Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1987/24.3T8OER.L1-6
Relator: CLÁUDIA BARATA
Descritores: ANIMAL
DIREITO DE PERSONALIDADE
DIREITO AO REPOUSO
DIREITO DE PROPRIEDADE
CONFLITO DE DIREITOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/06/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - Os animais actualmente não são apenas meras coisas. São seres vivos, irracionais, mas com sentimentos e com protecção que tem vindo a ser consagrada na nossa Ordem Jurídica.
II - Desde a entrada em vigor da Lei nº 8/2017, os animais não são coisas, sendo que, embora não sejam titulares de direitos por falta de personalidade jurídica, devem ao menos ser-lhes reconhecidos, no campo do Direito, interesses juridicamente protegidos, por serem, nos termos do artigo 201º-B do Código Civil, “seres vivos dotados de sensibilidade e objecto de protecção jurídica em virtude da sua natureza.”
III - A protecção jurídica de que gozam traduz-se desde logo no bem-estar que deve ser-lhes assegurado pelo respectivo proprietário, nos termos do artigo 1305º-A, nº 1, do Código Civil.
IV- Todavia, o Homem, enquanto ser humano também é titular de direitos, tais como os direitos de personalidade.
V – O direito ao repouso é um direito de personalidade que beneficia da tutela do citado artigo 70º do Código Civil.
VI - Todavia, para além da tutela do Direito da Personalidade, a Constituição da República Portuguesa e a lei ordinária, também reconhece e assegura o direito à propriedade privada (artigo 62º, nº 1 da Constituição da República).
VII - Quer o direito à saúde e ao repouso, quer o direito da propriedade privada têm consagração na lei fundamental e, por vezes, estes direitos são conflituantes entre si, impondo-se dirimir o conflito de direitos que daí decorre. Só há conflito de interesses quando existem dois direitos diferentes, pertença de titulares distintos e não se mostre viável o exercício simultâneo e integral de ambos os direitos.
VIII - Não havendo possibilidade de harmonizar os direitos em conflito, a solução terá de passar pela prevalência de um deles em relação ao outro, apurando se deverá existir uma limitação ao exercício dos direitos dos Recorrentes e, em caso afirmativo, em que medida deverá operar essa limitação.
IX - Tendencialmente o direito de personalidade prevalece sobre o direito de propriedade. Todavia, mostra-se necessário ponderar o caso concreto de modo a que da prevalência de um direito relativo à personalidade não resulte uma grande desproporção do direito menor, isto é, do direito de propriedade, isto porque a prevalência também tem ela própria de respeitar o princípio da adequação, da proporcionalidade e da razoabilidade.
X - Impõe-se concluir que estamos perante uma situação de superioridade dos direitos de personalidade sobre os direitos de propriedade, que justifica que, atentos os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, se imponha aos Recorrentes o sacrifício do seu direito.
(Sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório:
XXXXXX, intentou ao abrigo do disposto nos artigos 878º a 880º do Código de Processo Civil Acção Especial de Tutela da Personalidade contra VVVVV, requerendo que o pedido de retirada do cão do 3º andar seja julgado procedente, por provado, e, em consequência ser o Requerido condenado a proceder à retirada do cão do 3º andar (imóvel em que reside) no prazo máximo de 30 (trinta) dias contado da data do trânsito em julgado da decisão e seja fixada sanção pecuniária compulsória ao Requerido, no valor de €150,00 (cento e cinquenta euros) por cada dia de atraso no cumprimento da decisão de retirada do cão do 3º andar.
A Requerente alegou, em suma, que vive no 2º andar esquerdo e que o Requerido vive no 3º andar do mesmo prédio. O Requerido tem um cão que permanece a maior parte do tempo no terraço da fracção do Requerido e que ladra por horas seguidas, ladrar que a Requerente qualifica de persistente, prolongado, incomodativo, ocorrendo a qualquer hora do dia ou da noite, sem aparente motivo justificado.
Não obstante, quer a Requerente, quer a assembleia de condóminos terem apresentado junto do Requerido várias propostas no sentido de encontrarem uma solução o certo é que, ainda assim, persiste o ladrar do cão com grave prejuízo para a saúde da Requerente.
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Contestando, veio o Requerido defender-se por excepção invocando, em síntese, que a Recorrida não invocou a prática de qualquer acto voluntário e ilícito passível de ameaçar ou de ter ofendido qualquer direito de personalidade da Requerente.
Impugnou ainda parte dos factos alegados, defendendo que já realizou diligências de veterinários, socorrendo-se de equipamentos tais como coleiras e açaimes que colocou no seu cão a fim de o silenciar, mas sem sucesso. Tem mantido uma atitude colaborante com os demais condóminos, mas, que, de todo o modo, não lhe pode ser retirado o direito de ter consigo o seu cão, o qual, ademais, se torna necessário para recuperação da doença de que padece a sua mulher.
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Foi marcada data para a realização da audiência final.
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Oficiosamente, com vista a suprir a excepção de legitimidade passiva, foi a Requerente convidada a deduzir incidente de terceiro.
Deduzido, foi proferida decisão de admissão da intervenção principal provocada passiva de BBBBBBBB.
Citada, a Requerida não deduziu contestação, bem como não teve qualquer intervenção nos autos.
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Foi realizada audiência final.
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Foi proferida sentença nos seguintes termos:
“(…)
V-DECISÃO:
Nestes termos e com tais fundamentos julga-se procedente por provada a presente ação de tutela da personalidade e, em consequência:
1 – determina-se que o VVVVV e Interveniente Principal BBBBBB para, no prazo de 45 (quarenta e cinco) dias, improrrogável, após o trânsito em julgado da presente decisão, proceder à retirada do cão do imóvel em que reside;
2 – condena-se ainda o Requerido VVVV e Interveniente Principal BBBB a pagarem à Requerente pagar a quantia de € 150,00, a título de sanção pecuniária compulsória, por cada dia de atraso no cumprimento desta providência.(…).”
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Inconformado com a decisão, veio o Requerido dela interpor recurso, apresentando as suas alegações com as seguintes conclusões:
“1.ª Uma grande parte dos factos dados como provados (adiante FP) representa simples transcrição de mensagens e e-mails enviados, sendo que, nesses casos, o que representa FACTO PROVADO é apenas o envio desses emails e mensagens, e não os factos e eventos a que cada mensagem ou e-mail se referem.
2.ª O litígio a que respeita o presente recurso corresponde a um caso de conflito de direitos pessoais, ambos com reconhecimento constitucional, em que, de um lado estão o direito de propriedade e o direito à tranquilidade e ao sono, na esfera jurídica da Apelada e, do outro, o direito dos Apelantes a terem consigo, no seu andar, um animal de companhia, no caso um cão a que ela e seu marido estão há mais de 14 anos ligados e pelo qual têm uma grande afeição.
3.ª A apreciação e a decisão desse litígio só pode ter lugar em termos correctos e justos se não se esquecer o próprio animal que está na origem da lide e a sua ligação de cerca de quinze anos aos Apelantes.
4.ª Desde a entrada em vigor da Lei n.º 8/2017, os animais não são coisas, sendo que, embora não sejam titulares de direitos por falta de personalidade jurídica, devem ao menos ser-lhes reconhecidos, no campo do Direito, interesses juridicamente protegidos, por serem, nos termos do artigo 201-B do Código Civil, “seres vivos dotados de sensibilidade e objeto de proteção jurídica em virtude da sua natureza.”
5.ª A protecção jurídica de que gozam traduz-se desde logo no bem-estar que deve ser-lhes assegurado pelo respectivo proprietário, nos termos do artigo 1305-A, n.º 1, do Código Civil.
6.ª No actual quadro normativo, é imprescindível atender não apenas aos interesses das partes do processo mas, também, aos do próprio animal, e ter-se presente que os animais de companhia têm especial relevância e, naturalmente, o favor do legislador, sendo que a decisão impugnada não teve em conta, na justa medida, a posição do animal em causa, posição que tinha e tem de ser minimamente acautelada, nem a essencialidade da ligação do cão “LLLL” aos Recorrentes.
7.ª A determinação decidida na sentença que obrigará, após trânsito, à retirada do cão do imóvel em que reside, e no prazo de 45 dias, é a segunda mais grave (logo a seguir à “pena máxima”, a ordem de abate do animal) das medidas que, no caso, o douto tribunal poderia impôr, penalizando, ao mesmo tempo, o próprio animal (privando-o da companhia dos seus donos que o têm mantido, tratado e protegido desde há uma década e meia) e, sobremaneira, os próprios Apelantes;
8.ª Cingindo-se a ordenar a retirada do cão do prédio onde as partes residem, sem mais nada prever ou dispôr quanto ao que será a vida futura daquele, à guarda de quem e em que condições, a sentença recorrida, em boa verdade, não acautela a hipótese de o cão ser remetido a uma situação que, no limite, represente o seu abandono.
9.ª O conteúdo decisório das sentenças tem de assentar na factualidade que o/a Juiz tiver considerado provada e é nesse conspecto o que tinha de ser visto era se, com esse concreto “material” fáctico, a aplicação do direito a tal factualidade foi feita de modo que mereca acolhimento.
10.ª Sucede que os factos dados com provados não sustentam a drástica decisão de retirada, sem mais, do cão a que a acção respeita, antes são insuficientes para suportá-la, o que gera uma grave lesão dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade,
11.ª A sentença impugnada, argumentando para tal apenas com a idade da Apelada e com o facto de o andar da Apelada se situar imediatamente por baixo do andar dos Apelantes, considerou ser de aceitar existir uma relação de causalidade adequada, pelo menos em parte, entre, por um lado, o ladrar e latidos do cão do Requerido e Interveniente Principal, e, por outro, a diminuição da qualidade de vida da Requerente, quando se sente intranquila, desassossegada e com dificuldade em dormir.
12.ª A idade da Apelada, estando em causa a perturbação do sono por ela invocada, não tem a relevância atribuída na sentença, já que, «à medida que se avança na idade, as horas de sono de que as pessoas necessitam vai-se alterando, sendo aceite, inclusivamente pela Organização Mundial de Saúde, que as pessoas com mais de 65 anos devem dormir de 7 a 8 horas, menos e não mais, horas de sono do que os adultos não idosos.
13.ª Estando a Apelada está aposentada e em casa, tem maior liberdade na fixação dos horários concretos em que deve dormir.
14.ª No FP n.º 13, em que se lê que “O cão ladra de forma persistente, durante a manhã, a tarde e durante a noite, o que acontece quase diariamente..” resulta ficar-se sem saber se com isso se quis aludir ao ladrar durante a noite ou, pelo contrário, ao ladrar persistente em geral (manhã, tarde e noite), não podendo entender-se provado que a frequência “quase diária” (o que é já bastante vago) se refere apenas ao ladrar à noite e, muito menos, que, quando ladra à noite , o cão o faz “de forma persistente”.
15.ª Aludir a um ladrar “persistente”, para poder ter significado atendível, teria de implicar ser dito em que consiste essa persistência, indicando-se, ao menos com alguma aproximação, o número de vezes em que, habitualmente, o cão ladra.
16.ª No ponto 14 dos FP, lê-se que “quando o cão ladra e gane durante a noite, o que acontece várias vezes por volta da meia-noite, a Requerente fica sobressaltada e com dificuldades em adormecer.”, sendo manifesto que a referência a “várias vezes por volta da meia-noite” é igualmente de uma imprecisão que tem de levar-se em conta, sendo que, quanto a, nessas ocasiões, a Apelada ficar sobressaltada e com dificuldades em adormecer, trata-se manifestamente de juízos conclusivos que são baseados apenas no que é referido pela própria, até porque ela vive sózinha, como consta do ponto 4 dos Factos Provados, pelo que a sua afirmação não pode ser corroborada por ninguém.
17.ª Revela-se que o ladrar do cão à noite, que por vezes acontece, surge sempre por volta da meia-noite (quando os Apelantes recolhem ao leito), podendo inferir-se com segurança que, no resto da noite, o cão se mantém silencioso, pelo que, à noite (e é à noite que o sono mais importa e é mais preciso e reparador), o problema alegado pela Apelada terá que ver com ficar “sobressaltada” e ter dificuldade em voltar a adormecer.
18.ª A ser como alega, a solução é fácil e está “nas mãos” da própria Apelada, a quem bastará retardar um pouco o início do seu sono à noite (o que, estando sempre em casa durante o dia, podendo fazer uma ou mais pequenas sestas, não representa dificuldade para ela), de modo que, se o cão ladrar e silenciar depois, a Apelada pode tranquilamente deixar-se dormir, sem lugar para mais sobressaltos com origem no canino, e se, como sucederá na grande maioria das noites, o cão não ladrar por volta da meia-noite, bastará à Recorrida esperar uns vinte ou trinta minutos para se remeter ao sono, sem problemas, pelo que o esporádico ladrar do cão “pela meia noite”, não impede a Apelada de ter sossego e de dormir “durante a noite”, não podendo aceitar-se os juízos conclusivos vertidos em sentido oposto .
19.ª É irrelevante a afirmada existência de os ruídos aí visados serem ouvidos em prédios contíguos, pois o que importava apurar era, naturalmente, os ruídos ouvidos no interior do apartamento da Apelada, sendo que NÃO EXISTIU QUALQUER MEDIÇÃO OU AFERIÇÃO DESSES RUÍDOS.
20.ª Não tem qualquer valor o atestado médico referido no ponto 50 dos FP, especialmente quando alude a alterações fisicas e psíquicas da Apelada e diz serem devidas a estar sujeita a ruído contínuo de forma prolongada.
21.ª Como documento particular, tal atestado não passa de testemunho baseado nos conhecimentos especializados de quem o passou, mas sujeito à livre apreciação do tribunal, não tendo cabimento que se ateste a falada sujeição prolongada a um ruído contínuo, sendo que o Tribunal não se pronuncia sobre a veracidade do que foi atestado, não tendo procedido a qualquer aferição da validade do mesmo e da veracidade da situação patológica da Apelada e das suas causas invocadas no atestado.
22.ª Resulta dos pontos 53 e 54 dos FP, no que ao período nocturno diz respeito, que o cão ladra “várias vezes pela meia-noite” (ponto 53) ou ladra e gane “pela meia-noite – o que sucede amiúde”.
23.ª É posto em causa, quanto a ruídos nocturnos provocados pelo cão, que isso acontece “pela meia-noite” e não está provada a frequência com que tal acontece; resultando aliás, da formulação usada no ponto, que se trata de um evento que, quando ocorre, se limita a acordar a Apelada naquele momento, nada tendo que ver com a dificuldade alegada de retomar, durante horas, o sono, dificuldade essa que é nitidamente uma prova impssível de ser feita com um mínimo de credibilidade.
24.ª A douta sentença, no segmento em que alude aos FACTOS NÃO PROVADOS, apenas se refere a um facto (o ano da aposentação da Apelada), nenhuma referência fazendo aos inúmeros factos relevantes alegados na nada ser referido quanto ao que foi invocado nos artigos da contestação, nem quanto aos documentos apresentados pelos Apelantes, sendo certo que, quanto a estes, mais de estranhar é a sua completa omissão, muito embora, estando nos autos, o venerando tribunal “ad quem” possa sempre levá-los em consideração.
25.ª No campo da FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO, escreveu-se na sentença ora impugnada o seguinte:
<< Deste modo, visto não terem surtido efeito as conversas, comunicações escritas, a realização das assembleias de condóminos para sensibilização do Requerido e Interveniente Principal, o que que parece ter acontecido foi a tomada de medidas desastradas que não surtiram efeito alguém, mas se tratando de medidas suscetíveis de causarem dor e alvoroço no cão como seja a imposição de uma coleira de choques, proibida já na maioria dos países europeus e o açaime que não é adequado para por fim ao ladrar. O cão ladra de forma persistente porque terá alguma razão para isso. Resta prestar atenção e cuidar e é o que devem fazer os donos. >>
26.ª Apesar de, como já ficou invocado, os factos mencionados em e-mails e transcritos como FP não podem como tal ser considerados, conclui-se que, no conjunto dos pontos dos FP, é no ponto 31 que a passagem da sentença que ficou transcrita na conclussão antecedente se terá baseado para as afirmações ali expendidas, sucedendo que, nessa passagem, alude-se ao que “parece ter acontecido”, o que, salvo o respeito devido, não é aceitável como fundamento de decisão (“parece?”!)
27.ª A decisão da acção que se justifica, no plano da aplicação do direito, tem de assentar na própria matéria de facto considerada provada, tal como surge no elenco dos FP contido na sentença, sendo irrelevantes para o efeito de se sobreporem ou anteporem a esse acervo probatório (concorde-se ou não com o mesmo) juízos conclusivos levados à sentença.
28.ª Como se escreveu no Acórdão do STJ de 1-10-2024,
“ (…) Há que averiguar se face à situação fáctica apurada a prevalência de um direito relativo à personalidade não resulta em desproporção inaceitável, uma vez que o sacrifício e limitação do direito considerado inferior – direito de propriedade - deverá apenas ocorrer na medida adequada e proporcionada à satisfação dos interesses tutelados pelo direito dominante, sendo necessário recorrer aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, apreciando em que medida é que o sacrifício que se impõe ao titular de um direito se justifica face à lesão do outro, afastando o uso de um meio intolerável para quem é afectado pela medida restritiva.
O descanso e tranquilidade dos autores é um direito de personalidade.
A intensa e imperiosa convivência entre as pessoas leva a considerar que nas relações de vizinhança há que tolerar, obviamente até certo ponto, algum ruído e alguma incomodidade que todos causam uns aos outros, havendo que respeitar o equilíbrio entre os direitos lesados e o direito a sacrificar (princípio da proporcionalidade), sob pena de uso de um meio intolerável para os Réus, afectados pelas medidas restritivas requeridas (princípio da razoabilidade).>>
29.ª Por outro lado, são esclarecedoras as observações contidas no Acórdão da Relação de Guimarães de 29-10-2003 e na sua passagem seguinte:
<< No tocante à concreta providência a adoptar, estabelece o art. 878.º do CPC que deve ser decretada a providência concretamente adequada a evitar a consumação de qualquer ameaça ou a fazer cessar os efeitos da ofensa já cometida. Destarte, e apesar de já não estarmos perante um processo de jurisdição voluntária, é deixada ao julgador uma larga margem de discricionariedade que lhe permite decretar a providência que considere mais adequada para o caso sub judice, mas nunca ultrapassando o necessário para acautelar o direito de personalidade em questão, lesando o menos possível terceiros. É a própria letra da lei que estabelece que deve ser decretada a providência adequada, excluindo, assim, o excesso. De acordo com Pedro Pais de Vasconcelos, in Direito de Personalidade, p.127. «há que encontrar, caso a caso, um equilíbrio entre o mínimo possível de lesão ou incómodo a terceiros e a eficácia necessária».
30.ª No caso em presença, a decisão de retirada do cão do imóvel (que o mesmo é dizer, da convivência dos seus donos, privando estes da sua inestimável e bem antiga companhia) configura, salvo melhor juízo, precisamente um caso de excesso da medida adoptada, por demasiado radical e por desconsiderar por completo os Apelantes, o animal e a relação entre este e aqueles.
31.ª Acresce haver lugar a dúvidas que desaconselham a adoção da medida radical, por isso que a própria sentença, no segmento decisório (seu primeiro parágrafo, na pág. 29) reflecte essas dúvidas ao afirmar ser de aceitar a existência, entre os ruídos do cão e a invocada intranquilidade, desassossego e dificuldade em dormir da Apelada de uma relação de causalidade adequada, pelo menos em parte,
32.ª No entender dos Apelantes, a distinta Juiz terá tido em mente que, durante o dia, muitas são as origens de ruídos incomodativos que as pessoas especialmente em meios urbanos muito povoados se vêm obrigadas a suportar e que, assim, o ladrar do cão dos autos será uma de várias causas que estejam a afectar o sossego e o sono da Apelada.
33.ª Mas, a ser assim, resultará descaracterizado por completo o princípio da causalidade adequada reconhecido pela nossa legislação civil, já que, a haver várias causas susceptíveis comprovadamente de gerar os efeitos negativos em presença, deixa de poder afirmar-se haver causalidade adequada entre os ruídos do cão e a intranquilidade e desassossego da Apelada.
34.ª Amedida de retirada do cão do imóvel e do convívio com os Apelantes, é excessiva e viola os princípios legais da proporcionalidade e da razoabilidade.
35.ª Na douta sentença não foi devidamente atendida a ligação existente, e velha de década e meia, entre o cão e os Apelantes e que ficou patente que os Apelantes se têm empenhado em assegurar o mais e melhor possível o tratamento do cão, no sentido de procurar cura ou minimização para a alteração comportamental do animal,
36.ª Foram juntos aos autos, com a contestação, vários relatórios médicos alusivos a essa verdadeira “cruzada” dos Apelantes no sentido de conseguir a cura ou minimização dos efeitos da doença do “LLLLL”.
37.ª Foi junto como doc. 10 da contestação, um Atestado de Doença da Apelante Mulher, apresentado para corroborar o que se alegou no artigo daquele articulado (“Acresce que a retirada do cão tem consequências diretas na saúde emocional e mental da esposa do Requerido, pessoa que tem estado sujeita a acompanhamento médico, sendo muito importante a presença do cão na terapia, conforme atestado médico em anexo (DOC. 10). “
38.ª Acreditam os Apelantes que os aspectos focados nos documentos acabados de referir e, em especial, no Doc. 10 da contestação não mereceram do Tribunal a atenção devida e que, se tivesse sucedido o contrário, outra e bem diferente teria sido a decisão proferida, sendo de notar que, a sentença apenas “moderou” s medida decretada ao fixar em 45 (e não 30 como a Apelada impetrara) prazo de cumprimento da medida, sendo esta “concessão” claramente insignificante, nada sendo. referido quanto aos efeitos negativos para a saúde da Apelante Mulher que havia que atender, como seria necessário para se atingir uma solução de equilíbrio, em que não se lesassem em demasia os direitos dos Apelantes.
39.ª Resta dizer que, a ser confirmada a procedência da acção, e pondo-se de parte a solução radical de retirada quase imediata e definitiva do “LLLLL”, sempre poderiam ser ponderadas outras soluções menos gravosas (por exemplo com a fixação de um determinado período do dia em que os Apelantes ficariam obrigados a não ter o cão em casa, para que a Apelada pudesse descansar a seu contento).
40.ª A douta sentença que se impugna e decretou a retirada do cão do imóvel, violou, por erro de interpretação e de aplicação, os princípios da proporcionaldade e da razoabilidade e os preceitos dos artigos 18.º, 25.º, 64.º, 65.º e 66.º da Constituição da República, dos artigos 70.º, 201.º-B e 1305.º-A, n.º1, do Código Civil, bem como os artigos 878.º a 880.º do Código de Processo Civil
41.ª Deve, pois, ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença e absolvendo-se os Apelantes dos pedidos.
42.ª Assim decidindo, Vossas Excelências farão, uma vez mais, sã e verdadeira
JUSTIÇA.”
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Não foram apresentadas contra alegações.
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II. O objecto e a delimitação do recurso
O objecto do recurso é definido pelas conclusões da recorrente nos termos dos artigos 5º, 635º, nº3 e 639º nºs 1 e 3, todos do Código de Processo Civil.
A delimitação objectiva do recurso tem sempre que se balizar pelo teor das conclusões da recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem prejuízo das questões que são de conhecimento oficioso, porquanto os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova.
No recurso, enquanto meio impugnatório de decisões judiciais, só tem de se suscitar a reapreciação do decidido, não comportando a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal de 1ª instância.
Acresce ainda que o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio, mas sim uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a incorrecta fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito aplicável). Partindo desta premissa, o recorrente tem o ónus de alegar e de indicar, de acordo com o seu entendimento, as razões porque a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que ela padece, sob pena de indeferimento do recurso.
Por último, o Tribunal de recurso não está vinculado à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Efectuada esta breve exposição e ponderadas as conclusões apresentadas, as questões a dirimir são:
- Da impugnação da matéria de facto;
– Da errada interpretação e aplicação do direito.
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III. Os factos
No Tribunal recorrido foram considerados:
III. 1. Como provados os seguintes Factos:
“1. A Requerente nasceu no dia -----------. [do art.º 1.º - requerimento inicial]
2. A Requerente é a proprietária e legítima possuidora, da fração autónoma identificada sob a letra ------------------
3. A Requerente reside na fração identificada supra há mais de 23 (vinte e três) anos. [dos art.º 4.º e 5.º - requerimento inicial]
4. Aí vive diariamente, sozinha, dorme, trata da sua higiene pessoal e faz as suas refeições. [dos art.º 6 .º e 7.º - requerimento inicial]
5. É no 2.º Esq. que a Requerente recebe amigos e familiares e onde passa a grande parte do seu tempo. [dos art.ºs 8.º e 9.º - requerimento inicial]
6. Atualmente a Requerente encontra-se aposentada [dos art.ºs 2.º - requerimento inicial]
7. O Requerido é proprietário da fração autónoma identificada sob a letra -----------------
8. O 3.º andar é o piso imediatamente acima do 2.º Esquerdo. [do art.º 11.º - requerimento inicial]
9. Uma parte do terraço do 3.º andar fica por cima do quarto e da sala do 2.º esquerdo voltados a poente. [do art.º 13.º - requerimento inicial]
10. Sendo que a maior parte do terraço do 3.º andar fica voltada a sul. [do art.º 14.º - requerimento inicial]
11. O Requerido é detentor de um cão de porte médio, de raça indeterminada (de ora em diante, apenas o “cão”). [do art.º 15.º - requerimento inicial]
12. O cão está alojado no 3.º andar. [do art.º 16.º - requerimento inicial]
13. O cão ladra de forma persistente, durante a manhã, a tarde e durante a noite, o que acontece quase diariamente. [do art.º 17.º - requerimento inicial]
14. Quando o cão ladra e gane durante a noite, o que acontece várias vezes por volta da meia-noite, a Requerente fica sobressaltada e com dificuldades em adormecer. [do art.º 18.º - requerimento inicial]
15. O cão permanece longas horas no terraço do 3.º andar, sem qualquer presença humana, ladrando e produzindo ruídos reiterados, que são ouvidos inclusivamente em prédios contíguos. [do art.º 20.º - requerimento inicial]
16. A Requerente tem de sair de casa por diversas vezes por não aguentar os latidos e o ganir do cão. [do art.º 21.º - requerimento inicial]
17. Pode acontecer o cão ladrar e ganir durante horas, ainda que com intervalos para voltar a ladrar e ganir. [do art.º 19.º - requerimento inicial]
18. Em termos acústicos, ouve-se o cão no prédio e na rua. [do art.º 24.º - requerimento inicial]
19. Os vizinhos do lote 1, que se trata de outro condomínio, ouvem o cão. [do art.º 25.º - requerimento inicial]
20. No interior do 2.º Esq., o cão ouve-se, seja com as janelas abertas, seja com as janelas fechadas. [do art.º 26.º - requerimento inicial]
21. No interior do prédio, os latidos e o ganir do cão ouvem-se no interior do elevador. [do art.º 28.º - requerimento inicial]
22. O cão é ouvido nos acessos ao prédio, na rua e noutros condomínios. [do art.º 29.º - requerimento inicial]
23. A situação agravou-se há pouco mais de 2 (dois) anos para cá. [do art.º 23.º - requerimento inicial]
24. Nos últimos anos foi muito raro os moradores no condomínio verem o cão na rua. [do art.º 30.º - requerimento inicial]
25. No dia 17.02.2022, pelas 10:58, a Requerente enviou a seguinte mensagem ao Requerido;
“Bom dia!/Espero que estejam bem./O que se passa com o vosso cão? Provavelmente não estão em casa, quando ele não pára de ladrar, como está a acontecer agora. Tenho adiado esta mensagem, mas tinha que vos dizer o que acontece em particular da parte da manhã. (…)” [do art.º 32.º - requerimento inicial]
26. No dia 10.05.2022, a Requerente enviou e-mail para o Requerido, no qual referiu o seguinte:
“Bom dia, VVVV/Desde um pouco antes das 9h da manhã que o vosso cão está a ladrar quase constantemente./De certo estão fora, mas para quem está em casa torna-se muito incómodo./O que diz o veterinário?/Muito provavelmente, já procurou informação, mas hoje lembrei-me de ver no Google o que há sobre cães stressados e encontrei, entre outros, o site de que lhe envio o link. /Desculpe, mas este é um problema que afeta os vários condóminos, porque até na rua e junto à Clínica Médica se ouve o ladrar do cão./Abraço/XXXX/https://www….. /”[do art.º 33.º - requerimento inicial]
27. No dia 11.05.2022, o Requerido respondeu à Requerente
“Boa tarde XXXXX./Compreendo e lamento a perturbação causada./O animal está a ser tratado clinicamente.” [do art.º 34.º - requerimento inicial]
28. No mesmo dia 11.05.2022, a Requerente respondeu ao Requerido:
“Boa tarde,/Obrigada pela informação e que o tratamento dê resultado.” [do art.º 35.º - requerimento inicial]
29. No dia 14.05.2022, a Requerente enviou e-mail para o Requerido, no qual referiu o seguinte:
“Boa tarde, VVVVVV/Mais uma vez, e desculpe a insistência, venho comunicar-lhe que o cão tem continuado a ladrar insistentemente./Esta semana e hoje também. Saí por volta das 11h, regressei pelas 13h e 15 e ainda está a ladrar./Como esta situação ocorre quando certamente não estão em casa, é para saberem que o tratamento não está a resultar.” [do art.º 36.º - requerimento inicial]
30. No dia 23.05.2022, pelas 13:48, a Requerente enviou a seguinte mensagem ao Requerido
“Boa tarde./Como deve saber, estou com covid e, portanto, em isolamento profilático, não podendo sair de casa. O vosso cão está a ladrar, como habitualmente, quando estão ausentes. Espero não ter de passar o resto do domingo a ouvir o cão a ladrar. (…)” [do art.º 37.º - requerimento inicial]
31. No dia 01.06.2022, a Requerente enviou e-mail para o Requerido:
“Boa tarde, VVVV/Venho novamente abordar o problema do seu cão. Continua, umas vezes mais do que outras, com os latidos continuados./Vou ser muito direta. Como sabe, não sou nem veterinária nem tratadora de cães, mas todas as pessoas que conheço e têm cães vão com eles à rua uma, duas e três vezes. Penso que não é o caso do vosso e, de certo, alguém que saiba de cães lhe dirá como proceder./Há escolas e tratadores de cães que orientam os seus donos relativamente aos comportamentos dos animais e às soluções para os problemas./Além do sofrimento do animal, há o incómodo que causa. Provavelmente, os condóminos que ainda trabalham não serão tão afetados, mas eu passo muito tempo em casa e tenho o direito ao bem estar físico e psicológico.” [do art.º 38.º - requerimento inicial]
32. No dia 10.06.2022, pelas 14:03, a Requerente enviou a seguinte mensagem ao Requerido
“Boa tarde, outro dia em que não se pode estar em casa com sossego…” [do art.º 39.º - requerimento inicial]
33. No dia 03.09.2022, pelas 14:38, a Requerente enviou a seguinte mensagem ao Requerido:
“Boa tarde,/Espero que tenham tido boas férias. Regressei das minhas há dois ou três dias, e o “inferno” do vosso cão a ladrar continua. Pode ser de manhã, à tarde e até à noite. O que não pode continuar é esta inaceitável situação. Tenho o direito de estar em casa com sossego. (…)”[do art.º 40.º - requerimento inicial]
34. No dia 05.09.2022, pelas 13:24, a Requerente enviou a seguinte mensagem ao Requerido:
“Boa tarde,/Outra manhã, desde antes das 9h, a ouvir ladrar…O vosso cão está doente e não tarda que alguns dos seus vizinhos, sobretudo os que estão em casa, também estejam. Tem de tratar, urgentemente, do seu cão. Estou a atingir o limite e não quero tomar medidas que, à partida, me desagradam.” [do art.º 41.º - requerimento inicial]
35. No dia 17.09.2022, pelas 13:48, a Requerente enviou a seguinte mensagem ao Requerido:
“Boa tarde, VVVV/Estamos a ser contemplados com outro fim de semana de latidos do vosso cão. Saí ao final da manhã para almoçar fora, a fim de aliviar o meu stress. Tenho de estar em casa para tratamentos na sequência de uma pequena cirurgia e tenho direito ao sossego. [do art.º 42.º - requerimento inicial]
36. No dia 18.06.2023, pelas 14:54, a Requerente enviou a seguinte mensagem ao Requerido:
“Boa tarde, VVVVVV/Para que saiba, continuamos a ter de passar os fins de semana a ouvir os latidos do vosso cão./Ontem, começou por volta das 10h e, quando saí pelas 15h ainda ladrava. Hoje, talvez tenha sido um pouco mais tarde, mas tive de sair, para descansar. Por que razão não o levam convosco para que os vossos vizinhos também possam estar em casa, sem estes incómodos ruídos?” [do art.º 43.º - requerimento inicial]
37. A Polícia de Segurança Pública foi chamada diversas vezes ao local, por conta do ruído produzido pelo cão, indicando-se a título meramente exemplificativo os dias 23.09.2022 e 12.10.2023 nos quais agentes da polícia de segurança pública se deslocaram ao prédio. [do art.º 44.º - requerimento inicial]
38. No dia 06.10.2022, a Requerente queixou-se por escrito junto da Polícia de Segurança Pública, dos latidos insistentes do cão:
“No passado dia 23 de setembro, liguei para a vossa esquadra queixando-me de um cão que ladra insistentemente por períodos mais ou menos prolongados, no apartamento que fica por cima do meu.
Deslocaram-se prontamente dois senhores polícias que constataram a situação e tocaram à porta do apartamento do vizinho, mas não deveria estar ninguém em casa. Disseram-me que, se a situação se mantivesse, vos contactasse de novo.
Ora, a situação mantém-se. Não é previsível o período em que temos de ouvir os latidos insistentes do cão, mas muitas vezes ocorrem durante toda a manhã e parte da tarde, ou mesmo aos fins de semana.
Procurei, enviando várias mensagens por mail ou sms, pedir ao vizinho que resolva a situação que me/nos causa muito incómodo, assim como a outros condóminos, mas sem sucesso. Há tempos, respondeu que o cão está em tratamento na Faculdade de Medicina Veterinária, mas acontece que não se dá pelo resultado do referido tratamento.
Caso entendam que me devo deslocar à v/Esquadra para apresentar queixa, fá-lo-ei, pois não é aceitável que não consiga estar em casa com sossego.” [do art.º 45.º - requerimento inicial]
39. No dia 30.03.2023 teve lugar assembleia de condóminos do prédio onde residem a Requerente e o Requerido. [do art.º 46.º - requerimento inicial]
A Requerente e o Requerido estiveram presentes na assembleia de condóminos datada de 30.03.2023, tendo assinado a ata n.º 13 em conformidade. [do art.º 47.º - requerimento inicial]
40. Na ordem de trabalhos da assembleia de condóminos datada de 30.03.2023, constava o ponto 7.º:
“Análise aos distúrbios causados pelo ruído de animais de estimação”. [do art.º 48.º - requerimento inicial]
41. Na ata n.º 13 consta vertido, na discussão sobre o dito ponto 7.º, o seguinte:
“Neste ponto da ordem de trabalhos, começou a ser dada a palavra à condómina XXXXX, que relatou à Assembleia o incómodo causado pelo ladrar do cão do condómino VVVVV, que se tem vindo a verificar nos últimos anos, bem como as medidas madas até à data.
A condómina já contactou a Sociedade Protetora dos Animais, a PSP e a Polícia Municipal, obtendo confirmação que a situação se enquadra no incumprimento da Regulamento Geral do Ruído.
Outros condóminos presentes intervieram em concordância com as queixas apresentadas. O condómino VVVVV pediu a palavra, começando por dar razão aos demais condóminos quanto às queixas apresentadas. Posto isto, passou a enumerar as medidas tomadas numa tentativa de controlar a situação, nomeadamente os tratamentos com recurso a medicamentos, treinos profissionais e coleira eletrónica que, na sua opinião, não tendo resolvido por completo o problema, surtiu um efeito positivo. Terminou por explicar à Assembleia que não conhece outras alternativas a explorar.
Os demais condóminos sugeriram deixar o cão ao cuidado de uma instituição, que permita visitas regulares e o envolvimento do dono ou, em alternativa, contratar um serviço de passeio profissional que poderia atuar em duas vertentes para resolução do problema. Por um lado, diminuiria o tempo passado no condomínio durante o dia (e, consequentemente, o incómodo causado durante essas horas) e, por outro, com o aumento de atividade física, poderia eventualmente acalmar os comportamentos problemáticos. A condómina YYYY também ficou de fornecer o contacto de uma pessoa conhecida que trabalha na área comportamental.
O condómino mostrou-se completamente indisponível para entregar o cão a uma instituição, mas acedeu a explorar a alternativa de passeio profissional.” [do art.º 49.º - requerimento inicial]
42. No dia 27.04.2023, a Requerente enviou e-mail para o Requerido no qual referia o seguinte:
“Bom dia, VVVVV
Envio-lhe, caso não tenha conhecimento, a ligação para uma escola de cães, aqui perto. Provavelmente, haverá outras. https://escoladecaes.pt/
43. Apesar das propostas de solução sugeridas por condóminos na Assembleia Geral de 30 de março, continuamos na mesma situação de ouvir os latidos frequentes do seu cão, agora agravada certamente pelo facto de estar bom tempo e de ficar no terraço.
44. É lamentável a falta de consideração e de respeito pela tranquilidade dos seus vizinhos, que nada justifica.” [do art.º 50.º - requerimento inicial]
45. No dia 24.08.2023, a administração do condomínio, denominada HHHHH, LDA., pessoa coletiva n.º ------ (doravante, apenas “administradora do condomínio”), apresentou junto da Polícia Municipal de Oeiras, via e-mail, uma queixa pelo ruído provocado pelo cão, com confirmação de receção no dia 25.08.2023. [do art.º 51.º - requerimento inicial]
46. No dia 20.09.2023, a Requerente enviou e-mail para o Requerido:
“Bom dia, VVVVV
Por aqui, no Condomínio, não está a ser um bom dia.
À semelhança de muitos outros dias, hoje é particularmente difícil permanecer em casa com os latidos persistentes do seu cão.
Até quando teremos de ser sujeitos a este suplício?” [do art.º 52.º - requerimento inicial]
O Requerido foi convocado pela administradora do condomínio para estar presente numa reunião com esta última, a Requerente e outros condóminos (membros da comissão de acompanhamento), a ter lugar no dia 11.12.2023, pelas 12:30, na sala do condomínio do prédio sito na Rua …. n.º 6, em Paço de Arcos, para discussão da situação do cão e atenuação ou cessação dos efeitos da ofensa aos direitos da Requerida e demais condóminos. [do art.º 53.º - requerimento inicial]
47. O Requerido não compareceu à referida reunião. [do art.º 54.º - requerimento inicial]
48. No condomínio, ainda que noutro bloco, os latidos e o ganir do cão são ouvidos e sentidos de forma intensa no interior de outras frações autónomas, indicando-se a título meramente exemplificativo as frações correspondentes ao 2.º Esquerdo e 2.º Frente do Bloco 2B. [do art.º 58.º - requerimento inicial]
49. Se depois de sugeridas ao Requerido pela Requerente, pela administradora do condomínio e por condóminos, várias alternativas para a cessação das graves e reiteradas incomodidades, a realidade é que nada resultou. [do art.º 63.º - requerimento inicial]
50. No dia 14.10.2023, a médica Sra. Dra. MMMMM, de Medicina Geral e Familiar e que dá consultas no Espaço Saúde, em -------, atestou que a Requerente “apresenta alterações físicas (TA aumentada) e psíquicas (stress, insónias) consequentes ao facto de estar sujeita a ruído contínuo de forma prolongada” [do art.º 65.º - requerimento inicial]
51. , com o ruído persistente, incessante, reiterado, produzido pelo cão, que a vida da Requerente tem pouco ou nenhum sossego, com falta de tranquilidade. [do art.º 67.º - requerimento inicial]
52. Desde há pouco mais de 2 (dois) anos que ruído produzido pelo cão impede a Requerente de descansar e ter sossego durante o dia, seja dia de semana ou ao fim-de-semana. [do art.º 69.º - requerimento inicial]
53. O ruído produzido pelo cão, várias vezes pela meia-noite, impede-a de ter sossego durante a noite, de descansar e dormir em conformidade. [do art.º 70.º - requerimento inicial]
54. A Requerente, quando o cão ladra e gane pela meia-noite – o que sucede a miúde -, acorda-a e custa-lhe retomar o sono, por vezes, passando horas até conseguir efetivamente dormir novamente. [do art.º 71.º - requerimento inicial]
55. A Requerente sente-se desanimada, revoltada, nervosa, ansiosa e com falta de descanso. [do art.º 73.º - requerimento inicial]
56. A Requerente vive em constante sobressalto. [do art.º 68.º - requerimento inicial].”
*
III. 2. Como não provados os seguintes Factos:
“- que a Requerente se tenha aposentado no ano de 2003 [segmento do art.º 2.º do requerimento inicial”
*
IV. O Direito
Como referido, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cf. artigos 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
IV. 1 – Impugnação da matéria de facto
Em conformidade com o disposto no artigo 640º do Código de Processo Civil:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos nºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”
Por força deste normativo o Recorrente tem o dever de especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Todavia, este artigo deve ser interpretado com parcimónia, ou seja, tal como vem defendendo a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, os efeitos cominatórios contemplados no artigo 640º devem ser aplicados com razoabilidade e proporcionalidade (neste sentido vide Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 171 (nota 279) e 174). Assim, podemos afirmar que apenas se mostra vinculativa a identificação dos pontos de facto impugnados nas conclusões recursórias. As respostas alternativas propostas pelo recorrente, os fundamentos da impugnação e a enumeração dos meios probatórios que sustentam uma decisão diferente, podem ser explicitados no segmento da motivação, entendendo-se como cumprido o ónus de impugnação nesses termos.
Atente-se ainda, quanto à decisão alternativa, o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 12/2023, de 17 de Outubro de 2023, Diário da República nº 220/2023, Série I, de 14/11/2023, fixa que: “Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.”
Neste sentido veja-se o Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Abril de 2023, in www,dgsi.pt, cujo sumário se passa a transcrever:
“I - Afigura-se que a interpretação da alínea a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC, que conduziu, no caso dos autos, à rejeição liminar do recurso da impugnação da matéria de facto desrespeita o princípio da proporcionalidade dos ónus, cominações e preclusões impostos pela lei processual, que constitui uma manifestação do princípio da proporcionalidade das restrições, consagrado no art. 18.º, n.ºs 2 e 3 da CRP, e da garantia do processo equitativo, consagrada no art. 20.º, n.º 4 da CRP.
II. De acordo com a jurisprudência consolidada do STJ, o n.º 1 do art. 640.º do CPC não exige que o apelante se pronuncie sobre a valoração alegadamente correcta dos meios de prova por si indicados, ou seja, sobre as razões pelas quais cada um deles deverá conduzir a decisão diversa da impugnada; pelo que a posição do tribunal a quo em rejeitar, também por este motivo, apreciar a impugnação da decisão relativa à matéria de facto extravasa as exigências legais.”
No que diz respeito aos demais pressupostos, “(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objecto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.” (Acórdão do Supremo Tribunal de 01 de Outubro de 2015, www.dgsi.pt, entre outros).
O incumprimento dos ónus processuais previstos no nº 1 do artigo 640º conduz à imediata rejeição da impugnação.
O incumprimento dos ónus exigidos no nº 2 do citado artigo 640º, no que tange à indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda o recurso, tem uma eficácia mais reduzida, ou seja, exige-se que essa omissão dificulte gravemente o exercício do contraditório pela parte contrária ou o exame pelo tribunal de recurso, pela complexidade dos facos controvertidos, extensão dos meios de prova produzidos ou ausência de transcrição dos trechos relevantes.
Por último, qualquer alteração da matéria de facto pretendida tem de ser relevante para a tomada de decisão quanto ao mérito da acção, isto é, a impugnação de factos que tenham sido considerados provados ou não provados e que não sejam importantes para a decisão da causa, não deve ser apreciada, na medida em que alteração pretendida não é susceptível de interferir na mesma, atenta a inutilidade de tal acto, sendo certo que de acordo com o princípio da limitação dos actos, previsto no artigo 130º do Código de Processo Civil não é sequer lícita a prática de actos inúteis no processo.
No âmbito do conhecimento da impugnação da decisão fáctica deve ser observado o princípio da economia processual porquanto apenas o que assume relevância é que merece tutela jurídica. Não se deverá proceder à reapreciação da matéria de facto quando os factos objecto de impugnação não forem susceptíveis, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processuais (artigos 2º, nº 1, 137º e 138º, todos do Código de Processo Civil).
Preceitua ainda o artigo 662º, nº 1 do Código de Processo Civil que “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
Este artigo atribui ao Tribunal da Relação os mesmos poderes de apreciação da prova que os Tribunais de 1ª instância, por forma a garantir um segundo grau de jurisdição em matéria de facto.
Como consequência, o Tribunal da Relação tem de apreciar a prova e sindicar a formação da convicção do juiz, analisando o processo lógico da decisão, recorrendo às regras de experiência comum e demais princípios da livre apreciação da prova, reexaminando as provas indicadas pelo recorrente, pelo recorrido e na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto (vide António Santos Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, pág. 287). O Tribunal da Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia.
O Tribunal não está vinculado a optar entre alterar a decisão no sentido pugnado pelo recorrente ou manter a mesma tal como se encontra, antes goza de inteira liberdade para apreciar a prova, respeitando obviamente os mesmos princípios e limites a que a 1ª instância se acha vinculada.
Regressando aos presentes autos de recurso, o Recorrente alega que parte dos factos considerados como provados são uma simples transcrição de mensagens e emails enviados e não os factos e eventos a que cada mensagem ou e-mail se referem.
No plano do rigor, assiste razão ao recorrente quando refere que o Tribunal deveria ter dado como provados os factos que resultam dos emails e mensagens enviados, ou seja, deveria ter sido provado que no dia 17 de Fevereiro a Requerente comunicou ao Requerido que o cão não tinha parado de ladrar, que via de regra tal ocorre de manhã e que naquele momento estava a ladrar O email constitui um documento particular que é um meio probatório e é esse documento e o seu teor que sustentam a convicção do Tribunal ao considerar os factos, no caso, como provados.
Todavia, o Tribunal recorrido deu como provado o teor do email, o que constitui uma técnica, menos rigorosa, mas aceitável do ponto de vista fáctico. O mesmo se diga quanto aos restantes email´s que se encontram transcritos.
Põe ainda o Recorrente em causa algumas expressões consideradas como provadas são vagas e carecem de ser concretizadas. Assim, de acordo com a tese do Recorrente nos factos provados sob o nº 13 onde se refere “persistente”; no ponto 14 dos factos provados refere-se que “várias vezes por volta da meia-noite”; nos pontos Resulta dos pontos 53 e 54 dos factos provados é referido “várias vezes pela meia-noite” (ponto 53) ou ladra e gane “pela meia-noite – o que sucede amiúde”, consubstanciam situações que carecem de mais precisão e devem ser especificadas, sendo até algumas conclusivas.
Salvo o devido respeito, não assiste razão ao Recorrente.
Como é sabido, desde as alterações introduzidas em 2013 ao Código de Processo Civil, determinadas expressões, utilizadas e qualificadas como linguagem corrente, consubstanciam factos.
A expressão “persistente” significa algo que persiste, que não desiste facilmente, que é perseverante, que se mantém apesar de contrariedades ou dificuldades e que é duradouro.
Ora, o ladrar persistente do cão significa que esse ladrar é duradouro que não parou e para no tempo. É algo constante e que dura ao longo dos dias, das semanas, dos meses e dos anos.
O mesmo sucede com a expressão “várias vezes”, não será seguramente uma nem duas vezes. Esta expressão significa que o canídeo ladra várias muito e de forma persistente (conjugação das duas expressões).
E o mesmo se diga quanto à expressão “amiúde”, que significa de forma frequente e por várias vezes.
O que é que o Recorrente pretendia? Que se contassem quantos latidos o cão dá cada vez que ladra e quantas vezes ladra por dia e por noite?
As expressões “persistente” e “várias vezes” infelizmente traduzem uma constância, o que não resulta só destes factos, mas também da própria posição que o Recorrente assume.
Repare-se que o Recorrente aceita que o seu cão ladra e que, por diversas formas e vezes, tentou solucionar o problema.
Não obstante os esforços empreendidos, certo é que o cão continua a ladrar, durante o dia e noite de modo persistente e por várias vezes.
Improcede, nesta parte, a pretensão do Recorrente, devendo manter-se as expressões constantes dos factos provados.
Defende ainda o Recorrente que quando o cão ladra à noite, que por vezes acontece, surge sempre por volta da meia-noite, quando o Apelante recolhe ao leito, podendo inferir-se com segurança que, no resto da noite, o cão se mantém silencioso, pelo que, à noite (e é à noite que o sono mais importa e é mais preciso e reparador), o problema alegado pela Apelada terá que ver com ficar “sobressaltada” e ter dificuldade em voltar a adormecer.
Perante estas circunstâncias, os Apelantes entendem que a solução está “nas mãos” da própria Apelada, a quem bastará retardar um pouco o início do seu sono à noite (o que, estando sempre em casa durante o dia, podendo fazer uma ou mais pequenas sestas, não representa dificuldade para ela), de modo que, se o cão ladrar e silenciar depois, a Apelada pode tranquilamente deixar-se dormir, sem lugar para mais sobressaltos com origem no canino, e se, como sucederá na grande maioria das noites, o cão não ladrar por volta da meia-noite, bastará à Recorrida esperar uns vinte ou trinta minutos para se remeter ao sono, sem problemas, pelo que o esporádico ladrar do cão “pela meia noite”, não impede a Apelada de ter sossego e de dormir “durante a noite”, não podendo aceitar-se os juízos conclusivos vertidos em sentido oposto.
Quanto aos juízos conclusivos, Miguel Teixeira de Sousa, em Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Setembro de 2017, processo n.º 809/10.7TBLMG.C1.S1, Blog IPPC, Jurisprudência 784, defendeu que: “Lembre-se, a este propósito, que, enquanto no CPC/1961 se selecionavam, no modo interrogativo (primeiro no questionário e depois da base instrutória), factos carecidos de prova, hoje enunciam-se, no modo afirmativo, temas da prova (cf. art. 596.º CPC). Tal como estes temas não têm de (e, aliás, nem podem, nem devem) ser enunciados fora de qualquer enquadramento jurídico, também a resposta do tribunal à prova realizada pela parte não tem de ser juridicamente asséptica ou neutra (…).
A chamada "proibição dos factos conclusivos" não tem hoje nenhuma justificação no plano da legislação processual civil (não importando agora discutir se alguma vez teve). Se o tribunal considerar provados os factos que preenchem uma determinada previsão legal, é absolutamente irrelevante que os apresente com a qualificação que lhes é atribuída por essa previsão. Por exemplo: se o tribunal disser que a parte atuou com dolo, porque, de acordo com o depoimento de várias testemunhas, ficou provado que essa parte gizou um plano para enganar a parte contrária, não se percebe por que motivo isso há-de afetar a prova deste plano ardiloso (nem também por que razão a qualificação do plano como ardiloso há-de afetar a sua prova). O exemplo acabado de referir também permite contrariar uma ideia comum, mas incorreta: a de que factos juridicamente qualificados não podem constituir objeto de prova. A ideia é, efetivamente, incorreta, porque cabe perguntar como é que sem a prova do dolo (através dos respetivos factos probatórios) se pode aplicar, por exemplo, o disposto no art. 483.º, n.º 1, CC quanto à responsabilidade por facto ilícito. É claro que o preceito só pode ser aplicado se, no caso de o dolo ser um facto controvertido, houver prova desse facto. Assim, também ao contrário do entendimento comum, há que concluir que o tema da prova não é mais do que o enunciado do objeto da prova. A referida "proibição dos factos conclusivos" também não corresponde às modernas correntes metodológicas na Ciência do Direito, que não se cansam de referir que a distinção entre a matéria de facto e a matéria de direito é totalmente artificial, dado que, para o direito, apenas são relevantes os factos que o direito qualificar como factos jurídicos. Para o direito, não há factos, mas apenas factos jurídicos, tal como, para a física ou a biologia, não há factos, mas somente factos físicos ou biológicos. Os factos são sempre um Konstrukt, pelo que os factos jurídicos são aqueles factos que são construídos pelo direito. Em conclusão: o objeto da prova não pode deixar de ser um facto jurídico, com todas as características descritivas, qualitativas, quantitativas ou valorativas desse facto”.
Mais uma vez os Apelantes não têm razão.
A Apelada é que tem de adequar as suas horas de sono aos latidos do cão? E se acordar tem de esperar até que o sono volte?
Um sono que é interrompido e retomado não é um descanso reparador conforme todos devem ter.
Mais se refira que não é a apelada quem tem de adequar a sua vida ao canídeo e aos latidos, mas antes os apelantes, mais precisamente a apelada enquanto proprietária do cão.
De acordo com os Apelantes, a Apelada, porque reformada e está na esmagadora maioria do tempo em casa, tem a obrigação de “aproveitar” todos os momentos de silêncio que o cão do vizinho tem para descansar!
Todos adoramos e consideramos os animais, reconhecemos que têm direitos e que quem os tem possui deveres, mas daí a obrigar um terceiro, que nem dono é do cão, a adequar a sua vida, é extravasar a regra da prioridade em sede de conflito de interesses.
Quanto à medição do ruído que não foi realizada e que aqui é invocada pelos Apelantes, é entendimento deste Tribunal a ausência de medição do ruído em nada belisca a decisão do Tribunal. O ruído para se tornar insustentável e insuportável não tem necessariamente de possui altos níveis de decibéis. O ruído persistente durante o dia, noite, semanas e meses é extremamente perturbador e provocador de cansaço mental.
Aliás, ao invés do que defendem os Apelantes, o ladrar do cão é ouvido pela Apelada e pelos vizinhos, o que reforça a tese da Apelada, ou seja, a Apelada sente-se incomodada com o ladrar do animal durante o dia e de noite, e o cão ladra de tal modo e intensidade que também os vizinhos que não moram por baixo ouvem o ladrar do cão.
No que diz respeito ao valor probatório do atestado o Tribunal ponderou o mesmo e foi livremente apreciado pelo Tribunal em conjugação com os restantes meios probatórios. Não vislumbramos qualquer razão para que o atestado seja apreciado de modo critico e conjunto com a restante prova produzida.
Avançando nos argumentos esgrimidos pelos Apelantes, mais uma vez não se alcança a alegação que a Apelada se limita a acordar à meia noite com o ladrar do cão e que tal facto nada tem que ver com a dificuldade alegada de retomar, durante horas, o sono, dificuldade essa que é nitidamente uma prova impossível de ser feita com um mínimo de credibilidade.
Mais uma vez, no entender deste Tribunal os apelantes laboram em erro.
“O sono resulta da acção de uma rede de neurónios (células nervosas) que está espalhada pelo nosso cérebro. Nessa rede existem: neurónios activadores, que activam o córtex cerebral de modo a nos mantermos acordados; e neurónios que têm exactamente a função contrária, a de adormecermos.
Essencialmente, o sono é “ligado” e “desligado” em resultado de interacções nas redes neuronais cerebrais.
Existem dois mecanismos fundamentais que nos levam a dormir: o nosso ritmo biológico e a chamada pressão de sono.
(…)
O sono não é um processo uniforme e igual ao longo de toda a noite. Desenvolve-se por várias fases que se organizam em ciclos. O ciclo do sono repete-se 4 a 6 vezes numa noite.
Durante as diferentes fases do sono, o nosso cérebro emite diferentes sinais eléctricos que podem ser captados num electroencefalograma.
Analisando a actividade eléctrica do nosso cérebro e outros parâmetros fisiológicos podemos determinar em que fase do sono é que o cérebro está. As diferentes fases do sono têm diferentes funções.
Cada ciclo do sono divide-se em: sono não REM e sono REM.
REM significa rapid eye movements ou, em português, movimentos oculares rápidos.
(…)
O sono não REM, que tem a maior duração e que surge primeira na noite, é constituído por várias fases: fase de sono superficial (transição da vigília para o sono), fase do sono profundo (com ondas lentas no electroencefalograma) que é muito importante pela sua acção repousante e restauradora.
O sono REM alterna com o sono não REM.
Durante o sono REM os nossos olhos movem-se sob as pálpebras, mas o restante corpo fica paralisado enquanto sonhamos intensamente, a nossa respiração acelera e a actividade cerebral eléctrica é muito semelhante à que apresentamos quando estamos acordados.
As diferentes fases do sono intervêm de modo diferente no consolidar da memória. Por exemplo: durante o sono não REM de ondas lentas (sono lento profundo) as memórias episódicas são consolidadas; durante o sono REM processam-se as memórias com conteúdo emocional.
Durante o sono estabelecem-se novas ligações entre os neurónios e eliminam-se outras não necessárias, reestruturando-se as redes de neurónios.
Por isso, uma boa noite de sono melhora o nosso cérebro em termos funcionais.” (https://www.hospitaldaluz.pt/pt/dicionario-de-saude/sono-mecanismos-fases-ciclos).
Também no site https://www.tuasaude.com/fases-do-sono/ é referido que:
“O ciclo do sono pode ser dividido em 4 fases que vão intercalando:
1. Sono leve (Fase 1)
Esta é uma fase de sono bastante leve que dura aproximadamente 10 minutos. A fase 1 do sono começa no momento em que se fecha os olhos e o corpo começa pegando no sono, no entanto, ainda é possível acordar facilmente com qualquer som que aconteça no quarto, por exemplo.
Algumas características desta fase incluem:
Não perceber que já se está dormindo;
A respiração vai se tornando mais lenta;
É possível ter a sensação de que se está caindo.
Durante esta fase, os músculos ainda não estão relaxados e, por isso, a pessoa ainda se movimenta na cama e pode até abrir os olhos enquanto tenta adormecer.”
Está provado que quando o cão ladra e gane durante a noite, o que acontece várias vezes por volta da meia-noite, a Requerente fica sobressaltada e com dificuldades em adormecer. Atenta esta factualidade dúvidas não existem que a Apelada, devido aos latidos e ao ganir do cão, acaba por ter dificuldade em adormecer. Repare-se que a Apelada fica sobressaltada e, como é natural, o sono tarda em aparecer, fazendo com que o adormecer seja mais demorado.
Não se alcança a simplicidade com que os Apelantes olham para este facto.
Tudo visto, improcede também nesta parte o recurso.
Em recurso defendem os apelantes que o Tribunal nada refere quanto a inúmeros factos relevantes alegados na contestação, nem quanto aos documentos apresentados pelos Apelantes, sendo certo que, quanto a estes, mais de estranhar é a sua completa omissão, requerendo ainda que o Tribunal de Recurso os tenha em consideração dado que constam dos autos.
Conforme supra referido os Apelantes ao impugnarem a decisão sobre a matéria de facto têm a obrigação de concretizar os pontos de facto incorrectamente julgados, especificar os meios probatórios que conduziriam a solução diversa e qual a decisão de facto alternativa.
Ora, os Recorrentes não cumprem nenhum destes requisitos limitando-se apenas a dizer que grande parte dos factos que alegaram em sede de contestação, por serem relevantes, deveriam ter sido carreados aos factos provados e/ou não provados, sem, no entanto, indicarem quais o factos que deveriam ser considerados provados ou não provados e qual a decisão alternativa. Mais, os Recorrentes “entregam” a este Tribunal a obrigação de ver quais os documentos que no entender daqueles eram relevantes.
Tudo visto, ponderando ainda o supra exposto, é manifesto que os Recorrentes não cumprem, nesta parte, o ónus primário previsto nos artigos 639º e 640º do Código de Processo Civil, nem nas alegações, nem nas conclusões, pois como decorre do artigo 640.º, supra citado, o recorrente não satisfaz o ónus impugnatório quando quer nas alegações, quer nas conclusões a especificação dos pontos de facto que entende terem sido incorrectamente julgados, uma vez que é essa indicação que delimita o objecto do recurso.
Incumprido o ónus que pendia sobre os Recorrentes, impõe-se rejeitar, nesta parte, a impugnação da decisão da matéria de facto por aqueles apresentada, o que se determina ao abrigo do disposto no artigo 640º, nº 1 do Código de Processo Civil.
IV. 2 – Da errada interpretação e aplicação do direito.
Entendem os Recorrentes que os factos dados como provados não sustentam a drástica decisão de retirada, sem mais, do cão a que a acção respeita, antes são insuficientes para suportá-la, o que gera uma grave lesão dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. A sentença impugnada, argumentando apenas com a idade da Apelada e com o facto de o andar da Apelada se situar imediatamente por baixo do andar dos Apelantes, considerou ser de aceitar existir uma relação de causalidade adequada, pelo menos em parte, entre, por um lado, o ladrar e latidos do cão do Requerido e Interveniente Principal, e, por outro, a diminuição da qualidade de vida da Requerente, quando se sente intranquila, desassossegada e com dificuldade em dormir.
Defendem os Recorrentes que atenta a idade da Apelada e a sua perturbação do sono, a Recorrida apenas deve dormir 07 a 08 horas e não mais, sendo este facto aceite pela Organização Mundial de Saúde.
Que dizer sobre esta posição?
Quase nada nos apraz dizer sobre esta posição, a não ser que cada um dorme as horas que necessita.
É verdade que a Recorrida, estando aposentada, tem maior liberdade na fixação dos horários concretos em que deve dormir. Mas não estará ela aposentada?!
A Apelada está aposentada e como tal está mais tempo em casa e, por outro lado, estar aposentada significa não ter horários, será que a Apelada não tem direito ao descanso e fazer uma vida sem horários?
Imagine-se alguém na sua casa, a gozar os seus dias de reforma, e ser constantemente incomodada com o ladrar e ganir de um cão o que ocorre durante todo o dia e amiúde à noite, cerca da meia noite.
Obviamente que não se pode impor à Apelada que adeqúe os seus horários em função de um cão que nem é seu e que é da responsabilidade de terceiro.
Alegam ainda os Recorrentes que a decisão de retirada do cão do imóvel, da convivência dos seus donos, privando estes da sua inestimável e bem antiga companhia, configura, salvo melhor juízo, precisamente um caso de excesso da medida adoptada, por demasiado radical e por desconsiderar por completo os Apelantes, o animal e a relação entre este e aqueles. A medida aplicada viola os princípios legais da proporcionalidade e da razoabilidade. Na sentença não foi devidamente atendida a ligação existente, e velha de década e meia, entre o cão e os Apelantes e que ficou patente que os Apelantes se têm empenhado em assegurar o mais e melhor possível o tratamento do cão, no sentido de procurar cura ou minimização para a alteração comportamental do animal.
Concordamos com os Apelantes quando defendem que os animais actualmente não são apenas meras coisas. São seres vivos, irracionais, mas com sentimentos e com protecção que tem vindo a ser consagrada na nossa Ordem Jurídica.
Assim, e como bem referem os Apelantes, desde a entrada em vigor da Lei nº 8/2017, os animais não são coisas, sendo que, embora não sejam titulares de direitos por falta de personalidade jurídica, devem ao menos ser-lhes reconhecidos, no campo do Direito, interesses juridicamente protegidos, por serem, nos termos do artigo 201º-B do Código Civil, “seres vivos dotados de sensibilidade e objecto de protecção jurídica em virtude da sua natureza.”
A protecção jurídica de que gozam traduz-se desde logo no bem-estar que deve ser-lhes assegurado pelo respectivo proprietário, nos termos do artigo 1305º-A, nº 1, do Código Civil.
Todavia, o Homem, enquanto ser humano também é titular de direitos, tais como os direitos de personalidade.
Em conformidade com o disposto no artigo 70º do Código Civil que:
“1. A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral.
2. Independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida.”
Tal como refere Carlos Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 3.ª edição, toda a pessoa jurídica é titular de direitos e obrigações, sendo titular de um certo número de direitos absolutos que se impõem ao respeito de todos os outros, incidindo sobre os vários modos de ser físicos ou morais da personalidade, são os chamados direitos de personalidade, os quais são gerais, extrapatrimoniais e absolutos. Tais direitos incidem sobre a vida da pessoa, a sua saúde física, a sua integridade física, a sua honra, a sua liberdade física e psicológica, o seu nome, a sua imagem, a reserva da intimidade e da vida privada.
No campo da lei ordinária, o direito ao repouso é um direito de personalidade que beneficia da tutela do citado artigo 70º do Código Civil.
Em conformidade com o disposto no artigo 64º, nº 1 da Constituição da República “Todos têm direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover.”
O descanso, a tranquilidade e o sono são direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, que se inserem no direito à integridade física, preceituado no artigo 25º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
Defende Rodrigues Basto , in Das Relações Jurídicas, Tomo 1º, 20/21, que os direitos de personalidade têm por fim impor a todos os componentes da sociedade o dever negativo de se absterem de praticar actos que ofendam a personalidade alheia, sendo à doutrina e à jurisprudência que competirá definir os limites da sua defesa.
Trata-se de direitos que são direitos absolutos, oponíveis a todos os terceiros, que os têm que respeitar e têm consagração constitucional conforme referido.
Dúvidas não existem que dentro da categoria dos direitos de personalidade encontramos, entre outros, o direito à vida, à integridade física, à honra, à saúde, à inviolabilidade do domicílio, ao repouso essencial à existência (vide Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. 1.°, pág. 55).
Todos os "direitos subjectivos, privados, absolutos, gerais, extra-patrimoniais, inatos, perpétuos, intransmissíveis, relativamente indisponíveis, tendo por objecto os bens e as manifestações interiores da pessoa humana, visando tutelar a integridade e o desenvolvimento físico e moral dos indivíduos e obrigando todos os sujeitos de direito a absterem-se de praticar ou de deixar de praticar actos que ilicitamente ofendam ou ameacem ofender a personalidade alheia sem o que incorrerão em responsabilidade civil e/ou na sujeição às providências cíveis adequadas a evitar a ameaça ou a atenuar os efeitos da ofensa cometida” (Rabindranath Capelo de Sousa, A Constituição e os Direitos de Personalidade, Estudos sobre a Constituição, vol. 2º, Lisboa, 1878, pág. 93).
Todavia, para além da tutela do Direito da Personalidade, a Constituição da República Portuguesa e a lei ordinária, também reconhece e assegura o direito à propriedade privada (artigo 62º, nº 1 da Constituição da República).
Assim, quer o direito à saúde e ao repouso, quer o direito da propriedade privada têm consagração na lei fundamental e, por vezes, estes direitos são conflituantes entre si, impondo-se dirimir o conflito de direitos que daí decorre.
Só há conflito de interesses quando existem dois direitos diferentes, pertença de titulares distintos e não se mostre viável o exercício simultâneo e integral de ambos os direitos.
Conforme se defende no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13 de Dezembro de 2022, in www.dgsi.pt., “(…) O processo especial de tutela da personalidade revela-se o meio idóneo para requerer as providências adequadas a evitar a consumação de ameaça ou atenuar os efeitos de ofensa já cometida aos direitos de personalidade.
O processo especial de tutela da personalidade surge ainda como concretização da imposição constitucional prevista no n.º 5 do art. 20.º da CRP.
De facto, a lei deve assegurar aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo que lhes seja possível obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou mesmo violações dos direitos, liberdades e garantias pessoais. Tendo em conta tal exigência o legislador ordinário consagrou no CPC revogado e mantém no NCPC o processo especial de tutela da personalidade.
O processo em causa não é uma inovação da reforma operada em 2012/2013 no CPC. Na realidade, este processo especial já se encontrava consagrado no Código de Processo Civil de 1961, nos arts. 1474.º e 1475.º. De facto, o processo especial de tutela da personalidade foi introduzido no nosso Código de Processo Civil pelo Decreto-Lei n.º 47690, de 11 de Maio de 1967. A reforma agora operada no processo especial de tutela da personalidade visou conferir-lhe maior celeridade e eficácia no que concerne à tutela da personalidade dos entes singulares. Para tanto operaram-se profundas modificações na caracterização e nos trâmites processuais a que obedecia este processo especial. A mais visível, que facilmente se constata apenas com uma análise superficial do NCPC, é a alteração da sua inserção sistemática: o processo especial de tutela da personalidade não é mais um processo de jurisdição voluntária.
Encontra-se consagrado nos arts. 878.º a 880.º do NCPC. É o primeiro dos processos especiais que este NCPC prevê. Foi assim excluído do leque de processos de jurisdição voluntária, tornando-se num processo especial autónomo, auto-suficiente e com características de tramitação próprias que o afastam do regime da jurisdição voluntária a que anteriormente se encontrava submetido.
(…) É o próprio n.º 1 do art. 70.º do CC que o estabelece, exigindo que seja ilícita quer a ofensa quer a própria ameaça de ofensa à personalidade física ou moral.
Por sua vez, a ilicitude encontra-se relacionada com uma acção. Assim, exige-se a verificação de um facto humano, voluntário e ilícito, ou seja, «um facto dominável ou controlável pela vontade, um comportamento ou forma de conduta humana – pois só quanto a factos dessa índole têm cabimento a ideia da ilicitude».
Todavia, não é mister que se verifique a culpa na actuação por parte daquele que lesa ou ameaça lesar o direito de personalidade de outrem para que seja decretada uma providência ao abrigo do processo especial de tutela da personalidade. Ao invés do que sucede na responsabilidade civil, onde para que exista obrigação de indemnizar se exige que o lesante tenha actuado com dolo ou mera culpa.
(…)
Em síntese, para que seja decretada uma providência (preventiva ou atenuante) no âmbito do processo especial de tutela da personalidade, exige-se que o facto seja voluntário e ilícito, mas não se exige que seja culposo ou sequer danoso, uma vez que o legislador não incluiu estes dois pressupostos nem no art. 70.º do CC nem nas disposições do CPC dedicadas a este processo especial.
No tocante à concreta providência a adoptar, estabelece o art. 878.º do CPC que deve ser decretada a providência concretamente adequada a evitar a consumação de qualquer ameaça ou a fazer cessar os efeitos da ofensa já cometida. Destarte, e apesar de já não estarmos perante um processo de jurisdição voluntária, é deixada ao julgador uma larga margem de discricionariedade que lhe permite decretar a providência que considere mais adequada para o caso sub judice, mas nunca ultrapassando o necessário para acautelar o direito de personalidade em questão, lesando o menos possível terceiros. É a própria letra da lei que estabelece que deve ser decretada a providência adequada, excluindo, assim, o excesso. De acordo com Pedro Pais de Vasconcelos, in Direito de Personalidade, p.127. «há que encontrar, caso a caso, um equilíbrio entre o mínimo possível de lesão ou incómodo a terceiros e a eficácia necessária».
O decretamento das providências no âmbito deste processo especial não é cumulável com a tutela indemnizatória. (…)”.
Revertendo ao caso em apreço está provado que a Recorridas reside na sua habitação há mais de 23 (vinte e três) anos. Aí vive diariamente, sozinha, dorme, trata da sua higiene pessoal e faz as suas refeições. É no 2.º Esq. que a Recorrida recebe amigos e familiares e onde passa a grande parte do seu tempo.
Actualmente a Apelada encontra-se aposentada.
O Recorrente é proprietário, no mesmo prédio onde a Recorrida reside, da fracção autónoma correspondente ao 3º andar, com varanda e terraço, sendo que este piso é o piso imediatamente acima do 2º Esquerdo.
Uma parte do terraço do 3º andar fica por cima do quarto e da sala do 2º esquerdo voltados a poente. Sendo que a maior parte do terraço do 3º andar fica voltada a sul.
O Recorrente é detentor de um cão de porte médio, de raça indeterminada, que está alojado no 3º andar.
Este cão ladra de forma persistente, durante a manhã, a tarde e durante a noite, o que acontece quase diariamente. O cão permanece longas horas no terraço do 3º andar, sem qualquer presença humana, ladrando e produzindo ruídos reiterados, que são ouvidos inclusivamente em prédios contíguos. A Recorrente tem de sair de casa por diversas vezes por não aguentar os latidos e o ganir do cão.
Mais se provou que pode acontecer o cão ladrar e ganir durante horas, ainda que com intervalos para voltar a ladrar e ganir. Em termos acústicos, ouve-se o cão no prédio e na rua. Os vizinhos do lote 1, que se trata de outro condomínio, ouvem o cão.
Quando o cão ladra e gane durante a noite, o que acontece várias vezes por volta da meia-noite, a Recorrida fica sobressaltada e com dificuldades em adormecer.
No interior do 2º Esq., o cão ouve-se, seja com as janelas abertas, seja com as janelas fechadas. No interior do prédio, os latidos e o ganir do cão ouvem-se no interior do elevador. O cão é ouvido nos acessos ao prédio, na rua e noutros condomínios.
Está ainda assente que a situação se agravou há pouco mais de 2 (dois) anos para cá e, nos últimos anos, foi muito raro os moradores no condomínio verem o cão na rua.
Perante este quadro fáctico é de concluir que estamos perante uma situação de conflitos de direitos.
Por um lado, temos o direito de personalidade pertença da Recorrida que se traduz no direito ao descanso, à tranquilidade e ao sono.
Por outro lado, encontramos o direito dos Apelantes à propriedade privada, revelando-se essa propriedade no direito à habitação que se traduz no direito a utilizar a sua fracção para os fins que entenderem (desde que lícitos como óbvio), de nela poderem usufruir da convivência com animais de companhia, bem como no direito a haverem e protegerem a propriedade do cão.
Não havendo possibilidade de harmonizar os direitos em conflito, a solução terá de passar pela prevalência de um deles em relação ao outro, apurando se deverá existir uma limitação ao exercício dos direitos dos Recorrentes e, em caso afirmativo, em que medida deverá operar essa limitação.
Do ponto de vista constitucional é de concluir que existe uma maior protecção aos direitos, liberdades e garantias, em detrimento dos direitos económicos, sociais e culturais.
Em conformidade com o disposto no artigo 335º do Código Civil:
“1. Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes.
2. Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior.”
Defende Capelo de Sousa, ob. Cit, pág. 547, que, em caso de conflito entre um direito de personalidade e um outro direito, importa ponderar “(…) não apenas a hierarquização entre si dos bens ou valores do ordenamento jurídico na sua totalidade e unidade, mas também a detecção e a ponderação de elementos preferenciais emergentes do circunstancialismo fáctico da subjectivação de tais direitos, maxime, a acumulação, a intensidade e a radicação de interesses concretos juridicamente protegidos. Tudo o que dará primazia, nuns casos, aos direitos de personalidade ou, noutros casos, aos com eles conflituantes direitos de outro tipo”.
Tendencialmente o direito de personalidade prevalece sobre o direito de propriedade. Todavia, mostra-se necessário ponderar o caso concreto de modo a que da prevalência de um direito relativo à personalidade não resulte uma grande desproporção do direito menor, isto é, do direito de propriedade, isto porque a prevalência também tem ela própria de respeitar o princípio da adequação, da proporcionalidade e da razoabilidade.
Perante o quadro fáctico descrito é manifesto que o cão incomoda de tal modo a Recorrida, pondo em causa o descanso, a tranquilidade, o sono e o sossego desta.
Obviamente que é notório que qualquer cão, por mais calmo e tranquilo que seja, ladra perante determinadas circunstâncias da vida. Há quem diga que o ladrar, o uivar e o gemido são formas de comunicação do animal, mas este modo de comunicar deve ser esporádico e não constante.
O cão dos Recorrentes incomoda a Recorrida, muito em particular porque esta mora no andar de baixo e passa muito tempo em casa.
Não perturba pontualmente, mas sim de modo persistente durante o dia e em muitas situações de noite por volta da meia noite.
Para quem partilha do amor pelos animais, ouvir um cão a ladrar e uivar durante o dia e em muitas circunstância de noite, é também causa de sofrimento, pois, ouve-se o animal e nada se pode fazer para que acalme e tranquilize.
Não podemos deixar de concordar com o Tribunal de 1ª Instância e concluir que o incómodo provocado na Recorrida pelo cão é intenso para a Recorrida que chega a sair da sua habitação em busca de tranquilidade e descanso.
Tal como se defende no Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça datado de 03 de Outubro de 2019, in www.dgsi.pt:
“(…) Ou seja, no confronto dos direitos dos autores à integridade física e moral e à proteção à saúde e a um ambiente de vida humana sadio, consagrados nos arts. 25º, 64º, nº 1 e 66º, nº 1, todos da CRP - com o direito de propriedade privada dos réus, também garantido no art. 62º da CRP, impõe-se sopesar cada um dos direitos em colisão por forma a decidir qual deles deve prevalecer e assegurar a sua harmonização, evitando o sacrifício total de uns em relação ao outro e realizando, se necessário, uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada um.
No caso dos autos, o acórdão recorrido, no confronto da colisão do direito dos autores ao sono e ao repouso e o direito de propriedade privada dos réus, considerou que o primeiro deveria prevalecer sobre o segundo.
E a verdade é que não vislumbramos qualquer razão para dissentirmos deste entendimento.
Desde logo, porque a nossa Constituição, dando voz aos princípios proclamados na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10/12/48 e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de 04.11.1950, estabelece, no seu art. 1º, que a República Portuguesa, é «baseada na dignidade da pessoa humana», afirmando, no seu art. 25º, nº1 da CRP que «a integridade moral e física das pessoas é inviolável».
Por sua vez, o nosso Código Civil, contempla, no seu art. 70º, a tutela geral da personalidade dos indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral.
E se assim é, ou seja, se a nossa ordem jurídica assenta na “dignidade humana”, tal como se afirma no Acórdão do STJ, de 29.11.2016 (processo nº 7613/09.3TBCSC.L1.S1), torna-se inquestionável que, em caso de colisão entre direitos fundamentais, a busca do instrumento que melhor promova o valor supremo da dignidade da pessoa humana não pode deixar de constituir um instituto norteador da solução do caso concreto».
No caso dos autos, está provado que as galinhas e galos, em número pelo menos de 10, que os réus criam no anexo que construíram junto ao muro que separa o prédio deles do dos autores e dista apenas 4,395 metros da janela da cozinha destes, virada a sul, «todas as manhãs, entre as 3 e as 5h, fazem um barulho estridente que acorda os AA., interrompendo o seu descanso e não mais conseguindo adormecer de uma forma regeneradora, adequada e razoável» e que os autores «por causa dos ruídos produzidos pelas referidas aves, várias vezes se levantam com sintomas de falta de repouso».
Ora, pese embora desconhecer-se o grau de dificuldade dos autores em voltarem a adormecer, dada o carácter genérico das expressões “uma forma regeneradora, adequada e razoável ”, bem como o grau de intensidade da incomodidade sofrida pelos autores, atenta a falta de caracterização dos “sintomas de falta de repouso”, sofridos, em concreto, pelos autores, a verdade é que os factos dados como provados demonstram, claramente, que o direito dos autores ao sono e ao repouso está a ser interrompido e afetado, diariamente, entre as 3 e as 5 horas, o que não só constitui uma lesão do seu direito ao repouso e sossego e ao gozo e fruição de um mínimo de tranquilidade no interior do seu domicílio durante o período noturno, como envolve também afetação do seu direito à saúde e integridade física e psicológica.
E porque assim é, não podemos deixar de ter por prevalecente o direito dos autores ao repouso, ao sono e à tranquilidade, enquanto emanação dos direitos fundamentais de personalidade, nomeadamente do direito à integridade moral e física, à proteção da saúde e a um ambiente de vida sadio dos autores, sobre os interesses dos réus, em fazer criação de galinhas e galos.
Acresce ainda que, numa perspetiva substancial e sob pena de preclusão da efetividade da tutela dos direitos de personalidade dos lesados, não podemos também deixar de afirmar a essencialidade da imposição aos réus de remoção das aves do local onde atualmente se encontram para local onde não perturbem o direito ao descanso dos autores como forma adequada de assegurar aos autores, um descanso noturno de oito horas e um maior período de repouso e de tranquilidade no interior do seu domicílio, e, desse modo, minimizar a afetação da sua saúde e integridade física e psicológica.
É que, como é consabido, a privação do sono e do descanso provoca, no mínimo e para além de muitas outras, alterações fisiológicas como cansaço e fadiga, tudo com repercussões muito nefastas a nível pessoal, profissional e social.
(…)
Assim, ponderando tudo o que deixou dito e na esteira do decidido no Acórdão do STJ de 01.03.2016 (proc. nº 1219/11.4TVLSB.L1.S1), tem-se como meio adequado e proporcional para a remoção da lesão do direito ao sono, ao repouso e à tranquilidade dos autores a limitação imposta ao direito de propriedade dos réus pelo acórdão recorrido, por não afrontar, em termos intoleráveis, os princípios da boa fé e dos bons costumes nem ultrapassar os limites do socialmente tolerável, dadas as circunstâncias de facto demonstradas, inexistindo, por isso, qualquer abuso de direito por parte dos autores.
(…)”.
Em igual sentido veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26 de Janeiro de 2023, www.dgsi.pt, onde se lê que:
“(…)
Como bem se refere na sentença recorrida, no caso concreto emerge a lesão de bens imateriais, estando em causa os direitos ao repouso, ao sossego e ao sono tranquilo, com protecção jurídica, seja a nível das Convenções Internacionais, seja a nível da Lei Fundamental e com tutela na lei ordinária.
Desde logo, a Declaração Universal dos Direitos do Homem realça que «[t]odo o indivíduo tem direito à vida (...)» (art. 3º), estabelecendo o seu art. 24.º que «[t]oda a pessoa tem direito ao repouso (…)» e o seu art. 25º, n.º 1 que «[t]oda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem estar (...)», acrescentando a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, no seu art. 2º, nº 1, que «o direito de qualquer pessoa à vida é protegido por lei ...», e no seu art. 8°, nº 1, que ««[q]ualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio (…)».
E a nossa Constituição estabelece, no seu art. 1º, que a República Portuguesa, é «baseada na dignidade da pessoa humana», afirmando, no seu art. 25º, n.º 1 da CRP, que «a integridade moral e física das pessoas é inviolável», referindo-se, no seu art. 66º, ao ambiente e qualidade de vida, frisando, no seu n.º 1, que “[t]odos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender”.
Por sua vez, o nosso Código Civil, no seu art. 70º, contempla a tutela geral da personalidade dos indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral, permitindo ao ameaçado ou ofendido requerer, independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação de ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida.
Aceitando o ensinamento de Rabindranath Capelo de Sousa, “poderemos definir positivamente o bem da personalidade juscivilisticamente como o real e o potencial físico e espiritual de cada homem em concreto, ou seja, o conjunto autónomo, unificado, dinâmico e evolutivo dos bens integrantes da sua materialidade física e do seu espírito reflexivo, sócio-ambientalmente integrados”.
Importa aqui salientar que “a lei ordinária visa proteger o direito à saúde, à integridade física e moral das pessoas, como um direito eminentemente pessoal, não como um bem jurídico genérico respeitante a certa humanidade – mas antes como bens jurídicos que vê concretamente corporizados na pessoa de A, B, C, etc., ou seja, como bens eminentemente pessoais”.
Com efeito, a nossa lei tutela cada homem em si mesmo, concretizado na sua específica realidade física e na sua particular realidade moral. Em consonância com este princípio, a doutrina e a jurisprudência têm entendido que, no julgamento destes casos, o julgador não deve atender a um tipo de pessoa médio, ao cidadão normal e comum, mas a cada pessoa em concreto. O poder-utilizar de cada fracção autónoma (extensível à propriedade plena) deve respeitar os que lhe estão próximos, e o poder-ser do outro, com tudo o que este tem de fraqueza ou contingência. Se o ladrar de um cão é suportável por uma pessoa normal, mas no edifício habitam uma pessoa idosa, um doente ou um bebé, a quem o ladrar causa prejuízos intoleráveis, então o tribunal deve agir de acordo com esta concreta ofensa à personalidade do vizinho.
A fundamentação legal para a prevalência do direito de personalidade do vizinho sobre o direito de propriedade, de carácter patrimonial do detentor do animal, encontra-se no art. 335.º, n.º 2, segundo o qual, havendo colisão de interesses desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior.
Acrescenta Rabindranath Capelo de Sousa que a lei civil reconhece protecção às pessoas, “tutela civil esta que se consubstancia quer no direito de exigir do infractor responsabilidade civil nos termos dos arts. 483º e segs. do Código Civil quer ainda no direito de «requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa cometida» (…)”.
O art. 70º do Código Civil contém, assim, uma norma tutelar geral de personalidade, da qual se pode desentranhar um direito à vida, à integridade física e moral, à liberdade e à honra.
E quando hoje se fala no direito à vida, enquanto direito à existência biológica, isso tem um corolário elementar: o direito à qualidade de vida.
E, este, é um direito de cariz superior, porque inerente à qualidade humana, mesmo face a outros direitos, se for caso disso e na medida do adequado, à luz, inclusive, da lei ordinária.
Quer dizer e para o que aqui importa, o referido art. 70º do CC constitui uma norma geral de tutela da personalidade física e moral de uma pessoa, possibilitando a esta a reacção contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça à sua vida, à sua integridade física, à liberdade e à honra. A simples possibilidade de dano justifica a tutela decorrente do dispositivo. Evidentemente que na tutela da integridade física de uma pessoa se deve inscrever o direito ao repouso, à tranquilidade e ao sono. É sabido que a violação destes direitos, leva à degradação da saúde física e moral de um indivíduo. Neste sentido referiu-se no acórdão do STJ de 7/04/2011 (relator Lopes do Rego) www.dgsi.pt., que “sendo óbvio e inquestionável que o direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade de vida na sua própria casa se configuram manifestamente como requisitos indispensáveis à realização do direito à saúde e à qualidade de vida, constituindo emanação do referido direito fundamental de personalidade”.
(…)
Ora, a posição explicitada na sentença recorrida corresponde a uma orientação jurisprudencial constante e que se tem por correcta, no sentido de que o ruído que impeça o sono constitui violação do direito de personalidade, direito ao repouso, ainda que o nível do ruído não exceda os limites fixados no respectivo Regulamento do Ruído, dado que o direito de personalidade não pode ser restringido por um simples regulamento. Isto porque seria inconcebível admitir que um qualquer regulamento do ruído ou mesmo uma deliberação camarária pudesse contrariar o direito de personalidade.
No mesmo sentido, o Ac. do STJ de 17/01/2002 (relator Quirino Soares), in www.dgsi.pt., decidiu que a “ilicitude de um comportamento ruidoso, que prejudique o repouso, a tranquilidade e o sono de terceiros, está no facto de, injustificadamente e para além dos limites do socialmente tolerável, lesar tais baluartes de integridade pessoal”, sendo que a “ilicitude, nesta perspectiva, dispensa a aferição do nível do ruído por padrões legais estabelecidos”.
(…)
Ora, face à abundante matéria de facto sumariamente provada não existe dúvida que tais direitos dos apelados foram violados pela conduta dos apelantes.
Com efeito, basta ter presente os enumerados pontos 13 a 21, 24 a 26 e 28 dos factos provados para desde logo se aquilatar da violação e afetação do direito à saúde, ao repouso, descanso e tranquilidade dos requerentes, em particular da requerente mulher, atenta a sua especial condição de saúde (mercê do aneurisma cerebral sofrido em 2018, que a deixou com graves sequelas e lhe impõem uma necessidade acrescida de repouso), bem como dos filhos menores do casal, na medida em que estes revelam sinais de agitação e de perturbação, sobretudo no momento de se deitarem.
(…)
Por conseguinte, é de concluir pela conexão causal entre o ladrar dos cães dos vizinhos e as dificuldades de dormir que a requerente mulher e os filhos patenteiam.
(…).”
Impõe-se concluir que estamos perante uma situação de superioridade dos direitos de personalidade sobre os direitos de propriedade, que justifica que, atentos os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, se imponha aos Recorrentes o sacrifício do seu direito.
Improcede a apelação.
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Tendo decaído no recurso, os Recorrentes são responsáveis pelas custas – artigo 527º nº 1 e 2 do Código de Processo Civil.
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V. Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes da 6.ª Secção da Relação de Lisboa em julgar totalmente improcedente o recurso interposto e consequentemente mantém-se a decisão recorrida.
Custas a cargo dos Recorrentes.

Lisboa, 06 de Março de 2025
Cláudia Barata
João Manuel P. Cordeiro Brasão
Eduardo Petersen Silva