Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2477/13.5TCLRS.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: PROVAS
NEXO DE CAUSALIDADE
DANOS PATRIMONIAIS FUTUROS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/25/2021
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I. Na apreciação da prova tendo em vista a demonstração da existência ou da inexistência de nexo de causalidade naturalístico entre um determinado evento (acidente de viação) e um determinado dano (amputação da perna direita do lesado) o juiz levará em consideração as regras da ciência e do raciocínio, e bem assim as pertinentes máximas da experiência, ponderando que quanto mais elevado for o standard de prova ou o grau de prova exigido para a demonstração do facto, maior probabilidade haverá de ocorrência de um “falso negativo”, sendo certo que em sede de processo civil se deve preservar a igualdade e a simetria entre os litigantes – ressalvados casos em que a especial relevância dos interesses em jogo (v.g., restrição de direitos de personalidade ou da capacidade jurídica, direito à habitação, responsabilidades parentais) imponha um standard de prova ou grau de prova de maior exigência.
II. Considera-se provada a existência de nexo de causalidade entre um acidente rodoviário e a amputação da perna direita do lesado ocorrida quatro meses depois, resultante de complicações diretamente emergentes da oclusão trombótica de um bypass que se encontrava implantado nessa perna, oclusão diagnosticada três meses após o acidente, se se demonstrar haver maior probabilidade de a oclusão ter sido causada pelo traumatismo próprio do acidente, do que de a oclusão ter ocorrido naturalmente, por razões inerentes à constituição do lesado, alheias ao acidente.
III. Tratar-se-á, segundo a terminologia da Medicina Legal, de um nexo de causalidade certo (não meramente hipotético), indireto e parcial (e não total, pois para a amputação também contribuiu a existência do bypass).
IV. A fragilidade de que o lesado enfermava em virtude da implantação do bypass na sua perna esquerda, médico-legalmente classificável como estado anterior que contribuiu, como concausa, para o agravamento do resultado final, não deve, em princípio, afetar o direito do lesado à reparação integral do dano, de que o acidente de viação foi causa necessária.
V. Tendo o acidente ocorrido em 2011, quando o A. tinha 28 anos de idade e auferia cerca de € 750,00 por mês, tendo o A. ficado afetado, em virtude da amputação, com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica valorizável em 50 pontos (em 100), considera-se razoável, à luz dos valores reconhecidos na jurisprudência para casos similares, a atribuição de uma indemnização, por danos patrimoniais futuros, no valor de € 300 000,00 e uma indemnização, por danos não patrimoniais, no valor total de € 120 000,00 (a que haverá que aplicar a redução de 50% decidida pela 1.ª instância, que não constitui objeto do recurso).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 24.3.2013 Luís instaurou ação declarativa de condenação com processo comum contra V, S.A..
O A. alegou, em síntese, que no dia 24.6.2011, pelas 22h30, conduzia um motociclo da marca Honda, numa rua situada na Póvoa de Santo Adrião. A meio da rua e no sentido descendente, apresentava-se uma artéria do lado direito. Antes desse cruzamento encontravam-se vários veículos parados em segunda fila, junto ao passeio. Subitamente surgiu, circulando em marcha atrás, proveniente da aludida artéria do lado direito, atento o sentido de marcha do A., um automóvel que embateu na mota conduzida pelo A.. O embate provocou o despiste da mota do A., a qual acabou por embater em dois veículos que se encontravam estacionados no lado oposto àquele em que o A. transitava. O A. foi conduzido ao Hospital de Santa Maria, tendo tido alta decorridas quatro horas. O A. sofreu lesões físicas diretas e imediatas em consequência do acidente, nomeadamente, traumatismos na parte superior do tronco, e nos membros superiores e inferiores, rompimento dos ligamentos do ombro direito, hematomas nos braços e mãos, braço direito imobilizado, ambas as mãos queimadas, esteve 15 dias com as mãos ligadas sem poder pegar em qualquer objeto, teve de realizar um tratamento com infiltrações, no ombro direito, no hospital da CUF, tem uma cicatriz, visível, com cerca de 10 cm, teve traumatismo nos membros inferiores, particularmente no direito, com escoriação, esteve incapacitado de forma imediata para o trabalho, por 3 semanas, esteve dependente de terceiros, por 15 dias, teve dores intensas durante 10 dias, que foram diminuindo ao longo do tempo de recuperação, mas com permanência de dores álgicas. Sucede que, antes do acidente, mais precisamente em abril de 2011, o A. tinha sido alvo de uma intervenção cirúrgica, onde lhe fora colocado um bypass orto femoral direito. Desde a intervenção cirúrgica e até ao acidente o A. realizava uma vida perfeitamente normal, inclusive praticando desporto. Ora, após o acidente o A. voltou a apresentar queixas, tendo em setembro de 2011 sido diagnosticada uma trombectomia do bypass aorto femoral direito. Essa trombectomia constituiu uma sequela pós-traumática do dito acidente, causada pela violência do embate, que danificou o bypass. Os médicos optaram por uma atitude conservadora, sem recurso a cirurgia, mas com uma terapêutica médica ambulatória. A situação clínica manteve-se estagnada, com as queixas apresentadas, claudicação incapacitante, pelo que os médicos decidiram pela revascularização. Verificou-se uma oclusão precoce do bypass repermeabilizado e agravamento da sintomatologia que evoluiu para períodos de dor em repouso, com o decúbito e de predomínio noturno. Foi feito novo angioTC que confirmou além da trombose do bypass, trombose de novo da artéria femoral superficial. Em 25 de outubro procedeu-se a nova revascularização, tendo ocorrido isquemia aguda grave às 3 horas de pós-operatório, a qual foi refratária à reintervenção realizada no mesmo dia. A isquemia revelou-se irreversível e os médicos foram obrigados a amputar o membro inferior direito do A., pelo terço inferior da coxa direita, em 28.10.2011. Se não tivesse ocorrido o acidente o A. teria hoje uma vida perfeitamente normal. A R., embora reconheça a responsabilidade do seu segurado pelo sinistro, não aceita que a amputação a que o A. foi sujeito tenha sido causada pelo acidente. Desde junho de 2011 até ao presente o A. esteve impedido de exercer a sua atividade profissional. À data do acidente o A. tinha como remuneração € 850,00 e exercia a profissão de motorista-distribuidor para empresa subsidiária dos Correios de Portugal (CTT). O A. sofreu danos que computa pela seguinte forma: perda de salários desde a data do acidente até à data da propositura da ação (18 meses): € 15 300,00; danos futuros, por perda de rendimentos resultantes de incapacidade de 100%, € 338 461,11; danos não patrimoniais, € 60 000,00.
O A. terminou pedindo a condenação da R. no pagamento das quantias supra referidas, num total de € 413 761,11.
A R. contestou, admitindo a responsabilidade do seu segurado pelo sinistro ocorrido, mas impugnando parte dos danos invocados pelo A., em particular a amputação referida. Muito em síntese, a R. alegou que o A. tinha graves antecedentes de doença vascular natural, cujo agravamento foi totalmente alheio ao acidente.
A R. concluiu pela improcedência da ação, “com as legais consequências.”
Realizou-se audiência prévia, na qual foi proferido saneador tabelar, identificou-se o objeto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.
Procedeu-se a perícia médico-legal.
Realizou-se audiência final e em 04.9.2020 foi proferida sentença, que culminou com o seguinte dispositivo:
Pelo exposto, julgo a ação parcialmente procedente por provada e, em consequência, condeno a ré V (…) S.A., a pagar ao autor a quantia de capital de 220.000€ (duzentos e vinte mil euros), acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos desde a citação quanto ao montante de 150.000€ (cento e cinquenta mil euros) e desde a data desta sentença quanto à quantia de 70.000€ (setenta mil euros), absolvendo-a do pedido quanto ao restante que contra ela vinha peticionado.
Custas por autor e pela ré na proporção de metade para cada”.
A R. apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
1. Dos factos que se deram como provados quanto à dinâmica do acidente e tendo em conta o lado de que provinha o veículo seguro na Ré em relação ao sentido de marcha do motociclo, conclui-se que o motociclo foi embatido pelo seu lado direito e seguidamente foi embater nos veículos estacionados do lado contrário da via, do lado esquerdo do seu sentido de marcha.
2. Diferentemente do que considerou a douta sentença, quando afirma, a dado passo, que o autor teria sofrido – “queda violenta em virtude do choque de um veículo automóvel na motorizada em que o autor circulava” – a verdade é que dos factos provados nos autos não resulta que o autor tenha caído ao solo, mas sim que foi embatido pelo veículo seguro e depois projetado contra os veículos estacionados do lado contrário, imobilizando-se.
3. Considerando o que resulta, da experiência comum, é de presumir que o autor ia sentado no motociclo, com as pernas fletidas, pelo que o embate inicial se deu lateralmente, na zona exterior da perna direita, pelo que nada indicia que possa ter causado danos no bypass, situado na zona interior da coxa.
4. De acordo com o depoimento da testemunha Dr. Pedro (…) (audiência 26- 09-2019 - 15:10:53 – 15:50:43, de 00:01:31 a 00:22:46), o bypass aortofemural de que o autor era portador situa-se a um nível profundo na zona do abdómen e da virilha, a cerca de 5/6 centímetros de profundidade em relação à pele, pelo que está bem protegido, do ponto de vista da zona anatómica em que se insere, sendo necessário um traumatismo significativo para o atingir e não sendo facilmente atingível na tipologia do acidente sofrido pelo autor, que no momento do acidente teria que ter a perna fletida, conforme é a postura natural na condução de um motociclo.
5. Tendo a testemunha Dr. José (…) (Audiência 17-12-2019 | 15:58:14 – 16:23:24 de 00:19:36 a 00:24:52) referido que a zona do traumatismo mais grave e que mereceu cuidados acrescidos e prolongou o período de permanência nas urgências e a recuperação subsequente foi o traumatismo do ombro direito e dorso lombar, havendo apenas registo de escoriações nos membros inferiores, como resulta dos factos 11 a 30: sendo que as queixas essenciais do autor eram na coluna, pescoço, zona lombar, escoriações do ombro direito, membros superiores, mãos e cotovelos, o que é compatível com os embates laterais e pelo lado exterior dos membros.
6. Nestes elementos de prova não se identifica qualquer traumatismo, fratura, escoriação ou hematoma na coxa direita, ou na bacia, que não deixariam de surgir caso tivesse ocorrido uma pancada de intensidade suficiente para danificar um bypass aorto-femural, que se encontra implantado na face interior da coxa, na zona da virilha e, portanto do lado oposto àquele em que se teria dado o embate.
7. As queixas do autor, quanto aos membros inferiores e que estão identificadas na documentação clínica junta aos autos são meras escoriações e apenas nos joelhos e tornozelos, queixando-se o autor de dores nos tornozelos, não na zona da coxa, não tendo, ainda segundo a matéria de facto provada, os membros inferiores merecido qualquer cuidado de relevo, pois não constam que tenham sido imobilizados ou sequer ligados.
8. O autor deu conhecimento aos profissionais de saúde que o observaram nas urgências do Hospital de Santa Maria na noite do acidente, 24-06-2011, que era portador do bypass, conforme se pode ver do relatório de urgência de fls. 15, junto com a douta petição inicial, quer refere o seguinte, sob as epigrafes “Queixa” e “Triagem”.
9. Do conjunto destas anotações é licito concluir que o autor não apresentava qualquer traumatismo, escoriação ou hematoma que pudesse danificar o bypass, ao contrário do que o Tribunal deu como provado, pois, situando-se o bypass no interior da coxa, junto à virilha e se tivesse ocorrido um incidente que o danificasse, não poderia deixar de apresentar sinais externos disso.
10. No relatório do INML não há qualquer referência a danos apresentados pelo bypass, mas sim oclusão por trombose, cuja origem não está especificada, nem as testemunhas médicos a indicaram e, com este fundamento, os peritos do INML extraíram a conclusão que “11- Os elementos disponíveis não permitem admitir a existência de nexo de causalidade médico-legal entre o acidente de viação e a amputação, com base no exame pericial de Cirurgia Vascular solicitado”.
11. O Dr. Pedro (…) (Audiência 26-09-2019 | 15:10:53 – 15:50:43, de 00:16:04 a 00:17:10), declarou que o traumatismo decorrente do acidente não deu causa à oclusão do bypass, mas sim que é uma possibilidade, de entre muitas outras e até esclareceu melhor, que “Isto nunca vamos saber se foi o traumatismo que entupiu o bypass. Que coincidiu temporalmente com o que ele me queixa”, ou seja, não consegue apontar uma causa concreta, mas apenas que terá havido uma coincidência temporal com o acidente, baseado no que lhe relatou o autor, relato que não é de todo fiável, como se verá adiante
12. Referiu a mesma testemunha (Audiência 26-09-2019 | 15:10:53 – 15:50:43, de 00:21:15 a 00:25:31) que se o traumatismo tivesse sido tão violento, poderia ter justificado exames ao membro, que não foi o caso e não havia nenhum exame de imagem como TAC, ou uma coisa desse género, para ver mais por dentro, concluindo a testemunha que foi porque também provavelmente não haveria qualquer sinal clínico de lesão major nesse membro.
13. Por outro lado quando examinou o autor em Setembro de 2011, constatou que o bypass não tinha qualquer danos, pois, como declarou, “não detetei nenhum defeito, como sinais de hemorragia, ou como a cicatriz tinha três meses, como que rasgada ou reaberta, não. Isso estava tudo íntegro. Externamente, estava íntegro tudo. E não há registo de que, por exemplo, quando foi o acidente, de ter havido esta reabertura das cicatrizes ou coisa que o valha. Sim, isso não há registo nenhum disso. É porque não haveria, certamente”.
14. Tendo também declarado (Audiência 26-09-2019 | 15:10:53 – 15:50:43, de 00:09:06 a 00:11:46, de 00:12:42 a 00:15:50, de 00:29:07 a 00:38:57), não encontrou qualquer dano no bypass, nem nenhum elemento objetivo que lhe permitisse identificar um trauma suscetível de o danificar, ou de ter criado o trombo, podendo haver inúmeras razões, para alem do eventual trauma, para provocar o trombo e a subsequente obstrução do bypass, acentuando que a oclusão não é progressiva mas imediata e baseou a hipótese de haver um provável nexo de causalidade entre o acidente e tais patologias unicamente naquilo que lhe relatou autor.
15. A testemunha Dr. José (…) (Audiência 17-12-2019 | 15:58:14 – 16:23:24, de 00:01:02 a 00:05:31 e de 00:08:11 a 00:14:43) referiu que não há nexo de causalidade entre o acidente e a obstrução do bypass, baseado precisamente nos elementos contantes da documentação clínica de urgência do Hospital de Santa Maria: “Aquilo que me leva a concluir que efetivamente não existia nexo entre as lesões do acidente, que era aquilo que eu estava a ver, e a patologia prévia que o doente teria sofrido era o facto de o acidente sofrido não ter desencadeado lesões tão graves que pusessem efetivamente em risco a situação de que o doente era portador, portanto, pré-existente, e que levava já, e que teria levado já a várias cirurgias
16. Referindo, também (Audiência 17-12-2019 | 15:58:14 – 16:23:24, de 00:24:08 a 00:24:52) que no seu entendimento a dinâmica do acidente não foi idónea para causar danos no bypass ou originar a sua oclusão, pois o embate deu-se na face anterior da coxa, situando-se o bypass na face posterior, nem o autor apresentava lesões que pudessem justificar essa ocorrência, antes a fundando nos antecedentes clínicos que aparentava.
17. Do depoimento de testemunha Prof. Dr. Duarte (…) (Audiência 17-12- 2019 | 16:23:25 – 16:55:31, de 00:00:32 a 00:31;07), decorre que a documentação clínica não refere qualquer lesão na zona onde estava inserido o bypass, apesar de ter descrito escoriações no ombro, joelho esquerdo e noutras zonas, nomeadamente a suspeita de uma fratura na vértebra L5, o que revela cuidado e empenho da equipa médica das urgências, que não deixaria passar a eventualidade de investigar e registar qualquer traumatismo idóneo para causar alguma lesão no bypass ou que justificasse a sua oclusão.
18. Nas suas declarações de parte (Audiência 26-09-2019 | 14:42:49 – 15:09:41) o autor apenas deu respostas vagas, imprecisas e inseguras começando por dizer que tinha ficado em casa 1 ou 2 meses, ou mesmo 3 meses, altura em que recomeçou a andar e a ter queixas dolorosas na perna, tendo o Tribunal chamado a sua atenção para essa contradição e, uma vez que tal dilação não servia os seus propósitos, o autor já reduziu tal período para 1 mês, um mês e meio, o que não é aceitável, tendo em conta que são factos vivenciados por ele (00:02:46 a 00:03:47).
19. No trecho de 00:16:18 a 00:16:52, o autor declarou que andava de cadeira de rodas em casa e quando saía para ir fazer pensos ao Centro de Saúde, mas ao perito do INML declarou ter saído do Hospital em cadeira de rodas, tendo posteriormente permanecido no domicílio cerca de uma semana, ausentando-se apenas para se dirigir do Centro de Saúde para efetuar cuidados de penso (deslocar-se-ia até ao mesmo pelo próprio pé, indicando distar de cerca de 200 metros de sua casa), sendo por isso falso que apenas tenha começado a caminhar um ou dois meses após o acidente, como quis fazer crer ao Tribunal.
20. O autor foi impreciso e contraditório na indicação da data em que foi à consulta do Hospital Pulido Valente (cerca de 1 mês, junho, julho, agosto, mais ou menos em final de agosto, setembro, talvez); disse inicialmente que não sabia o que lhe tinha dito o médico sobre as implicações do acidente na sua situação clínica, depois que o médico não lhe tinha dito nada sobre se o problema tinha alguma coisa a ver com o acidente, para finalmente dizer que ele falou: “Pode tudo ter a ver com o acidente, pode ser derivado do acidente”, com base no facto de o bypass ter uma expectativa de duração de 40 anos, segundo ele.
21. Sucede que, em sede de pedido de esclarecimentos e a solicitação do mandatário da Ré foi perguntado ao autor qual era o trauma que podia ter causado o compromisso do bypass; o que lhe disse o médico quando foi à primeira consulta em Setembro de 2011, que explicação lhe deu que pudesse levar a pensar que a oclusão decorria do acidente; como é que o médico justificou a necessidade de nova operação, questões a que o autor se esquivou a responder, refugiou-se nos 8 anos que já se passaram, pelo que não se lembra, como se pudesse esquecer uma situação destas e que é a causa de pedir na presente ação.
22. Dos esclarecimentos prestados pelo perito Dr. Carlos (…) (Audiência 17-12- 2019 | 15:18:00 – 15:58:13) resulta que é claro ao dizer, mais do que uma vez, não poder afirmar que o acidente tenha sido a causa da oclusão do enxerto aortofemural, que não se identificou qualquer trauma que pudesse ter causado a oclusão, mas apenas que este ocorreu depois do acidente, em momento que não foi possível apurar, nem coincidem no tempo com o acidente, pois as queixas apenas estão documentadas quando o autor se dirigiu à consulta do Dr. Pedro (…) em Setembro de 2011, 3 meses após o acidente.
23. Tal como o Dr. Pedro (…)( já tinha esclarecido no seu depoimento, também o Dr. Carlos (…) referiu que a oclusão do bypass pode ter ocorrido por várias razões, que nada têm a ver com o acidente, como os atos da vida corrente que o perito enunciou exemplificativamente, como ir à casa de banho fazer as necessidades, ou quando se dobram a atar o sapato, tendo mesmo admitido a hipótese de a oclusão ter ocorrido mesmo que não tivesse havido o acidente.
24. Do depoimento de Josefa (…) (Audiência 24-10-2019 | 15:10:45 – 15:30:20) nada se retira que possa fazer alguma luz sobre os eventos que se seguiram ao acidente do autor, uma vez apenas passou a viver com ele em 2013, já depois de o autor ter sido amputado e o conhecimento que tem das vicissitudes por que passo o autor é disperso e impreciso.
25. A questão do nexo de causalidade entre as lesões sofridas pelo autor no acidente e a amputação do membro inferior direito comporta uma dupla vertente, por um lado a do estabelecimento do nexo clínico, por outro, a do nexo jurídico.
26. Da análise de toda a documentação clínica junta aos autos, e na qual se baseou, entre outros elementos, bem como dos diferentes depoimentos prestados, a decisão de factos que ora se impugna, não resulta que o acidente tenha causado danos no bypass; não resulta que a trombose do bypass tenha sido causada pelo acidente, até por não se saber quando ocorreu, antes decorre que a amputação do membro inferior direito do autor não resultou do acidente, mas da sua fisiologia própria.
27. A amputação não decorre de qualquer lesão causada pelo acidente, mas sim da fisiologia de que o autor padecia já em data anterior ao acidente, pois o autor já tinha sofrido um enfarte agudo do miocárdio em 2010, com 28 anos de idade, tendo todos os médicos afirmado que não é corrente, não é previsível, uma tal patologia nessa idade, portanto, há uma predisposição fisiológica particular do autor para formar trombos.
28. O único elemento que poderia estabelecer alguma relação entre o acidente e as queixas do autor era unicamente o elemento temporal, mas este é insuficiente para estabelecer tal nexo, tanto mais que entre o acidente e as queixas documentadas do autor medeiam 3 meses, conforme decorre do facto.
29. Tendo em conta o que dispõem o nº 1 do artº 342.º e 344º do Código Civil, no caso concreto dos autos, não se discutindo a responsabilidade pela produção do acidente, cabia ao autor o ónus de provar que no acidente sofreu um trauma no membro inferior direito que causou danos e/ou a obstrução do bypass e daí decorreu a necessidade da amputação do membro, prova que não fez, afirmando duas das testemunhas unicamente que seria provável, sem indicação do facto naturalístico suscetível de estabelecer tal nexo, pelo que, sendo o facto constitutivo do direito que se arroga, a questão deve ser decida contra ele.
30. E não há razão de espécie alguma que permita afirmar haver a obrigação de fazer a demonstração de que a obstrução do bypass ocorreu por uma razão alheia ao acidente, como entendeu a douta sentença, dado o autor não beneficiar de qualquer presunção que o dispensasse da prova, nem ocorre qualquer das hipóteses de inversão desse mesmo ónus (artº 344º do Código Civil).
31. Tendo em conta a tese da causalidade adequada, é seguro que a prova produzida nos autos não permite afirmar o nexo de causalidade entre o acidente e a amputação da perna dos autos, tal como este é definido pelo artº 563º do Código Civil.
32. Não é aplicável no caso dos autos o regime do artº 11º da Lei nº 98/2008, de 4/9, por se tratar de regime especial, destinado a estabelecer um tratamento legal específico aplicável unicamente à reparação dos acidentes de trabalho e doenças profissionais, como claramente decorre dos seu artºs 1º e 2º, baseando-se num sistema de responsabilidade objetiva, traduzido no chamado risco de autoridade, que se pode traduzir pela maior exposição do trabalhador a eventos infortunísticos, pelo facto de se ter que sujeitar às obrigações decorrentes do seu contrato de trabalho.
33. Buscar arrimo neste normativo para o aplicar ao caso concreto enferma de dois vícios, um, a de procurar integrar uma lacuna que não existe no sistema legal, já que a situação está regulada nos artºs 562º e seguintes do Código Civil e outro, a de aplicar analogicamente uma norma especial, em violação do disposto no artº 11 do Código Civil.
34. Assim, tendo em conta os elementos de prova dos autos, no seu conjunto e devidamente concatenados, bem como as observações que se deixaram expostas nas presentes alegações, há que concluir que não se provaram os factos 61, 75 e 77 cuja redação é a seguinte: 61 – Tal trombose foi originada pela queda do Autor na sequência do embate acima referido; 75 – A queda do autor em consequência do embate acima mencionado danificou o bypass, causando uma trombose com as consequências acima descritas; 77- Não tivesse ocorrido o acidente e não teria ocorrido a trombose do bypass aortofemural direito nos termos acima descritos, devendo tais factos serem eliminados do elenco dos factos provados.
35. E, por força de tal eliminação, terá que ser alterada a redação do nº 91 da matéria de facto, já que tal amputação não resultou dos termos descritos na sentença, isto, em relação com o acidente dos autos, mas sim de causas que lhe foram totalmente alheias,
36. Assim, onde de lê que “Em virtude da amputação da perna direita nos termos acima descrito o Autor ficou afetado por um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica valorizável em 50 pontos (em 100)”, terá que se alterar, de modo a constar apenas que “Em virtude da amputação da perna direita o Autor ficou afetado por um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica valorizável em 50 pontos (em 100)”
37. Em face do exposto, há apenas que indemnizar o autor tendo em conta o tempo de doença por 3 semanas, o QD 2/7 e o DE 1/7, afigurando-se adequado avaliar estes danos não patrimoniais em quantia não superior a € 2.500,00
38. Sucede que a Ré está a pagar ao autor uma prestação de € 300,00 mensais desde 01-06-2015, fixada por acordo num arbitramento de reparação provisória, tendo já sido pago um total € 19.500,00 até Outubro de 2020, montante que, acrescido das prestações vincendas até ao trânsito em julgado da decisão final, deverá ser integralmente descontado na indemnização final, e o autor condenado a restituir o excesso, havendo-o, como dispõe o art.º 390º, nº 2, do CPC, o que a douta sentença nem sequer considerou.
39. Sem prescindir e por mera cautela de patrocínio, para a hipótese de improceder o recurso da Ré quanto à matéria de facto, isto é, prevalecendo a tese do nexo de causalidade entre o acidente e a amputação, o que não se concede, os montantes indemnizatórios arbitrados pelo Tribunal, a título de dano patrimonial futuro e a titulo de dano moral, são claramente excessivos e sem apoio legal e jurisprudencial.
40. Para fixação dos danos patrimoniais futuros há que atender à previsibilidade do rendimento do lesado desde a data do evento lesivo até ao termo da vida ativa, operando depois uma redução, tendo em conta o benefício da antecipação, uma vez que o beneficiário irá receber de uma só vez aquilo que auferiria ao longo de vários anos, com possibilidade de uma vantajosa aplicação do capital, de natureza financeira ou imobiliária.
41. No caso concreto, na fixação do dano futuro considerou o Tribunal a idade do autor, que era de 28 anos à data do acidente e um rendimento mensal de € 750,00, de que apenas deu conta o próprio autor em declarações de parte, mas que se dá de barato e uma IPG de 50/100 pontos.
42. Se considerarmos que a vida útil do autor se prolongará pelo menos até aos 70 anos, a perda bruta de rendimento seria de € 220.000,00 (€ 750,00 X 14 X 42 anos X 50%), montante substancialmente inferior aos € 300.000,00 de que partiu o Tribunal.
43. Descontando aos € 220.000,00 o benefício da antecipação, como supra dito, que se estima em pelo menos 25% do total, obtém-se o valor de € 165.375,00 pelo que os 50% pelos quais a Ré seria responsável, segundo o Tribunal, representariam a quantia de € 82.687,50, muito inferior ao fixado pelo Tribunal.
44. Todavia, não é aceitável que se atribua ao acidente dos autos uma causalidade de 50%, pois, ainda que pudesse haver uma tal correlação, as hipotéticas lesões decorrentes do acidente nunca poderiam, só por si, determinar a necessidade de amputação, não esquecendo que, conforme foi repetido pelas testemunhas médicos, a amputação não resultou do acidente, mas sim da fisiologia do próprio autor, podendo a oclusão ter ocorrido sem o acidente, mas nunca só com o acidente.
45. Assim, recorrendo às regras da experiência comum e ao bom senso, a haver relação entre o acidente e a amputação, o que não se concede, não pode ser atribuído ao acidente mais do que 25% da causalidade, pelo que o valor adequado para indemnizar este dano patrimonial futuro deverá ser reduzido para € 41.343,75.
46. Relativamente a danos não patrimoniais, no caso do autor provou-se apenas que sofreu a amputação da perna, voltou a trabalhar depois disso (factos 89 e 90), ficou afetado de uma IPG de 50/100 pontos (91) e tem as demais limitações descritas nos nºs 93 a 101 e 113.
47. Não consta que esteja dependente de ajudas técnicas, salva a prótese, do auxílio permanente de terceira pessoa, que necessite de cadeira de rodas ou de banho, ou sofra de ideação suicidária, não apresenta quantum doloris nem dano estético quantificado nesta perpectiva.
48. Por tudo isto, julga-se que é equilibrado o valor 80.000,00 para indemnizar os danos não patrimoniais decorrentes do acidente dos autos, não tendo cabimento arbitrar € 20.000,00 só pelos ferimentos ligeiros sofridos no acidente e 3 semanas de incapacidade e que nada tiveram a ver com a amputação.
49. Assim, recorrendo às regras da experiência comum e ao bom senso, a haver relação entre o acidente e a amputação, o que não se concede, não pode ser atribuído ao acidente mais do que 25% da causalidade, pelo que o valor adequado para indemnizar este dano não patrimonial deverá ser reduzido para € 20.000,00.
50. A douta sentença recorrida cometeu erro de julgamento na apreciação da prova e violou o disposto nos artºs 11, 342º, nº1, 344º, 483º, nº1, 494º, 496º, nº 4, 562º, 563º, 564º e 566º do Código Civil e 392º, nº 2 do CPC , pelo que, deverá ser revogada e, em consequência: A. Eliminados os factos 61 , 75 e 77 do elenco dos factos provados. B. Alterada a redação do n º 91 dos factos provados, de modo a eliminar-se a expressão “...nos termos acima descritos...” C. Fixar-se a indemnização devida ao autor, por danos não patrimoniais, em quantia não superior a € 2.500,00
51. Caso se entenda não alterar a decisão de facto, o que não se concede, A. Deverá considerar-se que o acidente dos autos contribuiu em medida não superior a 25% para a produção dos danos; B. Reduzir-se a indemnização por dano patrimonial futuro para € 41.343,75. C. Reduzir-se a indemnização por dano não patrimonial para € 20.000,00.
52. Em qualquer caso, deverá determinar-se o desconto das prestações pagas pela Ré, a título de reparação provisória, até ao trânsito em julgado, na indemnização final, e o autor condenado a restituir o excesso, havendo-o
Com o que se fará a costumada JUSTIÇA!
O A. contra-alegou, tendo rematado com as seguintes conclusões:
a) Vem o presente recurso interposto pela Apelante por não se conformar com a sentença proferida pelo Tribunal a quo que o condenou no pagamento ao Apelado do montante de 220.000,00 euros acrescida de juros à taxa legal contados desde a citação sobre o montante de 150.000,00 euros e desde a data da sentença quanto à quantia de 70.000,00 euros, até efetivo e integral pagamento.
b) Contudo, não assiste razão à Apelante, na medida em que, a Douta Sentença recorrida não merece qualquer censura.
c) Vem a Apelante no seu recurso impugnar a matéria de facto e de direito, porquanto, entende que em função da distribuição do ónus de prova e dos elementos documentais existentes nos autos e testemunhos reproduzidos, não se fez prova do nexo de causalidade entre o acidente que o Apelado sofreu em 24/06/2011 e a amputação pelo terço distal da coxa direita, na sequência de trombose de bypass da artéria coxo-femural ocorrida em 28/10/2011.
d) Quanto à impugnação da matéria de facto discorda a Apelante com a decisão fixada quanto aos factos provados nº 61, 75, 77 e 91, com base nos quais o Tribunal a quo entendeu existir nexo de causalidade entre as lesões sofridas pelo Apelado no acidente e a amputação da perna pelo terço distal da coxa.
e) Fundamenta a Apelante a sua discordância quanto à decisão fixada nos relatórios médicos referentes ao episódio de urgência do Apelado no Hospital de Santa Maria no dia do acidente e à competência científica das testemunhas médicas arroladas pela Apelante.
f) Invoca a Apelante que do depoimento do Dr. Pedro (…), não identificou o mesmo qualquer traumatismo que pudesse ter provocado danos no bypass, limitando-se a afirmar uma mera possibilidade, como se um palpite se tratasse, bem assim como, que o depoimento do Perito Médico, Dr. Carlos (…) foi em sentido contrário ao que o mesmo disse no relatório do INML.
g) Ora, as alegações da Apelante relativamente ao depoimento prestado em sede de Audiência de Julgamento quanto à testemunha Dr. Pedro (…) e o Sr. Perito Médico, Dr. Carlos (…) não correspondem à verdade.
h) Afirma a Apelante com base no depoimento do Dr. Pedro (…) que o bypass colocado ao Apelado em Abril de 2011 se encontra bem resguardado, não sendo facilmente atingível na tipologia do acidente por si sofrido, porquanto, tendo o embate inicial foi na zona exterior da perna direita, nada indiciando que possa ter provocado danos na zona interior da coxa.
i) Ora, não pode concordar o Apelado com a conclusão vertida pela Apelante nas suas alegações, porquanto, afirmou a testemunha Dr. Pedro (…), com depoimento prestado em sede de Audiência de Julgamento realizada em 26/09/2019 e registado em acta que a cirurgia para colocação do enxerto aorto femural realizada em Abril de 2011 correu muito bem, sem qualquer complicação de rejeição ou infecção, tanto que o Apelado afirmou em consulta subsequente que se sentia extremamente bem e capaz de voltar a correr ou jogar à bola, sendo que, considerando o material que foi colocado existe uma expectativa de duração vitalícia. (06m00ss a 07m15ss e 07m20ss a 08m40ss)
j) Mais afirmou esta testemunha que o Apelado regressou à consulta em Setembro de 2011, após o acidente, tendo verificado que o bypass havia ocluído, tendo-lhe sido transmitido pelo Apelado que desde o acidente tinha voltado a sentir dores que tinha antes da cirurgia de Abril de 2011, com claudicação, mas que apenas se dirigiu à consulta em Setembro por estar a recuperar das lesões sofridas em consequência do acidente. (09m10ss a 11m05ss)
k) Afirmou ainda que após observação do Apelado em Setembro de 2011, verificou os registos das urgências referente ao dia do acidente e que o mesmo é um motivo para oclusão do bypass, até porque existe uma relação temporal, na medida em que foi após a ocorrência do acidente que o Apelado voltou a apresentar queixas na perna direita. Ou seja, antes do acidente e após a cirurgia de Abril de 2011 o Apelado encontrava-se assintomático e após o acidente voltou a ficar sintomático quanto às queixas de dores e claudicação. (16m00ss a 20m00ss)
l) Sendo que, ao contrário do afirmado pela Apelante, esta testemunha afirmou que para atingir o veio femural não é necessário uma grande pancada e é relativamente simples. (20m00ss a 20m40ss)
m) Pelo que, concluiu a mencionada testemunha que, analisada por si toda a informação médica disponível, o acidente foi causa provável da trombose do bypass e que se não tivesse existido a trombose do bypass era pouco provável que tivesse existido a amputação.
n) Acresce que, foi afirmado pelo Exmo. Perito Médico Dr. Carlos (…), com esclarecimentos prestados em sede de Audiência de Julgamento realizada no dia 17/12/2019 e registado em acta que efectivamente o Apelado sofreu em 2010 um enfarte do miocárdio, que originou queixas de dores na perna direita e claudicação, por lesão da artéria femural, sendo que, como a claudicação era incapacitante e o Apelado era jovem foi-lhe colocado um bypass, para restabelecimento do fluxo sanguínea à perna direita. Sendo certo que, após ocorrência do acidente pelo Apelado foi referido arrefecimento do membro inferior direito, tendo estado numa fase inicial a curar as sequelas do acidente e quando tentou retomar a sua vida normal, voltou a ter claudicação intermitente e dores. (03m00ss a 07m17ss)
o) Mais foi afirmado pelo Perito Médico que o que tem conhecimento pelos registos clínicos é que o Apelado recomeçou com queixas na perna somente após o acidente, pelo que, a maior probabilidade da ocorrência da oclusão do bypass prende-se com a ocorrência do sinistro e não com causa natural. (07m50ss a 09m30ss/ 12m00ss a 16m40ss/ 27m50ss a 28m05ss/ 33m00ss a 37m20ss).
p) Os depoimentos prestados quer pela testemunha Dr. Pedro (…), quer pelo Perito Médico Dr. Carlos (…) foram coerentes entre si, absolutamente imparciais e credíveis e com conhecimento directo dos factos, porquanto, ambos consultaram pessoalmente o Apelado.
q) Até porque, ao contrário do afirmado pela Apelante não existiu qualquer atitude do Dr. Carlos (…) em se desdizer em audiência de julgamento, porquanto, conforme o mesmo explicou e bem nesta sede, o mesmo não pode afirmar com 100% de certeza que o acidente tenha sido a causa de oclusão do enxerto, por isso é que colocou no seu relatório essa afirmação, contudo, conforme igualmente consta do mesmo, o reinicio das queixas de arrefecimento e claudicação do membro inferior direito coincidem temporal com este evento.
r) Ora resulta dos factos provados que com o acidente o Apelado sofreu traumatismo no dorso lombar, traumatismo e dores intensas no ombro direito, deslocou o ombro, escoriações nos joelhos e tornozelos dos membros inferiores e superiores, pelo que, não pode nunca a Apelante afirmar que o embate não foi violento e de intensidade suficiente para a oclusão do bypass.
s) Até porque, o facto de não ter existido uma lesão direta no local onde se encontrava o bypass, não quer dizer que não tenha existido impacto naquele local, tanto mais que, como é de conhecimento e sendo comum, um acidente num motociclo, como foi o do Apelado, que para além do embate inicial ainda foi projectado para cima de outros veículos estacionados e com queda ao solo, é precisamente nos membros inferiores que se sofre o embate.
t) Sendo que, pretende a Apelante sustentar a sua tese quanto à falta de nexo de causalidade entre o acidente e a amputação da perna direita ao Apelado nos depoimentos das testemunhas José (…) e Duarte (…), contudo, não poderá ser dada credibilidade aos seus depoimentos, porquanto, para além de não terem consultado pessoalmente o Apelado, são os mesmos, no entender do Apelado, interessados e parciais quanto à posição da Apelante, não se olvidando o facto do Dr. José (…), ser prestador de serviços para a Apelante e o Dr. Duarte (…) ter elaborado um parecer, sobre o qual prestou depoimento em Audiência de Julgamento, a pedido e pago pela Apelante.
u) Por conseguinte, a prova invocada pela Apelante para sustentar a sua impugnação à matéria de facto não é suficiente para modificar a decisão proferida pelo Tribunal a quo, pelo contrário, existe sim prova nos autos que sustentam a matéria de facto considerada como provada.
v) Nestes termos, face à matéria de facto apurada e considerada como provada na Douta Sentença, bem andou o Tribunal a quo quer quanto à respectiva qualificação jurídica quer quanto aos valores indemnizatórios fixados, pelo que, não deverá o recurso interposto pela Apelante ter provimento, mantendo-se a decisão recorrida inalterada nos seus precisos termos.
O apelado terminou pedindo que o recurso fosse julgado improcedente, mantendo-se a sentença proferida inalterada nos seus precisos termos.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
Este recurso tem por objeto as seguintes questões: impugnação da matéria de facto; valor da indemnização devida ao A.
Primeira questão (impugnação da matéria de facto)
O tribunal a quo deu como provada a seguinte
Matéria de facto
(Procede-se à transcrição integral dos factos dados como provados, tal como estão consignados na sentença, constatando-se que na sua numeração se omitem os n.ºs 2, 13, 15, 24, 26, 31, 32, 38 a 48, 62, 63, 76, 78, 80 a 82, 88, 92, 97, 102 e 104 a 112)
1. O Autor no dia 24 de Junho de 2011, pelas 22:30 horas, conduzia o veículo motorizado de marca Honda, modelo CB 500 cc, de matrícula (…), na Rua Padre António Vieira, sito em Póvoa de Santo Adrião.
3 - A meio da rua e no sentido descendente, apresenta-se uma artéria do lado direito.
4 - Antes desse cruzamento, encontravam-se vários veículos parados em segunda fila na faixa de rodagem, junto ao passeio, no mesmo sentido em que se deslocava o Autor.
5 - Em determinado momento um veículo de marca Peugeot, modelo 206, de cor cinza prata, matrícula (…), conduzido pelo segurado da Ré, sai em marcha atrás da referida rua, entrando na faixa de rodagem em que seguia o Autor.
6 - A artéria da qual o referido veículo proveio, é uma praceta sem saída.
7 – Ao efetuar aquela manobra de marcha atrás, o veículo VR embateu no veículo conduzido pelo Autor.
8 - O embate provocou o despiste da mota conduzida pelo Autor que,
9 - Acabou por embater em dois veículos que se encontravam estacionados, no lado oposto ao qual transitava.
10 - Imobilizando-se.
11 - Em consequência, o Autor foi conduzido ao Hospital de Santa Maria, para lhe serem prestados serviços de assistência médica.
12 - Deu entrada nas urgências, pelas 23:32H do dia 24 de junho de 2011.
14 - Apresentou queixas na coluna, pescoço, zona lombar, escoriações do ombro direito, membros superiores, mãos e cotovelos e nos membros inferiores, joelhos e tornozelos.
16 - Em consequência do embate, o Autor teve traumatismo no dorso lombar, sofrendo dores na palpação da coluna no 1/3 proximal e na vértebra L5.
17 - e no tórax à direita.
18 - Teve traumatismo e dores intensas no ombro direito.
19 - Rompeu um ligamento,
20 - Deslocou o ombro,
21 - Fez um corte, apresentando uma cicatriz com cerca de 10 cm.
22 - Embora mobilizasse os membros inferiores teve dores em ambos os tornozelos.
23 - Teve ainda escoriações nos cotovelos, mãos, joelhos e membros inferiores.
25 - Fez os primeiros curativos e imobilizações no hospital.
27 - Tendo-lhe sido dada alta hospitalar no dia 25 de junho de 2011, pelas 03:51 horas, cerca de 4 horas depois de dar entrada.
28 - Sendo que a alta foi com encaminhamento para o médico de família.
29 - Regressou a casa com as mãos e o ombro imobilizados com ligaduras.
30 - Esteve cerca de 15 dias com ombro e mãos imobilizadas com ligaduras nas mãos.
33 - Em consequência do acidente o veículo motorizado que conduzia sofreu estragos.
34 - Feita a peritagem, o referido veículo e atendendo aos danos estimados do mesmo no valor de €2.271,13, foi considerada perda total do veículo.
35 - Procedendo a Ré ao pagamento ao Autor de uma indemnização no montante de € 745,00 valor esse aceite pelo A.
36 – A Ré pagou ainda a roupa do Autor, bem como o capacete.
37 - A Ré assumiu a responsabilidade do acidente em virtude da celebração do contrato de seguro titulado pela Apólice n.º (…) que cobria os riscos da circulação do mencionado veículo matrícula (…) propôs uma indemnização final ao A., no valor de €410,40.
49 – O Autor teve de realizar um tratamento com infiltrações, no ombro direito, no hospital da CUF, tratamento pago pela Ré.
50 - Tem uma cicatriz no abdómen com cerca de 12,5 cm de extensão e 1,5 cm de espessura.
51 - Teve traumatismo nos membros inferiores particularmente no direito com
52 - Escoriação,
53 - Esteve incapacitado de forma imediata para o trabalho, por 3 semanas.
54 - Esteve dependente de terceiros, por 15 dias.
55 - Teve dores intensas durante 10 dias,
56 - Que foram diminuindo ao longo do tempo de recuperação, mas com permanência de dores álgicas.
57 – Foi retomando a sua vida normal, até Setembro de 2011.
58 - Em Setembro sentiu uma dor intensa na perna direita
59 - Dirigiu-se ao médico e,
60 - Diagnosticaram-lhe uma trombose do bypass aorto femoral direito que tinha sido colocado na coxa direita do Autor em abril de 2011.
61 – Tal trombose foi originada pela queda do Autor na sequência do embate acima referido.
64 - Verificou-se uma oclusão precoce do bypass repermeabilizado e ao agravamento da sintomatologia que evoluiu para períodos de dor em repouso, com o decúbito e de predomínio noturno.
65 - Feito novo angioTC que confirmou além da trombose do bypass, trombose de novo da artéria femoral superficial.
66 – Foi efetuada em 25 de outubro nova revascularização, que resultou em isquemia aguda grave às 3 horas de pós operatório.
67 - A isquemia revelou-se irreversível e em consequência disso em 28 de outubro de 2011 foi necessário proceder à amputação do membro inferior direito do Autor pelo terço inferior da coxa direita.
68 - O Autor tinha sofrido uma intervenção cirúrgica em Abril de 2011, onde lhe foi implementado um Bypass orto femural direito.
69 - Desde a implementação do bypass até à data do acidente, o Autor realizava uma vida perfeitamente normal.
70 - Trabalhava,
71 - Saía com os amigos,
72 - Praticava desporto.
73 - Desde Abril de 2011, onde lhe foi implementado o Bypass aorto femural direito até à data do acidente, nunca teve queixas ou dores.
74 - Só após o acidente ocorrido em 24 de junho de 2011 é que o Autor voltou a apresentar queixas.
75 – A queda do autor em consequência do embate acima mencionado danificou o bypass, causando uma trombose com as consequências acima descritas.
77 - Não tivesse ocorrido o acidente e não teria ocorrido a trombose do bypass aortofemural direito nos termos acima descritos.
79 - Na data do acidente o Autor estava desempregado, tendo anteriormente a essa situação de desemprego trabalhado como motorista-distribuidor para empresa subsidiária dos Correios de Portugal (CTT) na qual auferia a remuneração de €750,00.
83 - O A. durante 12 meses teve de depender de terceiros.
84 - Durante os 15 dias em que teve as mãos imobilizadas, para o auxiliar nas necessidades básicas, como vestir, calçar, puxar as calças, abotoar as calças, alimentar-se.
85 - Após a amputação e até receber uma prótese, em agosto de 2012, tinha o auxílio de terceiros para se vestir, para se deslocar, para abrir e fechar portas, subir e descer escadas.
86 - Em consequência dos danos provocados pelo acidente, este ficou durante 3 semanas totalmente incapacitado para qualquer atividade.
87 - Após a amputação do membro inferior direito, este ficou, novamente, impedido e incapacitado para o exercício da profissão de motorista-distribuidor.
89 - Desde junho de 2011 até janeiro de 2013, o Autor esteve incapacitado para o trabalho, vivendo com a sua companheira que o sustentava.
90 – Até à data de entrada da ação (25.03.2013) esteve desempregado.
91 – Em virtude da amputação da perna direita nos termos acima descrito o Autor ficou afetado por um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica valorizável em 50 pontos (em 100).
93 – Antes do acidente o Autor tinha uma vida normal no campo lúdico, social e desportivo.
94 - Ainda o foi depois do acidente, entre finais de julho e setembro de 2011, depois fechou-se em casa.
95 - A dor e o desconforto e o mau estar impedem-no de manter a vida lúdica que tinha.
96 – O Autor nunca mais pôde praticar o desporto que praticara até então, o futebol.
98 - Ficou com uma cicatriz com 10 cm no ombro direito.
99 - Durante cerca de 1 ano andou de canadianas.
100 - Quando vestia calças tinha de prender a perna direita das mesmas com um alfinete.
101 - Evita vestir calções para não mostrar o coto da perna e a cicatriz da amputação.
103 – O Autor nasceu em 21.01.1983.
113 - O A. sofreu e continua a sofrer com dores.
O Direito
Nos termos do n.º 1 do art.º 662.º do CPC “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
Pretendendo o recorrente impugnar a decisão relativa à matéria de facto, deverá, nos termos do art.º 640.º do CPC, sob pena de rejeição, especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
In casu, a apelante discorda dos factos dados como provados sob os n.ºs 61, 75 e 77 e, consequentemente, de parte do que consta provado sob o n.º 91 da matéria de facto.
Estes pontos da matéria de facto provada têm a seguinte redação:
61 – Tal trombose foi originada pela queda do Autor na sequência do embate acima referido.”
75 – A queda do autor em consequência do embate acima mencionado danificou o bypass, causando uma trombose com as consequências acima descritas.”
77 - Não tivesse ocorrido o acidente e não teria ocorrido a trombose do bypass aortofemural direito nos termos acima descritos.”
91 – Em virtude da amputação da perna direita nos termos acima descrito o Autor ficou afetado por um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica valorizável em 50 pontos (em 100).”
Está em causa, pois, a apreciação da existência de nexo de causalidade entre o acidente objeto dos autos, ocorrido em 24.6.2011, e a amputação da perna direita, pelo terço inferior da coxa, de que o A. foi alvo em 28.10.2011.
Em sede de julgamento da impugnação da matéria de facto, cabe apreciar o nexo de causalidade na sua vertente naturalística. A determinação, em sede dos factos, de um nexo naturalístico entre o acidente e o dano é condição prévia à ulterior apreciação, do ponto de vista jurídico, da relevância do acidente para a responsabilização do agente. Isto embora não se negue o acerto de uma perspetiva holística sobre a natureza da causalidade no direito, isto é, a consciência de que a apreciação da questão de facto pressupõe uma pré-compreensão, uma antecipação do sentido ou da intuição da relevância jurídica do caso, de forma que a questão de direito também determina a questão de facto (cfr. Rui Soares Pereira, O Nexo de Causalidade na Responsabilidade Delitual – Fundamento e Limites do Juízo de Condicionalidade, Almedina, 2019 – Reimpressão, v.g., pp. 526 e 527).
O CPC descreve a atitude devida pelo juiz na apreciação das provas e consequente fixação da matéria de facto provada e não provada.
Segundo o n.º 4 do art.º 607.º, “[n]a fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência”.
Segundo o n.º 5 do mesmo artigo (art.º 607.º), “[o] juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”.
O juiz fixará os factos de acordo com a convicção que extrair da prova produzida, analisada de forma racional e lógica, atendendo à qualidade e credibilidade dos meios probatórios apresentados no processo. No espaço que caiba ao princípio da livre apreciação (isto é, não condicionado por provas tarifadas), em que se enquadra a prova testemunhal (art.º 396.º do CC) e a prova pericial (art.º 389.º do CC), a convicção do juiz assentará em regras da ciência e do raciocínio e em máximas de experiência (Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo processo civil, 2.ª edição, 1997, Lex, p. 347).
Raramente a convicção do juiz assentará numa certeza absoluta. Por regra, “a decisão factual assenta apenas em certeza relativa, a qual, acrescentada pela ponderação de quem julga, conduz a uma situação de convicção e a subsequente exposição em termos necessariamente categóricos” (…). Em situação de incerteza factual, “o juiz de facto acrescenta a esta a sua convicção em ordem a transformá-la em certeza fictícia, ou em negação desta“ (STJ, 22.10.2009, processo 409/09.4YFLSB, consultável, tal como os adiante indicados, em www.dgsi.pt).
Na apreciação dos factos o juiz não pode refugiar-se num non liquet (art.º 8.º n.º 1 CC). Em caso de dúvida acerca da realidade de um facto, o juiz decidirá contra aquele sobre quem recair o ónus da prova desse facto (art.º 414.º do CPC).
Ao dar como não provado o facto sobre o qual assenta a ação, por não conseguir ultrapassar a dúvida acerca da realidade desse facto, o juiz não apenas não reconhece o direito invocado pelo autor, como decide, afinal, que o autor não tem esse direito perante o réu (absolvendo-o do pedido), dentro dos limites do caso julgado. No que concerne ao facto, nestas condições, o juízo de não prova desse facto equivale a um juízo de prova de não ocorrência desse facto, ou de prova do facto seu contrário. A esse “facto contrário” ficcionado se aplicará a norma que determina a improcedência do pedido (neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa, “Análise lógico-normativa da decisão de improcedência. Uma reflexão sobre a evidentiary defeasibility e a dupla ordem jurídica”, in Grandes Temas do Processo Civil: 4, Improcedência, 2015, Editora Juspodium, Salvador, Baía, pp. 84-91; também acessível em Blog do IPPC: Bibliografia (745) (blogippc.blogspot.com) ; sobre o mesmo tema, também, post de 24.06.2019, Jurisprudência 2019 (42), no Blog do IPPC).
O erro judicial na fixação dos factos manifesta-se num falso positivo quando uma decisão declara provada uma hipótese, sendo esta falsa. O falso negativo ocorre quando se declara uma hipótese não provada, sendo esta verdadeira (cfr. Luís Filipe Pires de Sousa, Direito Probatório Material Comentado, Almedina, 2020, pp. 51 e 52). À medida em que se aumenta a exigência do standard de prova, ou grau de prova, aumentam os falsos negativos e diminuem os falsos positivos. “É por esta ordem de razões que o standard de prova adotado para a decisão final no processo penal é muito mais elevado que no processo civil: existe uma opção ética no sentido de que é socialmente preferível uma absolvição falsa do que uma condenação falsa” (Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., p. 52).
Partindo-se da ideia de que em processo civil se deve preservar a igualdade e simetria entre os litigantes, poderá defender-se que aqui o standard de prova ou grau de prova deve garantir uma distribuição igualitária do risco de erro entre o autor e o réu (cfr. Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., p. 54). Em vulgares casos de incumprimento de obrigações contratuais, ou de ações de responsabilidade civil emergentes de acidente de viação, o grau de convicção exigido para a prova de um facto poderá traduzir-se numa ideia de simples preponderância da resposta afirmativa sobre a resposta negativa, quantitativamente representável pela percentagem mínima de 0,51 (> 0,51), ou, se se considerar que o art.º 346.º do CC impõe uma majoração do limiar mínimo, então será de aplicar um limiar mínimo de probabilidade de 0,55 (cfr. Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit, pp. 55-63). Casos haverá em que a especial relevância dos interesses em jogo (v.g., restrição de direitos de personalidade ou da capacidade jurídica, direito à habitação, responsabilidades parentais) poderá impor um standard de prova ou grau de prova de maior exigência, exprimível, em termos quantificados, num limite mínimo de probabilidade de > 0,75 (Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., pp. 63 e 64).
Como se disse supra, no caso destes autos está em causa apurar a existência de um nexo de causalidade entre um acidente rodoviário e um dano corporal.
No âmbito da Medicina Legal, especificamente sobre as condições médico-legais exigidas para estabelecer a imputabilidade de um dano a um dado traumatismo, apontam-se sete condições clássicas (seguindo a lição de Fernando Oliveira Sá, Clínica Médico-Legal da Reparação do Dano Corporal em Direito Civil, Apadac – Associação Portuguesa para a Avaliação do Dano Corporal – Instituto de Medicina Legal de Coimbra, 1992, pp. 48-49):
1. Natureza adequada do traumatismo para produzir as lesões evidenciadas;
2. Natureza adequada das lesões a uma etiologia traumática;
3. Adequação entre a sede do traumatismo e a sede da lesão;
4. Encadeamento anátomo-clínico (entre o traumatismo e o dano a imputar-lhe deverá existir uma continuidade sintomatológica, uma sucessão de factos fisiopatológicos que torne plausível e aceitável uma cadeia causal indo do traumatismo até à última expressão do dano, conforme aos dados da experiência clínica);
5. Adequação temporal;
6. Exclusão da pré-existência do dano relativamente ao traumatismo;
7. Exclusão de uma causa estranha ao traumatismo (nomeadamente outro traumatismo criando patologia própria e posterior àquele em causa).
Numa outra formulação, nesta inspirada, enunciam-se, como elementos a considerar para a formulação de um juízo de existência de nexo de causalidade (imputabilidade médica) entre um evento (por exemplo, um acidente de viação) e um dano, os seguintes aspetos  (reproduzimos o texto de Duarte Nuno Vieira e Francisco Corte-Real, “Nexo de Causalidade em Avaliação do Dano Corporal”, in Aspectos práticos da avaliação do dano corporal em Direito Civil, Coordenação de Duarte Nuno Vieira e José Alvarez Quintero, Imprensa da Universidade de Coimbra e Caixa Seguros, Biblioteca Seguros, Junho 2008, número 2, pp. 61-82, consultável em https://digitalis-dsp.uc.pt/bitstream/10316.2/2715/9/Aspectos%20Pr%C3%A1ticos%20da%20Avalia%C3%A7%C3%A3o%20do%20Dano%20Corporal%20em%20Direito%20Civil%20%282008%29.pdf):
1. O da verosimilhança científica ou, por outras palavras, o de uma natureza adequada do ato ou evento em causa para produzir as lesões ou sequelas evidenciadas;
2. Certeza diagnóstica (determinação com exatidão das lesões iniciais);
3. Integridade pré-existente da região ou da função atingida, isto é, a exclusão da pré-existência de dano;
4. Concordância de lugar, isto é, a adequação entre a região atingida no contexto do evento e a sede da lesão;
5. A adequação temporal, isto é, o intervalo entre o ato ou evento e o aparecimento das lesões;
6. Encadeamento anátomo-clínico ou, por outras palavras, continuidade evolutiva;
7. Realidade do facto ou do evento associado às lesões observadas, ou seja, a exclusão de uma causa estranha.
O nexo de causalidade (continuamos a acompanhar o supracitado texto de Duarte Nuno Vieira e Francisco Corte-Real) pode ser certo ou hipotético, direto ou indireto, exclusivo ou parcial. A estes diferentes tipos chegará o perito médico pela ponderação dos sete critérios suprarreferidos.
Se o nexo é certo (isto é, o evento foi seguramente a causa das lesões e/ou das sequelas observadas), direto (ou seja, as lesões e/ou sequelas resultaram diretamente do evento) e total (nenhuma outra causa para além do evento em apreço teve responsabilidade na afetação da integridade psicofísica constatada), não existem dificuldades. Nestes casos o perito não precisará de se alargar em considerações para fundar um juízo positivo quanto à existência de nexo de causalidade entre o evento e o dano.
Já não será assim nos casos em que o nexo de causalidade é hipotético, indireto e/ou parcial.
O nexo de causalidade é hipotético quando a análise dos critérios a ele relativos não consente o seu estabelecimento com segurança, sucedendo todavia que o perito médico também o não pode afastar formalmente. Nesse caso, o perito deve consignar no relatório pericial as suas dúvidas.
Do ponto de vista médico e no contexto do nexo de causalidade, o caráter direto ou indireto visará a filiação patogénica entre a causa e o efeito. Por outras palavras e a título de exemplo, será indireta para o médico a ligação entre um traumatismo abdominal e a seropositividade para a SIDA, na sequência de uma laparotomia e da esplenectomia que necessitou de uma transfusão.
Caberá ao perito explanar esta ligação indireta, cabendo ao decisor extrair as devidas consequências.
O nexo de causalidade parcial significa que há outra causa (ou causas) suscetível de ter contribuído para a situação observada, ou seja, outra causa concorreu com o evento em apreço para a realização do efeito.
Esta outra causa poderá ser um estado intercorrente, uma predisposição ou estado anterior.
Engloba-se na designação estado intercorrente todo o evento de saúde, acidente ou outro, ocorrido no contexto ou depois do evento inicial em apreço e que possa ser também uma das causas do estado atual (situações integráveis nas clássicas concausas simultâneas e supervenientes). Este estado intercorrente pode até estar indiretamente ligado ao evento inicial.
O perito deve indicar claramente se as consequências iniciais foram ampliadas por este estado intercorrente (por exemplo uma terapêutica inadequada) e procurar determinar o que seria imputável às lesões iniciais, tal como estas normalmente evoluiriam por si só, e o que é devido a esse estado intercorrente.
A predisposição é um estado anterior que por definição estava mudo, que era frequentemente ignorado (estas situações respondem frequentemente a um estado psicológico, mental ou a fatores de risco).
O estado anterior pode ser de diferentes naturezas: afeção crónica, sequelas de doença ou acidente prévio, estado constitucional.
O estado anterior pode não ter tido qualquer interferência na afetação da integridade psicofísica em análise, mas pode também ser uma causa possível das lesões ou sequelas que a vítima apresenta. Nesta segunda hipótese os dois fatores - estado anterior e evento em causa - podem associar-se, ocorrendo o clássico problema da concausa pré-existente.
O estado anterior pode ter sido exteriorizado (tornado patente), descompensado, acelerado ou agravado pelo evento em apreço e cuja imputabilidade à afetação da integridade psicofísica atual está em jogo.
A exteriorização (ou desencadeamento) é a passagem de um estado latente, conhecido ou desconhecido, mas silencioso, ao estado patente.
A descompensação difere da situação prévia no sentido em que o estado anterior era já patente, ou seja conhecido, mas estava estabilizado. O evento veio fazer evoluir este estado.
A aceleração caracteriza-se por uma precipitação do processo evolutivo, sendo a evolução a que se previa para a doença pré-existente, mas sendo o intervalo evolutivo encurtado, em consequência do evento.
Quanto ao agravamento, traduz como o próprio nome indica uma diferença do nível de afetação da integridade psicofísica, diferença esta que deve ser ponderada na avaliação pericial.
Segundo Duarte Nuno Vieira e Francisco Corte-Real, se o evento traumático agravou o estado anterior ou exteriorizou uma patologia latente, haverá que distinguir:
- Se o traumatismo agravou o estado anterior do examinado, o responsável pela produção do dano deverá ser responsabilizado pelos danos por ele causados e não pelos já existentes. Terá, assim, que haver uma diferença entre as duas situações, designada por agravamento, que o perito deve avaliar, para depois o decisor estipular se deverá ser alvo de compensação indemnizatória por parte do responsável (estudo citado, p. 78).
- Se o evento exteriorizou uma patologia latente, deverá ser feita uma avaliação específica para cada situação. Se não fosse medicamente provável que essa patologia se viesse a revelar, então o traumatismo em questão deverá ser pericialmente responsabilizado por ela. Mais complexa é a situação quando existe dúvida se, sem o traumatismo, a patologia se exteriorizaria ou não, ou sabendo-se que provavelmente se exteriorizaria, se tal aconteceu mais cedo que o previsto.
A todas estas situações haverá que responder ao seguinte conjunto de três questões: Quais as consequências decorrentes do evento sem o estado anterior? Quais as consequências decorrentes do estado anterior sem o evento? Quais as consequências resultantes do complexo estado anterior- evento? (estudo citado, p. 81).
Revertamos ao caso dos autos.
Está provado que em 24.6.2011, quando conduzia um motociclo, o A. foi embatido por um automóvel ligeiro que saía de um entroncamento em marcha atrás. O motociclo despistou-se e embateu em dois veículos que se encontravam estacionados no local, imobilizando-se. Em consequência do embate o A. teve traumatismo no dorso lombar, sofrendo dores na palpação da coluna no 1/3 proximal e na vértebra L5 e no tórax à direita. Teve traumatismo e dores intensas no ombro direito. Rompeu um ligamento e deslocou o ombro. Teve traumatismo nos membros inferiores, particularmente no direito. Apresentou queixas na coluna, pescoço, zona lombar, escoriações do ombro direito, membros superiores, mãos e cotovelos, e nos membros inferiores, joelhos e tornozelos. Embora mobilizasse os membros inferiores, teve dores em ambos os tornozelos. O motociclo do A. ficou em estado de perda total. O A. foi levado para o hospital, tendo tido alta decorridas 4 horas. Regressou a casa com as mãos e o ombro imobilizados com ligaduras. Esteve cerca de 15 dias com ombro e mãos imobilizados com ligaduras. Durante três semanas o A. esteve totalmente incapacitado para qualquer atividade. Esteve dependente de terceiros, por 15 dias. Teve de realizar um tratamento com infiltrações, no ombro direito. Teve dores intensas durante 10 dias, que foram diminuindo ao longo do tempo de recuperação, mas com permanência de dores álgicas. Foi retomando a sua vida normal, até setembro de 2011. Em setembro sentiu uma dor intensa na perna direita. Dirigiu-se ao médico e foi-lhe diagnosticada uma trombose do bypass aorto femoral direito que tinha sido colocado na coxa direita do A. em abril de 2011. Com efeito, o A. tinha sofrido uma intervenção cirúrgica em abril de 2011, onde lhe foi implementado um bypass orto femoral direito. Desde a implementação do bypass até à data do acidente, o A. realizava uma vida perfeitamente normal, trabalhando, saindo com os amigos, praticando desporto. Desde abril de 2011 até à data do acidente, nunca teve queixas ou dores. Só após o acidente ocorrido em 24.6.2011 é que o A. voltou a apresentar queixas. Após se ter constatado a trombose do bypass aorto femoral direito verificou-se uma oclusão precoce do bypass repermeabilizado e o agravamento da sintomatologia, que evoluiu para períodos de dor em repouso, com o decúbito e de predomínio noturno. Foi feito novo angioTC, que confirmou, além da trombose do bypass, trombose de novo da artéria femoral superficial. Em 25 de outubro de 2011 foi efetuada nova revascularização, que resultou em isquemia grave às 3 horas de pós operatório. A isquemia revelou-se irreversível e em consequência disso em 28 de outubro de 2011 foi necessário proceder à amputação do membro inferior direito do A. pelo terço inferior da coxa direita.
Todo o factualismo descrito no parágrafo que antecede foi dado como provado, e não foi questionado pelas partes.
O encadeamento destes factos suscita a interrogação acerca do contributo que o acidente rodoviário sofrido pelo A. teve na oclusão do bypass que tinha implantado na perna direita, oclusão que veio a desembocar na isquemia que ditou a amputação. Quanto à existência de nexo de causalidade entre a dita oclusão do bypass e a amputação da perna do A. não existem dúvidas entre os quatro médicos que foram ouvidos na audiência final (três na qualidade de testemunhas e um na qualidade de perito). A existência desse nexo foi aceite por todos. A questão suscita-se quanto à existência de nexo de causalidade entre o acidente e a oclusão trombótica do bypass.
À partida, atendendo à violência do embate sofrido pelo corpo do A., inerente ao acidente, e ao facto de antes do acidente o A. se encontrar perfeitamente bem, não sentindo qualquer limitação ou queixa na utilização da perna, ressurgindo as queixas só após o acidente, seria razoável considerar que a oclusão resultou do acidente. Será neste sentido, de presunção natural nos termos do art.º 349.º do CC, que o tribunal a quo ponderou que “Em face de todo o circunstancialismo anterior e posterior ao acidente, a conclusão de que não existe nexo de causalidade entre esse evento e a trombose do bypass é que tinha de ser afirmada expressamente em termos científicos e não o contrário, ou seja, tinha de resultar expressamente de dados médico-legais que indiciassem que a trombose ocorreu por uma causa distinta dos traumatismos sofridos pelo autor. Neste caso concreto, atendendo à natureza do acidente e ao iter factual que se lhe seguiu, a regras da experiência levam necessariamente à conclusão de que existe o mencionado nexo de causalidade.”
Porém, as duas testemunhas indicadas pela R. recusaram essa possibilidade. O Dr. José (…) imputou a trombose no bypass a uma predisposição do A. para tal. Para esta testemunha, o acidente foi “uma ocorrência minor”. O A. tinha uma muito maior probabilidade de que a trombose no bypass surgisse por causas naturais, decorrentes da sua constituição, do que do acidente em causa. Esta testemunha declarou mesmo excluir totalmente o nexo de causalidade entre o acidente e aquilo que veio a ocorrer. A testemunha desvalorizou a relevância do traumatismo sofrido pelo A. na perna direita, pois num acidente de mota o embate, segundo a testemunha, ocorre na face anterior da perna, e a zona afetada foi a face posterior interna.
Também o Professor Duarte (…), médico e professor universitário arrolado pela R. (um dos autores do artigo supracitado - Nexo de Causalidade em Avaliação do Dano Corporal) rejeitou que a oclusão do bypass tivesse sido causada pelo acidente. Para esta testemunha, a oclusão resultou do facto de o A. ter propensão para fazer oclusão arterial, fazendo tromboses de repetição. A testemunha salientou o facto de a maioria dos quadros trombóticos arteriais serem essencialmente devidos a doença arterial e não a traumatismo e o A. ter um quadro trombótico arterial. Tal como a testemunha anterior, o Prof. Duarte (…) também deu relevância ao facto de os médicos que viram o A. na sequência do acidente, apesar de saberem que ele tinha um bypass, não terem achado necessário, face às lesões que o A. mostrava, que ele fosse visto por cirurgia vascular. Isso denotaria que o traumatismo sofrido não aparentava poder causar danos no bypass. Para a testemunha, embora não se pudesse excluir taxativamente a possibilidade de haver um relacionamento entre o traumatismo no membro inferior direito e a oclusão, havia, “indiscutivelmente” mais probabilidade de a oclusão ter tido origem natural.
Dir-se-á que, numa situação aparentemente duvidosa, esta forte inclinação denotada por estas duas testemunhas para a tese favorável à R. seguradora poderá ser influenciada, mesmo inconscientemente, queira-se ou não, pela ligação jurídico-económica existente entre cada uma dessas testemunhas e a R.: ligação direta quanto à testemunha José (…), pois trabalha no Gabinete de Avaliação de Dano Corporal da R., e ligação indireta quanto à testemunha Duarte (…), que trabalha para a empresa ME, a quem a R. encomendara um parecer sobre este caso, o qual fora elaborado pela testemunha (sendo certo que a primeira instância não admitiu a junção aos autos do parecer, mas admitiu o depoimento do Professor Duarte (…) na qualidade de testemunha).
Dois outros médicos foram ouvidos na audiência final: o Dr. Pedro (…) e o Dr. Carlos (…).
O Dr. Pedro (…) é cirurgião vascular do Centro Hospitalar Lisboa Norte, e foi ele quem acompanhou e cuidou do A. quando se denotou a lesão por este sofrida em consequência do cateterismo efetuado para acudir ao enfarte agudo do miocárdio sofrido pelo A. em 2010. Foi ele quem colocou o bypass na perna direita do A.. Foi também a ele que o A. recorreu quando começou a sentir queixas após o acidente, e foi esta testemunha que acabou por, na sequência do insucesso das intervenções efetuadas, proceder à mencionada amputação.
A testemunha referiu que o bypass foi colocado na perna do A. na expetativa de que durasse longo tempo, anos, décadas. Depois do acidente o A. sentiu queixas, mas como estava a recuperar do acidente só em setembro se dirigiu à testemunha, tendo esta constatado que ocorrera uma oclusão do bypass, que não pulsava. Segundo a testemunha a oclusão não impede totalmente a pessoa de andar, pois há vasos que vão compensando lateralmente, mas nem sempre essa compensação é suficiente, ocorrendo a chamada claudicação, quando o membro não está em repouso. Daí terem procedido à desoclusão do bypass, mas a verdade é que a oclusão repetiu-se, tendo o estado geral na zona se agravado, surgindo uma situação de isquemia que obrigou à amputação. Segundo a testemunha, quando examinou a perna do A., após o acidente, em relação ao bypass não havia sinais de hemorragia, de rasgamento ou reabertura das cicatrizes. Externamente, estava tudo íntegro. Porém, admitiu que um traumatismo pode causar a formação de um trombo, não sendo necessária uma pancada muito grande, nem sequer direta, porque “por transmissão as coisas, os traumatismos contusos transmitem energia, não é?”. Embora dizendo que nunca se iria saber se foi o traumatismo que entupiu o bypass, admitiu essa possibilidade, atendendo à coincidência temporal com o acidente. “Há duas coisas que eu sei: que com o bypass o Sr. L, esse tal bypass mais longo, aortofemoral, o Sr. L ficou assintomático, isso eu sei, e que depois do acidente voltou a ficar sintomático, também sei. Sei que em setembro me apareceu com o bypass já trombosado. Exatamente quando terá sido, ele refere que foi após o acidente. Foi assim que foi interpretado.”
No relatório de alta subsequente à amputação, datado de 11.11.2011 (fls 22 a 22 dos autos), consta um bom relato/resumo de todo o processo clínico do A.:
Doente de 28 anos, saudável até Outubro de 2010, altura em que por dor pré-cordial recorre ao SUC do Hospital de Santa Maria.
Confirmado diagnóstico de enfarte agudo do miocárdio. Submetido a angioplastia com stenting da descendente anterior por cateterismo femoral direito.
Teve alta bem, assintomático no que às queixas cardíacas diz respeito.
Recorreu de novo ao SUC do mesmo hospital, algumas semanas após o cateterismo, por claudicação intermitente do membro inferior direito.
Confirmado por eco-doppler a cores dissecção iatrogénica da artéria femoral comum direita. Foi proposto para cirurgia de revascularização do membro.
Dez 2010 – Interposição de prótese de PTFE em posição ilíaca externa – bifurcação femoral direita.
Trombose do enxerto protésico às 24 h tendo o doente alta sobreponível e para melhor caracterização do quadro clínico.
Após angioTC da aorta e membros inferiores e porque a claudicação se mantinha incapacitante apesar de terapêutica com dupla-antiagregação, heparina de baixo peso molecular em dose terapêutica e naftidrofurilo, foi novamente proposto para cirurgia.
Abril 2011 – Bypass aorto-femoral direito com prótese de Dacron de 8 mm (remoção do anterior segmento de PTFE).
Doente teve alta bem, com pulsos distais e assintomático.
Assim se manteve por vários meses, tendo reiniciado a sua actividade desportiva e laboral sem limitações.
A 24 Junho 2011 foi vítima de um acidente de motociclo do qual resultou traumatismo dorso-lombar, do ombro direito e membro inferior direito. Desde esse episódio refere arrefecimento do membro inferior direito, porém sem dor em repouso.
Após melhoria das múltiplas sequelas pós traumáticas, nomeadamente das queixas álgicas, reinicia a sua vida normal e verifica, novamente claudicação para curtas distâncias, do membro inferior direito.
Por este motivo foi observado no início de Setembro e confirmada trombose do bypass aorto-femoral direito.
Bifurcação femoral pós bypass permeável com fluxos de reabilitação. Restantes artérias até ao pé mantinham-se permeáveis e com as mesmas características. Doppler arterial do membro contra lateral sem qualquer alteração.
Apesar da claudicação incapacitante optou-se por atitude conservadora e, portanto, não cirúrgica, com recurso à melhor terapêutica médica ambulatória para a isquemia (vide supra). Porém, dada a estagnação da situação clínica, decidiu-se novamente pela tentativa de revascularização.
A 11 Outubro 2011 – Trombectomia de bypass aorto-femoral direito.
Verificou-se oclusão precoce (<24 h) do bypass repermeabilizado. Clinicamente assistiu-se a agravamento da sintomatologia que evoluiu para períodos de dor em repouso, com o decúbito e de predomínio nocturno.
Realizou novo angioTC que confirmou além da trombose do bypass, trombose de novo, da artéria femoral superficial.
Tentada nova cirurgia de revascularização a 25 Outubro (nos mesmos moldes da anterior) que cursou com isquemia aguda grave às 3 h de pós-operatório e refractária a reintervenção no mesmo dia.
A isquemia instalada revelou-se irreversível e o doente viria a ser amputado pelo terço inferior da coxa direita a 28 de Outubro 2011.”
O conteúdo deste relatório de alta é confirmado pelos dois Relatórios clínicos, também datados de 11.11.2011, elaborados pelo médico responsável, a ora testemunha Pedro (…), enviados ao tribunal pelo Centro Hospitalar Lisboa Norte e constantes a fls 77 a 79 dos autos.
Destes relatórios há a realçar que antes do acidente o A. encontrava-se assintomático e após o acidente, onde sofreu, além do mais, traumatismo do membro inferior direito, começou a sentir arrefecimento do membro inferior direito, porém sem dor em repouso, e após melhoria das múltiplas sequelas pós traumáticas, nomeadamente das queixas álgicas, reiniciou a sua vida normal e verificou novamente claudicação para curtas distâncias, do membro inferior direito, sendo confirmada, em setembro de 2011, trombose do bypass aorto-femoral direito.
Na audiência final o Dr. Pedro (…), instado pelo Sr. juiz a responder sobre se, “se não tivesse existido o acidente”, o problema que levou à amputação era muito provável, provável, pouco provável ou nada provável, a testemunha respondeu que era “pouco provável, a curto prazo.”
E, perguntado sobre a afirmação “de que a trombose do bypass foi causada pelo acidente, se esta consequência, acidente – trombose bypass, que era muito provável, provável, pouco provável, ou nada provável”, a testemunha respondeu: “É compatível com isso. A fazer fé no que me diz o Sr. L, é provável”.
O INML, a quem foi pedido exame médico-legal sobre esta matéria, considerou indispensável, para a emissão de parecer pericial, que o examinando fosse submetido a exame pela especialidade de cirurgia vascular.
Tal exame, pela especialidade de cirurgia vascular, foi efetuado pelo cirurgião vascular Dr. Carlos (…) (fls 497 dos autos).
No respetivo relatório pericial este perito fez constar o seguinte:
Não se pode afirmar que o acidente tenha sido a causa de oclusão do enxerto aorto-femoral direito, realizado em Abril de 2011.
No entanto o reinício das queixas de arrefecimento e claudicação do membro inferior direito que levou o doente à consulta de cirurgia vascular coincidem no tempo com este evento.
O Doente não ficou com o seu membro inferior direito amputado por causa do acidente, mas sim pela oclusão do Bypass aorto-femoral direito, que não sabemos quando ocorreu.”
Com base no referido relatório pericial o INML elaborou Relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito cível, onde se exarou que “Os elementos disponíveis não permitem admitir a existência de nexo de causalidade médico-legal entre o acidente de viação e a amputação, com base no exame pericial de Cirurgia Vascular solicitado.” (cfr. fls 504 v.º dos autos).
Ora, o Dr. Carlos (…), que procedeu ao referido exame pericial de cirurgia vascular, foi ouvido na audiência final, para esclarecimentos.
E nesses esclarecimentos afirmou que, no seu relatório, não afastava a possibilidade de o acidente ter sido causa da oclusão do bypass. “Poder, poder, pode. Poder, pode. Não é impossível que não tenha acontecido isso. Mas nós é que não podemos afirmar isso.” A perguntas do Sr. juiz acerca do grau de probabilidade de haver nexo de causalidade entre o acidente e a oclusão do bypass, afirmou: “Aquilo que eu digo é que não se pode afirmar qual é o grau de probabilidade de ter surgido a oclusão do enxerto aortofemoral devido ao acidente. Mas probabilidade lá isso existe.
Advogada do A.: “E essa nova…O tal arrefecimento do membro e a questão da claudicação já estão diretamente relacionados com esta oclusão do enxerto.”
Dr. Carlos (…): “Com certeza, com certeza. Por isso é que eu digo, no primeiro parágrafo: “Não se pode afirmar que o acidente tenha sido a causa de oclusão do enxerto aortofemoral direito realizado em abril de 2011”, porque nós não estávamos lá. Se eu lá estivesse e se tivesse conhecimento…
Após o Sr. juiz chamar a atenção ao perito que o facto de “não ter estado lá” não obstava a uma resposta em termos de probabilidade e que o colega do INML havia afastado a existência de nexo de causalidade entre o acidente e a oclusão do bypass, com base no que o perito escrevera no seu relatório, o Dr. Carlos (…) declarou que “isso é o que ele diz, não é o que eu digo.”
Dr. Carlos (…): “Isso é uma ilação daquilo que está aqui escrito.”
Juiz: “E é correta ou não é correta?
Dr. Carlos (…): “Não é correta. A meu ver não é correta. Porque daqui não se pode inferir que não possa haver nexo causal entre as duas coisas.” (…) Mas se nós virmos depois no segundo parágrafo: “No entanto, o reinício das queixas de arrefecimento e claudicação do membro inferior direito que levou o doente à consulta de cirurgia vascular coincidem no tempo com este evento”. Com este segundo parágrafo, eu digo que há uma probabilidade de que podia ter acontecido a oclusão deste enxerto durante o acidente. Há uma possibilidade. E quem disser o contrário não me parece que esteja a ver bem a questão”.
E mais adiante: “Bem, mas aqui… Não, não, daqui, a meu ver e quando elaborei o relatório, resulta que há uma possibilidade de que o sinistro tenha levado à oclusão do enxerto”.
Juiz: “Mas já agora porque é que entende que, porque é que fez a afirmação de que não pode ter sido causa da oclusão?
Dr. Carlos (…): “Não se pode afirmar, dizer taxativamente. “Este sinistro levou à oclusão do enxerto”, não se pode dizer isso”.
Sobre a forma de se saber, aquando do acidente, se o bypass estava a funcionar corretamente, o perito esclareceu que era fácil, e devia ter sido feito.
Dr. Carlos (…): “Quando surge o acidente, obviamente que sim, mas tem de ser apreciado e tem que ser objeto de um exame físico. Não precisa de se andar a medir grandes coisas. Com a mão palpa-se a região femoral do doente e vê-se se tem pulsatilidade ou não. Se não pulsa, o enxerto está ocluído”.
Perguntado pelo ilustre mandatário da R. sobre se esse exame teria sido feito nas urgências, quando o A. para lá foi transportado após o sinistro, respondeu:
Dr. Carlos (…): Não, penso que não. Penso que não. Penso que o diagnóstico, o diagnóstico não foi feito aquando do sinistro. O diagnóstico de facto…
Advogado da R.: “Muito bem. Sim, sim, sim, era isso que eu pretendia saber. Se houve qualquer indício de oclusão já nessa altura.”
Dr. Carlos (…): “Tinha que haver… Se o enxerto ocluiu na altura do sinistro, quem o observou na urgência em relação aos traumatismos que ele tem, que ele tinha, seria de enorme importância nós sabermos isso se estivesse lá uma descrição de como estava o membro inferior do doente.”
Advogado da R.: “Sim, mas isso não sabemos. Aliás, o senhor doutor diz aqui: “Não sabemos quando ocorreu a oclusão”.
Dr. Carlos (…): “Pois não. Não estava lá escrito nada.”
É verdade que o A., quando foi levado à urgência após o acidente, mencionou a existência de um bypass. Mas no Hospital nada mais se refere quanto a esse aspeto, nomeadamente acerca do despiste específico acerca da integridade do bypass e do seu funcionamento. Quanto a este aspeto a única referência que se encontra, no Relatório de urgência, é o seguinte: “Tem antecedentes pessoais de Bypass coronário, prótese da anca dta, antiagregado com AAS e Plavix. refere ainda bypass no MIDto com oclusão de vaso???(não sabe especificar)” (cfr. fls 15 e, também, fls 397 dos autos).
Parece, pois, que nas urgências não se procedeu ao despiste sobre se, na sequência do acidente, o funcionamento do bypass fora afetado.
Acerca da alegada tendência do A. para formar trombos, o Sr. perito disse o seguinte:
As formas da aterosclerose não são todas iguais. A aterosclerose juvenil e as artérias dos jovens têm um comportamento, às vezes com a passagem dos instrumentos, reagem de modo diferente, às artérias de um idoso, ou paredes calcificadas. São artérias diferentes, que têm uma hiperreatividade diferente. E, das duas uma: ou voltou a ocluir porque se formou outro trombo, o que não é bem curial porque da leitura do processo o doente não tinha no seu passado nenhuma forma clínica de trombofilia que poderia dar origem a oclusões sobre oclusões, o que é certo é que ele ocluiu sempre os enxertos. Portanto só há uma coisa. Voltou a ocluir por retrombose do enxerto. Repetiu-se até três vezes.”
Falando sobre a dissecção sofrida pelo A. aquando do cateterismo que foi efetuado para tratar o enfarte agudo do miocárdio sofrido pelo A. em 2010, o advogado da R. perguntou o seguinte:
Advogado da R.: “Há uma propensão do doente para fazer trombos?
Perito: “Não necessariamente, a dissecção é uma coisa diferente.”
Advogado: “Desculpe, formulei mal a questão. Este tratamento foi feito por causa do enfarte agudo do miocárdio. E este incidente foi já porque se formou um trombo, que causou o enfarte”.
Perito: “Não. Porque fizeram a canulação da artéria. Há muito material a entrar. E às vezes, em cerca de 10% dos casos, às vezes mais, há lesões nas artérias. Foi uma dissecção que foi provocada no ato de colocação do stencil. O cateterismo foi feito para fazer o diagnóstico, e para ver quais eram as artérias envolvidas e se era possível tratá-las com stentings coronários. E pelos vistos foi possível.”
Ainda sobre a relação entre o acidente e a oclusão do bypass:
Advogado da R.: “Foi identificado algum trauma que pudesse justificar a oclusão do bypass, nomeadamente, por exemplo, uma agressão mecânica?”.
Perito: “Só se sabe é que, após o sinistro, o doente recomeçou com as queixas. Isso é o que se sabe.”
Advogado da R.: “Ora bem, mas nesse caso, senhor doutor, e voltando à questão fundamental, quer dizer, hipoteticamente que a primeira oclusão, se se tivesse ficado a dever a um acontecimento qualquer relacionado com o acidente…”
Perito: Pode ter sido, sim senhor.
Advogado da R.: Não sei, um trauma
Perito: Pode ter sido. Do modo como teria caído, será que fez uma extensão violenta da região femoral ou não?
Advogado da R.: “Pois, é o que eu quero saber.
Perito: “Ou uma extensão ou uma compressão violenta. Ainda há bocado dei exemplos da vida banal que levam à oclusão destes enxertos”.
Advogado da R.: “Pois foi, senhor doutor, e muito elucidativos. Mas agora pergunto eu: admitindo que hipoteticamente que essa primeira oclusão teve a ver com o acidente, ela foi cirurgicamente resolvida?
Perito: “Foi uma tentativa de resolução. Não a conseguiram resolver”.
Advogado: “Não. Ó senhor doutor, vamos lá ver, na verdade, o trombo foi retirado”.
Perito: “Está bem, mas ocluiu às 24 horas, isso não é tempo nenhum”.
Advogado da R.: “Mas isso então, quer dizer, formou-se um novo trombo?
Perito: “Claro”.
Advogado: “Ó senhor doutor, e isso vamos lá ver, isso ainda pode estar relacionado com o acidente ou é da própria, digamos…”
Perito: “É da própria natureza do doente.”
Advogado da R.: “Por isso é que o senhor doutor se calhar diz aqui no seu parecer: “O doente não ficou com o seu membro inferior direito amputado por causa do acidente, mas sim pela oclusão do bypass aortofemoral.”
Perito: “Com certeza. Porque uma coisa é o acidente que pode ter determinado ou não, e acho que tem possibilidades de ter determinado a oclusão. Aí estamos claros, estamos a andar sempre à volta disto. Mas aí estamos claros nesta questão. Outra coisa, (ele?) podia ter o acidente e não ter ocluído naquela altura o enxerto, eventualmente. Podia ter acontecido”.
Advogado da R.: “Podia ter a oclusão sem ter ocorrido o acidente também?”.
Perito: “Podia, podia. Podia. Mas o que é certo é que há uma temporalidade e aqui é que as coisas estão um bocado complicadas. É que é a partir deste evento, a partir deste evento que o doente refere o reaparecimento das queixas. Portanto, não podemos tirar daqui o nexo de causalidade”.
Finalmente, o Exm.º advogado da R. empreendeu o ensejo de obter uma resposta mais conclusiva por parte do Sr. perito:
Advogado da R.: “Em termos de probabilidade, é mais provável esta amputação dever-se, desculpe, esta oclusão dever-se ao acidente, ou dever-se às condições fisiológicas próprias do…”
Perito: “Não, eu penso que há mais probabilidade do acidente. Porque as queixas são síncronas. Aparecem no mesmo espaço temporal. Eu não posso é dizê-lo. Mas é esta a minha convicção.”
Temos, pois, que os dois únicos médicos que são especialistas na área mais relevante, que é a especialidade de cirurgia vascular, que observaram o A. e têm, em relação às partes em conflito, uma posição de total distanciamento, se inclinam para a existência de causalidade entre o acidente e a oclusão do bypass femoral que veio a desembocar na amputação de que o A. foi vítima. Os outros dois médicos, que têm opinião diversa, não são cirurgiões vasculares (o Dr. José (…) é ortopedista e o Prof. Duarte (…) é especialista em Medicina Legal e Medicina do Trabalho), um deles (o Prof. Duarte) não chegou sequer a observar o A. e ambos têm, como se disse, alguma ligação à R..
Na sua apelação a R. aponta contradições nas declarações prestadas pelo A. na audiência final.
Antes de mais, como se vê pela leitura da fundamentação do tribunal a quo na decisão de facto, as declarações do A. foram irrelevantes na formação da convicção do tribunal a quo quanto ao factualismo ora em análise. Por outro lado, nas suas declarações o A. foi muito claro quanto à dificuldade que sentia em dar as respostas temporalmente precisas que lhe estavam a ser pedidas quanto às incidências médicas e sintomáticas de que padeceu, quando já tinham decorrido oito anos após a sua ocorrência, e estavam em causa múltiplas e sucessivas intervenções, exames e tratamentos, alguns dos quais ele nem conseguia descrever com clareza. Daí que as eventuais contradições apontadas pela apelante sejam naturais e irrelevantes. Nesta matéria prevalece, por seguramente mais rigoroso, o teor do que foi dito pelo A. ao Dr. Pedro (…), cirurgião que o acompanhou em todo o processo que se desenrolou desde o diagnóstico de complicação decorrente do cateterismo e colocação do bypass, até ao diagnóstico de oclusão do bypass e amputação.
O Prof. Duarte (…) afirmou que neste caso apenas se encontraria, quando muito, um nexo de causalidade hipotético, indireto e parcial. Ser hipotético significa que não se pode afastar a possibilidade de existência desse nexo. Indireto, porque a amputação não foi diretamente causada pelo traumatismo do acidente, e parcial porque para o evento terá ocorrido a predisposição do A. para a complicação ocorrida.
Cremos que o balanceamento da prova produzida aponta para uma maior probabilidade de ocorrência do nexo de causalidade entre o acidente e a oclusão do bypass que levou à amputação, do que para a não existência desse nexo. Afigura-se-nos que a resposta negativa a essa questão tem mais probabilidade de configurar um falso negativo do que a resposta contrária um falso positivo. Julgamos, ponderadas as provas, que a resposta negativa a esta questão, e consequente formulação, no processo, do juízo de que o acidente de mota sofrida pelo A. não teve interferência na oclusão do bypass registada pouco tempo depois do acidente, se afasta da razoabilidade que é exigida ao tribunal no julgamento da matéria de facto.
Pensamos, pois, que é de manter a decisão de facto proferida pelo tribunal a quo, mas com uma alteração. No n.º 75 da matéria de facto o tribunal a quo considerou ter-se provado o seguinte: “A queda do autor em consequência do embate acima mencionado danificou o bypass, causando uma trombose com as consequências acima descritas.” Ora, como se disse acima, o Dr. Pedro (…), que examinou o A. quando este se queixou da claudicação na perna direita, disse, em relação ao bypass, que não havia sinais de hemorragia, de rasgamento ou reabertura das cicatrizes. Externamente, estava tudo íntegro. Isto é, da prova não resulta que o bypass em si tivesse sofrido estrago, dano. O que ocorreu foi que o bypass deixou de pulsar, de exercer a sua função. Assim, parece-nos mais curial dar como provado o seguinte: “A queda do autor em consequência do embate acima mencionado afetou o funcionamento do bypass, causando uma trombose com as consequências acima descritas.”
Pelo exposto, na sequência da impugnação da decisão de facto apresentada pela apelante, altera-se o n.º 75 da matéria de facto, o qual passará a ter a seguinte redação:
A queda do autor em consequência do embate acima mencionado afetou o funcionamento do bypass, causando uma trombose com as consequências acima descritas.”
No mais mantém-se a matéria de facto fixada pelo tribunal a quo.
Segunda questão (valor da indemnização devida ao A.)
Nos autos é incontroverso que o acidente objeto da ação foi causado, ilícita e culposamente, pelo condutor do automóvel ligeiro que colidiu com o motociclo conduzido pelo A.. A responsabilidade civil do detentor desse veículo, pelos acidentes emergentes da sua circulação (artigos 483.º e 503.º do CC), havia sido transferida para a seguradora ora R. (artigos 4.º, 6.º e 11.º do Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21.8).
O responsável pelo facto ilícito deve indemnizar os danos causados pela sua conduta. Nos termos do art.º 562.º do CC, “[q]uem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.” Sobre o nexo de causalidade entre o evento e o dano estipula o art.º 563.º que “[a] obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.”
Numa aceção naturalística da causalidade, será causa de um dano aquele evento que, isoladamente ou conjugado com outras circunstâncias, desencadeou o dano. Dito de outro modo, será causa do dano aquele evento que, se não tivesse ocorrido, o dano não se teria verificado. É a teoria da equivalência das condições ou da conditio sine qua non (v.g., Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. I, 8.ª edição, Almedina, 1994, pp. 897-899).
É sabido que tal conceção da causalidade pode levar a resultados que ferem o sentimento comum de justiça, alargando a causalidade a eventos que não poderão, razoavelmente, ser imputados ao agente. Veja-se o conhecido exemplo do taxista que se atrasa na realização do transporte contratado e, por via disso, o passageiro apanha um outro comboio, que vem a descarrilar, causando-lhe a morte.
Por isso se procuraram perspetivas da causalidade consentâneas com os fins do Direito, tendo a nossa ordem jurídica consagrado, no já transcrito art.º 563.º do CC, a teoria da causalidade adequada (cfr., v.g., Fernando Pessoa Jorge, Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil, Almedina, 1995, pp. 403-413). Nesta procura-se fixar a causalidade à luz de um critério de normalidade, de previsibilidade, em abstrato, face à experiência habitual das coisas, do curso que o processo causal tomou, desde o evento em exame até ao resultado final. No âmbito da responsabilidade civil por factos ilícitos, formula-se essa teoria pela forma negativa, que é mais ampla ou abrangente, ou seja: constatando-se que um evento contribuiu para a ocorrência de um dano, só não se considerará que o evento foi causa adequada do dano se se demonstrar que só produziu o efeito danoso mercê de circunstâncias absolutamente anómalas, excecionais, extraordinárias (cfr., v.g., Antunes Varela, ob. cit., pp. 907-917; José Alberto González, Direito da Responsabilidade Civil, Quid Juris, 2017, pp. 214-221; STJ, 27.4.2017, processo 1523/13.7T2AVR.P1.S1).
Revertendo ao caso dos autos, ou seja, à questão da amputação da perna do A..
Provou-se que em virtude do embate de um automóvel na mota em que o A. seguia, este sofreu traumatismos em todo o corpo, nomeadamente na perna direita, o que levou à oclusão do bypass que aí estava colocado e desencadeou um efeito de isquemia que obrigou à dita amputação. Dúvidas não há que o acidente foi causa naturalística da amputação, através de um processo causal que teve início na colisão e o seu desfecho na amputação. Para tal desfecho não contribuiu qualquer outra conduta de terceiro. O facto de o A. ter um bypass na perna, isto é, padecer de uma fragilidade que contribuiu para a afeção que levou à amputação da perna, não constitui uma circunstância que, pelo facto de não ser habitual ou normal, atinja uma excecionalidade tal que justifique que, à luz dos fins da justiça e do instituto da responsabilidade civil automóvel, exclua a imputação causal da amputação ao acidente. Com efeito, não é expectável que todos os sinistrados sejam pessoas em bom estado físico e desprovidas de qualquer doença ou maleita física. Aliás, poderá dizer-se que a juventude do A. e, quiçá, a sua boa forma física (praticava desporto) terão contribuído para que, pese embora a violência de um embate que o levou a colidir com mais dois outros automóveis, tenha, surpreendentemente, tido alta do hospital ao fim de apenas quatro horas no serviço de urgência.
Assim, pese embora a relação indireta existente entre o evento (o acidente) e o dano (amputação), e o caráter parcial do nexo de causalidade entre o acidente e a amputação (pois para a amputação também contribuiu a implantação do bypass) está preenchido o requisito do nexo de causalidade (nexo que é certo) entre o acidente e a amputação sofrida pelo A., como pressuposto da responsabilização da ora R. pelo ressarcimento por esse dano.
O tribunal a quo, porém, considerando que, in casu, ocorria uma situação de concausalidade, daí extraiu conclusões relevantes:
No entanto, quanto à amputação da perna, esta só ocorreu porque o autor tinha um bypass colocado na perna que foi amputada. Quer isto dizer que o autor não sofreu qualquer lesão que, de forma direta, tivesse causado a amputação da perna. Podemos aliás afirmar que caso o autor não tivesse o bypass, tal lesão nunca se chegaria a verificar. Se o acidente foi condição sine qua non da amputação, a existência do bypass também configurou uma condição sine qua non dessa consequência.
Temos, portanto, duas condições que concorreram para o dano, sendo que qualquer uma delas isolada não teria provocado aquele resultado.
Esta situação, em tese, pode conduzir a três resultados distintos consoante a ponderação da causa que se considerar determinante. Por um lado, pode-se entender que a existência do bypass é que foi determinante, pois uma trombose desse aparelho é sempre uma possível consequência da sua existência, pelo que, apesar de o acidente ter sido a causa da trombose, é de concluir que o dano radicou exclusivamente na existência do bypass. Por outro lado, pode-se considerar que o autor poderia viver com o bypass sem quaisquer problemas durante toda a sua vida, o que não aconteceu exclusivamente pelo facto de o acidente ter ocorrido, e, por isso, há que imputar ao acidente a totalidade do dano em causa. Uma terceira via será considerar a existência de uma concausalidade, decorrente do contributo de ambas as circunstâncias, o bypass preexistente e o acidente, o que deverá determinar uma mitigação da responsabilidade do lesante, diminuindo-a na proporção que se entender ser de imputar à existência do bypass.”
E, procurando encontrar no sistema jurídico resposta para o tratamento da situação que qualificou de concausalidade, o tribunal a quo encontrou-a no art.º 11.º da Lei n.º 98/2009, de 04.9 (Lei dos Acidentes de Trabalho – LAT) e no art.º 506.º n.º 2 do CC.
Buscando no sistema jurídico situações análogas, temos o disposto no artigo 11.º Lei n.º 98/2009, de 04 de setembro (Lei dos Acidentes de Trabalho), o qual, sob a epígrafe “Predisposição patológica e incapacidade”, estabelece que:
1 - A predisposição patológica do sinistrado num acidente não exclui o direito à reparação integral, salvo quando tiver sido ocultada.
2 - Quando a lesão ou doença consecutiva ao acidente for agravada por lesão ou doença anterior, ou quando esta for agravada pelo acidente, a incapacidade avaliar-se-á como se tudo dele resultasse, a não ser que pela lesão ou doença anterior o sinistrado já esteja a receber pensão ou tenha recebido um capital de remição nos termos da presente lei.
3 - No caso de o sinistrado estar afetado de incapacidade permanente anterior ao acidente, a reparação é apenas a correspondente à diferença entre a incapacidade anterior e a que for calculada como se tudo fosse imputado ao acidente.
4 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, quando do acidente resulte a inutilização ou danificação das ajudas técnicas de que o sinistrado já era portador, o mesmo tem direito à sua reparação ou substituição.
5 - Confere também direito à reparação a lesão ou doença que se manifeste durante o tratamento subsequente a um acidente de trabalho e que seja consequência de tal tratamento.
Os números 1 e 2 são claramente normas de proteção do trabalhador específicas do regime laboral. O número 3 afigura-se constituir a regra geral, do qual o 1 e 2 são exceção. De acordo com o disposto nessa norma, uma incapacidade anterior determina que a mesma seja subtraída à totalidade dos danos resultantes do acidente de trabalho. Como se constata, mesmo num ramo do direito que tem tendencialmente em vista a proteção do lesado, no caso de incapacidade anterior, a mesma é tomada em consideração para a fixação do montante a ressarcir.
O referido artº 563º Código Civil, ao estabelecer que obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão, quererá dizer que basta que a lesão seja conditio sine qua non do dano para se imputar a totalidade deste? No caso concreto tal resultado também não era expectável se antes da lesão não existisse o bypass. Ou seja, o nexo de causalidade adequada que se estabeleceu entre o acidente e a amputação exigiu previamente que se considerasse a existência do bypass. O acidente não seria causa adequada da amputação (aliás nem sequer seria objetivamente causa da amputação), mas já é causa adequada da amputação da perna de alguém que tem nela colocado um bypass.
Consideramos que, tal como definido na Lei dos acidentes de trabalho, a predisposição patológica anterior que contribuiu de forma determinante para a verificação do dano deve ser tida em consideração para determinar a responsabilidade do lesante. Consideramos ser esta a regra que compõe de forma mais equitativa a responsabilidade pela verificação do dano, imputando-o na justa medida ao evento que o causou e que resultou da conjugação simultânea e necessária de duas causas.
Não se apurando qual das circunstâncias teve mais peso na ocorrência do dano, entendemos ser de aplicar, por analogia, a regra do artº 506º/2 do Código Civil, considerando-se igual essa contribuição. Tal terá, portanto, como consequência que a ré seja responsável pelos danos que decorreram da amputação da perna na proporção de 50%.”
Portanto, o tribunal a quo, partindo da consideração de que in casu existia uma situação de concausalidade, traduzida no contributo de duas circunstâncias (o bypass preexistente e o acidente) que, complementarmente, causaram o dano (amputação da perna), ajuizou que tal determinava a mitigação da responsabilidade do lesante, diminuindo-a na proporção que se devesse imputar à existência do bypass. E, procurando encontrar no direito constituído um critério para a referida mitigação da responsabilidade do lesante, julgou encontrá-lo no n.º 3 do art.º 11.º da LAT e no art.º 506.º n.º 2 do Código Civil. Segundo o tribunal a quo, do n.º 3 do art.º 11.º da LAT extrai-se a regra geral de que uma incapacidade anterior será subtraída à totalidade dos danos resultantes do acidente de trabalho. E do art.º 506.º n.º 2 do CC extrai-se, por analogia, a regra de que, em caso de dúvida, presume-se que a contribuição das circunstâncias para o dano foi igual.
Em consequência, o tribunal a quo decidiu que a R. seria responsabilizada pelos danos que decorreram da amputação da perna do A. na proporção de 50%.
A R. insurge-se contra esta redução em 50%. No caso de esta Relação considerar provado o nexo de causalidade entre o acidente e a amputação da perna do A., a apelante defende que não pode ser atribuído ao acidente mais do que 25% da causalidade.
Vejamos.
Na literatura jurídica, a concausalidade, no sentido de complementaridade de circunstâncias que, pela sua atuação conjunta, causaram um dano, refere-se a diversas condutas ou comportamentos. Assim, o atropelamento de uma pessoa que, operada, veio a falecer em virtude de má prática do cirurgião. Ou um automóvel que, embatido por trás por uma viatura que circulava em excesso de velocidade, sofre sérios danos no capot, por ter colidido com uma viatura que se encontrava indevidamente estacionada em segunda fila. Em todos estes casos existe causalidade cumulativa necessária, que determina, face ao lesado, a responsabilidade solidária (art.º 497.º do CC) dos lesantes (cfr. Rui Soares Pereira, O Nexo de Causalidade na Responsabilidade Delitual, citado, pp. 557-560). Isto é, cada um dos agentes será responsabilizado, perante o lesado, pela totalidade dos danos sofridos, não havendo lugar a qualquer redução da imputação dos danos, face a este.
No âmbito da Medicina Legal, a perspetiva é diversa, aproximando-se da tida em vista pelo tribunal a quo. Aqui, como já mencionado supra, fala-se de situações em que o nexo de causalidade é parcial, pois há mais de um fator etiológico a concorrer para o resultado (dano), entre os quais o evento em apreço (cfr. Carina Oliveira, Duarte Nuno Vieira e Francisco Corte-Real, Nexo de causalidade e estado anterior na avaliação médico-legal do dano corporal, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2017, p. 18). Neste contexto, há concausalidade quando ocorrem situações em que existe uma pluralidade de causas concorrendo para a produção do mesmo evento, ou seja, há coexistência de um conjunto de fatores suscetíveis de modificar a evolução natural de um determinado resultado/dano. São definidas como causas necessárias mas não suficientes para explicar o dano sofrido, isto é, o resultado/dano é decorrente de uma série de fatores que, isoladamente, não possuem eficácia suficiente para a sua produção. A concausa não tem a capacidade de excluir o nexo de causalidade desencadeado pela causa principal, nem por si só é suficiente para produzir o dano. Nestes casos, o dano deverá ser imputado às consequências do traumatismo, na medida em que não se teria verificado sem a ocorrência do evento traumático (Carina Oliveira e outros, Nexo de causalidade e estado anterior…, citado, p. 19).
Nesta perspetiva da concausalidade, surge, em Medicina Legal, o conceito de “estado anterior”, que pode definir-se como sendo toda a «afetação patológica ou qualquer predisposição conhecida ou desconhecida, congénita ou adquirida, que exista imediatamente antes da ocorrência do fator causador da lesão objeto de valoração e suscetível de interferir no processo patológico decorrente desse evento” (Vieira e Corte-Real, 2008, apud Carina Oliveira e outros, Nexo de causalidade…ob. cit., p. 22).
Entende-se que embora a predisposição patológica de uma vítima possa agravar o resultado final, “não diminui o direito à reparação integral do dano, mesmo quando de uma lesão de gravidade ligeira resulte a morte, por ser a vítima hemofílica, de um atropelamento ocorram complicações, por ser a vítima diabética ou de um ligeiro traumatismo craniano resulte uma fratura craniana, em razão de uma fragilidade óssea congénita. Afinal, indemnizar pela metade é responsabilizar a vítima pelo restante. Limitar a reparação é impor-lhe que suporte o resto dos prejuízos não indemnizados” (Carina Oliveira e outros, Nexo de causalidade…ob. cit., p. 26).
Concretizando com um exemplo, veja-se o exarado no já citado estudo de Carina Oliveira, Duarte Nuno Vieira e Francisco Corte-Real):
“[O] caso de um indivíduo que na sequência de um traumatismo sofreu uma fratura dos ossos da perna. No decurso de complicações vasculares surgidas no período subsequente ao evento traumático e que levaram à necrose da perna, foi necessário realizar-se a amputação da mesma. Porém, ao indivíduo foi confirmada uma «doença» preexistente, a insuficiência venosa crónica dos membros inferiores, com sinais de estadio avançado, nomeadamente veias varicosas, membros inferiores cronicamente edemaciados, alteração da pigmentação cutânea, dermatosclerose e úlceras venosas de estase. Perante o exposto, não restam dúvidas de que, de facto, este distúrbio circulatório preexistente pode ter contribuído para as complicações vasculares de que o indivíduo foi vítima, contudo, importa relembrar que na ausência do evento traumático este indivíduo não teria sido submetido à amputação da perna, ou se tal algum dia viesse a ocorrer no decurso da má circulação venosa de que era portador, esse determinado momento é impossível de ser predito. Por conseguinte, entendemos que a amputação da perna deve ser, no caso em concreto, imputada na sua totalidade ao traumatismo, representando a doença venosa crónica um mero fator predisponente que exerceu influência negativa sobre as consequências do evento traumático” (Nexo de causalidade…ob. cit., p. 26).
No que concerne ao regime de concausalidade previsto na LAT (Lei dos Acidentes de Trabalho), divergimos da análise efetuada pelo tribunal a quo.
O tribunal a quo fez apelo a uma suposta regra geral contida no n.º 3 do art.º 11.º da LAT, da qual decorreria que à incapacidade emergente do evento danoso deveria descontar-se a contribuição da circunstância concausal.
Pensamos que o n.º 3 do art.º 11.º nada tem a ver com questões de concausalidade. Por um lado, como decorre da doutrina (cfr, v.g., Carlos Alegre, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2.ª edição, Almedina, p. 71, incidindo sobre o art.º 9.º da Lei n.º 100/97 de 13.9, correspondente ao art.º 11.º da LAT atual) e da jurisprudência (cfr., v.g., STJ, 02.6.2010, processo 117/05.5TUBRG.P1.S1) no n.º 3 do art.º 11.º da LAT visa-se incapacidades que tenham resultado de acidentes de trabalho e como tal tenham sido declaradas judicialmente. Por outro lado, trata-se de incapacidades que não interferiram na etiologia do dano sobrevindo a outro acidente, não sendo, pois, concausa do dano em análise.
À concausalidade referem-se os n.ºs 1 e 2 do art.º 11.º da LAT. E a regra geral que nelas se contém é a de que, pese embora a predisposição patológica do sinistrado ou a contribuição de lesão ou doença anterior para o agravamento da lesão ou doença consecutiva ao acidente, o sinistrado terá direito à reparação integral.
Quanto ao n.º 3 do art.º 11.º da LAT, manifestamente não seria aplicável ao A., na medida em que antes do acidente não lhe fora reconhecida qualquer incapacidade (seja laboral, seja qualquer outra, sendo certo que o A., com o bypass colocado, fazia uma vida perfeitamente normal).
O apelo ao art.º 11.º da LAT para a mitigação da responsabilidade do lesante é, pois, a nosso ver, desajustado.
Por outro lado, também o é a aplicação analógica do art.º 506.º n.º 2 do CC. O art.º 506.º do CC regula situações de colisão de veículos, ou seja, de condutas tipificadas que contribuíram para os mesmos danos. Ora, no caso sub judice apenas existe um comportamento a avaliar, o do segurado na R.. Do lado do A. não há ação causal, mas tão só uma situação de fragilidade traduzida na colocação do bypass. Note-se que a redução ou exclusão da indemnização, por circunstância imputável ao lesado, prevista no art.º 570.º do CC, pressupõe uma conduta culposa do lesado. Não contempla predisposições do lesado para um dano mais agravado (vide, v.g., José Brandão Proença, in Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Universidade Católica Editora, 2018, p. 578).
De tudo isto resulta que, a nosso ver, não cabia aqui a redução da responsabilização pelo dano propugnada pelo tribunal a quo. Assim, não só improcede a pretensão da seguradora/apelante, de ser responsabilizada em apenas 25% de causalidade quanto ao dano amputação, como não caberia a fixada, pela 1.ª instância, redução em 50%. Porém, o A. não reagiu contra o assim decidido, pelo que, face à proibição da reformatio in pejus (cfr. n.º 5 do art.º 635.º do CPC), esta Relação terá de aceitar a redução de 50% estabelecida na sentença recorrida.
Exposto isto, vejamos agora o valor a atribuir ao A. a título de indemnização pelos danos sofridos.
Nos termos do art. 562.º do Código Civil, “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.“ Tal obrigação só existe em relação aos danos que o lesado não teria sofrido se não fosse a lesão (art.º 563.º do C.C.), compreendendo não só os chamados “danos emergentes”, como os “lucros cessantes” (as duas categorias são mencionadas na lei como “prejuízo causado” e “benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão” – n.º 1 do art.º 564.º do Código Civil). Na fixação da indemnização o tribunal pode atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis (art.º 564.º n.º 2 do Código Civil). Em princípio a indemnização deverá visar a reconstituição natural, sendo fixada em dinheiro quando a reconstituição natural não for possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor (n.º 1 do art.º 566.º do Código Civil). A indemnização em dinheiro terá como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos (n.º 2 do art.º 566.º). Se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados (n.º 3 do art.º 566.º). Em relação aos danos não patrimoniais, estabelece o n.º 1 do art.º 496.º do Código Civil que serão ressarcíveis aqueles que, “pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”. No número 3 do mesmo artigo estipula-se que “o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art.º 494.º”, ou seja: “grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso”. Na impossibilidade de fazer desaparecer o prejuízo, com a indemnização por danos não patrimoniais procura proporcionar-se ao lesado meios económicos que de alguma forma o compensem do padecimento sofrido. Por outro lado, sanciona-se o ofensor, impondo-lhe a obrigação de facultar ao lesado um montante pecuniário, substitutivo do prejuízo inflingido.
Temos, pois, que o legislador português, no que concerne aos danos ressarcíveis, distingue entre danos patrimoniais e danos não patrimoniais, encarados quanto à suscetibilidade de avaliação pecuniária: enquanto os danos patrimoniais, mesmo que atinjam interesses não patrimoniais, como a saúde, a honra, o bom nome, se refletem no património do lesado (v.g., pela perda de ganho resultante de incapacidade para o trabalho, ou de recusa de contratos de prestação de serviços em virtude de desprestígio), em termos que fundamentam, se não a restauração natural, a atribuição de uma verba pecuniária equivalente (indemnização), os danos não patrimoniais constituem prejuízos que não se repercutem no património do lesado, mas tão só afetam interesses de ordem não patrimonial (v.g., sofrimento causado por ofensas à saúde, honra, bom nome), mas que se considera que justificam a imposição ao lesante de uma obrigação pecuniária, que reveste a natureza de uma compensação/satisfação (vide, v.g., Antunes Varela, “Das Obrigações em geral”, vol. I, citado, pp. 611-613).
O dano biológico, reconhecido como um dano à integridade psico-física do lesado, que afeta de forma relevante a funcionalidade do corpo nas suas vertentes física e mental, pode assumir-se tanto como um dano patrimonial, se tiver reflexos na situação patrimonial do lesado (seja no presente, seja no futuro), quer como dano não patrimonial, na medida em que as consequências do deficit funcional sofrido não tenham tradução económica para o lesado, implicando, por exemplo, uma maior penosidade na realização de algumas tarefas, mas sem inerente perda de rendimentos (cfr., v.g., STJ, 27.10.2009, 560/09.0YFLSB; STJ, 20.5.2010, 103/2002.L1.S1; STJ, 26.01.2012, 220/2001-7.S1; STJ, 20.01.2010, 203/99.9 TBVRL.P1.S1; na doutrina, cfr. Maria da Graça Trigo, “Adopção do conceito de “dano biológico” pelo direito português”, in ROA, 2012, ano 72, vol. I, páginas 147 a 178).
Na sentença recorrida assinalaram-se os seguintes danos ressarcíveis:
a) Dano patrimonial decorrente de incapacidade permanente parcial de 50 pontos (em 100 pontos), a que foi atribuído o valor de € 300 000,00, reduzido em 50%, ou seja, fixado em € 150 000,00;
b) Dano não patrimonial correspondente à amputação da perna, a que o tribunal a quo atribuiu o valor de € 100 000,00, reduzido em 50%, ou seja, fixado em € 50 000,00;
c) Dano não patrimonial correspondente às outras consequências do acidente, ou seja, dores, cicatrizes, assistência hospitalar, fixado em € 20 000,00.
Na sua apelação a R. insurgiu-se contra a indemnização pelos danos referidos na alínea a), que entendeu não dever exceder € 165 375,00, ou seja, com a redução de 50% não poderia fixar-se em mais de € 82 687,50.
Pelos danos não patrimoniais (alíneas b) e c)) a R. propugna valor não superior a € 80 000,00, com uma redução de 75% (face ao contributo da fisiologia do A. na amputação) , isto é, € 20 000,00 de indemnização.
Vejamos.
Quanto aos danos patrimoniais, emergentes da amputação.
Provou-se que em consequência do acidente o A. veio a ser amputado do membro inferior direito pelo terço inferior da coxa, em 28.10.2011 (n.º 67 da matéria de facto). Antes do acidente o A. fazia uma vida perfeitamente normal, trabalhando, saindo com os amigos, praticando desporto (n.ºs 69 a 72). Antes do acidente o A. havia trabalhado como motorista-distribuidor, auferindo € 750,00 de retribuição (n.º 79). Após a amputação o A. ficou impedido de exercer a profissão de motorista-distribuidor (n.º 87). Em virtude da amputação da perna direita nos termos acima descritos o A. ficou afetado por um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica valorizável em 50 pontos (em 100) (n.º 91 da matéria de facto). O A. nasceu em 21.01.1983.
Ficou provado que em resultado do acidente o A. passou a sofrer de um défice funcional permanente assaz relevante, que necessariamente afeta a sua capacidade de trabalho, reduzindo a sua eficiência, qualidade e produtividade. Assim, é de prever que esse handicap atual e futuramente se reflita no património do A., através da perceção de rendimentos fruto da sua força de trabalho inferiores àqueles com que o A. podia legitimamente contar se mantivesse as qualidades físicas e psíquicas que tinha antes do acidente. Verifica-se, assim, um dano patrimonial futuro, previsível, nos termos e para os efeitos previstos no n.º 2 do art.º 564.º do Código Civil.
Tal dano futuro terá de ser quantificado com recurso à equidade (artigos 564.º n.º 2 e 566.º n.º 3 do Código Civil).
Nos casos em que a incapacidade permanente é suscetível de afetar ou diminuir a potencialidade de ganho por via da perda ou diminuição da remuneração, os tribunais têm procurado fixar a indemnização por apelo à atribuição de um capital que se extinga ao fim da vida (ativa ou total) do lesado e seja suscetível de lhe garantir, durante aquela, as prestações periódicas correspondentes à sua perda de ganho. Para o efeito, têm sido utilizadas várias fórmulas e tabelas financeiras, na tentativa de se alcançar um critério uniforme (cfr., enunciando algumas, STJ, 5.5.1994, CJSTJ, ano II, tomo II, pág. 86; Relação de Coimbra, 4.4.1995, CJ, ano XX tomo II, pág. 23; na internet, dgsi, acórdão do STJ, de 04.12.2007, processo 07A3836).
Porém, mesmo nesses casos, a jurisprudência não esquece que as referidas fórmulas “não se conformam com a própria realidade das coisas, avessa a operações matemáticas, certo que não é possível determinar o tempo de vida útil, a evolução dos rendimentos, da taxa de juro ou do custo de vida”, acrescendo que “não existe uma relação proporcional entre a incapacidade funcional e o vencimento auferido pelo exercício profissional em termos de se poder afirmar que ocorre sempre uma diminuição dos proventos na medida exatamente proporcional à da incapacidade funcional em causa.” “Assim, neste caso as mencionadas tabelas só podem ser utilizadas como meramente orientadoras e explicativas do juízo de equidade a que a lei se reporta” (acórdão do STJ, de 17.11.2005, processo 05B3436).
De resto, essas fórmulas divergem entre si, variando quanto às taxas de juros remuneratórias de aplicações financeiras a levar em consideração, assim como à eventual aplicação de taxas de atualização das prestações e seu valor.
A Portaria n.º 377/2008 de 26 de maio, alterada pela Portaria n.º 679/2009, de 25 de junho, estabelece, no anexo III, uma fórmula de cálculo do dano patrimonial futuro, acompanhada de uma tabela prática de aplicação.
Essa Portaria fixa os critérios e valores orientadores para efeitos de apresentação aos lesados por acidente automóvel, de proposta razoável para indemnização do dano corporal, nos termos do disposto no capítulo III do título II do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto. Ou seja, regulamenta aspetos do atual regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, que foi aprovado pelo Dec.-Lei nº 291/2007, de 21 de agosto e entrou em vigor em 20 de outubro de 2007 (art.º 95.º). Tem em vista o procedimento que as seguradoras devem adotar a fim de obterem a composição amigável e célere dos litígios emergentes de sinistros automóveis, no âmbito do dano corporal. Os critérios e valores aí referidos não são definitivos nem vinculativos, não se impondo aos tribunais, conforme decorre do n.º 2 do art.º 1.º da Portaria (“as disposições constantes da presente portaria não afastam o direito à indemnização de outros danos, nos termos da lei, nem a fixação de valores superiores aos propostos”) e do seu preâmbulo (“… importa frisar que o objetivo da portaria não é a fixação definitiva de valores indemnizatórios mas, nos termos do nº 3 do artigo 39.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, o estabelecimento de um conjunto de regras e princípios que permita agilizar a apresentação de propostas razoáveis, possibilitando ainda que a autoridade de supervisão possa avaliar, com grande objetividade, a razoabilidade das propostas apresentadas.”; cfr. ainda, v.g., STJ, 01.6.2011, 198/00.8GBCLD.L1.S1).
Posto isto, a tabela prática supra referida pode servir como ponto de partida para a tarefa de se fixar a indemnização ora sub judice.
Anotar-se-á que a fórmula aí prevista (introduzida pela Portaria n.º 679/2009) reproduz aquela que foi proposta pela Relação de Coimbra no acórdão de 04.04.1995, supra referido, divergindo apenas quanto à taxa de juro considerada (a Relação previa 7%, a Portaria prevê 5%) e quanto à taxa de atualização anual das prestações (a Relação previa 6%, a Portaria prevê 2%). Constata-se igualmente que, embora a fórmula introduzida pela Portaria n.º 679/2009 ao anexo III seja diferente da inicialmente prevista pela Portaria n.º 377/2008 (sendo a fórmula mais recente menos favorável aos lesados), não foram introduzidas alterações à tabela prática – pelo que deverá ser esta a tabela a aplicar, sendo certo que tal não prejudicará os lesados.
A Portaria estabelece que as idades a considerar para os seus efeitos serão as da data do acidente (art.º 12.º) e que para o cálculo do tempo durante o qual a prestação se considera devida se presume que o lesado se reformaria aos 70 anos de idade (alínea b) do n.º 1 do art.º 7.º da Portaria).
Embora a Portaria apenas preveja a apresentação de proposta razoável para danos patrimoniais futuros em caso de dano corporal de que resultem situações de incapacidade permanente absoluta ou de incapacidade para a profissão habitual, a aludida tabela é adaptável a situações de incapacidade parcial, bastando aplicar os fatores aí previstos à prestação (remuneração) anual correspondente à percentagem de incapacidade a ter em consideração.
Quanto ao rendimento do A., levar-se-á em consideração o valor anual de € 750,00 x 14 = € 10 500,00.
Assim, aplicando-se a IPP de 50%, obtem-se uma prestação anual de € 5 250,00. Tendo o A., à data do acidente (24.6.2011), 28 anos de idade, tinha ainda pela frente 42 anos de vida ativa, pelo que segundo a tabela aplicar-se-ia o fator de 24,640, obtendo-se o valor de € 129 360,00.
Posto isto, o método fundamental utilizado pela jurisprudência para este tipo de situações é a comparação com outras decisões judiciais, tendo nomeadamente em vista o disposto no art.º 8.º n.º 3 do Código Civil.
Tanto na decisão recorrida, como na apelação, invocaram-se acórdãos que se debruçaram sobre situações em que o lesado sofreu amputação de um dos membros inferiores, ou de ambos.
No acórdão do STJ, de 07.7.2009 (processo 1145/05.6TAMAI.C1), no caso de um sinistrado com 35 anos de idade, que à data do acidente, ocorrido em 2005, auferia € 825,00 por mês, sofreu amputação da perna esquerda que lhe determinou Incapacidade Genérica Permanente Parcial de 71,5%, considerou-se ajustada uma indemnização por danos patrimoniais de € 200 000,00.
No acórdão da Relação do Porto, de 06.02.2014, processo 403/10.2TBPNF.P1, a uma trabalhadora rural com 41 anos de idade, que em 2007 sofreu acidente rodoviário do qual veio a sofrer amputação da perna esquerda, ficando a padecer de incapacidade permanente geral de 70%, foi atribuída, levando em consideração o salário mínimo mensal então em vigor (€ 403,00), uma indemnização por dano patrimonial no valor de € 110 000,00.
No acórdão do STJ de 09.01.2018, processo 275/13.5TBTVR.E1.S1, a um homem de 41 anos de idade, vítima de um acidente de viação em 2010, que auferia uma retribuição mensal de cerca de € 750,00, que foi amputado da perna esquerda, ficando afetado por um défice funcional permanente de 30%, foi atribuída uma indemnização por danos patrimoniais no valor de € 250 000,00.
No acórdão da Relação de Évora de 14.02.2019, processo 8964/15.3T8STB.E1, relativo a um homem com 35 anos que, em virtude de um acidente de viação ocorrido em 2011, sofreu a amputação das duas pernas, ficando afetado com um défice funcional permanente de 53 pontos em 100, sendo certo, porém, que com o auxílio de próteses e fruto de reconversão profissional manteve a profissão e o salário, que era de € 1 036,00 por mês, foi atribuída uma indemnização de € 100 000.00.
A situação do A. é muito equivalente à que foi avaliada pelo STJ em 09.01.2018, havendo, porém, que notar que o A. é treze anos mais jovem do que o lesado objeto desse acórdão e ficou a padecer de uma incapacidade funcional 20 pontos superior à do caso julgado pelo STJ. Assim, tendo o STJ fixado, em janeiro de 2018, uma indemnização por danos patrimoniais no valor de € 250 000,00, não nos parece ultrapassar os limites do razoável o valor fixado pelo tribunal a quo em € 300 000,00 (reduzido a metade, ou seja, € 150 000,00).
Quanto aos danos não patrimoniais.
A lei manda fixar o montante compensatório dos danos não patrimoniais equitativamente, tendo em atenção “o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso”.
Quanto ao grau de culpabilidade do agente, in casu é qualificável de culpa grave, pois provou-se que o segurado da R. embateu no motociclo do A. entrando num cruzamento em marcha atrás, sem se certificar de que o poderia fazer sem perigo dos demais na via pública.
No que concerne à ponderação da situação económica do agente e do lesado, a não discriminação em razão da situação económica (art.º 13.º n.º 2 da CRP) impõe que essa ponderação se limite tão só ou sobretudo a situações de verdadeira desproporção, no sentido lesado rico/lesante pobre, encontrando-se aqui como fundamento o não desperdício de recursos económicos quando o lesado apresenta uma folgada situação económica e o lesante carece de meios (neste sentido, Maria Manuel Veloso, “Danos não patrimoniais”, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977”, volume III, FDUC, Coimbra Editora, 2007, páginas 540 a 542). Aliás, no já distante dia 14 de março de 1975, a Resolução (75) 7 do Comité de Ministros do Conselho da Europa, que exortava os estados membros a levarem em consideração determinados princípios no que concerne à reparação dos danos no caso de lesões corporais e de morte em matéria de responsabilidade extracontratual, defendia que o cálculo da indemnização das lesões corporais deve efetuar-se independentemente da situação económica da vítima.
No fundo, é na análise das “demais circunstâncias do caso” que se encontrarão os reais pontos de referência do montante a arbitrar.
Análise essa em que não se pode, mais uma vez, ignorar a ponderação feita noutras decisões judiciais, tendo nomeadamente em vista o disposto no já mencionado art.º 8.º n.º 3 do Código Civil (“nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”).
Ora, nos acórdãos já acima referidos, os tribunais atribuíram, por danos não patrimoniais emergentes de situações de amputação dos membros inferiores, indemnizações no valor de € 75 000,00 (STJ, 07.7.2009, homem com 41 anos de idade), € 100 000,00 (Relação do Porto, 06.02.2014, homem de 41 anos), € 120 000,00 (STJ, 09.01.2018, homem de 41 anos) e € 150 000,00 (Relação de Évora, 14.02.2019, homem de 35 anos de idade).
In casu, provaram-se os seguintes factos: o A., jovem com 28 anos de idade, em consequência do embate de um automóvel no motociclo que conduzia, despistou-se e embateu em mais duas viaturas; teve traumatismo no dorso lombar, sofrendo dores na palpação da coluna no 1/3 proximal e na vértebra L5 e no tórax à direita; teve traumatismo e dores intensas no ombro direito; rompeu um ligamento e deslocou o ombro; teve traumatismo nos membros inferiores, particularmente no direito; apresentou queixas na coluna, pescoço, zona lombar, escoriações do ombro direito, membros superiores, mãos e cotovelos, e nos membros inferiores, joelhos e tornozelos; embora mobilizasse os membros inferiores, teve dores em ambos os tornozelos; foi levado para o hospital, tendo tido alta decorridas 4 horas; regressou a casa com as mãos e o ombro imobilizados com ligaduras; esteve cerca de 15 dias com ombro e mãos imobilizados com ligaduras; durante três semanas esteve totalmente incapacitado para qualquer atividade; esteve dependente de terceiros, por 15 dias; teve de realizar um tratamento com infiltrações, no ombro direito; teve dores intensas durante 10 dias, que foram diminuindo ao longo do tempo de recuperação, mas com permanência de dores álgicas; foi retomando a sua vida normal, até setembro de 2011; em setembro sentiu uma dor intensa na perna direita;  foi-lhe diagnosticada uma trombose do bypass aorto femoral direito que tinha sido colocado na coxa direita do A. em abril de 2011; essa trombose foi provocada pelo acidente; desde a implementação do bypass até à data do acidente, o A. realizava uma vida perfeitamente normal, trabalhando, saindo com os amigos, praticando desporto; após se ter constatado a trombose do bypass aorto femoral direito verificou-se uma oclusão precoce do bypass repermeabilizado e o agravamento da sintomatologia, que evoluiu para períodos de dor em repouso, com o decúbito e de predomínio noturno; foi feito novo angioTC, que confirmou, além da trombose do bypass, trombose de novo da artéria femoral superficial; em 25 de outubro de 2011 foi efetuada nova revascularização, que resultou em isquemia grave às 3 horas de pós operatório; a isquemia revelou-se irreversível e em consequência disso em 28 de outubro de 2011 foi necessário proceder à amputação do membro inferior direito do A. pelo terço inferior da coxa direita; após a amputação do membro inferior direito, este ficou, novamente, impedido e incapacitado para o exercício da profissão de motorista-distribuidor; em virtude da amputação da perna direita nos termos acima descritos o A. ficou afetado por um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica valorizável em 50 pontos (em 100); antes do acidente o A. tinha uma vida normal no campo lúdico, social e desportivo; a partir de outubro de 2011 o A. fechou-se em casa; a dor e o desconforto e o mau estar impedem o A. de manter a vida lúdica que tinha; o A. nunca mais pôde praticar o desporto que praticara até então, o futebol; o A. ficou com uma cicatriz com 10 cm no ombro direito; durante cerca de 1 ano andou de canadianas; quando vestia calças tinha de prender a perna direita das mesmas com um alfinete; evita vestir calções para não mostrar o coto da perna e a cicatriz da amputação; sofreu e continua a sofrer com dores.
Face a este quadro afigura-se-nos que o valor atualizado arbitrado pelo tribunal a quo, de € 120 000,00 (com uma redução de 50% sobre a parcela de € 100 000,00, específica da amputação, assim se fixando a indemnização por danos não patrimoniais em € 50 000,00 + € 20 000,00 = € 70 000,00), é adequada.
Nesta parte, pois, a apelação também é improcedente.
A apelante pretende também que seja determinado o desconto das prestações pagas pela R., a título de reparação provisória, até ao trânsito em julgado, na indemnização final, e o autor condenado a restituir o excesso, havendo-o.
Resulta dos autos que em 07.5.2015, por apenso à ação declarativa, o A. requereu, contra a R., providência cautelar de arbitramento de reparação provisória. Em 19.6.2015 as partes juntaram ao procedimento cautelar um acordo, nos termos do qual a R. obrigou-se a pagar, a título de reparação provisória, com efeitos a partir de 01.6.2015, a renda mensal de € 300,00. Nesse acordo consta, na cláusula II, que a renda se mantém “até ao trânsito em julgado da decisão que ponha termo ao processo ou até à data do pagamento da indemnização definitiva que venha a ser acordada entre as partes, descontando-se no montante global o total das prestações que forem pagas por via da presente transação, sem prejuízo do disposto no art.º 390.º NCPC”.
Tal transação foi homologada por sentença proferida em 19.6.2015.
Ignora-se o valor dos pagamentos que a R. até ao momento terá efetuado em benefício do A.. Aliás, quanto a isso nada foi requerido ou alegado pelas partes perante a 1.ª instância. De todo o modo, nada obsta a que, na decisão condenatória, se mencione a dedução a fazer-se das prestações indemnizatórias já pagas pela R., a título provisório, ao A..
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida, sem prejuízo de se dever proceder ao desconto, no pagamento da indemnização fixada, do valor das rendas pagas pela R. ao A. ao abrigo da transação a que chegaram no procedimento de arbitramento de reparação provisória suprarreferido.
As custas da apelação, na vertente das custas de parte, são a cargo da apelante, que nela decaiu (artigos 527.º n.ºs 1 e 2 e 533.º do CPC).

Lisboa, 25.02.2021
Jorge Leal
Nelson Borges Carneiro
Pedro Martins (com declaração de voto)

Declaração de voto
Concordo com a decisão, mas quanto à fundamentação estou em desacordo no seguinte (I – O critério da probabilidade prevalecente como medida de prova é incompatível com o sistema jurídico português; II - Ao nível dos factos, a falta de prova de um facto não quer dizer que se tenha provado o facto contrário; III – O ónus da prova de circunstâncias anormais, extraordinárias e anómalas que afastem o nexo de causalidade entre um acidente de viação e uma lesão no corpo do lesado, verificada na sequência do acidente, cabe ao lesante; IV - Uma eventual doença do lesado, que não se manifeste no seu dia-a-dia – como é o caso dos autos – não deve ter nenhuma influência no juízo sobre o nexo de causalidade, nem na diminuição da indemnização devida pelos danos provocados pelo acidente; V – As Portarias de 2008-2009, relativas às propostas razoáveis, não devem servir de ponto de partida para o cálculo da indemnização):
I
À prova produzida pelo autor (dois médicos especialistas que esclareceram devidamente os factos), suficiente para a formação da convicção da verdade da afirmação por ele feita – de que o bypass tinha ocluído em consequência do acidente – não foi oposta pela ré prova minimamente convincente que tornasse duvidosa aquela afirmação, como o demonstra extensamente o acórdão, pelo que a alegação feita pelo autor deve-se considerar provada (art. 346 do CC).
Sendo esta a via da solução do problema no sistema jurídico português, não deve ser trazida à colação uma outra via de solução, como se fosse ela a consagrada no direito português, criando confusão na aplicação, em geral, do Direito. Para mais, sem se tentar fazer a demonstração da compatibilidade desta via de solução com o direito português, quando essa incompatibilidade já foi demonstrada por doutrina especializada (pelo Prof. Miguel Teixeira de Sousa, no blog do IPPC: post de 18/10/2019, Jurisprudência 2019 (100); texto publicitado a 17/07/2019, Por que razão a “probabilidade prevalecente” não é uma medida da prova aceitável no ordenamento probatório português [Para aceder ao texto clicar em M. Teixeira de Sousa]; post de 22/06/2018, Jurisprudência 2018 (43)).
Como este Professor diz: “A probabilidade do facto probando não é um resultado probatório admissível, dado que o que se exige não é que o juiz conclua que o facto probando é provável, mas antes que este facto é verdadeiro ou verosímil [o verosímil está empregue para as providências cautelares – parenteses do signatário desta declaração de voto, mas com base no que é dito pelo referido Prof.]; assim, a probabilidade apenas pode ser um meio para corroborar a inferência da verdade ou da verosimilhança do facto probando de um facto probatório.” (CC comentado, I – Parte Geral, CIDP/Almedina, 2020, pág. 978/m11). Pois que “a prova stricto sensu exige a convicção da verdade do facto probando […]” (autor e obra acabados de citar, pág. 979/m11). 
Considero, por isso, ao contrário do que resulta dito explicitamente no sumário do acórdão, que não se pode decidir um ponto da matéria de facto com base na conclusão de que “se demonstra haver maior probabilidade de a oclusão ter sido causada pelo traumatismo próprio do acidente, do que de a oclusão ter ocorrido naturalmente, por razões inerentes à constituição do lesado, alheias ao acidente.”
Dito de outro modo: a questão não se resolveu, nem se devia resolver, pela aplicação do critério da ‘probabilidade prevalecente’ (a que o sumário e o texto do acórdão fazem múltiplas referências, expressas e implícitas): o tribunal não tinha que contrapor duas afirmações sobre o mesmo facto, não tinha que chegar à formação de uma convicção sobre cada uma delas, nem tinha que medir o grau de convicção que formou sobre cada uma delas, para depois dar como provada a afirmação que tivesse obtido um maior grau de probabilidade de ser verdadeira. Havendo – quando haja – duas alegações de facto contraditórias sobre um mesmo facto, uma delas serve de impugnação da outra e só esta deve ser considerada. Daí que, ao relatar todos os factos relevantes para a decisão da causa e ao dar como provada uma das alegações, o tribunal não terá de dizer que a alegação contrária não se provou.
II
O acórdão transcreve uma afirmação feita pelo Prof. Miguel Teixeira de Sousa que, até pelo local onde vem colocada, vem, aparentemente, contradizer tudo aquilo que sempre foi dito pela doutrina e pela jurisprudência. Qual seja: “o juízo de não prova desse facto equivale a um juízo de […] prova do facto seu contrário”, quando sempre se tem dito que a falta de prova de um facto não corresponde à prova do facto contrário. Fica assim a pairar a ideia de que a posição daquele Professor permite que o juiz, ao fundamentar a decisão de direito, poderia ir buscar todos os factos dados como não provados e agir como se se tivessem provado os factos contrários.
Sendo que actualmente, na maior parte dos acórdãos, transcrevem-se os factos que não se encontram provados e, devido a isso, começa a verificar-se a tendência para retirar desses factos não provados os factos contrários para os utilizar na fundamentação de direito. Ora, a indicação daqueles, na sentença da 1.ª instância, apenas devia servir para (i) dizer que a parte alegou esses factos e não os provou e (ii) obrigar à fundamentação essa decisão.
Considero, por isso, que, ao transcrever-se aquela afirmação se deve esclarecer que ela está feita no âmbito – e só nesse âmbito deve ser aplicada - do tratamento da matéria da decisão de um non liquet, ou seja, no âmbito da aplicação das regras do ónus da prova como regras de decisão de uma situação duvidosa. Onde, aqui sim, se diz que “[…] O ónus objectivo denota o critério de decisão do aplicador do direito perante um non liquet, privilegiando-se uma ou outra das versões controvertidas. […] […] dizer que uma parte processual tem o ónus da prova é dizer que o juiz deve julgar segundo a versão contrária à sua se não atingir o grau de convicção suficiente (por exemplo, Pedro Múrias, Por uma distribuição fundamentada do ónus da prova, Lex, 2000, especialmente págs. 19 a 25, espec. pág. 24). A posição do Prof. Teixeira de Sousa fica melhor esclarecida por exemplo, num outro post, publicado a 24/06/2019, Jurisprudência 2019 (42).
III
Perante a argumentação da seguradora e a extensão da fundamentação do acórdão, importaria frisar, para simplificar de futuro a discussão destas questões, que era à ré, seguradora do lesante, que incumbia provar as circunstâncias anormais, extraordinárias ou anómalas que afastassem a prova do nexo de causalidade (como, aliás, vem sugerido pelo tribunal recorrido: “a conclusão de que não existe nexo de causalidade entre esse evento e a trombose do bypass é que tinha se ser afirmada expressamente em termos científicos e não o contrário, ou seja, tinha de resultar expressamente de dados médico-legais que indiciassem que a trombose ocorreu por uma causa distinta dos traumatismos sofridos pelo autor” – os itálicos são da sentença).
Isto decorre da posição assumida pela maioria da jurisprudência e da doutrina de que a concepção consagrada na Código Civil português quanto ao nexo da causalidade entre um facto ilícito e o dano, é a da formulação negativa da causalidade adequada. Aliás, o resultado prático desta tem sido visto como um equivalente de uma presunção da existência do nexo de causalidade entre uma condição do dano e este. 
Neste sentido veja-se:
“O pensamento fundamental desta teoria [da causalidade adequada] – explica Antunes Varela - é que, para impor a alguém a obrigação de reparar o dano sofrido por outrem, não basta que o facto praticado pelo agente tenha sido, no caso concreto, condição (sine qua non) do dano; é necessário ainda que, em abstracto ou em geral, o facto seja uma causa adequada ao dano.” Mas isto concretizado numa formulação negativa: “o facto que actuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo em todo indiferente para a verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas, que intercederam no caso.”
Esta formulação negativa justifica-se, ainda segundo Antunes Varela, nos casos “em que a obrigação de indemnização pressupõe em facto ilícito culposo do agente […]. [Nestes casos] compreende-se a inversão do sentido natural dos acontecimentos.” (Das Obrigações em geral, vol. I, Almedina, 9.ª edição, 1998, págs. 918, 919-920 e 923, respectivamente).    
O que, como se vê, na prática processual corresponde à inversão do ónus da prova quanto à existência do nexo de causalidade (isto é lembrado por Elsa Vaz de Sequeira, no ponto II do comentário ao CC, Direito das Obrigações, UCP/FD, 2018, pág. 280: “No fundo, haveria aqui uma inversão do ónus da prova, cabendo ao lesante demonstrar a completa inadequação do facto para a produção do resultado.”)
Ou seja, a aplicação da formulação negativa da teoria da causa adequada tem o efeito prático de inverter o ónus da prova do nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano, desde que se prove que o facto ilícito é uma das condições do dano. Como decorre do que já foi dito e se pode ver ainda no já referido comentário de Elsa Vaz de Sequeira, local e obra citada, agora através de José González: a formulação negativa da causalidade adequada “considera existir nexo de causalidade ‘desde que a conduta tenha sido condição sine qua non do dano […] a menos que este tenha acontecido por circunstâncias manifestamente excepcionais.”
O critério do escopo da norma violada, também defendido por Menezes Leitão e Carneiro da Frada – por facilidade, cita-se através do referido comentário de Elsa Vaz de Sequeira – pode, por outro lado, ser visto como um critério que corrige o resultado da teoria da causalidade adequada (neste sentido autora citada, Paulo Mota Pinto e Sinde Monteiro). Nos termos daquela autora: a causalidade adequada “visa determinar se na realidade o dano proveio da acção do agente, enquanto a segunda procede à delimitação dos danos juridicamente relevantes.” E nos de Paulo Mota Pinto, “a imputação do dano deve fazer-se, num primeiro momento (como que prima facie) segundo o critério da causalidade adequada, sendo o resultado, se (e quando) necessário, corrigido pelo recurso ao fim da norma da responsabilidade.” O que, aliás, já era defendido por Antunes Varela, na obra citada, págs. 930 a 932, especialmente 931-932.       
Antunes Varela ainda esclarece (págs. 924 e 925 da obra citada):
“[…] do conceito de causalidade adequada […] múltiplos corolários úteis se podem extrair.
[…]
Outra conclusão a registar é a seguinte: para que um dano seja considerado como efeito adequado de certo facto não é necessário que ele seja previsível para o autor desse facto.
Se a responsabilidade depender da culpa do lesante, é imprescindível a previsibilidade do facto constitutivo de responsabilidade, visto essa previsibilidade constituir parte integrante do conceito de negligência, em qualquer das modalidades que esta pode revestir. Mas já não se exige que sejam previsíveis os danos subsequentes.
Essencial é apenas que o facto constitua, em relação a estes, uma causa (objectivamente) adequada.”
E em nota acrescenta:
“[…] a jurisprudência italiana está repleta de casos em que o agente, uma vez apurada a sua culpa em relação ao facto ilícito culposo, é chamado a responder por consequências excepcionais do facto, sobretudo quando elas dependem da constituição anormal da pessoa lesada.”
Ora, aplicando isto ao caso, diga-se que um acidente de viação, em que o lesado é abalroado por um veículo automóvel, provocando-lhe lesões corporais, é, em relação aos danos subsequentes, sejam eles, por regra, quais forem, uma causa (objectivamente) adequada, não sendo necessário que eles sejam previsíveis para o condutor do automóvel (que, no caso, naturalmente, não saberia que o autor tinha um bypass).
O que também quer dizer que para a afirmação do nexo de causalidade, em acidentes de viação, não importa que o lesante não tenha conhecimento da situação particular do lesado: se em relação a alguém que dá uma bofetada noutra pessoa e a bofetada provoca a morte do agredido, se tem de ter em conta, no juízo sobre a adequação da causa, que o falecido padecia de grave doença cardíaca (utilizou-se o exemplo de Antunes Varela, obra citada, pág. 921), tal já não é o caso quando se causa uma lesão no corpo de outrem através de um embate com um veículo automóvel que é capaz de provocar todo o tipo de danos.
E por isso, voltando ao início, era à ré, seguradora do lesante, que incumbia provar as circunstâncias anormais, extraordinárias ou anómalas que afastassem a prova do nexo de causalidade.
Assim sendo, compreende-se que em França, onde as coisas se colocam mais ou menos nos mesmos termos, se diga:
“Embora, na aplicação do direito comum da prova, seja normalmente à vítima que cabe provar que o seu dano foi causado por um acidente de trânsito, torna-se claro, e logo após a aprovação da lei de 5 de Julho de 1985, que a jurisprudência entendeu estabelecer uma presunção de imputabilidade do dano causado ao sinistro, ao afirmar que "o condutor de um veículo rodoviário motorizado envolvido num acidente de viação só pode ser exonerado da sua obrigação de indemnização se provar que este acidente não tem relação com o dano ”. Essa mesma solução foi reafirmada num caso em que o motorista de um veículo automóvel terrestre, levemente ferido na perna durante uma colisão com um automóvel, morreu pouco depois de um ataque cardíaco. No entanto, essa presunção tem uma área de aplicação limitada aos danos que ocorrem num momento próximo ao acidente [os autores citam três decisões em que a presunção foi afastada, por terem passado 2 anos, 1 ano e 5 anos depois do acidente, respectivamente; no caso dos autos a oclusão do bypass foi verificada 3 meses depois e entretanto o autor esteve a ser tratado por outro problemas e a recuperar deles e por isso aquela oclusão não se manifestou antes] e àqueles que o acidente torna prováveis ​​tendo em vista as circunstâncias da causa, o que leva alguns autores a afirmarem que não seria mais que uma presunção de facto.”
“Alors qu'en application du droit commun de la preuve c'est normalement à la victime de prouver que son dommage a été causé par un accident de la circulation, il ressort clairement, et peu de temps après l'adoption de la loi du 5 juillet 1985, que la jurisprudence a entendu poser une présomption d'imputabilité du dommage à l'accident en énonçant que «le conducteur d'un véhicule terrestre à moteur impliqué dans un accident de la circulation ne peut se dégager de son obligation d'indemnisation que s'il établit que cet accident est sans relation avec le dommage». Cette même solution a été réaffirmée dans une espèce où le conducteur d'un véhicule terrestre à moteur, légèrement blessé à la jambe lors d'une collision avec une automobile, décède peu après d'une crise cardiaque. Néanmoins, cette présomption a un domaine limite aos domanges qui se manifestent dans un temps voisin de l’accident et à ceux que l’accident rend vraisemblable au regard des circonstances de la cause ce qui fait dire à certains auteurs qu'il ne s'agirait qu'une présomption de fait (Gisèle Mor e Laurence Clerc-Renaud, Réparation du préjudice corporel, stratégies d’indemnisation, métthodes d’évaluation, 3e édition, Encyclopédie Delmas, Aoùt 2020, 2021/2022, páginas 93-94).
Em suma, no caso dos autos, bastava para provar o nexo de causalidade, que ficasse provado que o autor foi vítima de um acidente de viação e que 4 meses depois lhe foi amputada a perna em consequência da oclusão de um bypass colocado na coxa, se a seguradora não fizesse a prova de circunstâncias anormais, extraordinárias ou anómalas, que afastassem esse nexo de causalidade. Dito de outro modo, não era o autor que tinha de provar – mas fê-lo – que o bypass tinha ocluído por causa do acidente; era a ré que tinha que provar que a amputação da perna nada tinha a ver com o acidente.
IV
Nos pontos III e IV do sumário e no texto do acórdão aceita-se que a fragilidade do lesado em virtude da implantação do bypass contribuiu, como concausa, para o agravamento do resultado final, embora tal não tenha implicações no direito de indemnização do lesado.
Mas, pelas razões que são invocadas para a não influência no direito de indemnização, o estado anterior físico-psíquico do lesado, que não tenha qualquer influência negativa na sua vida de todos os dias, não deve também ser incluído na discussão do nexo de causalidade.
A propósito de norma idêntica à do artigo da LAT referido no acórdão, constante de leis anteriores, já dizia Cruz de Carvalho, Acidentes de trabalho e doenças profissionais, legislação anotada, Livraria Petrony, 1983, págs. 75-76: “Na solução adoptada no n.º 2 (tal como no n.º 1) o legislador ter-se-á inspirado na doutrina francesa que, apoiada pela respectiva jurisprudência, entende que, nestes casos, ao trabalhador lesado é devida sempre a reparação integral, não sendo lícito cindir o acidente de trabalho, para se verificar qual a parte que nestes cabe ao traumatismo e qual à doença preexistente, a qual se apoia nas seguintes razões: a) sem o acidente o trabalhador, embora adoentado, poderia viver durante prazo indeterminado como um indivíduo são; b) se fosse obrigatório tomar em consideração todas as causas que influíram no agravamento das feridas traumáticas, a cada passo iríamos esbarrar com dificuldades insuperáveis, pois mil circunstâncias contribuem para que duas feridas idênticas em operários diversos tenham evolução diferente, não só devido às diversas naturezas dos terrenos ou de predisposições patológicas, mas até conforme a maior ou menor rapidez de socorros, competência dos médicos, cuidados de enfermagem, etc,; c) a diversa constituição física de cada indivíduo pode também influir por milhares de maneiras. […]”
Na doutrina francesa lembra-se que o “STJ” francês recusa-se sistematicamente a ter em conta uma condição patológica anterior sem nenhuma manifestação exterior prejudicial, lembrando que o direito da vítima à indemnização não pode ser reduzido se a condição anterior ou as predisposições não resultaram em qualquer condição incapacitante, desde que o acidente tenha sido o elemento descompensador, desencadeando uma patologia anterior ao atentado. (La Cour de Cassation refuse ainsi de manière constante de tenir compte d’un état pathologique antérieur, sans manifestation dommageable externe rappelant que le droit à indemnisation de la victime ne saurait être reduit si l’état antérieur ou les prédispositions n’entraînaient aucun état invalidant, dès lors que l’accident a été l’élément décompensateur, déclencheur d’une pathologie antérieur à l’attteinte.” (Gisèle Mor e Laurence Clerc-Renaud, obra citada, pág. 276).
Ou seja, não só a seguradora não tem razão ao pretender que o art. 11 da LAT não tem aplicação aos autos, como se deve mesmo defender que o art. 11/1 da LAT é a consagração de uma das regras que está implícita no art. 563 do CC, ou seja, que uma eventual doença do lesado, que não se manifestava no seu dia-a-dia – como é o caso dos autos [nos factos 69 a 73 consta que desde a implementação do bypass até à data do acidente, o autor realizava uma vida perfeitamente normal, trabalhava, saía com os amigos, praticava desporto, nunca teve queixas ou dores] – não deve ter nenhuma influência no juízo sobre o nexo de causalidade, nem na diminuição da indemnização devida pelos danos provocados pelo acidente.
V
No acórdão diz-se que a tabela prática da Portaria 377/2008, alterada pela Portaria 679/2009, “pode servir como ponto de partida para a tarefa de se fixar a indemnização […]”. Ora, perante as amplas críticas doutrinárias e jurisprudenciais que lhes têm sido feitas, estas Portarias não podem servir para o efeito. O que no caso é particularmente evidente. Não se pode aceitar dar relevo a umas Portarias que apontam para o valor de 129.360€, quando, logo a seguir, se demonstra que a indemnização devia ficar pelo valor de 300.000€, quase duas vezes e meia superior.
Para além disto, já foi muitas vezes demonstrado que aquelas portarias (i) estão erradas – por exemplo, a tabela da última não corresponde à fórmula matemática que ela pretende aplicar… - (ii) não têm em conta dados correctos hoje genericamente aceites, como por exemplo o factor da esperança média de vida, em vez do tempo provável de vida activa e (iii) partem de uma taxa de juro que há mais de uma dezena de anos não tem a mais pequena correspondência com a realidade (5% de juros, quando hoje um qualquer cidadão não consegue obter uma taxa de juros, pelos depósitos que faça, de mais de 0,1 ou 0,2% e mesmo isso em casos excepcionais), sendo que uma simples diferença de 1% de juros pode levar a uma diferença de dezenas de milhares de EUR na indemnização.

Pedro Martins