Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3795/24.2YRLSB-8
Relator: TERESA SANDIÃES
Descritores: ACÇÃO ESPECIAL DE REVISÃO E CONFIRMAÇÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
SENTENÇA DE TRIBUNAL DE TRABALHO ESTRANGEIRO
COMPETÊNCIA DA RELAÇÃO
ACÇÃO CONTRA O CONSULADO-GERAL DE PORTUGAL
FALTA DE PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
FALTA DE LEGITIMIDADE DO ESTADO PORTUGUÊS
IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO
PRINCIPIOS DA ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL DO ESTADO PORTUGUÊS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/15/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: ACÇÃO ESPECIAL DE REVISÃO E CONFIRMAÇÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: A competência material dos Tribunais da Relação para apreciação das ações especiais de revisão e confirmação de sentença estrangeira resulta do disposto no art.º 73º, al. e) da Lei nº 62/2013, de 26 de agosto (com a epígrafe “competência das secções”), integrado no CAPÍTULO IV - Tribunais da Relação, que dispõe: “compete às secções, segundo a sua especialização julgar os processos de revisão e confirmação de sentença estrangeira, sem prejuízo da competência legalmente atribuída a outros tribunais”.
As normas da CRP e ETAF invocadas não atribuem aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar ações de revisão e confirmação de sentença estrangeira, o que sucede por ter sido intenção do legislador atribuir tais ações às secções dos tribunais da relação, em função da sua especialização, pelo que duas conclusões daqui se extraem: (i) não existe qualquer lacuna na lei, que se imponha suprir por recurso ao disposto no art.º 10º, nº 3 do CC; (ii) não é caso de desaplicar a norma de competência citada, bem como o art.º 979º do CPC, com fundamento em juízo de inconstitucionalidade.
Na sentença revidenda foram apreciados direitos de crédito da requerente resultantes de vínculo jurídico laboral com o Consulado Geral de Portugal em S. Paulo, pelo que estão em causa atos de gestão do Estado Português - e não atos revestidos de ius imperii - não sendo aplicável a regra da imunidade de jurisdição.
(sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do CPC)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

EE intentou a presente ação especial de revisão de sentença estrangeira contra o Estado Português, pedindo que seja revista e confirmada sentença proferida pela 3.ª Vara do Trabalho de Santos, Brasil.
Alegou, em síntese, que foi trabalhadora contratada pelo Consulado de Portugal em Santos o qual, a partir de 2009, passou a denominar-se Consulado-Geral de Portugal em São Paulo. Demandou o Consulado-Geral de Portugal em São Paulo, tendo a correspondente lide corrido termos pela 3.ª Vara do Trabalho de Santos, Brasil. A referida ação foi julgada parcialmente provada e, por sentença datada de 04/04/2013, o Consulado-Geral de Portugal em São Paulo foi condenado, a anotar a opção daquela pelo FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço) na sua CTPS (Carteira de Trabalho e Previdência Social), bem como condenado a pagar “Recolhimentos de FGTS a partir de 05/10/88 na conta vinculada”; e determinado o pagamento, a cargo do requerido: de “férias +1/3 e 13º salário de 2012”; de “Correção monetária na forma da Súmula 381 do C. TST e juros a partir do ajuizamento da ação, no percentual de 1% ao mês”. Mais alegou que o julgado pela 3.ª Vara do Trabalho de Santos, Brasil foi objeto de laudo contabilístico que, atualizado até 01/07/2017, foi homologado em 05/06/2018, no qual se liquidaram as responsabilidades do Consulado-Geral de Portugal em São Paulo para com a ora Requerente em R$ 249.021,27 (duzentos e quarenta e nove mil e vinte e um reais e vinte e sete centavos), sendo R$ 15.615,08 (quinze mil seiscentos e quinze reais e oito centavos) a título de principal, R$ 8.385,30 (oito mil trezentos e oitenta e cinco reais e trinta centavos) de juros de mora, R$ 220.836,05 (duzentos e vinte mil oitocentos e trinta e seis reais e cinco centavos) de FGTS e R$ 4.184,84 (quatro mil cento e oitenta e quatro reais e oitenta e quatro centavos) de INSS, a que acresceram honorários de perito contabilista montante de R$ 2.800,00 (dois mil e oitocentos reais). A sentença transitou em julgado. Embora o Requerido - “reclamado”, na designação do Direito brasileiro vigente à época - tenha sido o Consulado-Geral de Portugal em São Paulo, como bem se consignou no acórdão junto como doc. n.º 3, “a repartição consular apenas exercita as funções consulares do Estado que representa junto ao Estado receptor, podendo estabelecer no território deste agências consulares, a fim de melhor desempenhar as funções que lhes são inerentes. Vale dizer, quem responde pelas obrigações trabalhistas é o Estado que envia, no caso, Portugal, pouco importando a qual de suas agências consulares está vinculada a reclamante”.
O MP, em representação do Estado Português, apresentou oposição. Invocou a incompetência do Tribunal da Relação de Lisboa, por competir exclusivamente aos tribunais administrativos e fiscais o conhecimento de todas as questões de natureza administrativa; a natureza pública dos direitos objeto da sentença revidenda; a falta de personalidade judiciária do Consulado Geral de Portugal em S. Paulo, Brasil, e consequente falta de legitimidade do Estado Português para a presente ação; a imunidade de jurisdição. Mais invocou que a sentença revidenda tem por objeto matéria de exclusiva competência dos tribunais administrativos portugueses e a competência do tribunal estrangeiro foi provocada em fraude à lei, a sentença contém decisão cujo reconhecimento conduz a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
A requerente apresentou resposta, pugnando pela improcedência da oposição.
Cumprido o art.º 982º do CPC, apenas o requerido se pronunciou, em termos idênticos aos da oposição que apresentou.

Questões a decidir:
1. Da incompetência do Tribunal da Relação de Lisboa, por serem exclusivamente competentes os tribunais administrativos e fiscais
2. Da natureza pública dos direitos objeto da sentença revidenda
3. Da falta de personalidade jurídica por parte do Consulado Geral de Portugal em São Paulo, Brasil, e da consequente ilegitimidade passiva do Estado Português 
4. Da imunidade de jurisdição
5. Aferir se a sentença revidenda tem por objeto matéria de exclusiva competência dos tribunais administrativos portugueses e se a competência do tribunal estrangeiro foi provocada em fraude à lei.
6. Aferir se a sentença revidenda contém decisão cujo reconhecimento conduz a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
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Encontra-se documentalmente provado que:
1 – Por sentença proferida em 04 de abril de 2013, pelo tribunal 3.ª Vara do Trabalho de Santos, Brasil, transitada em julgado, em ação interposta por EE contra o Consulado Geral de Portugal em S. Paulo, Brasil, foi este condenado a:
 “Na obrigação de fazer relativa a;
- Anotação da opção pelo FGTS na CTPS da reclamante.
Na obrigação de pagar relativa a:
- Recolhimentos de FGTS a partir da data de 05.10.1988 na conta vinculada sob pena de execução direta nos autos;
- Pagamento de férias + 1/3 e 13° salário de 2012.
Tudo nos termos da fundamentação que integra este ‘decisum’.
Autorizo, ainda, a dedução de todos os valores já pagos a idênticos títulos aos ora deferidos, já comprovados nos autos, a fim de se evitar o enriquecimento sem causa da parte reclamante
Liquidação de sentença na forma da lei.
Correção monetária na forma da Súmula 381 do C.
TST e juros a partir do ajuizamento da ação, no percentual de 1% ao mês.
Conforme art.º 832, §3°, CLT, são salariais as seguintes verbas deferidas nesta sentença: 13° salário.
Responsabilidade pelo recolhimento fiscal e previdenciário pela parte reclamada, observada a discriminação supra, relativos às parcelas objeto de condenação, autorizada a dedução da parte cabível peia parte reclamante.
Custas a cargo da parte reclamada no importe de R$-3.000,00, calculadas sobre o. valor da condenação arbitrado em R$ 150.000,00”.
2. O julgado pela 3.ª Vara do Trabalho de Santos, Brasil foi objeto de laudo contabilístico, atualizado até 01/07/2017, o qual foi homologado em 05/06/2018, no qual se liquidaram as responsabilidades do Consulado-Geral de Portugal em São Paulo para com a requerente em R$ 249.021,27 (duzentos e quarenta e nove mil e vinte e um reais e vinte e sete centavos), sendo R$ 15.615,08 (quinze mil seiscentos e quinze reais e oito centavos) a título de principal, R$ 8.385,30 (oito mil trezentos e oitenta e cinco reais e trinta centavos) de juros de mora, R$ 220.836,05 (duzentos e vinte mil oitocentos e trinta e seis reais e cinco centavos) de FGTS e R$ 4.184,84 (quatro mil cento e oitenta e quatro reais e oitenta e quatro centavos) de INSS parte do réu, bem como honorários de perito contabilista no montante de R$ 2.800,00 (dois mil e oitocentos reais), pela ré.
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Face ao preceituado no art.º 980º do CPC são requisitos da revisão:
a) que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;
b) que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;
c) que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
d) que não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;
e) que o réu tenha sido regularmente citado para ação nos termos da lei do país do tribunal de origem e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
Por seu turno, o art.º 983º do C.P.C. contempla os fundamentos de impugnação:  falta de qualquer dos requisitos mencionados no art.º 980º, ou por se verificar algum dos casos de revisão especificados nas al.s a), c) e g), do art.º 696º.
E o art.º 984º do CPC define em que consiste a averiguação oficiosa do Tribunal: verificação da concorrência das condições indicadas nas alíneas a) e f) do art.º 980º; verificação da falta de algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito, decorrente do exame do processo ou do conhecimento derivado do exercício das funções.
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1. Da incompetência do Tribunal da Relação de Lisboa, por serem exclusivamente competentes os tribunais administrativos e fiscais
O requerido defende o entendimento de que, nos termos do disposto nos artºs 211º, nº 1 e 212º, nº 3 da Constituição da República Portuguesa e arts. 1º, nº 1 e 4º, nº 1, al. o) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), compete exclusivamente aos tribunais administrativos e fiscais o conhecimento de todas as questões de natureza administrativa, como é o caso de um pedido de reconhecimento de uma sentença estrangeira de um tribunal de trabalho brasileiro que se pronunciou sobre um conflito que envolve uma trabalhadora em funções públicas num Consulado português, matéria administrativa, pelo que o Tribunal da Relação de Lisboa é incompetente em razão da matéria para conhecer da presente ação.
Mais defende que a norma constante do artigo 979.º do CPC, quando interpretada no sentido de permitir a revisão e confirmação de sentenças estrangeiras que dirimam litígios emergentes de relações jurídicas reguladas pelo Direito Administrativo português por parte do Tribunal da Relação da área em que esteja domiciliada a pessoa contra quem se pretende fazer valer a sentença é inconstitucional, devendo ser recusada a sua aplicação, reconhecendo a incompetência material destes tribunais para conhecer do pedido e absolvendo-se da instância, nos termos do artigo 204.º da CRP, por força do disposto no artigo 212.º, n.º 3 da CRP.
Subsidiariamente pugna para que se considere inexistir norma que atribua competência à jurisdição administrativa para a revisão de sentenças estrangeiras, existindo uma lacuna, e que a mesma não poderá ser resolvida através do recurso aos casos análogos, devendo, outrossim, ser resolvida com recurso ao instituto previsto no n.º 3 do artigo 10.º do Código Civil.
Dispõe o art.º 979º do CPC que “para a revisão e confirmação é competente o tribunal da Relação da área em que esteja domiciliada a pessoa contra quem se pretende fazer valer a sentença, observando-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 80.º a 82.º”.
Esta norma, invocada na oposição, regula a competência territorial.
A competência material dos Tribunais da Relação para apreciação das ações especiais de revisão e confirmação de sentença estrangeira resulta do disposto no art.º 73º, al. e) da Lei nº 62/2013, de 26 de agosto (com a epígrafe “competência das secções”), integrado no CAPÍTULO IV - Tribunais da Relação, que dispõe: “compete às secções, segundo a sua especialização julgar os processos de revisão e confirmação de sentença estrangeira, sem prejuízo da competência legalmente atribuída a outros tribunais”.
Ora, os preceitos da CRP e ETAF citados pelo requerido não atribuem aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar ações de revisão e confirmação de sentença estrangeira, o que sucede por ter sido intenção do legislador atribuir tais ações às secções dos tribunais da relação, em função da sua especialização, pelo que duas conclusões daqui se extraem: (i) não existe qualquer lacuna na lei, que se imponha suprir por recurso ao disposto no art.º 10º, nº 3 do CC; (ii) não é caso de desaplicar a norma de competência citada, bem como o art.º 979º do CPC, com fundamento em juízo de inconstitucionalidade.
Como se refere no acórdão do STJ de 25/01/2024, proc. nº 1932/22.0YRLSB.S1, in www.dgsi,pt: “O STJ através do Ac. de 22-04-2004, proc. n.º 04B705, relatado pelo Conselheiro Ferreira Girão, pronunciou-se acerca da competência do Tribunal das Relações, nos termos dos arts. 58.º, n.º 1, al. f), da LOFTJ e o 1095.º do CPC, actuais arts. 73.º, al. e) da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (nos termos do qual compete às secções dos Tribunais da Relação, segundo a sua especialização, entre o mais, julgar os processos de revisão e confirmação de sentença estrangeira, sem prejuízo da competência legalmente atribuída a outros tribunais) e 978.º e 979.º do CPC.
Da conjugação destes dois normativos torna-se claro que está atribuída aos Tribunais das Relações a competência para proceder à revisão de sentenças estrangeiras, quer sejam emanadas de autoridades judiciais quer sejam sentenças arbitrais.
Conforme é referido no acórdão recorrido, inexiste norma que preveja que as sentenças estrangeiras sejam revistas e confirmadas nos tribunais administrativos, pelo que dúvidas inexistem que essa competência está atribuída aos tribunais comuns, nos termos da competência expressa que decorre da lei, não sendo caso para aplicar o disposto no art.º 10.º do CC.
Também não se verifica qualquer interpretação inconstitucional do art.º 979.º do CPC, que determine que os tribunais desapliquem este normativo, porquanto o legislador exprimiu expressamente a sua posição ao atribuir a competência exclusiva ao tribunal das Relações para rever e confirmar as sentenças estrangeiras. O recorrente parte do pressuposto que este tribunal não é competente por entender que se trata de uma decisão de um litígio administrativo, mas a verdade é que nem todos os litígios que envolvem o Estado são litígios administrativos, pois no caso trata-se de um litígio que trata de matéria em que o Estado não actuou em jus imperium, como melhor se explica no seguimento da motivação. Não existe, assim, qualquer interpretação contrária à CRP.”

2. Da natureza pública dos direitos objeto da sentença
Alega o requerido que a requerente tinha um contrato de trabalho em funções públicas que é um vínculo administrativo de emprego público, com particularidades face ao contrato de trabalho privado, vínculo esse, disciplinado pelo Decreto-Lei n.º 47/2013, de 5 de abril, que regula o regime jurídico-laboral dos serviços periféricos externos do MNE, supletivamente regido pela Lei Geral de Trabalho em Funções Públicas. Esse vínculo é subordinado ao Direito Administrativo e, portanto, os direitos e deveres recíprocos não são privados, mas públicos, pelo que não pode a sentença ser objeto do processo de revisão e confirmação previsto no CPC, atento o disposto no art.º 978º, nº 1 do CPC.
Dispõe este preceito que “sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos da União Europeia e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada.”
Pode ler-se no aresto do STJ de 25/01/2024, já citado: “O acórdão do STJ de 05-04-2022, Revista n.º 639/20.8YRLSB.S1, relatado pelo Conselheiro Henrique Araújo, já se pronunciou acerca do conceito “direitos privados”, no âmbito de processo de revisão de sentença brasileira que condenou o Estado Português ao pagamento de quantias correspondente a salários de trabalhadores de um Consulado de Portugal no Brasil. Neste aresto entendeu-se que a expressão “decisão sobre direitos privados” deve interpretar-se em termos amplos. Em face da clareza de exposição sobre esta matéria, transcrevemos parte deste aresto a propósito deste tema.
Veja-se o que escreve Luís de Lima Pinheiro, em "Direito Internacional Privado", Volume III, Tomo II, páginas 22 e 23, para clarificar as situações de exclusão da natureza privada:
"(...) não são privadas as situações que, por dizerem respeito a certas atividades públicas estrangeiras só podem ser objeto de regulação na ordem jurídica de um Estado estrangeiro e as situações que são primariamente conformadas por Direito público português. Assim, por exemplo, não são reconhecíveis ao abrigo do Direito de Reconhecimento Internacional Privado as decisões estrangeiras com caráter penal e as decisões proferidas por tribunais estrangeiros em violação da imunidade de jurisdição do Estado português.”
A decisão deve ter por objeto uma relação que no Estado de reconhecimento seja considerada 'privada', à luz do critério da posição dos sujeitos. Este critério relaciona-se com o jus imperii — uma prerrogativa de Direito Público, que designa "posição de autoridade" — faculdade de emitir comandos, gerais ou individuais, que se imponham a outrem, mesmo sem ou contra a vontade desses destinatários. Nesta perspetiva, Direito Público é o sistema de normas que, tendo em vista a prossecução de um interesse coletivo, confere para esse efeito a um dos sujeitos da relação jurídica poderes de autoridade sobre o outro. São de Direito Público as normas que regulam a organização e a atividade do Estado e de outros entes públicos menores, as relações desses entes públicos entre si no exercício dos poderes que lhes competem, bem como as relações dos entes públicos enquanto revestidos de poder de autoridade com os particulares; são de Direito Privado as normas que, visando regular a vida privada das pessoas, não confere a nenhuma delas poderes de autoridade, mesmo quando pretendam proteger um interesse público considerado relevante. No Direito Privado os sujeitos estão em posição de paridade: são relações entre particulares, ou entre os particulares e os entes públicos, quando estes não intervenham revestidos de jus imperii, fazendo com que atuem como se fossem particulares. A principal diferença entre direitos públicos e privados está, assim, nas relações de hierarquia ou de igualdade entre as partes envolvidas.”
No acórdão desta relação proferido em 27/10/2020, no processo de revisão de sentença estrangeira nº 639/20.8YRLSB-1, in www.dgsi.pt, que versou sobre sentença de tribunal de trabalho brasileiro que condenou o Consulado Geral de Portugal em S. Paulo, Brasil, a pagar a trabalhadores seus determinadas quantias, escreveu-se: “como ensina Luís de Lima Pinheiro a qualificação da decisão estrangeira como decisão sobre direitos privados é feita de acordo com o direito de reconhecimento português, “com base numa interpretação autónoma dos conceitos utilizados para delimitar a previsão da norma de reconhecimento.”
Nomeadamente, quanto ao carater privado da decisão, depois de concordar que o que importa é o objeto da mesma e não a natureza do tribunal que a proferiu, esclarece que “A decisão deve ter por objeto uma relação que no Estado de reconhecimento seja considerada “privada”. Para efeitos desta apreciação a relação tem de ser caraterizada juridicamente perante a ordem jurídica do Estado de origem. É uma qualificação segundo o Direito de reconhecimento do foro com base numa caraterização feita perante a ordem jurídica do Estado de origem.” Em resumo, “o carater privado da relação controvertida deve ser entendido com autonomia relativamente ao direito material interno”.
No caso concreto, face ao conteúdo das decisões a rever, que versam a relação laboral entre o Estado Português e trabalhadores seus a prestar serviço em território brasileiro, não se levanta qualquer questão quanto à qualificação desta relação de um empregador com os seus funcionários como privada, à luz do direito brasileiro e à luz do direito nacional.”
Ainda que a relação jurídica de natureza laboral estabelecida entre a requerente, pessoa singular, e o Consulado de Portugal em S. Paulo, Brasil, objeto da sentença, tenha num dos polos um ente público, a atuação deste não se mostra investida de jus imperii, pelo que a sentença revidenda versa sobre direitos privados, na aceção mencionada.

3. Da falta de personalidade jurídica por parte do Consulado Geral de Portugal em São Paulo, Brasil e da consequente ilegitimidade passiva do Estado Português 
O requerido pugna pela sua absolvição da instância, com fundamento em os consulados serem serviços periféricos externos do Estado Português, na sua qualidade de pessoa coletiva pública, funcionando internamente na dependência do Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, conforme dispõe o artigo 11.º, n.º 4 da Lei n.º 4/2004, de 14 de janeiro, na sua redação atual, bem como do artigo 4.º, n.º 2, alínea c) da Lei orgânica do MNE, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 121/2011, de 29 de dezembro, pelo que sendo um serviço periférico externo do Estado-Administração, é este último a pessoa coletiva de Direito Público, logo, está dotada de personalidade jurídica e, por conseguinte, de personalidade judiciária. Consequentemente, o Consulado-Geral de Portugal em São Paulo, por ser um serviço do Estado, não tem personalidade jurídica e, por inerência, carece de personalidade judiciária (cfr. artigo 8.º-A, n.º 2 do CPTA). Não tendo sido considerada na sentença brasileira revidenda como existente a exceção dilatória insuprível de falta de personalidade judiciária do Consulado Geral de Portugal em São Paulo não pode o Estado Português ser julgado parte legítima na presente ação de revisão e confirmação de sentença, visto que quem foi condenado nessa sentença foi o Consulado Geral de Portugal em São Paulo.
Estabelece o art.º 13º do CPC (que corresponde ao art.º 7º do anterior CPC) que:
“1 - As sucursais, agências, filiais, delegações ou representações podem demandar ou ser demandadas quando a ação proceda de facto por elas praticado.
2 - Se a administração principal tiver a sede ou o domicílio em país estrangeiro, as sucursais, agências, filiais, delegações ou representações estabelecidas em Portugal podem demandar e ser demandadas, ainda que a ação derive de facto praticado por aquela, quando a obrigação tenha sido contraída com um português ou com um estrangeiro domiciliado em Portugal.”
“As missões diplomáticas permanentes, nomeadamente as embaixadas, detêm funções de representação de um Estado estrangeiro acreditado noutro país, muito embora não sejam dotadas de autonomia jurídica em relação ao estado acreditado, pelo que se traduzem em entidades representativas do respectivo Estado soberano para os efeitos do disposto no artigo 7.º do CPC. (…)
Embora, a maior parte das hipóteses previstas digam respeito a extensões das sociedades comerciais, o certo é que a referência a delegações ou representações feitas no normativo em foco não se restringe a estas, podendo, pois, abranger quaisquer pessoas colectivas de direito privado ou público.” – Ac. RL de 17/05/2011, proc. nº 137/06.2TVLSB.L1-7, in www.dgsi.pt.
Em suma, o Consulado Geral de Portugal em S. Paulo, Brasil, réu na ação de onde provém a sentença revidenda, face à lei processual portuguesa (todas as normas invocadas pelo requerido integram a legislação portuguesa), enquanto detentor de funções de representação do Estado Português naquele país, podia ser demandado na referida ação, como foi, detendo personalidade judiciária, soçobrando assim a invocada consequente ilegitimidade do Estado português para a ação de revisão e confirmação.
O requerido invocou art.º 8-A, nº 2 do CPTA, do seguinte teor: “Tem personalidade judiciária quem tenha personalidade jurídica, e capacidade judiciária quem tenha capacidade de exercício de direitos, sendo aplicável ao processo administrativo o regime de suprimento da incapacidade previsto na lei processual civil.”
Todavia o nº 3 do mesmo preceito dispõe que “Para além dos demais casos de extensão da personalidade judiciária estabelecidos na lei processual civil, os ministérios e os órgãos da Administração Pública têm personalidade judiciária correspondente à legitimidade ativa e passiva que lhes é conferida pelo presente Código.”
É o próprio CPTA que ressalva a aplicação do CPC, designadamente quanto aos casos de extensão da personalidade judiciária estabelecidos na lei processual civil, como é o caso do art.º 13º do CPC.

4. Da imunidade de jurisdição
Alega o requerido que o vínculo de emprego entre o Estado Português e a requerente é um vínculo público de direito administrativo, estando tais litígios submetidos à jurisdição administrativa; não podiam os tribunais de trabalho brasileiros ter apreciado um litígio sobre esse vínculo, tendo em conta a imunidade de jurisdição do Estado Português, pelo que, não pode a sentença revidenda ser revista e confirmada em Portugal.
Embora aceite que “é hoje dominante a conceção restrita da regra da imunidade de jurisdição, que a restringe aos atos praticados com “jure imperii”, excluindo da imunidade os atos de “jure gestionis”, por tal se entendendo aqueles em que os Estados intervêm como pessoa de direito privado em relações de direito privado, não exercendo poderes públicos no contexto dessas relações”, defende que em causa está um vínculo de emprego, público de direito administrativo, entre o Estado Português e a requerente.
“1. A imunidade Jurisdicional dos Estados Estrangeiros constitui uma regra de direito internacional segundo a qual um Estado soberano não pode ser demandado num tribunal de um outro Estado, traduzindo, assim, uma garantia que o Estado disfruta em relação a si próprio e aos seus bens e que impede que outros Estados exerçam jurisdição sobre os atos que realiza no exercício do seu poder soberano.
2. -Na consolidação da teoria relativa da imunidade de jurisdição do Estado, dela se consideram atualmente excluídos os atos de gestão (respeitantes a atos e contratos privados), apenas sendo considerados atos de imunidade de jurisdição dos estados os praticados sob a denominação de atos de império.
3.- Aderindo à teoria da imunidade de jurisdição relativa, a Parte III da Convenção das Nações Unidas Sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos Seus Bens (CIJEB) prevê que em certos processos judiciais o Estado não possa invocar a imunidade, recusando-a quando estejam em causa transações comerciais, contratos de trabalho, danos causados a pessoas e bens, propriedade, posse e utilização de bens, propriedade intelectual ou industrial, participação em sociedade ou outras pessoas coletivas e navios de que um Estado é proprietário ou explora.
4.- A imunidade relativa, restringindo a imunidade da jurisdição dos estados estrangeiros aos atos praticados sob o ius imperii, pode já ser considerada como direito consuetudinário internacional.” – Ac. RC de 10/05/2016, proc. nº 2079/15.1T8CBR.C1, in www.dgsi.pt
Na sentença revidenda foram apreciados direitos de crédito da requerente resultantes de vínculo jurídico laboral com o Consulado Geral de Portugal em S. Paulo, pelo que estão em causa atos de gestão do Estado Português - e não atos revestidos de ius imperii - não sendo aplicável a regra da imunidade de jurisdição.

5. Aferir se a sentença revidenda tem por objeto matéria de exclusiva competência dos tribunais administrativos portugueses e se a competência do tribunal estrangeiro foi provocada em fraude à lei  
O requerido identificou esta questão nos seguintes termos: ”3. ALÍNEA C) DO ARTIGO 980.º DO CPC: proveniência de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria de exclusiva competência dos tribunais portugueses
Alegou que o tribunal de trabalho brasileiro proferiu sentença sobre litígio emergente de relação jurídica administrativa, disciplinada pelo Decreto-Lei n.º 47/2013, de 5 de abril, quando a competência exclusiva compete aos tribunais administrativos.
Mais alega que é manifesta a má-fé com que a requerente litigou na ação interposta no Brasil, onde pretendeu obter ganhos em manifesta fraude à lei, pois em Portugal, nos tribunais administrativos, nunca conseguiria os resultados que conseguiu no Brasil, visto que o Consulado Geral de Portugal em São Paulo não seria obrigado a anotar a opção da Requerente pelo FGTS na sua carteira de trabalho, nem a pagar o recolhimento de FGTS na conta vinculada, nem o subsídio de férias e o 13.º salário de 2012, já que as duas primeiras obrigações não existem no direito administrativo português e todos os trabalhadores em funções públicas tiveram o pagamento dos seus subsídios de férias e 13.º mês (subsídio de Natal) cortados em 2012, por razões de ordem pública. Ao dirigir-se aos tribunais de trabalho brasileiros a requerente escolheu os tribunais onde as suas pretensões poderiam ser mais facilmente atingidas, em detrimento dos tribunais administrativos portugueses que seriam os internacionalmente competentes, nos termos do artigo 22.º do CPTA. Os tribunais portugueses não podem admitir que os tribunais de outro Estado apreciem a validade dos atos da administração pública portuguesa praticados com “ius imperii”.
Em abono da alegada competência exclusiva dos tribunais portugueses (administrativos) invocou o Decreto-Lei n.º 47/2013, de 5 de abril, o art.º 212.º, n.º 3 da CRP, o art.º 1.º, n.º 1 e 4º, nº 4, al. b) do ETAF, o art.º 12.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LTFP), aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, art.º 13.º e 22º do CPTA.  
Dispõe o art.º 980º, al. c) do CPC que “para que a sentença seja confirmada é necessário que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses”.
Em anotação a este preceito escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, CPC Anotado, Almedina, vol. II, pág. 427, “exige-se que os tribunais portugueses não sejam exclusivamente competentes (art.º 63º) e que a competência do tribunal estrangeiro não tenha sido provocada em fraude à lei, ou seja, que não tenha ocorrido uma manipulação de elementos de facto ou de direito dos quais dependa o estabelecimento da competência internacional do tribunal de origem (…).”
O art.º 63.º do CPC estabelece as matérias que são da exclusiva competência dos tribunais portugueses:
“a) Em matéria de direitos reais sobre imóveis e de arrendamento de imóveis situados em território português; todavia, em matéria de contratos de arrendamento de imóveis celebrados para uso pessoal temporário por um período máximo de seis meses consecutivos, são igualmente competentes os tribunais do Estado membro da União Europeia onde o requerido tiver domicílio, desde que o arrendatário seja uma pessoa singular e o proprietário e o arrendatário tenham domicílio no mesmo Estado membro;
b) Em matéria de validade da constituição ou de dissolução de sociedades ou de outras pessoas coletivas que tenham a sua sede em Portugal, bem como em matéria de validade das decisões dos seus órgãos; para determinar essa sede, o tribunal português aplica as suas regras de direito internacional privado;
c) Em matéria de validade de inscrições em registos públicos conservados em Portugal;
d) Em matéria de execuções sobre imóveis situados em território português;
e) Em matéria de insolvência ou de revitalização de pessoas domiciliadas em Portugal ou de pessoas coletivas ou sociedades cuja sede esteja situada em território português.”
A matéria objeto da sentença revidenda não está abrangida por qualquer das alíneas do art.º 63º do CC.
São do seguinte teor as normas invocadas pelo requerido:
- art.º 212.º, n.º 3 da CRP: “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.”
- art.º 1.º, n.º 1 do ETAF: “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto”.
- art.º 4º, nº 4, al. b) do ETAF: “Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público.”
- art.º 12.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LTFP), aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho: “são da competência dos tribunais administrativos e fiscais os litígios emergentes do vínculo de emprego público.”
- art.º 13.º do CPTA: “O âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais administrativos, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria”.
- art.º 22º do CPTA: “Quando não seja possível determinar a competência territorial por aplicação dos artigos anteriores, é competente o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.”
Nenhuma destas normas atribui competência internacional exclusiva aos tribunais administrativos, não constituindo equivalente ao disposto no art.º 63º do CC.
“… conforme já decidido no citado aresto do STJ de 05-04-2022, estas normas (…) não funcionam como critério de atribuição de competência internacional exclusiva, tarefa que se encontra atribuída tão só ao art.º 63.º do CPC.
Também neste aresto se afastou a possibilidade de o art.º 212.º, n.º 3, da CRP, funcionar como reserva de competência internacional exclusiva dos tribunais administrativos portugueses, e citando os constitucionalistas Jorge Miranda e Rui Medeiros, conclui que na doutrina dominante inexiste uma reserva absoluta material dos tribunais administrativos por força deste normativo, pelo que também não se mostra possível dali extrair uma reserva absoluta internacional de competência dos tribunais administrativos.” – citado ac. STJ de 25/01/2024.
Impõe-se concluir que a sentença não versa sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses.
Relativamente à fraude à lei o requerido citou o art.º 21º do CC, que dispõe: “na aplicação das normas de conflitos são irrelevantes as situações de facto ou de direito criadas com o intuito fraudulento de evitar a aplicabilidade da lei que, noutras circunstâncias, seria competente”.
A fraude à lei a que alude o art.º 980º, al. c) do CPC respeita à competência do tribunal, distinta da fraude à lei na aplicação das normas de conflito a que se refere o disposto no art.º 21º do CC.
Ora, os fundamentos invocados não são aptos a integrar o disposto na al. c) do art.º 980º do CPC, pois não vem alegado que a requerente tenha manipulado elementos de facto ou de direito com a finalidade de provocar a competência do tribunal estrangeiro.
Acresce que os elementos constitutivos da fraude à lei invocados também não preenchem a previsão da norma do art.º 21º do CC, concretamente que a requerente tenha criado situações de facto ou de direito com o intuito fraudulento de evitar a aplicação da lei que seria competente. 

6. Aferir se a sentença revidenda contém decisão cujo reconhecimento conduz a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
Argumenta o requerido que a sentença cuja revisão e confirmação se solicita aplicou direito privado laboral brasileiro a uma relação jurídica à qual é aplicável o direito administrativo português, circunstância que ofende também a ordem pública internacional do Estado Português, visto que viola a sua soberania, uma vez que tem de ser a lei administrativa portuguesa a prever o regime aplicável aos titulares de contratos de trabalho em funções públicas com o Estado Português. Da aplicação do direito estrangeiro cogente resulta uma contradição flagrante e atropelo grosseiro ou ofensa intolerável dos princípios fundamentais que enformam a ordem jurídica nacional; desde logo são violados os artigos 209.º, n.º 1, alínea a) e b), 211.º, n.º 1 e 212.º da CRP que consagram a existência na ordem jurídica portuguesa, de uma dualidade de jurisdições, de um lado os tribunais judiciais e do outro os tribunais administrativos e fiscais, a quem está cometido o julgamento das ações que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais. Aduziu, ainda, que a sentença brasileira, aplicando a lei laboral brasileira que prevê a irredutibilidade salarial, considerou ainda ilegal a suspensão do subsídio de férias e de Natal de 2012, operado através do artigo 21.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro (Lei do Orçamento de Estado de 2012) que foi aplicada a todos os trabalhadores em funções públicas, incluindo a requerente, tendo condenado o Consulado Geral de Portugal em São Paulo a pagar-lhe esse valor, tendo sido violado o princípio da igualdade previsto nos artigos 13.º e 266.º, n.º 2 da CRP, na medida em que o corte dos subsídios de Natal e de Férias de 2012 à requerente resultou da aplicação da lei portuguesa, que se aplicou igualmente a todos os restantes trabalhadores com contratos de trabalho em funções públicas da Administração Pública portuguesa, devendo considerar-se que este princípio faz parte da ordem pública internacional do Estado Português.
“... um dos impedimentos que obsta a que se reconheça uma decisão estrangeira é o resultado desse reconhecimento produzir uma violação dos princípios de ordem pública internacional do Estado português. (…) Antes de mais, o princípio que lhe subjaz é a excecionalidade da sua aplicação. Esta exceção permite ao julgador operar uma evicção do direito estrangeiro normalmente competente, afastando-o. Concretamente, o art.º 22.º do Código Civil (CC) é claro ao consagrar esse afastamento do direito estrangeiro quando razões de ordem pública internacional o imponham (mas este bloqueio deve ser excecional e só aplicado em casos limite). (…)
Com efeito, a ordem pública surge como um instrumento destinado a evitar que, em cada caso concreto, se produza na ordem jurídica do foro um efeito que esteja com ela numa contradição insuportável. A exceção apenas opera em relação àquela situação jurídica concreta que visa evitar que se realize, por isso é relativa, depende de caso para caso e do sistema jurídico em que se insere (tem um carácter nacional). Por outro lado, trata-se de um conceito indeterminado, que carece da concretização do juiz aquando da sua aplicação. Essa apreciação do juiz sobre quais os princípios que integram a ordem pública internacional do Estado do foro deve ser atual, pois este instituto é fruto de conceções que vigoram no próprio país onde a questão se põe, isto é, o juiz tem de defender o particularismo jurídico do seu Estado no momento em que se levanta a questão do reconhecimento.”  – Mariana Madeira da Silva Dias, “O Reconhecimento do Repúdio Islâmico pelo Ordenamento Jurídico Português: a exceção de ordem pública internacional”, in Revista Julgar, nº 23, 2014, p. 299-302.
E nas palavras de Baptista Machado, Lições de Direito Internacional Privado, p. 256, “o juiz precisa de ter à sua disposição um meio que lhe permita precludir a aplicação de uma norma de direito estrangeiro, quando dessa aplicação resulte uma intolerável ofensa da harmonia jurídico-material interna ou uma contradição flagrante com os princípios fundamentais que informam a sua ordem jurídica. Esse meio ou expediente é a exceção de ordem pública internacional ou reserva da ordem pública”.
“A ordem pública internacional de que há reserva na al. f) desse mesmo artigo entende-se como definida por cada Estado, com carácter valorativo e histórico, e como funcionando em cada caso concreto para repelir os resultados chocantes que poderiam advir da aplicação da lei estrangeira, em função das valorações económicas, sociais e políticas de que a sociedade não pode prescindir.
O advérbio de modo - " manifestamente " - constante dessa alínea evidencia a exigência do carácter ostensivo da violação e traduz com propriedade o carácter excecional da intervenção da ordem pública. (…)
Esta exceção de ordem pública internacional ou reserva da ordem pública só tem cabimento quando da aplicação do direito estrangeiro cogente resulte contradição flagrante, grosseiro atropelo ou intolerável ofensa dos princípios fundamentais que enformam a ordem jurídica do foro e, assim, a conceção de justiça de direito material tal como o Estado a entende.” – Ac. STJ de 08/07/2003, proc. nº 03B2106, disponível em www.dgsi.pt.
Da ordem pública internacional distingue-se a ordem pública interna, sendo esta enformada por “aquelas normas e princípios jurídicos absolutamente imperativos que formam os quadros fundamentais do sistema, sobre eles se alicerçando a ordem económico-social, pelo que são, como tais, inderrogáveis pela vontade dos indivíduos. São, pois, aquelas normas e princípios que se aplicam imperativamente e independentemente da vontade das partes.” – Mariana Madeira da Silva Dias, artigo citado, p. 300.
Só há que negar a confirmação das sentenças estrangeiras quando contiverem em si mesmas, e não nos seus fundamentos, decisões contrárias à ordem pública internacional do Estado Português – núcleo mais limitado que o correspondente à chamada ordem pública interna, por aquele historicamente definido em função das valorações económicas, sociais e políticas de que a sociedade não pode prescindir, e que opera em cada caso concreto para afastar os resultados chocantes eventualmente advenientes da aplicação da lei estrangeira.” (Ac. STJ de 21/02/2006, proc. nº 05B4168, in www.dgsi.pt).
Por tratar de situação idêntica, transcrevemos os fundamentos expostos no acórdão desta Relação, proferido em 27/10/2020, já citado, com os quais concordamos:
 “As relações jurídicas sobre as quais as decisões se debruçaram, ou seja, a relação entre os funcionários dos serviços periféricos externos do Estado Português e este, nesta veste de empregador, são materialmente direito laboral, seja em Portugal, seja no Brasil.
Como já referimos, a estes trabalhadores aplica-se, por via do disposto no art.º 2º nº1 do Decreto-Lei n.º 47/2013, de 5 de abril, a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas.
Este diploma regula o vínculo de trabalho em funções públicas (art.º 1º nº1), remetendo parte desse regime para o Código do Trabalho (que, em Portugal, regula o “direito privado laboral”), nos termos do respetivo art.º 4º.
Mas, especificamente quanto à aplicação desta lei aos serviços periféricos externos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, estabelece o nº5 do art.º 1º do diploma que: «A aplicação da presente lei aos serviços periféricos externos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, relativamente aos trabalhadores recrutados para neles exercerem funções, incluindo os trabalhadores das residências oficiais do Estado, não prejudica a vigência:
a) Das normas e princípios de direito internacional que disponham em contrário;
b) Das normas imperativas de ordem pública local;
c) Dos instrumentos e normativos especiais previstos em diploma próprio.
Ou seja, mesmo em termos de direito interno, o direito público aplicável ao caso concreto admite, quanto a certos aspetos, a aplicação de direito “privado” (no sentido de não público) às relações de emprego publico e, concretamente, quanto às concretas relações de emprego público do caso concreto admite a aplicação de normas imperativas de ordem pública local, sem distinguir, obviamente, se tais normas serão de natureza privada ou pública.
O único princípio que conseguimos retirar das normas internas é de que, por regra, às relações de emprego público se aplica direito público, mas que a essas relações também se pode, em determinadas circunstâncias, aplicar direito privado.
Assim sendo, não conseguimos concluir pela existência de um princípio estruturante do sentido ético-normativo da ordem jurídica interna com o conteúdo alegado que obrigue, por via da cláusula de reserva da ordem pública internacional, ao afastamento da aplicação de direito privado laboral estrangeiro a relações jurídicas às quais é domesticamente aplicável o direito público português.
Passando ao segundo segmento da alegação dirigida à invocação da reserva de ordem pública internacional, verifica-se que o princípio alegado como violado é uma regra constitucional que tutela direitos fundamentais, o princípio da igualdade, pelo que sempre termos que verificar se, com esta decisão, resulta uma desigualdade material.
O requerido argumenta a existência de desigualdade no afastamento da lei portuguesa pelos tribunais de trabalho brasileiros dado que a lei afastada por aqueles tribunais foi aplicada igualmente a todos os restantes trabalhadores da administração pública portuguesa.
O princípio da igualdade, encontra-se consagrado na CRP nos seguintes termos: Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei (art.º 13º, nº 1, concretizando o nº 2 do preceito este princípio geral).
A proteção conferida por este direito abrange a proibição do arbítrio (proíbe diferenciações de tratamento sem justificação objetiva razoável ou identidade de tratamento em situações objetivamente desiguais) e da discriminação (não permite diferenciações baseadas em categorias subjetivas ou em razão dessas categorias).
Na sua vertente de proibição de arbítrio constitui um limite externo da liberdade de conformação ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como princípio negativo de controlo: nem aquilo que é fundamentalmente igual deve ser tratado arbitrariamente como desigual, nem aquilo que é essencialmente desigual deve ser arbitrariamente tratado como tal.
Valendo como princípio objetivo de controlo esta regra “não significa em si mesma, simultaneamente, um direito subjetivo público a igual tratamento, a não ser que se violem direitos fundamentais de igualdade concretamente positivados (por exemplo, igualdade dos cônjuges) ou que a lei arbitrária tenha servido de fundamento legal para atos da administração ou da jurisdição lesivos de direitos e interesses constitucionalmente protegidos.”
Na vertente de proibição de discriminações a regra não significa uma exigência de igualdade absoluta em todas as situações, nem proíbe diferenciações de tratamento. “O que se exige é que as medidas de diferenciação sejam materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da proporcionalidade, da justiça e da solidariedade e não se baseiem em qualquer motivo constitucionalmente impróprio.”
Gomes Canotilho e Vital Moreira sublinham ainda que as decisões mais recentes do Tribunal Constitucional continuam a assinalar corretamente que o princípio da igualdade obriga a que se trate por igual o que for necessariamente igual e como diferente o que for essencialmente diferente, não impedindo a diferenciação de tratamento, mas apenas as discriminações arbitrárias, irrazoáveis, ou seja, as distinções de tratamento que não tenham justificação e fundamento material bastante, sendo o ponto central da discussão em torno do princípio da igualdade “saber se existe fundamente material bastante para diferenciações de tratamento jurídico, o que nem sempre é fácil de averiguar…”
No caso concreto temos trabalhadores dos serviços periféricos externos do Ministério dos Negócios Estrangeiros que, prestando o seu trabalho no Brasil, se entenderam prejudicados por um ato regulamentar (Decreto Regulamentar nº 3/2013) que procedeu à indexação dos salários dos reclamantes a cotação fixa do euro a partir de setembro de 2013.
Este ato, aplicado a todos os trabalhadores dos serviços periféricos externos do Ministério dos Negócios Estrangeiros em todos os locais e países onde estes se encontram, regulamenta o disposto no nº 1 do art.º 12º do Decreto-Lei n.º 47/2013 de 27 de abril - «As tabelas remuneratórias dos trabalhadores dos SPE do MNE, fixadas por país e por categoria, em euros, salvo nos casos em que seja obrigatório o pagamento na moeda local, são aprovadas por decreto regulamentar, o qual deve estabelecer os respetivos critérios.»
Os trabalhadores a prestar serviço no Brasil estão numa situação objetivamente diversa dos demais trabalhadores da administração pública portuguesa e mesmos dos demais trabalhadores dos serviços periféricos do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
A própria lei reconhece a diversidade destes trabalhadores em relação aos demais trabalhadores da administração pública (com a regra do art.º 12º do Decreto-Lei n.º 47/2013) e reconhece mesmo a diferenciação destes trabalhadores entre si, de local para local, de país para país, ao prever, no nº 4 do já referido art.º 12º que: «Em caso de acentuada perda de poder de compra em qualquer país pelo efeito isolado ou conjugado da inflação e da variação cambial, designadamente quando se verifique que a remuneração base mensal é inferior ao salário mínimo local, pode haver lugar à revisão intercalar das respetivas tabelas remuneratórias.»
Não pode, assim, argumentar-se com a violação do princípio da igualdade entre estes específicos trabalhadores representados da requerente e todos os demais trabalhadores da administração pública portuguesa.
E a ausência de similitude que permitisse a conclusão pela violação do princípio da igualdade resulta, quanto a nós, tanto mais evidente quanto o resultado que se entende violador é uma sentença judicial.
A sentença revidenda não formou caso julgado em relação a todos os outros trabalhadores da administração pública portuguesa, nem o formou sequer em relação aos demais trabalhadores dos serviços periféricos externos do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Nem nunca o poderia fazer, pois enquanto que, por via do comando constitucional, a lei não pode operar discriminações, um processo judicial não obedece à mesma lógica, porque o tribunal julga um caso em concreto e não todos os outros casos equiparáveis existentes.
O princípio constitucional da igualdade não exige a qualquer tribunal, nacional ou estrangeiro, que julgue como se legislasse, não sendo esse o alcance do preceito constitucional em causa.
Assim, por esta via não surpreendemos igualmente qualquer fundamento para fazer operar a cláusula de reserva de ordem pública internacional do Estado português.”
Em suma, não se observa que o reconhecimento da sentença do tribunal de trabalho brasileiro conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
*
A sentença revidenda consta de documento sobre cuja autenticidade e inteligência não suscitam dúvidas (art.º 980º, al. a) do CPC).
Não se verifica a falta dos requisitos enunciados nas alíneas b), d) e e) do art.º 980º do CPC.
Improcedem todos os fundamentos da impugnação, mormente os elencados nas alíneas c), d) e f) do citado preceito.
Verificam-se, pois, os pressupostos legais de revisão e confirmação.
Pelo exposto, julga-se procedente a presente ação, confirmando-se a sentença, que passará a ter eficácia na ordem jurídica portuguesa, proferida pela 3.ª Vara do Trabalho de Santos, Brasil, que condenou o Consulado Geral de Portugal em S. Paulo, Brasil:
Na obrigação de fazer relativa a;
- Anotação da opção pelo FGTS na CTPS da reclamante.
Na obrigação de pagar relativa a:
- Recolhimentos de FGTS a partir da data de 05.10.1988 na conta vinculada sob pena de execução direta nos autos;
- Pagamento de férias + 1/3 e 13° salário de 2012.
Tudo nos termos da fundamentação que integra este ‘decisum’.
Autorizo, ainda, a dedução de todos os valores já pagos a idênticos títulos aos ora deferidos, já comprovados nos autos, a fim de se evitar o enriquecimento sem causa da parte reclamante
Liquidação de sentença na forma da lei.
Correção monetária na forma da Súmula 381 do C.TST e juros a partir do ajuizamento da ação, no percentual de 1% ao mês.
Conforme art.º 832, §3°, CLT, são salariais as seguintes verbas deferidas nesta sentença: 13° salário.
Responsabilidade pelo recolhimento fiscal e previdenciário pela parte reclamada, observada a discriminação supra, relativos às parcelas objeto de condenação, autorizada a dedução da parte cabível peia parte reclamante.
Custas a cargo da parte reclamada no importe de R$-3.000,00, calculadas sobre o valor da condenação arbitrado em R$ 150.000,00”, cuja responsabilidade foi liquidada nos termos constantes do facto provado nº 2 supra.
Face ao preceituado nos art.º 296º a 306º do CPC, fixa‑se à causa o valor processual de € 30.000,01.
Custas pelo requerido.

Lisboa, 15 de maio de 2025
Teresa Sandiães
Rui Manuel Pinheiro de Oliveira
Maria Carlos Duarte do Vale Calheiros