Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1419/22.1T8CSC-A.L1-2
Relator: INÊS MOURA
Descritores: QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO
SIGILO BANCÁRIO
CONTA BANCÁRIA
RECUSA DE IDENTIFICAÇÃO
BANCO DE PORTUGAL
PROCESSO DE INVENTÁRIO
PATRIMÓNIO COMUM
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: INCIDENTE DE QUEBRA DE SIGILO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: (art.º 663.º n.º 7 do CPC)
1. A decisão do tribunal de 1ª instância de autorizar a dispensa do sigilo de supervisão bancária do Banco de Portugal pode qualificar-se como inexistente, atenta a falta de poder jurisdicional do juiz de 1ª instância para o efeito, por ser questão da competência dos tribunais superiores, devendo aquele limitar-se a avaliar a legitimidade da escusa de tal entidade em prestar as informações solicitadas e nesse caso remeter para o tribunal superior o incidente para o levantamento/quebra do sigilo.
2. É legítima a recusa do Banco de Portugal em identificar os elementos relativos às contas bancárias de uma das partes no processo de inventário, com fundamento no dever de segredo a que está sujeito, nos termos do art.º 80.º do RGICSF, dever de segredo que se estende às bases de dados das contas bancárias que lhe compete organizar e gerir, conforme prevê o art.º 81.º-A daquele diploma.
3. É adequado e proporcional o levantamento do sigilo de supervisão bancária quando estamos no âmbito de um processo de inventário que visa a partilha do património comum do casal após a dissolução do seu casamento por divórcio, quando o cabeça de casal não consegue identificar as contas bancárias da interessada à data da separação do casal e a mesma recusa colaborar para esse efeito, já que não obstante possam estar em causa contas bancárias da sua exclusiva titularidade, o seu saldo à data da separação do casal pode, pela sua origem, assumir a natureza de bem comum.
4. Em face dos vários direitos em presença, o segredo de supervisão bancária invocado pelo Banco de Portugal deve ser levantado, de modo a que possam ser identificadas as contas bancárias de que a interessada era titular à data da separação do casal, o que se torna necessário para o apuramento do património comum do casal, o que vai ao encontro do interesse público na boa administração da justiça.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
O presente incidente de levantamento/quebra de sigilo vem suscitado pelo tribunal a quo, no âmbito do processo de inventário notarial facultativo que corre termos para partilha dos bens comuns de casal constituído por SJ e GJ, cujo casamento se encontra dissolvido por divórcio decretado em 20.06.2017, tendo sido determinado por despacho judicial que os efeitos patrimoniais do divórcio retroagem à data da separação do casal, em 31.10.2015.
O inventário é requerido por SJ, com fundamento na falta de acordo na partilha dos bens comuns, tendo o casamento sido celebrado sob o regime da comunhão de adquiridos.
Foi nomeado cabeça de casal GJ.
Com vista à apresentação da relação dos bens comuns e quando da prestação de declarações, veio o cabeça de casal solicitar que a interessada prestasse informação sobre as contas bancárias de que era titular à data da separação, bem como dos respetivos saldos, nomeadamente na CGD.
Por despacho de 24.09.2019 foi determinada a notificação da interessada para vir indicar os elementos solicitados.
A interessada veio dizer que nunca foi titular de uma conta conjunta com o cabeça de casal na CGD, sendo a conta conjunta no Banco Best.
Foi proferido despacho a esclarecer que a informação pedida se reporta às contas bancárias de que a interessada era titular à data da separação e não às contas conjuntas do casal.
Não obstante a interessada tenha vindo por diversas vezes pedir a concessão de prazo para fornecer os elementos solicitados, a mesma não os veio facultar, nem justificar a dificuldade na sua obtenção, após várias insistências do Sr.º Notário para o efeito.
Foi pedido ao tribunal que a interessada fosse condenada em multa por falta de colaboração no bom andamento do processo.
O cabeça de casal veio solicitar que se oficiasse ao Banco de Portugal a pedir os elementos requeridos.
Foi proferido despacho determinar a notificação da interessada SJ para juntar declaração de consentimento para que o Banco de Portugal pudesse prestar informação relativa às contas bancárias/depósitos/aplicações financeiras e outros produtos que a referida interessada era titular ou co-titular, à data dos efeitos patrimoniais do divórcio.
Regularmente notificada, não prestou a interessada o solicitado consentimento, nem apresentou qualquer justificação.
Foi oficiado o Banco de Portugal para prestar as informações referidas, ao abrigo do princípio da colaboração.
Por ofício de 18.01.2021 veio o Banco de Portugal invocar os artigos 80° e 81º-A do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras para fundamentar a sua recusa em prestar as informações solicitadas no âmbito do processo de inventário, informando que só o poderá fazer mediante autorização expressa dos interessados titulares dos dados ou mediante decisão de levantamento de sigilo bancário.
O cabeça de casal veio apresentar a Relação de Bens.
A interessada veio apresentar reclamação à relação de bens apresentada, no âmbito da qual requer que se oficie BCP para informar qual o valor das prestações pagas para a amortização durante o casamento do empréstimo contraído, por referência à conta bancária que identifica; mais requer que se oficie à CMVM para que indique os títulos e valores mobiliários de que o cabeça de casal era titular à data da separação do casal.
O cabeça de casal vem responder à reclamação apresentada, referindo designadamente que as prestações do mútuo bancário se destinaram a amortizar a aquisição da casa de morada de família que é bem próprio do cabeça de casal e de que a interessada está a usufruir, mais referindo que não há quaisquer valores mobiliários a relacionar. Vem ainda suscitar o incidente de levantamento do sigilo do Banco de Portugal, por ser imprescindível apurar quais as contas de que era titular/ co-titular a Requerente em 31.10.2015, sob pena de deixarem de ser partilhados bem comuns dos cônjuges, que é precisamente a finalidade do presente processo.
Notificada para se pronunciar, a interessada reafirmou não autorizar o levantamento do sigilo bancário, referindo que também o cabeça de casal não veio relacionar outras contas bancárias de que é titular.
O Sr.º Notário proferiu despacho a determinou o envio do presente incidente para o Tribunal competente com vista à apreciação do pedido de levantamento de sigilo bancário, por ser necessário ao apuramento do acervo patrimonial do casal à data da separação.
A 19.04.2013 foi proferida decisão pelo tribunal a quo que considerou legítima a recusa apresentada pelo Banco de Portugal e autorizou a quebra de sigilo bancário, devendo o Banco de Portugal identificar as instituições bancárias em que os interessados, SJ e GJ, conjunta ou individualmente, detinham contas bancárias/aplicações financeiras/ações, à data dos efeitos patrimoniais do divórcio - 31.10.2015.
O Banco de Portugal veio responder que só está autorizado a quebrar o sigilo por decisão de Tribunal Superior.
O Sr.º Notário enviou de novo o pedido de dispensa de sigilo para o tribunal de 1ª instância, pedindo que o incidente seja remetido para o Tribunal da Relação.
Foi proferido despacho a 09.10.2014 com o seguinte teor:
Assiste razão ao Banco de Portugal quando alega que a competência para decidir o incidente de levantamento do sigilo bancário, é do “tribunal superior”.
Assim, suscita-se incidente de quebra de sigilo bancário, nos termos do artº 135º, nº 3 do CPP, por remissão do artº 417º, nº 4 do CPC nos termos e fundamentos que constam do nosso despacho de 19.04.2023 (despacho esse onde o Tribunal devia, a final, ter solicitado a quebra do sigilo bancário e não autorizá-lo).
Pelo exposto, proceda-se à extracção de certidão integral do processo, impressa, para instruir apenso de incidente de quebra de sigilo bancário junto do Tribunal da Relação de Lisboa (artº 135º, nº 3 do CPP, por remissão do artº 417º, nº 4 do CPC) e remeta-o a este Tribunal.
Notifique.”
II. Questão a decidir
- da verificação dos pressupostos que permitem o levantamento do sigilo do Banco de Portugal
III. Fundamentos de facto
A factualidade relevante para a decisão do incidente é aquela que resulta do relatório elaborado.
IV. Razões de Direito
- da verificação dos pressupostos que permitem o levantamento do sigilo do Banco de Portugal
Na sequência do incidente de levantamento do sigilo requerido pelo cabeça de casal, e após o Sr.º Notário determinar o envio do processo para o tribunal para decisão do incidente, veio o tribunal a quo reconhecer o direito ao sigilo do Banco de Portugal, remetendo o processo para este tribunal, ainda que anteriormente tenha proferido um primeiro despacho a autorizar a quebra do sigilo.
Para autorizar a quebra do sigilo, como veio mais tarde a reconhecer o Exm.º Juiz a quo, o tribunal de 1ª instância carecia de competência, pelo que tem de considerar-se legítima também a segunda recusa do Banco de Portugal em prestar os elementos bancários que lhe foram solicitados.
Sobre a questão da falta de poder jurisdicional do tribunal de 1ª instância para decidir o incidente da quebra de sigilo, por razões de simplificação e por se concordar com o aí referido em situação idêntica, remete-se para o Acórdão do TRL de 14-09-2021 no proc. 2835/20.9T8CSC.L1-7 in www.dgsi.pt que sobre esta questão se pronuncia nos seguintes termos: “a quebra do segredo, pelo juízo que envolve, é, por opção legislativa, necessariamente da competência de um tribunal superior (Relação ou Supremo Tribunal de Justiça, conforme os casos). Este último não funciona, pois, como uma instância residual, quando se suscitem dúvidas sobre a legitimidade da escusa, mas sim como instância de decisão do incidente da quebra do segredo, nas situações em que a escusa é legítima.” No mesmo sentido, encontram-se os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 21-01-2014, relator Rodrigues Pires, processo n.º 664/04.6TJVNF-C.P1 e de 22-05-2017, relatora Ana Paula Amorim, processo n.º 271/13.2TMPRT-A.P1. Ora, nos presentes autos, o tribunal de 1ª instância entendeu ser competente para, reconhecendo a legitimidade da escusa por parte do Banco de Portugal, ordenar a quebra do segredo de supervisão determinando a prestação por aquela entidade das informações visadas pela requerida. Sucede que, embora o notário tenha competência, como se viu, para ordenar a notificação do Banco de Portugal para prestar tais informações, já não a tem para suscitar ou apreciar o incidente de dispensa de sigilo, incidente que foi remetido para o juízo de família e menores, tribunal com competência para apreciar a legitimidade da escusa, pois que o RJPI não atribui tais competências ao notário. No entanto, aferida essa legitimidade, impunha-se à 1ª instância, suscitar perante o Tribunal imediatamente superior a apreciação do incidente de quebra do dever de segredo e não proceder, ela própria, à sua apreciação, sendo certo que, como se referiu, a quebra do segredo é, por opção legislativa, necessariamente da competência de um tribunal superior, o que de modo algum foi afastado ou se pode considerar afastado pelo regime jurídico do processo de inventário – cf. neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10-03-2016, relator António Beça Pereira, processo n.º 42/16.4T8FAF-A.G1. O Tribunal recorrido ao apreciar e decidir sobre a dispensa do dever de sigilo extravasou o âmbito da sua competência, ou seja, a 1ª instância não tinha competência funcional para se pronunciar quanto a tal matéria, sendo incompetente, em razão da hierarquia, para o efeito – cf. neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12-09-2011, relatora Ana Paula Amorim, processo n.º 3553/06.6TJVNF-D.P1 – “O tribunal de 1ª instância é incompetente, em razão da hierarquia, para apreciar e proferir decisão no presente incidente (art. 71º/1 CPC). A violação das regras de competência em razão da hierarquia determina a incompetência absoluta do tribunal e tem como consequência a remessa do processo ao Tribunal da Relação do Porto, onde deve ser promovida a tramitação subsequente do incidente de dispensa de segredo bancário (art. 101º, 102º, 107º/1 CPC).”; no sentido de que o tribunal, seja o juiz da 1ª instância sejam os juízes dos tribunais de recurso, não só pode como deve suscitar ex-officio a incompetência absoluta em razão da hierarquia, Francisco Manuel Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume I, 2ª Edição, Reimpressão 2018, pág. 375, nota 759. A decisão proferida pelo tribunal recorrido no âmbito do incidente de dispensa de sigilo, porque proferida por quem não detinha poder jurisdicional para a proferir, padece de vício gerador de inexistência jurídica.”
A decisão do tribunal de 1ª instância, de autorizar a dispensa de sigilo do Banco de Portugal é irrelevante para efeitos da decisão do presente incidente, podendo qualificar-se como inexistente atenta a falta de poder jurisdicional do juiz de 1ª instância para o fazer, já que é questão da competência dos tribunais superiores, pelo que bem fez o Exm.º Juiz a quo em, num segundo momento, remeter para este tribunal o processo para decisão.
Vista esta questão prévia, importa ter em conta o regime legal, para de seguida se ponderar se deve ou não haver lugar à quebra do sigilo invocado pelo Banco de Portugal para se escusar a prestar as informações que lhe foram solicitadas relativas à identificação das contas bancárias de que a interessada era titular à data da separação do casal.
No domínio bancário coloca-se muitas vezes a questão da dispensa ou quebra de segredo, estando esta matéria prevista expressamente nos art.º 78.º e 79.º do DL 298/92, de 31 de dezembro, diploma que contém o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF).
O art.º 78.º dispõe relativamente ao segredo profissional
1 - Os membros dos órgãos de administração ou fiscalização das instituições de crédito, os seus colaboradores, mandatários, comissários e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.
2 - Estão, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias.
3 - O dever de segredo não cessa com o termo das funções ou serviços.”
Sobre esta questão importa ainda ter em conta o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ de 13/02/2008 com o n.º 2/2008, publicado no DR de 31/03/2008 que fixou jurisprudência nos seguintes termos:
1. Requisitada a instituição bancária, no âmbito de inquérito criminal, informação referente a conta de depósito, a instituição interpelada só poderá legitimamente escusar-se a prestá-la com fundamento em segredo bancário.
2. Sendo ilegítima a escusa, por a informação não estar abrangida pelo segredo, ou por existir consentimento do titular da conta, o próprio tribunal em que a escusa for invocada, depois de ultrapassadas eventuais dúvidas sobre a ilegitimidade da escusa, ordena a prestação da informação, nos termos do nº 2 do art. 135º do Código de Processo Penal.
3. Caso a escusa seja legítima, cabe ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado ou, no caso de o incidente se suscitar perante o Supremo Tribunal de Justiça, ao pleno das secções criminais, decidir sobre a quebra do segredo, nos termos do nº 3 do mesmo artigo.
As exceções ou limites ao dever de segredo bancário são contemplados no art.º 79.º do diploma mencionado que, no seu n.º 1 prevê que a instituição bancária possa fornecer ou revelar os elementos das relações do cliente com a instituição, mediante a autorização daquele. Na falta de tal autorização os factos cobertos pelo segredo apenas podem ser transmitidos às entidades elencadas no n.º 2, entre as quais as autoridades judiciárias no âmbito de um processo penal, na previsão da al. e) ou quando exista disposição legal que expressamente limite o dever de segredo.
Este dever de segredo estende-se à entidade de supervisão bancária que é o Banco de Portugal, conforme previsão dos art.º 80.º e 81.º-A do RGICSF, estabelecendo o art.º 80.º n.º 2 do RGICSF que: “Os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados mediante autorização do interessado, transmitida ao Banco de Portugal, ou nos termos previstos na lei penal e de processo penal.”
No caso em presença, o Banco de Portugal fundamenta a sua recusa em prestar as informações pedidas, no dever de segredo a que está sujeito, nos termos do art.º 80.º do RGICSF, dever de segredo que se estende às bases de dados das contas bancárias que lhe compete organizar e gerir, conforme prevê o art.º 81.º-A daquele diploma, não havendo por isso dúvidas em considerar legítima a sua recusa em prestar os elementos requeridos.
Como evidencia o Acórdão do TRL anteriormente citado, o segredo a que está sujeito o Banco de Portugal é um segredo de supervisão, pouco distinto do segredo bancário. Ali se refere com toda a propriedade: “Trata-se aqui de um outro tipo de segredo profissional ou, como se entendeu no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20-06-2012, relatora Maria João Romba, processo n.º 394/10.0TTTVD-A.L1-4, de uma modalidade do segredo profissional a que se refere o Capítulo III do Título VI do RGICSF, isto é, do segredo de supervisão imposto ao Banco de Portugal, configurado por uns como modalidade de segredo bancário e, por outros, como modalidade autónoma de segredo profissional – cf. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 3ª Edição, pág. 228. (…) O bem jurídico protegido pelo dever de segredo de supervisão continua a ser o direito à reserva da intimidade da vida privada sobretudo nas zonas de sobreposição, quanto à informação abrangida, com o segredo bancário, mas também o interesse público na efectividade ou eficácia da supervisão, essencial à salvaguarda da estabilidade do sistema financeiro, bem jurídico constitucionalmente previsto no artigo 101.º da Constituição da República Portuguesa, sendo o segredo de supervisão necessário ao estabelecimento da confiança. Ao poder do supervisor de exigir a prestação de todas e quaisquer informações necessárias ao exercício da supervisão há-de corresponder o dever de manter sigilo sobre as informações assim obtidas ou recolhidas, com o que se visa assegurar o interesse da comunidade na discrição e reserva de determinados grupos profissionais, como condição do seu desempenho eficaz e salvaguarda da estabilidade do sistema financeiro.”
No processo civil é o art.º 417.º n.º 4 do CPC que admite a dispensa de sigilo, remetendo igualmente para o regime previsto para o efeito no processo penal, devendo efetuar-se as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa.
No âmbito da instrução do processo, o art.º 417.º do CPC a propósito de dever de cooperação para a descoberta da verdade, prevê no seu n.º 3 os casos em que a recusa de colaboração com o tribunal é legítima, na qual se integra, de acordo com a previsão da al. c) a violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4, que acrescenta: “Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.”
Remetendo o processo civil para o regime previsto no processo penal, há que ter em conta o art.º 135.º do CPP que, reportando-se ao segredo profissional, começa por prever, no seu n.º 1 que, entre outros, os membros das instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei impuser ou permitir que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre factos por ele abrangidos. De acordo com o n.º 3 deste artigo, o tribunal superior àquele em que o incidente tiver sido suscitado, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos.
O direito ao sigilo bancário, tal como o direito ao sigilo de supervisão bancária, não é um direito absoluto. Como se diz no Acórdão do TRP de 10-01-2012 no proc. 5336/10 in www.dgsi.pt : “Embora protegido constitucionalmente, o direito ao sigilo bancário não é um direito absoluto, cedendo perante outros direitos ou interesses igualmente consignados na lei fundamental, cuja tutela imponha o acesso a informações cobertas pelo segredo bancário.”
A dispensa ou quebra de sigilo bancário ou de supervisão bancária é uma situação que judicialmente apenas se coloca quando estamos perante dois interesses em conflito, importando determinar em cada caso qual deles deve prevalecer.
De um lado, temos o segredo bancário ou de supervisão bancária que deve ser visto não só na perspetiva de um dever da instituição para com o cliente, numa tutela do princípio da confiança no âmbito da relação estabelecida entre a instituição bancária e o cliente e a proteção da vida privada, como também numa perspetiva social, assente em razões de ordem pública e de tutela da confiança no sistema bancário.
Do outro lado, temos também um interesse de ordem pública que se traduz na boa administração a justiça e no alcance da descoberta da verdade material, que impõe a todos o dever de cooperação com o tribunal, conforme decorre dos art.º 7.º e 417.º do CPC, que em regra surge associado ao interesse particular de uma das partes no processo.
Defendendo que o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, consagrados no art.º 20.º da CRP pode prevalecer sobre o segredo bancário, diz-nos o Acórdão do TRL de 09-02-2017 no proc. 19498/16.9T8LSB-A.L1-2 in www.dgsi.pt : “(…) esse direito ao sigilo, embora com cobertura constitucional, não é um direito absoluto, e desde logo por isso que pela sua referência à esfera patrimonial, não se inclui no círculo mais íntimo da vida privada das pessoas, embora com ele possa manter relação estreita. Podendo assim ter que ceder perante outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, cuja tutela imponha o acesso a informações cobertas pelo segredo bancário.”
Para a superação deste conflito de interesses, o art.º 135.º n.º 3 do CPP faz apelo ao princípio do interesse preponderante, devendo levar-se em consideração, de acordo com o disposto nesta norma, com as necessárias adaptações, fatores como a imprescindibilidade dos elementos para a descoberta da verdade e a natureza e âmbito dos bens em discussão.
Importa ainda ter em conta o art.º 335.º do C.Civil que sobre a colisão de direitos iguais ou da mesma espécie estabelece que os titulares devem ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito.
Como nos diz o Acórdão do TRL de 23-09-2021 no proc. 1172/21.6T8AMD.L1-2 in www.dgsi.pt : “Tendo presente a finalidade e a importância do sigilo bancário, é claro que a quebra do mesmo não poderá ser determinada sem uma criteriosa avaliação da sua necessidade e proporcionalidade, sob pena de se transformar em regra aquilo que deve ser uma exceção. Assim, para que possa ser ordenada a prestação da colaboração (determinada no quadro da administração da justiça) com quebra do dever de sigilo profissional é indispensável que tal se justifique segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, ponderando a imprescindibilidade da colaboração para o apuramento dos factos, a relevância do litígio e a necessidade de proteção de bens jurídicos, conceitos legais que têm sido densificados pela jurisprudência dos tribunais superiores.”
Ensina Lopes do Rego, in Código de Processo Civil Anotado, pág. 363: “cumpre ao Tribunal actuar segundo critérios prudenciais, realizando uma cautelosa e aprofundada ponderação dos delicados e relevantes interesses em conflito: por um lado, o interesse na realização da justiça e a tutela do direito à produção da prova pela parte onerada; por outro lado, o interesse tutelado com o estabelecimento do dever de sigilo, “máxime” o interesse da contraparte na reserva da vida privada, a tutela da relação de confiança que a levou a confiar dados pessoais ao vinculado pelo sigilo e a própria dignidade do exercício da profissão.”
Na situação em presença temos de um lado o direito ao sigilo de supervisão bancária e do outro lado o interesse público na boa administração da justiça e o direito das partes a uma tutela jurisdicional efetiva, impondo-se então saber se aquele deve prevalecer ou não perante estes, sendo em função do caso concreto e da ponderação dos direitos e dos interesses em confronto que vai resultar a resposta a tal questão.
Estamos no âmbito de um processo de inventário que visa a partilha do património comum do casal após a dissolução do seu casamento por divórcio, sendo por isso necessário determinar com verdade, quais os bens comuns que existiam à data da separação do casal, a que se reportam os efeitos patrimoniais do divórcio, uma vez que o casamento foi celebrado sob o regime de comunhão de adquiridos.
O cabeça de casal não conseguiu identificar as contas bancárias da interessada à data da separação do casal, apenas apontando para a existência de uma conta da mesma na CGD, tendo esta negado a sua colaboração para a identificar, sem apresentar qualquer justificação válida, limitando-se a referir que não se trata de uma conta conjunta do casal.
Os bens comuns do casal à data da separação, devem ser todos eles relacionados no inventário com vista à subsequente partilha e eventuais compensações a que haja lugar, assumindo a natureza de bem comum os depósitos bancários e ativos financeiros que tenham origem no produto do trabalho dos cônjuges na constância do casamento, ainda que cada um deles  possa fazer depósitos bancários em seu nome e movimentá-los livremente, como prevê o art.º 1680.º do C.Civil.
Não obstante possam estar em causa contas bancárias da exclusiva titularidade da interessada, a verdade é que o seu saldo à data da separação do casal pode, pela sua origem, assumir a natureza de bem comum.
Torna-se assim necessária a informação do Banco de Portugal para poder identificar-se as contas bancárias tituladas pela interessada à data da separação do casal, à qual retroagem os efeitos patrimoniais do divórcio, única forma de determinar o património comum do casal a partilhar, o que se apresenta como relevante para a boa administração da justiça, no âmbito do processo de inventário que corre termos.
Pode por isso dizer-se que a informação solicitada pelo cabeça de casal ao Banco de Portugal tem em vista uma finalidade legítima que corresponde à determinação do acervo patrimonial comum do casal, não correspondendo a uma mera intenção de devassa da vida privada, mas ao apuramento da verdade, não se vislumbrando que exista outra forma de obter tais elementos, atenta a posição de recusa da interessada em colaborar, apresentando-se por isso como adequado e proporcional a quebra do sigilo.
Com base nos elementos que venham a ser prestados e sendo indicada a existência de contas bancárias da titularidade da interessada, importará então averiguar se os seus saldos à data da separação do casal assumem a natureza de bem próprio ou de bem comum, de acordo com a prova que venha a ser produzida.
As circunstâncias referidas e a situação avaliada em concreto, impõem a conclusão de que não obstante as informações pedidas ao Banco de Portugal se encontrem abrangidas pelo segredo de supervisão bancária, se assumem não só como importantes mas como necessárias para a defesa dos direitos e interesses legítimos das partes no processo de inventário que passa pelo correto apuramento do acervo patrimonial comum, a par da relevância para o interesse público numa boa administração da justiça.
Desta forma, consideram-se verificados os pressupostos legais que podem determinar a quebra do segredo de supervisão bancária, por proporcional e adequado na ponderação dos vários interesses em presença.
Sobre situação semelhante e nos mesmos termos concluiu o já enunciado Acórdão do TRL de 23-09-2021 nos seguintes termos: “(…) ponderados os interesses conflituantes aqui em causa, assume clara preponderância o dever de cooperação para que tais desideratos sejam alcançados, não se mostrando desproporcional a restrição de direitos e interesses constitucionalmente protegidos decorrente da quebra do sigilo bancário nos moldes referidos (cf. art. 18.º, n.º 2, da CRP). Na verdade, a não ser satisfeito o solicitado pela Sr.ª Notária, poderão ficar por apurar factos relevantes para a correta decisão do incidente suscitado no processo de inventário, com prejuízo para a boa administração da Justiça, o que é inaceitável, na medida em que a informação pretendida não serve um propósito de devassa da vida económica e financeira das partes, mas apenas se destina à identificação segura do património conjugal a partilhar.”
Sem necessidade de mais considerandos, conclui-se que em face dos vários direitos em presença, o sigilo de supervisão bancária invocado pelo Banco de Portugal deve ser levantado, de modo a que possam ser identificadas as contas bancárias de que a interessada era titular à data da separação do casal, com vista ao apuramento do património comum do casal para subsequente partilha.
V. Decisão:
Em face do exposto, julga-se procedente o incidente suscitado, considerando-se justificado o levantamento do sigilo de supervisão bancária invocado pelo Banco de Portugal, que se dispensa, devendo ser identificadas as contas bancárias depósitos/aplicações financeiras e outros produtos de que a interessada era titular ou co-titular à data da separação do casal, com vista ao apuramento do património comum.
Custas do incidente pela Requerida por lhe ter dado causa e ter ficado vencida – art.º 527.º n.º 1 e 2 do CPC.
Notifique.
*
Lisboa, 7 de novembro de 2024
Inês Moura
Paulo Fernandes da Silva
Susana Mesquita Gonçalves