúvidas, tal como resultou provado, que o Demandado, com a sua conduta, causou danos morais à Menor (aqui representada por sua mãe, a ora Demandante), a qual necessitou e continuará a necessitar de ser acompanhada psicologicamente, tendo sofrido forte perturbação, com frequentes episódios de choro, ansiedade e timidez, o que foi notório até em sede de Audiência de julgamento, quando foram ouvidas e observadas as suas declarações anteriormente prestadas para memória futura, em que a Menor, ao recordar a situação vivida, se mostrou tímida, retraída, dizendo-se até culpada, no que foi empática, certeira e notavelmente esclarecida pelo Senhor Juiz de Instrução que a ouviu, de que não tinha, não devia, nem podia sentir-se culpada do que quer que fosse, pois a mesma fora a Vítima. Mas este sentimento de culpa, expresso pela Menor, também nos dá a clara dimensão da ofensa, do dano, que lhe foi causado pela repugnante conduta do Arguido. Esse dano é objectivamente imputável ao Demandado, na medida em que se produziu em consequência directa da sua conduta (art.º 563º, C. Civil). Resta precisar que danos morais atendíveis são aqueles aos quais, não sendo possível atribuir expressão pecuniária, revelam pela sua gravidade serem merecedores da tutela do Direito. A indemnização de danos desta natureza não visa reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento, mas sim compensar de alguma forma o lesado pelos incómodos sofridos. Por outro lado, temos que atender, como circunstâncias a considerar para a fixação do montante da indemnização, ao grau de culpabilidade do agente, à situação económica deste e às demais circunstâncias entre as quais está a gravidade da lesão, a perturbação suportada pelo lesado, a sua sensibilidade e a sua situação sócio-económica. Como vimos, o grau de culpa do Demandado é de um nível muito elevado, pois se traduz na materialização de uma ofensa contra a autodeterminação sexual de uma Menor de 10 anos de idade, causando-lhe uma perturbação emocional tal que, ainda hoje, é visível, e que obriga ao seu acompanhamento; a situação económica do Demandado é confortável, uma vez que aufere cerca de 1.200€ mensais, vive em casa de sua mãe, e não tem filhos. Por outro lado, a perturbação e a ansiedade sofridos pela Menor, como dissemos, ainda perduram, pois o trauma decorrente do episódio ficou, e ficou ao ponto de alterar a personalidade da mesma. O Tribunal entende dever arbitrar uma indemnização, fixando o quantum da mesma em 5.400€, a título de danos não patrimoniais, condenando o Demandado no seu pagamento à Demandante, na qualidade de legal representante da Menor, valor que se nos afigura ajustado, em face da dimensão do dano causado, o qual perdurará no futuro, e não perdendo de vista a evolução da Jurisprudência, em situações equiparáveis. Aliás, o valor peticionado só peca por modesto. (…)”. » II.3- Apreciação do recurso II.3.1- Considerações gerais: Como vem sendo unanimemente defendido na jurisprudência a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: através do âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal ou mediante a impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do referido diploma legal. No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios formais, também designados de vícios decisórios, que se encontram previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, que, conforme decorre do referido preceito legal, devem resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não se estendendo, pois, a outros elementos, nomeadamente que resultem do processo, mas que não façam parte daquela decisão, sendo, portanto, inadmissível o recurso a elementos àquela estranhos para o fundamentar, como por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento[3]. Tratam-se, portanto, de vícios intrínsecos da sentença que visam o erro na construção do silogismo judiciário. No segundo caso estamos perante um erro do julgamento [designadamente na apreciação da prova] cuja apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova produzida em audiência de julgamento, sempre tendo presente os limites fornecidos pelo recorrente em obediência ao ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal. Como realçou o STJ, no acórdão de 12-06-2008[4], a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que se debruçando sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações: - a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam; - a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o «contacto» com as provas ao que consta das gravações; - a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso; - a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b), do nº 3, do citado artigo 412.º do Código de Processo Penal] [sublinhado nosso]. Não se poderá esquecer, portanto, que o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, antes constituindo um mero remédio jurídico com vista a colmatar erros do julgamento na forma como apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente, sendo, portanto, manifestamente errado pensar que basta ao recorrente formular discordância quanto ao julgamento da matéria de facto para o tribunal de recurso fazer «um segundo julgamento», com base na gravação da prova. Tem sido este o sentido defendido quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, designadamente: Assim refere Germano Marques da Silva[5] que “o poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação, apenas constitui remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância”. No mesmo sentido se pronuncia Damião Cunha[6], ao afirmar que os recursos são entendidos como juízos de censura crítica e não como «novos julgamentos». “O recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros[7]. » II.3.2- Apreciando o caso concreto: Do invocado vício do erro notório na apreciação da prova [artigo 410.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal] e da invocada violação do princípio in dubio pro reo: Analisada a motivação do recurso, constata-se que o recorrente confunde erro de julgamento com o invocado vício do erro notório na apreciação da prova. Com efeito: Defende o recorrente que só podem existir dúvidas quanto à veracidade dos factos e, por via da aplicação do princípio in dubio pro reo, deveriam ter sido dados como não provados os factos enunciados nas alíneas c), d) e), f), t), w), y), z), 1.ª parte da alínea aa) e nas alíneas ff) e gg) da factualidade provada constante da sentença recorrida. Pugna, consequentemente, pelo não cometimento, por parte do arguido do crime que aqui lhe vem imputado, com a sua inerente absolvição. Para tal, aponta: - A existência de factos repetidos e contraditórios; - A indevida desvalorização dos depoimentos prestados em audiência de julgamento pelas testemunhas de defesa, sem motivo fundado; - A indevida valorização das declarações prestadas em audiência de julgamento pela ofendida; - A inexistência de prova concreta; - A violação do princípio in dubio pro reo. Vejamos: A este respeito cumpre trazer aqui à colação o disposto no artigo 410.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe, “Fundamentos do recurso”, de onde decorre que: “1 - Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida. 2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova. 3 - O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.” Da análise de tal preceito legal decorre, portanto, que a decisão sobre a matéria de facto é suscetível de ser posta em causa por via dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, vícios decisórios esses que, conforme se referiu supra, devem resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal, ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício reporta-se à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não com a falta de prova para a decisão da matéria de facto provada[8]. Trata-se de uma insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, de um “vício de confecção da matéria de facto”, (…) impeditivo de bem se decidir , tanto no plano objectivo como subjectivo, o julgador quedou –se por uma investigação lacunar, deixou de indagar factos essenciais à decisão de direito, figurando na acusação, defesa ou resultantes da decisão da causa, impedindo de bem decidir no plano do direito, comprometendo a conclusão final do silogismo judiciário”.[9] A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, vício previsto no artigo 410º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Penal, consiste na incompatibilidade, insuscetível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. O que ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada. Finalmente, o erro notório na apreciação da prova, vício previsto no artigo 410º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis. Trata-se de um erro de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido[10]. “Com a invocação do vício de erro notório questiona-se, não o conteúdo da prova em si, nomeadamente do que foi dito no depoimento ou nas declarações prestadas, cujo teor se aceita, mas a utilização que foi dada à referida prova, no sentido de a mesma suportar a demonstração de um determinado facto, na medida em que o tribunal valorizou a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados ou então quando da decisão se extrai de modo óbvio que optou por decidir, na dúvida, contra o arguido”[11]. Resumindo, “o erro notório traduz-se, basicamente, em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando determinado facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo”.[12] Tal erro já não se verifica se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não conduz ao referido vício[13]. Importa, porém, não esquecer, quando a este vício – erro notório na apreciação da prova – que, salvo no caso de prova vinculada, o tribunal aprecia a prova segundo as regras da experiência e a sua livre convicção, tal como o dispõe o artigo 127.º do Código de Processo Penal. Rege, pois, o princípio da livre apreciação da prova, significando este princípio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminados de valor a atribuir à prova [salvo exceções legalmente previstas, como sucede com a prova pericial] e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre convicção da prova e na sua convicção pessoal. O que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada, sempre sem esquecer que a liberdade conferida ao julgador na apreciação da prova não visa criar um poder arbitrário e incontrolável. Por fim, relembre-se, os erros da decisão, para poderem ser apreciados ou mesmo conhecidos oficiosamente, devem detetar-se, sem esforço de análise, a partir do teor da própria sentença, sem recurso a elementos externos como seja o cotejo das provas disponíveis nos autos e/ou produzidas em audiência de julgamento. Aqui chegados: Cumpre, desde já, referir que analisado o texto da decisão recorrida não se constata a existência do apontado vício do “erro notório na apreciação da prova” a que alude o artigo 410.º, n.º 2, alínea c) do Código de Processo Penal, pois do texto da sentença não resulta que o tribunal tenha violado as regras da experiência ou que tenha efetuado uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, e, muito menos, que tenha violado qualquer regra sobre prova vinculada ou da legis artis. Na verdade, no caso, a impugnação da matéria de facto efetuada pelo recorrente, nos termos supra descritos, não se integra nos vícios do artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, uma vez que a discordância sobre a factualidade dada como provada não se limita, como exigem estes vícios, “ao texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum”. Efetivamente, o recorrente invoca, designadamente, a prova produzida oralmente em audiência de julgamento, remetendo para alguma dessa prova gravada, bem como para a prova documental. Em suma, o que está verdadeira e unicamente em causa no recurso em apreço é que o recorrente não se conforma com a circunstância de a sua posição sobre os factos que relatou ao tribunal não ter sido acolhida no julgamento da 1ª instância, que, pelo menos, não tenha suscitado a dúvida no julgador, aí fazendo o recorrente radicar o aludido vício que apontou à decisão recorrida e que, expressa e erradamente, apodou de erro notório na apreciação da prova. Da concreta argumentação expendida nas conclusões de recurso, complementadas com a respetiva motivação, decorre que o recorrente limita-se a extrair as ilações que tem por pertinentes da prova produzida, que contrapõe à do julgador, sem que da análise da leitura do próprio texto da sentença recorrida decorra a existência de qualquer ilogismo de percurso ou conclusão contrária à lógica das coisas, ao alcance, pela sua evidência, do homem comum. Não existe, portanto, qualquer um dos vícios a que alude o artigo 410.º do Código de Processo Penal, designadamente o invocado pelo recorrente. Conforme decorre da fundamentação da matéria de facto da sentença recorrida, nos termos explicitados pelo tribunal recorrido, foram apresentadas duas versões: a do arguido que negou a prática dos factos e a da ofendida que os afirmou, tendo o julgador, através de um processo lógico da formação da sua convicção, decidido dar credibilidade as declarações da ofendida. Ora, como se escreveu no acórdão do TRC de 19.02.2009[14] “Na tarefa de valoração da prova e de reconstituição dos factos, tendo em vista alcançar a verdade – não a verdade absoluta e ontológica, mas uma verdade histórico-prática e processualmente válida –, o julgador não está sujeito a uma “contabilidade das provas”. (…). A função do julgador não é a de encontrar o máximo denominador comum entre os depoimentos prestados, não lhe é imposto ter de aceitar ou recusar cada um deles na globalidade, cumprindo-lhe antes a missão de dilucidar, em cada um deles, o que lhe merece ou não crédito e em que termos”, devendo, com vista a valorar, ou não, um dado meio de prova, designadamente um depoimento, o julgador aferir da credibilidade dos factos relatados pela testemunha/depoente, para o que deverá socorrer-se de raciocínios lógicos e dedutivos, pautados nas regras decorrentes da experiência comum. E, diga-se, foi isso o que fez a Mm.ª Juíza a quo. Com efeito, como resulta claramente da motivação da matéria de facto supra transcrita, o tribunal a quo deu como provados os factos aqui controvertidos, explicando, de forma razoável, clara, lógica, racional e plausível, porque assim o fez, no caso, explicou porque considerou os factos em apreço como provados e, designadamente, porque razão deu credibilidade às declarações da ofendida e não deu às do arguido. A análise crítica das declarações e dos depoimentos [prestados quer pelo arguido, quer pela ofendida, quer pelas testemunhas ouvidas em audiência de julgamento] efetuada pelo julgador e o grau de credibilidade, ou de descrédito, atribuído aos mesmos mostra-se irrepreensivelmente conferido, de acordo com a perceção própria permitida pelo imediatismo que acompanhou a produção daqueles meios de prova. Nenhum dos elementos de prova concretamente aludidos pelo recorrente [a saber: as declarações do arguido, os depoimentos das testemunhas pai da menor e vizinhos do arguido e a referida prova documental respeitante à permanência da mãe do arguido num Lar] revela que a decisão do Tribunal a quo se mostre desajustada ou incoerente face à prova produzida no julgamento e, neste sentido, nenhuma dessas provas impõe decisão diversa da que foi tomada pelo Tribunal recorrido. No caso dos autos, o que o recorrente faz é discordar da avaliação probatória que o tribunal recorrido fez da apreciação da prova produzida em audiência de julgamento, pretendendo substituir a convicção do tribunal pela sua. Ou seja, o que realmente resulta, desde logo, das conclusões do recurso, é a divergência entre a convicção pessoal do arguido recorrente sobre a prova produzida em audiência e aquela que o Tribunal firmou, e que no entendimento do recorrente não deveria ter firmado, sobre os factos, o que se prende com a apreciação da prova em conexão com o princípio da livre apreciação da mesma consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal, do qual decorre que, salvo no caso de prova vinculada, o tribunal aprecia a prova segundo as regras da experiência e a sua livre convicção. Relembre-se que rege, pois, o princípio da livre apreciação da prova, significando este princípio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminados de valor a atribuir à prova [salvo exceções legalmente previstas, como sucede com a prova pericial] e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre convicção da prova e na sua convicção pessoal. Sempre sem esquecer que a liberdade conferida ao julgador na apreciação da prova não visa criar um poder arbitrário e incontrolável, o que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada. A apreciação da prova não pode deixar de ser “... uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais - , mas em todo o caso , também ela (deve ser) uma convicção objectivável e motivável , portanto capaz de impor-se aos outros.”[15] A convicção do Tribunal a quo é formada da conjugação dialética de dados objetivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem.[16] Se o Tribunal a quo, que beneficiou plenamente da imediação e da oralidade da prova, explicou racionalmente a opção tomada, e o Tribunal da Relação entender que da reapreciação da prova não se impõe decisão diversa, nos termos do art.º 127.º do Código de Processo Penal, deve manter a decisão recorrida. Ou seja, como é jurisprudência corrente dos nossos Tribunais Superiores, o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum. Se a decisão sobre a matéria de facto do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção[17]. Dos ensinamentos da doutrina e da jurisprudência, podemos concluir que a valoração das provas, reportada à credibilidade dos depoimentos que é eminentemente subjetiva, depende, essencial e substancialmente, da imediação, princípio que, pressupondo a oralidade, domina a recolha das provas de índole testemunhal, permite, num quadro de emissão e receção de sinais de comunicação - que não apenas de palavras, mas também de gestos ou outras formas de ação/reação, como o próprio silêncio - potenciar a adequada apreciação dos depoimentos[18], sendo as declarações indissociáveis da atitude e postura de quem as presta, dos seus olhares, trejeitos, hesitações, pausas e demais reações comportamentais às diversas perguntas e questões abordadas, isoladas ou entre si combinadas, bem como a regras de experiência e senso comuns à luz da normalidade dos comportamentos humanos. Tal não significa que a apreciação, eminentemente subjetiva, conducente a conferir maior ou menor credibilidade de um depoimento, é insindicável, pois ao julgador é imposto o dever de explicitar as razões da sua convicção pessoal, na fundamentação da decisão, isto é, que revele não só os motivos por que certo depoimento mereceu maior credibilidade do que outro, mas também que explicite o raciocínio lógico que utilizou na apreciação global e lógica de toda a prova no cumprimento do dispõe o nº 2 do artigo 374º, do Código de Processo Penal, e, no presente caso, a Mm.ª Juíza a quo fê-lo. E se os critérios subjetivos expressos pelo julgador se apresentarem com o mínimo de consistência para a formulação do juízo sobre a credibilidade dos depoimentos apreciados e, com base no seu teor, alicerçar uma convicção sobre a verdade dos factos, para além da dúvida razoável, tal juízo há de sempre sobrepor-se às convicções pessoais dos restantes sujeitos processuais, como corolário do princípio da livre apreciação da prova ou da liberdade do julgamento. Não interessa, assim, neste recurso, o que os juízes desta Relação decidiriam se tivessem efetuado o julgamento em primeira instância. Também não está em causa o modo como decidiria o recorrente se fosse o Juiz a quo. Na verdade, como se referiu, o recurso em matéria de facto não tem por finalidade a realização de um segundo julgamento, mas tão só a apreciação da decisão proferida na 1ª instância, apreciação essa limitada ao exame [controlo] dos elementos probatórios valorados pelo tribunal recorrido e feita à luz das regras da lógica e da experiência, mas sempre sem colidir com os fundamentos da decisão que só a imediação e a oralidade permitem atingir - imediação e oralidade que não estão presentes no julgamento do recurso, porque aos juízes do tribunal superior apenas são facultados registos [em suporte magnético]. Por isso ao tribunal superior cumpre verificar a existência da prova e controlar a legalidade da respetiva produção, nomeadamente, no que respeita à observância dos princípios da igualdade, oralidade, imediação, contraditório e publicidade, verificando, outrossim, a adequação lógica da decisão relativamente às provas existentes. E só em caso de inexistência de provas, para se decidir num determinado sentido, ou de violação das normas de direito probatório [nelas se incluindo as regras da experiência e/ou da lógica] cometida na respetiva valoração feita na decisão da primeira instância, esta pode ser modificada, nos termos do artigo 431.º do Código de Processo Penal. Assim, o que esta instância pode e deve fazer em tal matéria, em sede de recurso [precisamente porque o seu propósito é, essencialmente, o de remédio jurídico], é verificar, controlar, se o tribunal a quo, ao formar a sua convicção, fez um bom uso do princípio de livre apreciação da prova, aferindo da legalidade do caminho que prosseguiu para chegar à matéria fáctica dada como provada e não provada, verificar, ponto por ponto, se os concretos erros de julgamento indicados pelo recorrente, de facto, existem e, na afirmativa, proceder à sua correção. In casu, o recorrente não concorda com a análise que a Mm.ª Juíza a quo fez da prova produzida em audiência de julgamento. Porém, o Tribunal a quo, imbuído da imediação, explicitou, de forma lógica e ponderada, as razões da sua convicção, explicou a formulação do juízo que formou sobre a falta de credibilidade ou de credibilidade das declarações/depoimentos apreciados e, da respetiva fundamentação não decorre que tenha ficado com quaisquer dúvidas, pelo que não lhe cumpria fazer qualquer uso do ora invocado princípio in dubio pro reo. O Tribunal a quo foi claro quanto ao raciocínio que o conduziu a considerar provados os factos ora postos em causa, tendo explicado, através de dados objetivados, o raciocínio lógico percorrido na demonstração dos factos que o recorrente pretende ver dados como não provados. O Tribunal a quo deixou claro que analisou as declarações prestadas pelo arguido, pela ofendida e pelas referidas testemunhas e que analisou a prova documental junta aos autos e explicou as razões pelas quais as valorou de forma positiva ou negativa, nos seguintes termos: “O Tribunal formou a sua convicção com base nas declarações prestadas para memória futura da Menor Ofendida B, ouvidas em audiência de julgamento. Não obstante a sua jovem idade, mas exprimindo-se claramente e de uma forma singela e genuína, a Menor recordou os acontecimentos, não deixando ao Tribunal qualquer dúvida a respeito da prática, pelo Arguido, dos factos descritos. Das suas declarações resultou o quanto ficou transtornada e marcada com o sucedido, o que obrigou, e obrigará no futuro, ao seu acompanhamento psicológico. A sua descrição dos factos, não só a ouvida nestas declarações para memória futura, mas também a que verbalizou junto de sua mãe e de suas irmãs são coerentes, e mereceu todo o crédito ao Tribunal, afigurando-se que foram descritos pela Menor Ofendida tal como ocorreram, com a linguagem simples e límpida de uma criança sem astúcia, que se mostra profundamente marcada pela agressão sexual de que foi vítima.”. Atendeu o Tribunal ao depoimento de G, …, irmã da Menor Ofendida. A depoente recordou que, num dia de Verão, em que se encontravam a almoçar em casa do pai, a Menor perguntou o que era violar, tendo, depois, dito “O A violou-me.”. Mais afirmou a depoente que, algum tempo mais tarde, estavam com a mãe, e a Menor, a determinado momento, voltou a dizer que o A (ora Arguido) a tinha violado; que ele lhe tinha tocado no “pipi” e nas mamas, depois de, antes, ter estado num quarto do Arguido a ver vídeos de slime. Esclareceu a depoente que a Menor era, então, muito inocente, e, na sequência do que aconteceu, foi vítima de bullying, na Escola. Recordou a depoente que a Menor, que antes era muito enérgica, ficou com complexos. Mais disse a depoente que as três irmãs iam juntas, a casa do pai, o que era normal; mas, a Menor nunca gostara muito de ir a casa do pai, sem as irmãs. E, já nessa altura, a depoente não apreciava que a Menor fosse a casa do Arguido, e que este lhe oferecesse gomas e dinheiro. Sendo que a Menor não pedia nada, não sabendo a depoente se outros vizinhos lhe ofereciam alguma coisa. (…). A testemunha descreveu os factos de que tomou conhecimento, com clareza, bem como as repercussões que os mesmos tiveram no equilíbrio emocional, nas reacções, e na personalidade da Menor Ofendida, num depoimento que se afigurou objectivo e isento, não obstante ser irmã da Menor. Mereceu todo o crédito ao Tribunal. Atendeu o Tribunal ao depoimento de H, …, irmã da Menor Ofendida e gémea da testemunha anterior. A depoente recordou que, num determinado dia, em que se encontravam a almoçar em casa do pai, a Menor perguntou o que era violar; mas, mostrando-se receosa e sem querer aprofundar o assunto. Mais afirmou a depoente que, algum tempo mais tarde, não muito distante, estavam em casa com a mãe, e a Menor, a determinado momento, mostrando-se, de novo, muito receosa, voltou a abordar o mesmo assunto da violação, e disse que o A (ora Arguido) lhe tinha tocado. Era do conhecimento da depoente que o Arguido dava doces à Menor. Esclareceu a depoente que a Menor, na sequência do que aconteceu, ficou transtornada, incomodada, chorava, e ficou insegura, em relação ao seu próprio corpo. A testemunha descreveu os factos de que tomou conhecimento, com clareza, bem como as repercussões que os mesmos tiveram no equilíbrio emocional, nas reacções, e na personalidade da Menor Ofendida, num depoimento que se afigurou objectivo e isento, não obstante ser irmã da Menor. Mereceu todo o crédito ao Tribunal. Atendeu o Tribunal ao depoimento de D, …, pai da Menor. O depoente esclareceu que conhece o Arguido desde a infância, são vizinhos, e trata-o por tu. Afirmou que autorizava a sua filha Menor a ir a casa do Arguido, e sabe que este lhe oferecia gomas e dinheiro; mas não sabe como a Menor conheceu o Arguido (!). É do seu conhecimento que o Arguido fazia pinturas com a Menor, e estava a ensiná-la a pintar. Após, num certo dia, a Menor ter estado em casa do Arguido, este, depois, foi a casa do depoente, oferecer-lhe uma garrafa de vinho; mas, não achou estranho. Na sequência, quando a mãe da Menor foi a sua casa dizer-lhe que a filha tinha sido violada, o depoente respondeu-lhe que não era Polícia. As filhas mais velhas … só iam a casa do depoente quando lhes apetecia. Mas, numa ocasião, estando todas as suas filhas presentes, a Menor perguntou-lhe o que era violação. O depoente afirmou que, não obstante esta pergunta formulada pela Menor, nunca mais falou com a mesma sobre este assunto; assim como não falou com o Arguido (!). O Tribunal reconhece a sua própria dificuldade em qualificar o depoimento do pai da Menor, o qual se afigurou absolutamente indiferente ao que possa ter acontecido a sua filha, uma criança de 10 anos de idade, à data dos factos. A testemunha prestou um depoimento absolutamente tributário da proximidade e amizade que tem com o Arguido, o qual parece estimar mais do que a sua própria filha, e o que deixou ao Tribunal as maiores dúvidas a respeito da sua credibilidade, mas uma certeza a respeito da sua questionável personalidade. Atendeu o Tribunal às declarações da mãe da Menor Ofendida e Demandante C, …, a qual recordou que, no ano de 2019, as suas três filhas faziam visitas, de 15 em 15 dias, ao pai, ao fim-de-semana; presentemente, tal já não acontece. A Menor não gostava de ir sozinha para casa do pai, mas apenas acompanhada pelas irmãs. Também recordou a depoente o Arguido era vizinho do pai das suas filhas, e que, já antes, o mesmo dava gomas e dinheiro à Menor, o que a declarante achava estranho. E sendo que a Menor não tinha por hábito pedir gomas e dinheiro aos vizinhos. A Menor gostava muito de slimes, e o pai da mesma deixava-a ir para casa do Arguido, que era simpático para ela, e que também oferecia garrafas de vinho ao pai (que tinha um problema de alcoolismo). Em Maio de 2020, a declarante encontrava-se com as suas filhas em casa, em confinamento. A determinado momento, a Menor disse que tinha uma coisa muito grave para lhe contar, continuando: “O A violou-me.”, esclarecendo que tal ocorrera no anterior mês de Setembro, no Verão. Fora a casa do Arguido, onde estiveram a ver vídeos de slime, e, depois, o Arguido apalpou-a no “pipi” e nas mamas. Percebeu a declarante que a Menor teve medo de lhe contar mais cedo o que acontecera, porque achou que a mãe iria zangar-se com ela. Também tomou conhecimento de que a Menor já abordara, antes, o pai e as irmãs, perguntando sobre o que era violar. Na sequência do relato da Menor, a declarante foi dar conhecimento ao pai da mesma, do que se passara; mas, este reagiu, perguntando, nomeadamente:”O que queres que eu faça? Não sou Polícia?”. Esclareceu a declarante que a Menor era uma menina de 10 anos, muito inocente, e que nunca foi mentirosa. Na sequência destes factos, estava em pânico, e passou a ter vergonha de tudo, tendo necessitado de ser assistida psicologicamente. Quando se encontrava na Escola, telefonava para casa, a chorar, porque os colegas souberam do que acontecera, e era vítima de bullying; pelo que a declarante a mudou de Escola. Mas ficou muito ansiosa, passou a dormir mal, e fica em pânico, enojada com a figura masculina. A Demandante descreveu os factos de que tomou conhecimento, através da sua filha B, com toda a clareza, bem como as repercussões que os mesmos tiveram no equilíbrio emocional, nas reacções, e na personalidade da Menor Ofendida, a assistência médica da qual a mesma careceu e carecerá ainda no futuro, em declarações que se afiguraram objectivas e isentas, não obstante ser mãe da Menor, tendo merecido todo o crédito ao Tribunal. No que às testemunhas de Defesa diz respeito: Atendeu o Tribunal ao depoimento de E, …, vizinho e amigo do Arguido, uma vez que reside no … prédio onde o Arguido mora. Frequentam a casa um do outro; o depoente considera o Arguido íntegro e amigo do seu amigo. O depoente afirmou que o Arguido lhe contou o que lhe era imputado, mas o depoente não acreditou. Só conhece a Menor de vista, mas nunca a viu entrar no prédio deles. Sabe que o pai da mesma mora na parte de trás. Diz saber que a mãe do Arguido foi para um Lar em 2018 (o que não obsta a que a Senhora tenha, ocasionalmente e desde então, voltado à sua casa). E que a residência do Arguido tem três quartos, e nenhum escritório (o que é surpreendente, pois, a um aposento de uma casa, facilmente se muda o uso a que se destina, bastando, p. ex., substituir uma secretária por uma cama.). Mais afirmou que voltou a ver a Menor e as irmãs a visitar o pai (não obstante a casa deste ser na parte de trás). A testemunha prestou um depoimento aparentemente tributário da proximidade e amizade que tem com o Arguido, o que deixou ao Tribunal dúvidas a respeito da sua credibilidade. Atendeu o Tribunal ao depoimento de I, …, a qual conhece o Arguido, uma vez que esta colabora na obra social de uma Congregação que trabalha com prostitutas. A depoente afirmou que conhece o Arguido há quatro anos, desde que veio para Lisboa. Esclareceu que o mesmo trabalha na parte da assessoria económica daquela Instituição, nomeadamente no relacionamento com o Estado. A depoente considera o Arguido uma pessoa correcta, sensível, responsável, com iniciativa, e agradável no trato. A testemunha demonstrou conhecimento relativamente ao modo-de-ser habitual do Arguido, naturalmente no enquadramento da Instituição em que a testemunha trabalha e o Arguido colabora. Afigurou-se objectiva e isenta. Atendeu o Tribunal ao depoimento de J, Reformado, amigo e vizinho do Arguido, há cerca de quarenta anos. Recordou o depoente que já conhecia os pais do Arguido. Este ausentou-se do país, durante algum tempo, e, depois de ter regressado, organizaram-se para tratar de assuntos do Bairro; pelo que o depoente ia a casa dos pais do Arguido. Esclareceu que nada presenciou, mas, no Bairro, ouviu falar do assunto. Conhece a Menor; porém, ultimamente, não a vê. Sabe que a mãe da Menor explorava, ali, uma Colectividade, mas pensa que o seu contrato terminou. O Arguido afigura-se-lhe ser uma pessoa integrada na sociedade, e não lhe parece que fosse capaz daquilo que lhe é imputado. A testemunha demonstrou conhecimento relativamente ao modo-de-ser habitual do Arguido, naturalmente no enquadramento da colaboração que desenvolvem há anos, no interesse do Bairro. Afigurou-se que prestou depoimento de forma objectiva e isenta. Atendeu o Tribunal ao depoimento de F, …, vizinha do Arguido há cerca de 22 anos, uma vez que reside no 1º andar do prédio onde o Arguido mora. A depoente afirmou que se dá bem com o Arguido. Recordou que a Menor vinha, com as irmãs, a casa do pai; mas nunca a viu a bater à janela dos vizinhos. Disse a depoente que a mãe do Arguido esteve, durante algum tempo, num Centro de Dia, e, em 2018, foi para um Lar. A depoente ouviu dizer que o Arguido tinha abusado sexualmente da menor; e, num certo dia, ouviu uma grande gritaria no prédio, tendo-a a mãe da Menor avisado de que a depoente tinha uma filha. A depoente considera o Arguido uma pessoa boa, exemplar, e um bom vizinho. A testemunha prestou um depoimento aparentemente tributário da proximidade e longa vizinhança que tem com o Arguido, o que deixou ao Tribunal dúvidas a respeito da sua credibilidade. Atendeu o Tribunal às declarações do Arguido A quanto aos factos, cuja prática negou, num discurso progressivamente ansioso e prolixo, de “fuga para a frente”, refugiando-se em assuntos sem relevância para o apuramento dos mesmos, p. ex., a questão dos três aposentos de sua casa, e a negação da existência de um escritório (o que é surpreendente, pois, a um aposento de uma casa, facilmente se muda o uso a que se destina, bastando, p. ex., substituir uma secretária por uma cama.), mas procurando, desse modo, desviar a atenção do Tribunal do essencial e da verdade. O Arguido não sabe o que são vídeos de slime, nunca encaminhou a Menor para sua casa, nem nunca lhe tocou. O esgrimido argumento de que a sua mãe fora para um Lar, em Julho de 2018, não é apto a provar que a senhora nunca mais regressou à sua casa. Afirmou o Arguido que a Menor, um dia, lhe bateu à janela, pedindo-lhe doces e dinheiro. Neste concreto aspecto, até o pai da Menor esclareceu que o R/C onde vive o Arguido tem janelas altas; e sendo que da demais prova produzida o que resultou foi que a Menor não tinha por hábito pedir nada aos vizinhos. A estratégia do Arguido procurou, como é comum nestes casos de crimes sexuais, fazer passar a Vítima por mentirosa, invertendo a realidade. Porém, a versão do Arguido não mereceu crédito ao Tribunal, pois é infirmada pela demais prova testemunhal e por declarações produzida, e, mormente, porquanto as palavras da Menor Ofendida foram absolutamente claras, e não nos suscitam qualquer dúvida de que os factos ocorreram tal como a Acusação os descreveu. Atendeu o Tribunal às declarações do Arguido, relativas às respectivas condições pessoais, familiares e profissionais. (…)”. [sublinhado nosso]. Perante tal análise da prova, expressa e claramente indicada pelo Tribunal recorrido, sem que, em momento algum, se tenha quedado pela dúvida, outra conclusão não lhe restava, a não ser aquela a que chegou [em considerar provados os factos ora impugnados]. Pois, como se pode ler no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça [19] “«a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade»: «no trabalho de verificação dos enunciados factuais, a posição do investigador - juiz pode, de algum modo, assimilar-se à do historiador: tanto um como o outro, irremediavelmente situados num qualquer presente, procuram reconstituir algo que se passou antes e que não é reprodutível». Donde que «não seja qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido», mas apenas a chamada dúvida razoável (…). Pois que «nos actos humanos nunca se dá uma certeza contra a qual não militem alguns motivos de dúvida». «Pedir uma certeza absoluta para orientar a actuação seria, por conseguinte, o mesmo que exigir o impossível e, em termos práticos, paralisar as decisões morais». Enfim, «a dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal» (ibidem).” [sublinhado nosso]. Quanto à argumentação do recorrente no sentido de que os factos dados como provados encontram-se, entre si, repetidos e contraditórios, cumpre apenas dizer que, pese embora, de facto, não se descortine qualquer necessidade dessa repetição [que se constata ter ocorrido pela repetição dos factos da acusação no requerimento do pedido de indemnização civil], daí não resulta que se tenham de considerar tais factos como não provados e quanto à alegada contradição entre os mesmos, não se descortina onde possa existir, nem o recorrente a concretiza, tratando-se de uma argumentação vaga e genérica a esse respeito. Na realidade, o que o recorrente acaba por concluir com tal argumentação é que com a referida repetição “aparentemente o arguido parece condenado com base em muito maior número de factos do que aqueles que constam da acusação” [transcrição com sublinhado nosso], mas, tal como o mesmo o reconhece, ao fazer uso das expressões “aparentemente” e “parece”, o arguido não foi condenado por mais factos do que aqueles que lhe foram imputados no libelo acusatório. E não se diga, como argui o recorrente [realce-se, en passant] que a acusação já de si genérica, apesar de circunscrita a uma situação concreta e não a um comportamento reiterado ou continuado, viola as disposições do artigo 283º, n.º 3, al. b) do Código do Processo Penal e implicou uma condenação do arguido em número de factos bastante acrescidos, sem que na prática tenha sido dado cumprimento efetivo ao disposto no artigo 358º do Código do Processo Penal. Pois, na realidade, basta uma leitura atenta da acusação para se constatar que esta não é, de todo, genérica, tendo cumprido, escrupulosamente, o vertido no artigo 283º, n.º 3, al. b) do Código do Processo Penal [a saber: A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada] e, do confronto do libelo acusatório com a sentença recorrida constata-se, de forma evidente, que não foi dado como provado qualquer facto que não estivesse vertido na acusação, não foi acrescentado qualquer facto novo, nem, sequer, foi efetuado qualquer aditamento em esclarecimento ao que ali constava, pelo que não existia qualquer razão para que se tivesse de efetuar a comunicação a que alude o artigo 358.º do Código de Processo Penal. Assim, só nos resta concluir que não se encontram, de todo, violados os apontados preceitos legais [concretamente os artigos 283º, n.º 3, al. b) e 358.º, ambos do Código de Processo Penal], improcedendo, portanto, tal argumentação do recorrente. Da análise da fundamentação da factualidade provada efetuada pelo tribunal a quo também não se verifica que tenha sido efetuada uma indevida desvalorização dos depoimentos prestados, em audiência de julgamento, pelas testemunhas de defesa e, muito menos, que tal tenha ocorrido sem motivo fundado, pois, como se vê da referida fundamentação, as testemunhas de defesa nada adiantaram ao tribunal, a não ser o apreço que cada uma delas nutre pelo arguido, e, quanto ao facto de a menor se referir à presença da mãe do arguido na sala da residência, quando foi vítima dos factos em causa, e pelo menos parte das testemunhas de defesa ter aludido que nesse período esta se encontrava num Lar [facto corroborado pela prova documental junta pelo arguido], o facto é que o tribunal a quo explicou as razões pelas quais tal realidade não afastava a credibilidade das declarações prestadas pela menor, designadamente, atendendo ao facto de que a permanência da mãe do arguido num Lar não impedia que, ocasionalmente, esta pudesse vir a casa. Argumenta o recorrente que não existe prova concreta quanto a alguns dos factos provados, designadamente, quanto aos impugnados. Vejamos: Para prova dos factos c) e t): Concretamente quanto ao facto de o pai da menor e o arguido serem considerados amigos e este último visita de casa daquele, como foi dado como provado, argumenta o recorrente que só nos poderíamos ater às declarações do próprio arguido e do próprio pai da menor e que estes o negaram, pelo que o tribunal não poderia dar tais factos como provados. Porém, não lhe assiste razão. Na verdade, a prova produzida em audiência de julgamento não se cinge às declarações do arguido e ao depoimento do pai da menor e ouvidas as declarações para memória futura prestadas pela vítima, decorre, de forma clara e evidente, que existia amizade entre ambos e que o arguido era visita da casa do pai da menor. Aliás só assim se compreende que tenha sido quando foi a casa do pai da menor que o arguido a convidou para ir a sua casa e o pai da menor o tenha consentido; só assim se compreende que o pai da menor tenha prestado as declarações que prestou em audiência de julgamento, nitidamente em abono do arguido; e só assim se compreende que quando foi confrontado com o facto de a menor, sua filha, ter sido vítima do referido ato ilícito por parte do arguido, a sua reação foi dizer que “não era polícia”, facto que choca o tribunal, choca qualquer pessoa de bom senso e chocou a própria menor, que sobre tal questão referiu que a reação do pai “não foi boa” (sic), pois disse que não era polícia, e “não acho certo porque sou filha dele” (sic). Para prova dos factos d), w) e y): Concretamente quanto ao facto de “Em data que em concreto não foi possível apurar, mas que ocorreu no Verão do ano de 2019, quando a menor se encontrava a passar o fim-de-semana na residência do progenitor, aí compareceu o arguido, que a convidou a ir a sua residência, dizendo-lhe que que iria conhecer a sua progenitora, tendo a menor acedido, por ordem do progenitor”, argumenta o recorrente que em momento algum o pai da menor faz referência e esse episódio, que nunca existiu, pelo que não pode ser dado como provado. Também quanto a este segmento do recurso não assiste razão ao recorrente, pois, conforme se referiu supra, a prova produzida em audiência de julgamento não se cinge ao depoimento do pai da menor e durante as declarações para memória futura prestadas pela menor esta refere-o, aliás, em mais do que um momento, de forma espontânea e perentória, ao contrário de outros factos sobre os quais referiu não se recordar. Aliás, diga-se, segundo a menor, conheceu o arguido precisamente por este ir a casa do seu pai. Para prova dos factos e) e z): Concretamente quanto ao facto de o arguido ter dado à menor a quantia de €5,00 (cinco euros), argumenta o recorrente que a menor refere ter ido a casa do arguido uma ou duas vezes, e mesmo depois de lhe terem sido lidas as declarações prestadas junto da autoridade policial, continuou sem se lembrar de qualquer quantia monetária que lhe tivesse sido dada pelo arguido, não confirmando a mesma, pelo que tal facto não pode ser dado como provado. Ora, desde já se refere que a menor não se lembrava de tal facto quando prestou declarações para memória futura, a 14-04-2021, mas também referiu que não o negava, quando foi confrontada com as declarações que havia prestado perante a PJ, a 09-07-2020, ou seja, numa data em que tinha uma memória mais fresca dos acontecimentos vivenciados [note-se que tais declarações foram lidas, durante a referida diligência de tomada de declarações à menor para memória futura, com o acordo de todos os presentes, designadamente da defesa, e a menor foi confrontada com as mesmas e sobre elas se pronunciou, parágrafo por parágrafo, com todas as cautelas que se devem ter quando se inquire uma menor da idade da vítima]. A falta de memória sobre tal acontecimento, sobretudo quando a menor não o nega e já havia falado dele, não significa que o mesmo não tenha ocorrido, tanto mais que facilmente se compreende que a menor não o quisesse relembrar, pois sentia-se culpada pela situação vivenciada, como decorreu de forma clara e expressa das declarações por esta prestadas. Aliás, diga-se, o arguido não aliciou a menor apenas com dinheiro, mas também com gomas e, segundo a menor, ainda com uma palete de cores. Para prova do facto f) e 1.ª parte do facto vertido em aa): Concretamente quanto ao facto dado como provado que “Noutras alturas, quando a Menor se encontrava na residência do progenitor e o Arguido aí comparecia, este oferecia gomas à Menor, que as aceitava”, argumenta o recorrente que também tal facto, tal como vem enunciado, não poderia ter sido dado como provado, uma vez que o arguido não se deslocava sequer a casa do pai da menor, quanto mais para lhe dar gomas, como foi dado como provado. O próprio pai da menor o confirmou, referindo que o arguido não era sequer visita de casa e que terá ido a sua casa apenas uma vez levar-lhe uma garrafa de vinho, embora não se lembrasse do motivo. Quando a este facto, mais uma vez, socorre-se o recorrente do depoimento do pai da menor. Todavia, para além do que já se referiu a propósito do depoimento de tal testemunha, nitidamente “abonatória do arguido”, bem como do que já analisamos sobre as deslocações do arguido a casa do pai da menor, não foi apenas a menor que referiu que recebia gomas do arguido, mas também a sua mãe e as suas irmãs, cujos depoimentos o recorrente não “impugnou” e parece esquecer. No que respeita à factualidade ocorrida em setembro de 2019, insurge-se o recorrente quanto ao concreto facto vertido em ff) que o tribunal a quo considerou provado: No que respeita à factualidade ocorrida em setembro de 2019 [estamos a falar, portanto, do alegado abuso sexual imputado ao arguido], e quanto ao concreto facto vertido em em ff) [a saber: “A mãe do Arguido (nas palavras da criança, uma "senhora muito velhinha"), encontrava-se na sala nesse dia”], argumenta o recorrente que não poderiam ter sido dados como provados, pois embora a menor os afirme, de forma clara também disse que a mãe do arguido se “encontrava na sala naquele dia”, quando, na verdade, foi junto documento que provou que a mãe do arguido foi para um Lar/Casa de Repouso em 19 de julho de 2018, onde permaneceu de forma ininterrupta até falecer, a 8 de fevereiro de 2021. Ora, antes do mais, diga-se, que o recorrente sustenta tal facto [onde permaneceu de forma ininterrupta] num documento junto aos autos em sede de recurso, que não pode ser aqui valorado, nos termos e pelas razões já deixadas expostas no despacho proferido nos autos a 17-10-2022. De qualquer forma, mesmo atentando-se nos documentos juntos pelo arguido aquando da audiência de julgamento e no depoimento de testemunhas de defesa, que confirmaram que a mãe do arguido foi para um Lar e nunca mais voltou para casa, o facto é que, como bem o refere a Mm.ª Juíza a quo, o facto de a mãe do arguido estar num Lar tal não impedia que fosse, ocasionalmente, a casa e, como referido pela menor, estivesse na sala naquele dia em que foi vítima do referido abuso sexual. Porém, diga-se, mesmo que assim não fosse, tal facto, por si só, não seria suficiente para criar a dúvida razoável no julgador de que o alegado abuso sexual poderia não ter existido e, como tal, fazendo uso do princípio in dubio pro reo, devesse o tribunal a quo dar tal facto como não provado, pois, como se analisou supra, a dúvida sobre os acontecimentos vivenciados pela menor nunca existiu. De qualquer forma, diga-se, o facto de a mãe do arguido poder ou não ter estado na sala naquele diga afigura-se inócuo para se apurar o cerne da questão, concretamente o abuso sexual de que a menor foi vítima por parte do arguido, e muito menos serviu para sustentar a condenação no seu todo, como argumenta o recorrente. Aliás, repare-se, que o recorrente acaba por não colocar, concreta e expressamente, em causa os factos dados como provados quanto ao alegado abuso sexual, concluindo apenas que: “Deveria assim ser considerado não provado o facto “ff) A mãe do arguido (nas palavras da criança, uma “senhora muito velhinha”) encontrava-se na sala nesse dia.”. Para prova do facto gg): Concretamente quanto ao facto dado como provado de que “O Arguido disse à Menor que precisava de alguém que cuidasse dele, manifestando assim a vontade em que fosse a Menor a dar-lhe a referida assistência.”, argumenta o recorrente que em qualquer momento da audiência de discussão e julgamento foi produzida qualquer prova que permitisse ao tribunal a quo considerar este facto como provado, e, como tal, requer que seja considerado como não provado. Ora, talvez porque se trata de um facto acessório, como o reconhece expressamente o próprio recorrente, e por ter impugnado os factos com base no erro notório na apreciação da prova [que, como já analisamos supra, não se verifica] este limita-se a colocá-lo em causa de uma forma vaga e genérica, sem qualquer obediência às exigências impostas pelo artigo 412.º, n.º3, do Código de Processo Penal. Assim sendo, também quanto a este segmento, o recurso terá de improceder. De facto, diga-se, para dar cumprimento às exigências legais da impugnação ampla, a que alude o artigo 412.º, n.º3 do Código de Processo Penal, sempre teria o recorrente de especificar, nas conclusões, quais as provas [específicas] que impunham decisão diversa da recorrida, bem como referir as concretas passagens/excertos das declarações/depoimentos que, no seu entender, obrigariam à alteração da matéria de facto, o que este não fez, com exceção, pontual, da transcrição respeitante ao depoimento da testemunha D, pai da menor, e das testemunhas de defesa E e F, vizinhas do arguido, que, como analisamos supra, não foram de molde a afastar a conclusão a que chegou o tribunal a quo a dar como provados os factos impugnados. Sempre caberia ao recorrente ao apontar na decisão recorrida os segmentos que impugna, colocá-los em relação com as provas, demonstrando a verificação de erro judiciário que entendesse existir, o que o recorrente também não fez. Segundo o recorrente, a menor descreveu os factos, mas referiu ter ido a casa do arguido uma ou duas vezes e não se recordar de ele lhe ter dado dinheiro. A menor referiu que a mãe do arguido estava na sala quando os factos terão acontecido no quarto, sendo que os mesmos terão ocorrido em setembro (verão) de 2019, cuja contextualização, na sua ótica, desvirtua, quer queiramos quer não, a “história” vertida na acusação de que o arguido teria tentado ganhar a confiança da mesma e assim, depois de a mesma ter ido várias vezes a casa dele, ter acabado por levar a cabo os atos descritos, pelo que, conclui, estas dúvidas gerariam pelo menos questões no espírito do julgador, questões essas que poderiam levar à absolvição do mesmo ou pelo menos, à ponderação clara da medida da culpa e consequentemente da pena. Ora, antes do mais, cumpre referir que não era necessário que a menor fosse várias vezes a casa do arguido para este ganhar a sua confiança, bastava, para tanto, aliciá-la com bens, como o fez, dando-lhe, por exemplo, as ditas gomas, e muito menos é necessário “várias vezes” para ganhar a confiança de uma menor de 10 anos, sobretudo, na contextualização dos autos, em que o arguido é amigo do pai da menor, por quem esta nutria afeto e em quem confiança e que lhe disse que poderia ir a casa do arguido [basta ouvir a gravação das declarações prestadas pela menor para se constatar a confiança e afeto que nutria pelo seu pai, sendo exemplo disso os seguintes trechos: o arguido tinha ido a casa do seu pai e “perguntou se eu queria ir ver a mãe dele e o meu pai disse vai, vai e eu fui”; quando o pai teve conhecimento do que tinha acontecido a reação dele “não foi boa” (sic), pois disse que não era polícia, e “não acho certo porque sou filha dele” (sic)]. No caso, como referimos, o recorrente não concorda com a análise que a Mm.ª Juíza a quo fez da prova produzida em audiência de julgamento. Porém, o Tribunal a quo, imbuído da imediação, explicitou, de forma lógica e ponderada, as razões da sua convicção, explicou a formulação do juízo que formou sobre a falta de credibilidade ou de credibilidade das declarações/depoimentos apreciados e, da respetiva fundamentação não decorre que tenha ficado com quaisquer dúvidas, pelo que não lhe cumpria fazer qualquer uso do ora invocado princípio in dubio pro reo. Aliás, diga-se, pese embora o recorrente não tenha dado cabal cumprimento ao disposto no artigo 412.º, n.º3, do Código de Processo Penal, o tribunal ouviu as declarações para memória futura prestadas pela menor e viu a reação desta quando as prestou, e, em momento algum, ficou com dúvidas de que os factos tenham sido vivenciados pela menor, tal como esta os descreveu ao tribunal. E não se diga, como argumenta o recorrente, que as declarações da menor “foram devidamente encaminhadas para o sentido que se pretendia, respondendo maioritariamente a mesma de forma tímida e com monossílabos, confirmando maioritariamente àquilo que que lhe era questionado”. Na verdade, com a menor foi inicialmente entabulada uma conversa na tentativa de a deixar mais descontraída e, posteriormente, quando se deu início à sua inquirição, esta decorreu de forma tranquila, cuidadosa, sem perguntas fechadas e notou-se a preocupação da menor em responder ao tribunal de forma clara, contando apenas a situação por si vivenciada, tendo, ainda, sido evidente a forma sentida com que depôs, sobretudo na sua vertente da vergonha e da sua culpabilização pelo sucedido [“eu prefiro não me lembrar”, “às vezes sinto-me culpada porque fui eu que aceitei o convite” (sic)]. Além disso, as declarações prestadas pela menor foram corroboradas pelos depoimentos da mãe e das irmãs, que, naturalmente, não assistiram aos factos, mas contaram a reação da menor após os mesmos terem ocorrido, o seu comportamento desde então, como tomaram conhecimento do ocorrido e as questões que esta foi fazendo, no sentido de tentar perceber se tinha sido “violada”. Em suma, não se vê que a decisão recorrida tenha de algum modo desrespeitado os princípios que regem a livre apreciação da prova, não merecendo, por isso, qualquer censura por parte deste Tribunal de recurso. Por fim, diga-se, mesmo que se considerassem não provados os factos ora impugnados [a saber: os constantes das alíneas c), d), e), f), t), w), y), z), aa) 1ª parte, ff) e gg)], como ora pretende o recorrente, nunca tal implicaria a pretendida revogação da sentença recorrida e, consequentemente, a absolvição do arguido do crime de abuso sexual de crianças pelo qual foi condenado e do respetivo pedido de indemnização civil, pelo simples motivo de que os factos impugnados pelo recorrente são laterais aos que consubstanciam a prática pelo arguido do crime pelo qual veio a ser condenado e responsabilizado civilmente. Aqui chegados, cumpre, portanto, concluir pela improcedência do recurso interposto pelo arguido quanto a este segmento. » Quanto à pena aplicada. Insurge-se o arguido recorrente quanto pena que lhe foi concretamente aplicada, entendendo que a condenação dos presentes autos viola os artigos 70.º, 71º, n.º 1 e n.º 2, ambos do Código Penal e o princípio da igualdade, previsto no artigo 3.º da CRP. Argumenta, para o efeito, que não houve qualquer atuação continua de “conquista” por parte do arguido; de imediato a menor fugiu e não mais se cruzou com o arguido, que nunca mais lhe dirigiu qualquer palavra; o arguido, em momento algum, a seguiu, a agarrou, gritou com ela ou a ameaçou; o próprio Ministério Público requereu o julgamento em tribunal singular, pelo que a pena aplicada não poderia ser superior a 5 anos. Além disso, acrescenta o recorrente, encontra-se inserido familiar, social e profissionalmente; é economista e aufere em média cerca de 1200 euros mensais neste momento; não tem registo criminal, mesmo detendo já quase 60 anos de idade e, desde então, não haver notícia de qualquer crime, transgressão ou facto (contra a menor ou qualquer outra pessoa), praticado pelo arguido, sendo que este mantém até hoje o seu Registo Criminal sem qualquer condenação e sem qualquer contacto prévio com a Justiça, o que será sempre de ter em consideração. Pelo que, conclui, deverá ser-lhe aplicada a pena pelo mínimo legal, ou seja um ano de prisão, eventualmente ponderada a respetiva substituição por multa, nos termos do artigo 45º do Código Penal, ou, no limite de 2 anos de prisão, ou, em alternativa, por prestação de trabalho a favor da comunidade, nos termos do artigo 58º do Código Penal, ou suspensa na sua execução, predispondo-se, ainda assim o arguido, cumulativamente, a ser acompanhado em regime de prova, pelos Serviços de Reinserção Social ou outros adequados, podendo sujeitar-se a acompanhamento psicológico, o que satisfaz de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Vejamos: No que respeita à apreciação das penas fixadas pela 1.ª instância, cumpre, antes do mais, atentar, seguindo o paralelismo da jurisprudência quanto à intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, no seguinte: “A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que “no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada”. A censura que o tribunal de recurso pode opinar sobre a decisão respeitante à determinação da sanção, incide sobre todos os elementos fornecidos pelo tribunal que, não tendo sido considerados para a questão da culpabilidade, são relevantes para a determinação da sanção, bem como sobre todos os elementos que considerou “adquiridos” (e porque considerou adquiridos uns e outros não) e ainda sobre a forma, fundamentada, porque valorou esses factores na decisão final. É função do recurso - nos casos, o de Revista -, antes de tudo, analisar criticamente, os “parâmetros” da determinação de sanções. [20] “Os poderes cognitivos do STJ, como se sabe, abrangem no tocante a esta matéria, entre outras, a avaliação dos factores que devam considerar-se relevantes para a determinação da pena: a questão do limite ou de moldura da culpa, a actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, e também o quantum da pena, ao menos quando se encontrarem violadas regras de experiência ou quando a quantificação operada se revelar de todo desproporcionada”[21]. Perante tais considerandos, forçoso será concluir que o Tribunal de 2ª Instância apenas deverá intervir alterando o quantum da pena concreta quanto ocorrer manifesta desproporcionalidade na sua fixação ou os critérios de determinação da pena concreta imponham a sua correção, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso. Ou seja, mostrando-se respeitados os princípios basilares e as normas legais aplicáveis no que respeita à fixação do quantum da pena e respeitando esta o limite da culpa, não deverá o Tribunal de 2ª Instância intervir, alterando a pena fixada na decisão recorrida, pela simples razão de que, nesse caso, aquela decisão não padece de qualquer vício que cumpra reparar. Vejamos: Em primeiro lugar, porque se refere às finalidades das penas e medidas de segurança, importa ter em conta o disposto no artigo 40.º, nº 1 do Código Penal do qual decorre que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, decorrendo, por sua vez, do seu n.º 2 que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”. Por sua vez, decorre do artigo 70.º do Código Penal, que prevê o “critério de escolha da pena”, que: “Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. Por sua vez, decorre do artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal que a determinação da pena concreta, dentro da moldura penal cominada nos respetivos preceitos legais, far-se-á “em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” geral e especial do agente [e não, apenas, de prevenção especial, como defende o recorrente, sendo de notar, aliás, que o próprio legislador não o distingue], determinando o n.º2 do mesmo preceito legal que, para o efeito, se atenda a todas as circunstâncias que deponham contra ou a favor do agente, desde que não façam parte do tipo legal de crime (para que não se viole o princípio “ne bis in idem”, uma vez que tais circunstâncias já foram tomadas em consideração pela própria lei para a determinação da moldura penal abstrata), “considerando, nomeadamente: a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.”. Decorre, por fim, do n.º 3 do citado preceito legal, que “na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena”. Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28-09-2005[22], “na dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios do artigo 71º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento) ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente”. A culpa traduz-se num juízo de reprovação da conduta do agente, censurando-a em face do ordenamento jurídico-penal. Com efeito, o facto punível não se esgota na desconformidade da conduta do agente perante o ordenamento jurídico-penal, com a ação ilícita-típica, sendo, ainda, necessário que a conduta do agente seja culposa, isto é, que o facto por si praticado possa ser pessoalmente censurado, traduzindo-se, assim, numa atitude pessoal e juridicamente desaprovada, pela qual o agente terá de responder. Por seu lado, as exigências de prevenção têm a ver com a proteção dos bens jurídicos [prevenção geral] e a reintegração do agente na sociedade [prevenção especial], as quais nos termos do disposto no artigo 40º, n.º 1 do Código Penal constituem as finalidades da aplicação das penas e das medidas de segurança, conforme já referimos supra. “A medida da pena há de ser encontrada dentro de uma moldura de prevenção geral positiva e ser definida e concretamente estabelecida em função de exigências de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial positiva ou de socialização, não podendo ultrapassar em caso algum a medida da culpa. É o próprio conceito de prevenção geral de que se parte – proteção de bens jurídicos alcançada mediante a tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e no reforço) da validade da norma jurídica violada - que justifica que se fale de uma moldura de prevenção. Proporcional à gravidade do facto ilícito, a prevenção não pode ser alcançada numa medida exata, uma vez que a gravidade do facto ilícito é aferida em função do abalo daquelas expectativas sentido pela comunidade. A satisfação das exigências de prevenção terá certamente um limite definido pela medida da pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto ótimo de realização das necessidades preventivas da comunidade, que não pode ser excedido em nome de considerações de qualquer tipo, ainda quando se situe abaixo do limite máximo consentido pela culpa. Mas, abaixo daquela medida (ótima) de pena (da prevenção), outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas - até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a proteção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral”.[23] Em suma, o limite mínimo da pena deve corresponder às exigências e necessidades de prevenção geral que no caso se façam sentir, de modo a que a sociedade continue a acreditar na validade da norma punitiva, ao passo que o limite máximo não deve exceder a medida da culpa do agente revelada no facto, sob pena de degradar a condição e dignidade humana do mesmo; e, dentro desses limites mínimo e máximo, a pena deve ser individualizada no quantum necessário e suficiente para assegurar a reintegração do agente na sociedade, com respeito pelo mínimo ético a todos exigível, sendo, pois, as razões de prevenção especial que servem para encontrar o quantum de pena a aplicar.”[24] Assim sendo, atribui-se à culpa a função única de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração positiva das normas e valores) a função de fornecer uma moldura de prevenção cujo limite máximo é dado pela medida ótima da tutela dos bens jurídicos - dentro do que é considerado pela culpa - e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exato da pena, dentro da referida moldura de prevenção, que melhor sirva as exigências de socialização do agente. Conclui-se, portanto, que estaremos perante uma pena justa e proporcional quando esta satisfizer as exigências de prevenção geral e especial, atentando-se no caso concreto, e não exceder a medida da culpa do agente. Analisando o caso concreto, à luz dos considerandos acabados de expor, constata-se que o arguido foi condenado na pena de 5 [cinco] anos de prisão efetiva, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, cuja moldura penal abstrata encontra-se compreendida entre 1 a 8 anos de prisão. A este respeito, diga-se, que, como parece ser o entendimento do recorrente, não é pelo facto de o Ministério Público ter feito uso do artigo 16.º, n.º3, do Código de Processo Penal que a moldura penal abstrata se fixa no máximo de 5 anos, o que ocorre é que a pena concreta a aplicar pelo tribunal singular não pode ser superior a 5 anos, o que, como é consabido, são duas realidades distintas. Prosseguindo: Conforme mencionamos supra, o critério de escolha da pena encontra-se previsto no artigo 70.º do Código Penal, resultando desta disposição legal que “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”, as quais consistem na proteção de bens jurídicos [prevenção geral] e na reintegração do agente na sociedade [prevenção especial] - artigo 40.º, n.º 1 do Código Penal -. Ora, da análise de tal preceito legal, logo se constata que, ao contrário do invocado pelo recorrente, não foi violado o invocado artigo 70.º do Código Penal ao ser-lhe aplicada uma pena de prisão efetiva, pelo simples facto de que a lei não prevê para o tipo de crime pelo qual foi condenado a aplicação, em alternativa, de pena privativa e pena não privativa da liberdade, mas apenas a pena de prisão. Acresce, ainda, desde já, dizer que não se compreende o argumento do arguido de que se o tribunal tivesse considerado não provados os factos que aqui se impugnam a pena a aplicar ao arguido sempre seria inferior a 5 anos de prisão e nunca efetiva, pois, como vimos, os factos que o arguido impugnou são meramente laterais ao verdadeiro abuso sexual de que a menor foi vítima [recorde-se: c) O Arguido A é amigo do progenitor da Menor, e reside, também, na Rua …, sendo, por isso, vizinhos e amigos, frequentando o Arguido a residência do progenitor da Menor.”; “d) Em data que em concreto não foi possível apurar, mas que ocorreu no Verão do ano de 2019, quando a Menor se encontrava a passar o fim-de-semana na residência do progenitor, aí compareceu o Arguido, que a convidou para ir à sua residência, dizendo-lhe que iria conhecer a sua progenitora, tendo a Menor acedido, por ordem do progenitor.”; “e) Na sequência, o Arguido encaminhou a Menor para a sua residência, e, no interior da mesma, apresentou-a à sua progenitora, entregando, depois, à Menor a quantia de €5,00 (cinco euros), que a Menor recebeu e guardou consigo.”; “f) Noutras alturas, quando a Menor se encontrava na residência do progenitor e o Arguido aí comparecia, este oferecia gomas à Menor, que as aceitava.”; “t) O Arguido é vizinho do pai da Menor, sendo seu amigo e, também, visita de casa do progenitor.”; “w) Com consentimento do pai da Menor, no Verão de 2019, o Arguido convidou-a para ir à sua residência, dizendo-lhe que lhe queria apresentar a sua mãe, pessoa doente.”; “y) A criança anuiu (por ordem do progenitor) e foi à residência do Arguido, onde conheceu a sua mãe.”; “z) Nesse dia, o Arguido deu à menor €5,00 (cinco euros).”; “aa) Por diversas vezes, quando a criança se encontrava em casa do pai, o Arguido oferecia gomas à Menor, (…)”; “ff) A mãe do Arguido (nas palavras da criança, uma "senhora muito velhinha"), encontrava-se na sala nesse dia.”; e “gg) O Arguido disse à Menor que precisava de alguém que cuidasse dele, manifestando assim a vontade em que fosse a Menor a dar-lhe a referida assistência.”]. Atentando, agora, nos ditames decorrentes do artigo 71.º do Código Penal, de facto, como o conclui o tribunal a quo, dos factos provados decorre que: O grau de ilicitude do facto não é diminuto, concordando-se com o tribunal a quo que estamos perante um grau de ilicitude muito elevado, não só atenta a natureza dos factos e o desvalor da ação [ato de cariz sexual praticado por uma pessoa com quase 60 anos de idade, sobre uma criança que na data tinha 10 anos de idade], mas sobretudo atento o desvalor do resultado, tendo em conta os efeitos inevitáveis perturbadores produzidos pelo arguido com a sua conduta, na menor ofendida, a qual, ainda hoje, denota sofrimento, constrangimento e angústia, mormente quando tem de recordar os factos, tendo ficado profundamente traumatizada com este episódio [alínea ZZ) dos factos provados], tem pesadelos (ainda acorda a meio da noite aos gritos), não consegue dormir de luz apagada, e perdeu, por completo, a confiança nos homens (a criança não consegue ficar sozinha com elementos do sexo masculino) [alínea hhh) dos factos provados]; teve de mudar de residência e de escola, pois a vizinhança não parava de falar no sucedido, fazendo-a reviver diariamente a situação, e na escola, pese embora não se esqueça que tal facto foi dado a conhecer pelo pai da menor, as outras crianças deixaram de brincar com ela, gozando-a, humilhando-a, empurrando-a, chamando-lhe nomes e riam-se dela [alíneas lll), nnn), ppp) e qqq) dos factos provados]; nega-se a menor a praticar qualquer atividade física extracurricular (diz que não se quer relacionar com outras pessoas), passando a ser extremamente insegura, a ter vários complexos com o seu corpo e continua com pesadelos e está cada vez mais ansiosa [alínea rrr) dos factos provados]; além de se recusar a conhecer pessoas novas e a relacionar-se com outras crianças [alínea ttt) dos factos provados]. Na verdade, os atos praticados pelo arguido, para além de ferirem a liberdade sexual da menor vítima, ainda incapaz de se auto-determinar sexualmente, não só se mostrou apto a afetar de forma decisiva e permanente a formação da respetiva personalidade, como tal acabou por acontecer. De todo em todo, importa referir, ainda, a pouca idade da menor, bem inferior aos 14 anos que o tipo legal exige, uma vez que na data dos factos em causa tinham apenas 10 anos de idade. Estamos perante um dolo intenso [dolo direto], que qualifica a culpa como elevada, sendo o dolo direto a forma mais grave da culpa. O arguido encontra-se em termos familiares, sociais e profissionalmente inserido e não tem antecedentes criminais, o que abona a seu favor e, diga-se, assim foi tido em conta pelo Tribunal a quo. As exigências de prevenção geral são elevadas, tendo em conta a frequência com que este tipo de crime vem ocorrendo na sociedade, causando grande alarme social e uma projeção negativa na sociedade em geral, atendendo à reprovação e repulsa que nela provocam, o que significa uma maior necessidade de assegurar a proteção do bem jurídico que a norma visa proteger [que é também uma das finalidades da pena afirmadas no referido artigo 40.º n.º 1 do Código Penal], por forma a incentivar nos cidadãos a convicção que comportamentos deste jaez são punidos, pois, na realidade, não podemos deixar de realçar que assistindo-se, atualmente, com uma frequência preocupante e em crescendo, à violação do direito à autodeterminação sexual e, consequentemente, à formação da personalidade das crianças, urge combater de forma persuasiva e firme este tipo de criminalidade. Já o mesmo não ocorre no que respeita às exigências de prevenção especial. Com efeito, não se esquece que a descrita conduta do recorrente revela uma total indiferença para com os interesses legalmente tutelados, resultando patente na sua atuação a evidência da sua personalidade mal formada e, posteriormente, não manifestou qualquer ato de arrependimento ou reflexão sobre a gravidade da sua conduta, tendo, antes, optado pela negação dos factos. Porém, pese embora tal realidade, a situação dos autos consistiu num caso pontual na vida do arguido, que não mais manteve qualquer contacto com a vítima, encontra-se inserido social e profissionalmente, não tem antecedentes criminais, nem lhe são conhecidos quaisquer outros comportamentos merecedores de censura, pelo que as necessidades de prevenção especial não se revelam acentuadas. Em suma, atentando nas circunstâncias supra enunciadas, à moldura penal abstrata prevista para o crime em apreço, e os referidos critérios de determinação da pena concreta, entendemos ajustada e proporcional à culpa do recorrente, a pena de 3 anos de prisão, assim se alterando a pena fixada pelo tribunal a quo que se afigura excessiva, face, até, à comparação com penas menores aplicadas em casos mais graves. Uma vez determinada a concreta medida da pena de prisão a aplicar ao agente, impõe-se verificar se ela pode ser objeto de substituição. Ora, desde logo a pretendida substituição por pena de multa, ao abrigo do artigo 45.º do Código Penal ou por trabalho a favor da comunidade, ao abrigo do artigo 58.º do Código Penal, terá de improceder, por inobservância dos respetivos pressupostos legais para o efeito [que preveem a possibilidade de substituição, apenas quando a pena de prisão fixada não é superior a 1 ano e a 2 anos, respetivamente]. Dentro das penas de substituição da prisão encontra-se, ainda, a requerida suspensão da sua execução, que o Tribunal a quo apreciou e considerou não ser de aplicar, ao contrário do invocado pelo arguido que argumenta não ter o tribunal a quo ponderado tal possibilidade. No entanto, cumpre verificar se tal decisão é de manter, face aos pressupostos que regem a suspensão da execução da pena de prisão. Ora, sobre os pressupostos da suspensão da execução da pena de prisão rege o artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, nos seguintes termos: “1 - O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. (…)”. Impõe-se, portanto, para a sua aplicação, a verificação de: - Um pressuposto formal: a medida concreta da pena aplicada ao arguido não pode ser superior a 5 anos; e - Um pressuposto material: a existência de factualidade que permita ao Tribunal concluir por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido, ou seja, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. A aplicação desta pena de substituição só pode e deve ser aplicada quando a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizarem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, as quais se circunscrevem, de acordo com o artigo 40.º do Código Penal, à proteção dos bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade, sendo em função de considerações de natureza exclusivamente preventivas – prevenção geral e especial – que o julgador tem de se orientar na opção ora em causa. Como refere Figueiredo Dias[25] pressuposto material de aplicação do instituto é que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente: que a simples censura do facto e a ameaça da pena – acompanhadas ou não da imposição de deveres e (ou) regras de conduta – “bastarão para afastar o delinquente da criminalidade”. E acrescenta: para a formulação de um tal juízo - ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade ou só das circunstâncias do facto -, o tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto. Por outro lado, há que ter em conta que na formulação do prognóstico, o tribunal reporta-se ao momento da decisão, não ao momento da prática do facto. Adverte ainda[26] que apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável - à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização -, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem «as necessidades de reprovação e prevenção do crime». Reafirma que “estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita – mas por elas se limita sempre - o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto em causa”. Por sua vez, nos termos do artigo 53.º do Código Penal, o tribunal ordenará que a suspensão seja acompanhada de regime de prova, que assentará num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio, durante o tempo de duração da suspensão, dos serviços de reinserção social, podendo, ainda, sujeitar a suspensão da execução da pena de prisão a determinadas regras de conduta, nos termos do artigo 52.º do Código Penal. Ora, revertendo ao presente caso, não obstante a gravidade que reveste este tipo de crime, o certo é que a ponderação da gravidade dos factos praticados conjugada com a personalidade do arguido permitem dar o necessário realce ao juízo de prognose positivo, atentos, ainda, os considerandos já expostos a propósito da pena encontrada e que aqui são igualmente válidos. Com efeito, o arguido não tem antecedentes criminais, nem se lhe conhecem quaisquer outros comportamentos merecedores de censura. Revela adequada inserção sócio-profissional e familiar. Por outro lado, a distância no tempo desde a data da prática dos factos esbate a utilidade e a função, aqui específica, da prevenção geral, com necessários reflexos na proporcionalidade entre os meios [a medida da pena] e os fins [a prevenção geral primária]. No caso sob apreciação, decorreram já mais de três anos desde a data da prática dos factos, sendo que a uma tal distância não pode já dizer-se, com segurança, que a pena de prisão efetiva seja necessária na dimensão funcional da prevenção geral. Por outro lado, atendendo aos concretos atos em presença e ao comportamento posterior do arguido, que não mais contactou com a vítima ou, de alguma forma, sequer, o tentou fazer, podem fazer razoavelmente supor que a simples censura e a ameaça de execução da pena - desde que se cuide de se promover o seu acompanhamento pela DGRSP e cumpra determinadas obrigações - será capaz de o fazer sentir a condenação e a ameaça da prisão como suficiente advertência para evitar a repetibilidade de comportamento semelhantes, satisfazendo as finalidades da punição. Entende-se, assim, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, pelo que, nos termos dos artigos 50.º, n.ºs 1, 2, 3 e 5; 52.º, n.ºs 2 e 3 e 53.º, n.º4 e 54., n.º4, todos do Código Penal, cumpre determinar a suspensão da execução da pena de prisão ora aplicada ao arguido pelo período de 4 anos, suspensão esta que será sujeita a regime de prova, que assentará num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio, durante o tempo de duração da suspensão, dos serviços de reinserção social, que deverá visar, em particular, a prevenção da reincidência, devendo para o efeito incluir sempre o acompanhamento técnico do condenado que se mostre necessário, designadamente através da frequência de programas de reabilitação para agressores sexuais de crianças e jovens, bem como sob a condição de o arguido se submeter a avaliação especializada para aferir da necessidade de intervenção e acompanhamento médico na área da sexualidade, preferencialmente direcionada para evitar atos semelhantes aos aqui em apreço, [atendendo-se a que o arguido já prestou o seu consentimento para tal no âmbito do presente recurso] e sujeita à regra de conduta, no âmbito das suas atividades “pro bono”, de proibição de exercer essas atividades em instituições relacionadas com menores. » Quanto ao montante do pedido de indemnização civil: O tribunal a quo condenou o arguido/demandado a pagar à vítima/demandante, a título de indemnização por danos não patrimoniais por esta sofridos, a quantia de €5.400,00, acrescida de juros à taxa legal que se vencerem desde a data da sentença e até integral pagamento. O recorrente discorda do referido montante fixado pelo tribunal a quo, entendendo que o mesmo se afigura excessivo atendendo, à contextualização da situação factual, bem como à efetiva prova produzida, recordando que a situação foi do conhecimento de terceiros que o souberam pela boca da mãe da menor, sendo que até aí, ninguém sabia de nada, e mostrando estranheza por se ter sabido na escola da menor o sucedido, bem como a respetiva mudança de escola e de residência por esse facto. Mais acrescenta que o arguido aufere cerca de 1.200,00€, sendo que tem de fazer face às suas despesas mensais, sendo trabalhador independente e tendo de liquidar as suas contribuições para a Segurança Social e impostos. Vejamos se lhe assiste razão: Antes do mais, cumpre referir que, para apreciar a questão sub judice, este tribunal atenderá, apenas, à factualidade dada como provada pelo tribunal a quo, perante a qual terá de ceder a alegação de factos que a extravasem, efetuada em sede recursiva com vista a ver reduzido o montante indemnizatório, atenta a simples circunstância de que o recorrente nem sequer impugnou a matéria a esse respeito. Prosseguindo: Dispõe o artigo 129.º do Código Penal que "a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil". Como princípio geral da responsabilidade civil por factos ilícitos, dispõe o artigo 483.º, n.º 1 do Código Civil que "aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação". Decorre desta disposição legal que a responsabilidade civil pressupõe: - um facto voluntário; a ilicitude do mesmo; o nexo de imputação do facto ao agente; o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano. Quanto aos danos não patrimoniais rege o artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil, de onde resulta que são indemnizáveis os que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito. A gravidade do dano deve medir-se por um padrão objetivo (devendo, porém, considerar-se as circunstâncias de cada caso) e não à luz de fatores subjetivos. Assim, são geralmente considerados danos não patrimoniais relevantes não só a dor física, mas também a psíquica. Os mencionados pressupostos legais encontram-se verificados no caso em apreço, não havendo necessidade de tecer quaisquer outras considerações, não se questionando, sequer, que a situação dos autos preenche os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos e a obrigação de o arguido/demandado indemnizar a ofendida/demandante pelos danos não patrimoniais por esta sofridos em consequência do crime de abuso sexual, pelo qual o arguido foi condenado, danos esses cuja gravidade e necessidade de tutela do direito encontra-se indubitavelmente reconhecida [cfr., respetivamente, artigos 483.º e 496.º, n.º1, do Código Civil]. A discordância restringe-se à fixação do montante indemnizatório. Vejamos: Como é consabido, a indemnização, além de sancionar o lesante pelos factos que praticou e que causaram danos a terceiro, visa permitir atenuar, minorar e de algum modo compensar o lesado pelos danos que sofreu, permitindo-lhe a satisfação de várias necessidades de teor monetário. Pretende compensar o lesado, na medida do possível, dos danos que suportou e que se mantêm [artigos 562.º e 564.º do Código Civil]. E, porque neste tipo de danos é evidente a impossibilidade de reparação natural dos mesmos, no cálculo da respetiva indemnização deve recorrer-se à equidade [artigo 566.º, n.º 1 do Código Civil], tendo em conta os danos causados, o grau de culpa, a situação económica do lesante e do lesado e as circunstâncias do caso [artigo 496.º, n.º 4, do Código Civil]. Estes danos – que tradicionalmente eram designados de danos morais - resultam da lesão de bens estranhos ao património do lesado (a integridade física, a saúde, a tranquilidade, o bem-estar físico e psíquico, a liberdade, a honra, a reputação,…), verificando-se quando são causados sofrimentos físicos ou morais, perdas de consideração social, inibições ou complexos de ordem psicológica, vexames, etc., em consequência de uma lesão de direitos, maxime, de personalidade[27]. Abrangem, assim, prejuízos como as dores físicas, o sofrimento psicológico, os desgostos morais, os vexames, a perda de prestígio ou de reputação e os complexos de ordem estética de cada lesado que, não sendo suscetíveis de avaliação pecuniária, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente. Como salienta o Supremo Tribunal de Justiça,[28] “sendo certo que nestes casos a indemnização não visa propriamente ressarcir, tornar indemne o lesado, mas oferecer-lhe uma compensação que contrabalance o mal sofrido, é mister que tal compensação seja significativa, e não meramente simbólica. A prática deste Supremo Tribunal acentua cada vez mais a ideia de que está ultrapassada a época das indemnizações simbólicas ou miserabilistas para compensar danos não patrimoniais. Importa, todavia, sublinhar que indemnização significativa não quer dizer indemnização arbitrária. O legislador manda, como vimos, fixar a indemnização de acordo com a equidade, sem perder de vista as circunstâncias, já enunciadas, (…) – o que significa que o juiz deve procurar um justo grau de “compensação”. Sendo o grau da culpa do lesante relevante na fixação do quantum indemnizatório, necessariamente se terá de concluir que a responsabilidade civil em causa, de natureza compensatória, reveste-se, ainda, de uma função punitiva[29]. Ou seja, “(…) a responsabilidade civil deve assumir uma postura mais avançada, retribuindo o mal e prevenindo ofensas (…). Há, pois, que facilitar a imputação aquiliana, no tocante a danos morais (…) reforçando as indemnizações (…)” [30] No que concerne à componente ressarcitória / punitiva da compensação por danos não patrimoniais, ensinam, entre outros: Menezes Cordeiro, [31], “a cominação de uma obrigação de indemnizar danos morais representa sempre um sofrimento para o obrigado; nessa medida, a indemnização por danos morais reveste uma certa função punitiva, à semelhança aliás de qualquer indemnização”; Galvão Telles, [32], sustenta que “a indemnização por danos não patrimoniais é uma “pena privada, estabelecida no interesse da vítima – na medida em que se apresenta como um castigo em cuja fixação se atende ainda ao grau de culpabilidade e à situação económica do lesante e do lesado”. No caso em apreço, como vimos, não se coloca sequer em causa quanto a ter a menor sofrido danos de natureza não patrimonial, sendo igualmente inquestionável que estes assumem gravidade suficiente para justificar a intervenção reparadora do direito e o tribunal a quo fixou a indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela vítima, com recurso a critérios de equidade, o que podia fazer, porque previsto legalmente, como vimos. E, não se esquece que pese embora os tribunais de recurso possam alterar o valor da indemnização pelo dano fixado com recurso a critérios de equidade, só o devem fazer quando o tribunal recorrido afronte, manifestamente, as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida, sempre tendo presente, ainda, que essa indemnização deve ser atual, conforme decorre do artigo 566.°, n.° 2, do Código Civil e Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 4/2002, Diário da República, I Série A, n.º 146, de 27/09/2002. Ora, atentando nos considerandos supra expostos, verifica-se que não assiste razão ao recorrente ao entender que a indemnização fixada pelo tribunal a quo [a saber: €5.400,00] se afigura desadequada como compensação devida. Com efeito: - É inegável a extensão e gravidade dos danos sofridos pela menor, espelhados na factualidade provada, em consequência da atuação do demandado, nos termos em que se analisou supra e que se perpetuarão na sua vida. Ainda para mais, em consequência dos atos de que a menor foi vítima, ficou a mesma afetada no seu desenvolvimento pessoal e sexual. Na verdade, a ofendida, menor de 10 anos de idade, viu invadida a sua privacidade de forma flagrante, sendo obrigada a manter contactos de natureza sexual com o arguido, homem adulto com idade para ser seu pai. - Não se pode esquecer que não estamos perante um crime de pequena gravidade, mas sim perante um crime de abuso sexual de uma menor de 10 anos que integra o padrão de criminalidade especialmente violenta [cfr. artigo 1º, alínea l), do Código de Processo Penal]; - o grau de culpa do demandado/lesante é intenso, na sua forma mais gravosa - dolo direto -, tendo o ato lesivo sido intencionalmente praticado com consciência da sua ilicitude penal em todas as circunstâncias [artigo 14º, nº1, do Código Penal], perpetrado sobre uma menor de tenra idade – 10 anos. - a situação económica que é conhecida ao arguido não se pode caracterizar de desafogada, mas também não o é miserável, encontrando-se, aliás, bem acima do ordenado mínimo nacional, sem se esquecer as inerentes despesas que possa ter de suportar e que nem sequer o próprio contabilizou [é economista, aufere um vencimento de cerca de €1.200,00 mensais, trabalha pro bono em instituições sociais, não tem filhos e vive em casa de sua mãe]; e - pese embora não tenha antecedentes criminais, não assumiu os seus atos, manifestando falta de consciência autocrítica e uma ausência de empatia para com a ofendida. Aqui chegados, tendo em conta as circunstâncias em que os factos ocorreram, a extensão e consequências dos danos, sem se esquecer a forma como foram dados a conhecer a terceiros, a situação económica do arguido/demandado, única que se conhece, e a dimensão punitiva da indemnização por danos não patrimoniais, entendemos que a indemnização fixada pelo tribunal a quo afigura-se adequada e justa, não merecendo qualquer reparo e que, por isso, se mantém. Consequentemente, improcede o recurso neste segmento recursivo. » III- DISPOSITIVO Pelo exposto, acordam os juízes da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em: A. Conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência, alterando-se a pena aplicada pelo tribunal a quo, condena-se o arguido A, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo artigo 171.º, n.º1, do Código Penal, na pena de 3 [três] anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 4 anos, suspensão esta que será sujeita a regime de prova, que assentará num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio, durante o tempo de duração da suspensão, dos serviços de reinserção social, que deverá visar, em particular, a prevenção da reincidência, devendo para o efeito incluir sempre o acompanhamento técnico do condenado que se mostre necessário, designadamente através da frequência de programas de reabilitação para agressores sexuais de crianças e jovens, bem como sob a condição de o arguido se submeter a avaliação especializada para aferir da necessidade de intervenção e acompanhamento médico na área da sexualidade, preferencialmente direcionada para evitar atos semelhantes aos aqui em apreço [atendendo-se a que o arguido já prestou o seu consentimento para tal no âmbito do presente recurso] e de se sujeitar à regra de conduta, no âmbito das suas atividades “pro bono”, de proibição de exercer essas atividades em instituições relacionadas com menores. B. No mais, confirma-se a sentença recorrida. Sem custas [artigo 513º, n.º 1, à contrário, do Código de Processo Penal]. Notifique. » Lisboa, 22 de fevereiro de 2023 [Elaborado e revisto pela relatora - artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal] Isilda Maria Correia de Pinho Luís Almeida Gominho Jorge Gonçalves _______________________________________________________ [1] Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010, in http://www.dgsi.pt. [2] Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 7/95, de 28 de dezembro, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95. [3] Cfr. Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, 10ª ed., pág. 279; Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed. Pág. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., págs. 77 e ss.. [4] Proc. nº 07P4375, acessível in www.dgsi.pt [5] In Forum Iustitiae, Ano I, Maio de 1999. [6] In «O caso Julgado Parcial», 2002, pág. 37. [7] Cfr, neste sentido, Acórdão do STJ de 15-12-2005, Proc. nº 05P2951 e Ac. do STJ de 9-03-2006, Proc. nº 06P461, acessíveis em www.dgsi.pt [8] A propósito deste vício veja-se, entre outros, o Ac. do TRP de 15.11.2018 e de 09.01.2020, ambos acessíveis em www.dgsi.pt. [9] Acórdão do STJ de 08-01-2014, Processo n.º 7/10.0TELSB.L1.S1, in www.dgsi.pt. [10] Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., pág. 74. [11] Acórdão do TRC de 24-04-2018, P. n.º 1086/17.4T9FIG.C1, in www.dgsi.pt [12] Acórdão do STJ, de 98-07-09, Proc. 1509/97, citado por Simas Santos e Leal-Henriques, in Recursos em Processo Penal, Rei dos Livros, 77. [13] A propósito deste vício, veja-se, entre outros, os Acórdãos do TRP de 15.11.2018, do TRC de 24-04-2018 e do STJ de 18.05.2011, todos acessíveis in www.dgsi.pt. [14] Acessível in www.dgsi.pt [15] Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, 1º volume, Coimbra, ed. 1974, pág. 203 a 205. [16] Cfr. Acórdão do TRC, de 16-09.2015, in www.dgsi.pt. [17] Cfr. Acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa, de 02.11.2021, Processo nº 477/20.8PDAMD.L1-5, disponível em www.dgsi.pt. [18] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13-02-2008, Processo nº 07P4729, acessível em www.dgsi.pt. [19] Datado de 10-01-2008, Proc. n.º 07P4198, in www.dgsi.pt [20] Cfr. Acórdãos do STJ de 09-05-2002, in CJ do STJ, 2002, Tomo 2, pág. 193 e de 27-05-2009, Processo n.º 09P0484, acessível em www.dgsi.pt [21] Cfr. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime”, pág. 197. [22] In CJ do STJ, ano 2005, Tomo III, pág. 173. [23] De acordo com os ensinamentos de Anabela Miranda Rodrigues, in “O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º 2, abril/junho de 2002, págs. 147 e ss. [24] Cfr. Figueiredo Dias, ob. cit., págs. 227 e ss. [25] In Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, § 518. [26] Obra citada, § 520. [27] Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, págs. 85 e 86. [28] Acórdão de 25 de outubro de 2007, Processo n.º 07B3026, in www.dgsi.pt. [29] Neste sentido, entre outros, Pereira Coelho, in Culpa do lesante e extensão da reparação, RDES, ano VI, 1950/51, pág.68; Vaz Serra, in Obrigação de indemnização, BMJ 84, 1959, pág.126, e Menezes Leitão, in Direito das obrigações, vol. I, 6ª edição, Almedina, pág.338. [30] Menezes Cordeiro, in Da responsabilidade civil …, Lisboa, 1997, pág.482. [31] In Direito das Obrigações, 2º vol., pág. 288. [32] In Direito das Obrigações”, pág. 387. |