Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | NELSON BORGES CARNEIRO | ||
Descritores: | AUDIÊNCIA PRÉVIA CONHECER DE MÉRITO DESPACHO SANEADOR NULIDADE PROCESSUAL | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 05/21/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
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Sumário: | I – É obrigatória a realização de audiência prévia, quando o tribunal tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa. II – O tribunal não pode julgar de mérito no despacho saneador sem primeiro facultar a discussão, em audiência, entre as partes. III – A nulidade processual tem a ver com o ato como trâmite de uma tramitação processual, não com o conteúdo do ato praticado pelo tribunal ou pela parte. IV – A não realização da audiência prévia, quando não possa ser dispensada por se ter conhecido do mérito da causa no despacho saneador, traduz-se na omissão de um ato prescrito por lei, consubstanciando uma nulidade processual com influência relevante no processo. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os juízes da 2ª secção (cível) do Tribunal da Relação de Lisboa: 1. RELATÓRIO JA… deduziu oposição à execução em que é exequente, BRANDS LEADERS, S.A., pedindo que a execução seja declarada extinta, e a exequente condenada como litigante de má-fé. Foi proferido saneador-sentença que julgou procedente a oposição, e declarou extinta a execução. Inconformada, veio a exequente apelar do saneador-sentença, tendo extraído das alegações[1] que apresentou as seguintes CONCLUSÕES[2]: I. O Recorrente não pode conformar-se com o despacho proferido pelo Meritíssimo Juiz “a quo”, o qual deu como totalmente procedentes os embargos e declarou extinta a execução, deduzida pelo ora Recorrente. II. A Exequente, instaurou no dia 27 de outubro de 2018, ação executiva contra o Executado, cujo objeto da execução consistia no pagamento da quantia de 5238,79, tendo a Autora como título três cheques. III. O Executado, deduziu oposição à execução a fim de obstar que a ação executiva produzisse os seus efeitos, alegando para o efeito que há “ausência de título executivo”, por não ter sido alegada a “relação material subjacente” aos três cheques, que não estão assinados pela devedora. IV. Sendo certo que a Exequente, alegou em contestação que cumpriu com o disposto no artigo 703.º n.º 1 alínea c), concretamente na existência de uma dívida da empresa Star Sports, Lda, que foi assumida pelo Executado. V. É que, neste caso, estamos perante a utilização do título como mero quirógrafo da relação causal subjacente à respetiva emissão ou documento particular, destituído das características que são próprias dos títulos de crédito, designadamente do princípio da abstração, segundo o qual, tais títulos valem por si só, independentemente da causa subjacente à sua emissão. VI. Por outro lado, a menção da obrigação subjacente que o cheque visava satisfazer, isto é a razão da ordem de pagamento constitui a verdadeira causa de pedir da ação executiva, havendo, por isso, que propiciar ao executado efetiva e plena possibilidade de sobre tal matéria exercer o contraditório. VII. Neste sentido, os cheques apresentados à execução são de facto o reconhecimento por parte do executado da existência da obrigação pecuniária. VIII. O tribunal a quo reconheceu a falta de comprovação da relação subjacente à entrega dos cheques à exequente por parte do executado, condição sine qua non para que possam beneficiar de força executiva. IX. Contudo, nos termos do artigo 703.º n.º 1 alínea c) do Código de Processo Civil, o cheque é válido como mero quirógrafo do crédito, desde que conste do seu teor a relação subjacente ou que a mesma seja alegada no requerimento executivo. X. No entanto, mesmo enquanto meros quirógrafos, os cheques contêm em si o reconhecimento unilateral de uma dívida, pois mantém-se a ordem de pagamento. XI. Estabelece ainda o artigo 458.º, n.º 1 do Código Civil, que se alguém por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respetiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário. XII. Assim, cabe ao Executado, alegar e provar que a relação fundamental, fonte do negócio, não existe, é anulável ou nula, ou se extinguiu, apesar do reconhecimento da dívida (cfr. art. 344.º, n.º 1 do CC). XIII. Contudo, a prova do contrário não equivale à contraprova uma vez que esta atividade probatória pretende tão só criar a dúvida ou incerteza acerca da verdade dos factos. XIV. Assim, o Executado teria de provar a existência do facto oposto, ou seja, tornar certo o facto contrário (art. 347.º do Cód. Civil), o que não logrou fazer com os Embargos deduzidos. XV. O Embargante limitou-se a negar frontalmente os factos invocados pela Exequente no requerimento executivo, não reconhecendo ter assumido o pagamento dos materiais que foram adquiridos pela cliente da Embargada, empresa na qual o Embargante era gerente, apesar da existência dos cheques, dados à execução. XVI. A conduta do Executado ao emitir e entregar á Exequente diversos cheques para pagamento de fornecimento feitos à empresa Star Sports, Lda, na qualidade de gerente da mesma, deve ser valorado como a relação subjacente existente entre as partes. XVII. Para além disso, alegou o Embargante que não avalizou ou prestou fiança da divida que a Star Sports, Lda contraiu perante a Recorrente. XVIII. No entanto, o Executado conhecia bem as dívidas da sua empresa para com a Exequente, tendo assumido perante a mesma o pagamento dos montantes reclamados com a emissão dos cheques dados à Execução, sendo certo, que para além destes cheques, emitiu outros para pagamentos anteriores e posteriores a estes, tendo referido por mais do que uma vez que assumia pessoalmente a dívida da sua empresa. XIX. Na verdade, a Exequente cumpriu o ónus de alegação dos factos essenciais, exerceu o Executado o contraditório não provando inexistir a invocada relação causal, nem a mesma se extinguiu pelo pagamento, existe a obrigação nos termos alegados pela Exequente, pelo que os Embargos tinham de improceder. XX. Com efeito, o Embargante não provou que não há causa para os títulos de crédito, não tendo cumprido o ónus da prova, ilidindo a presunção de causa do reconhecimento de dívida, consagrada no n.º 1 do artigo 458.º do Código Civil. XXI. Um cheque prescrito vale como mero quirógrafo da relação subjacente e mantém a sua função de título executivo, desde que, no requerimento executivo, o exequente alegue a causa da sua emissão (a respetiva relação subjacente - art. 703.º, n.º 1, al. c)), sendo que a emissão de um cheque também constitui o reconhecimento de uma obrigação pecuniária. XXII. Assim, embora o Exequente estivesse dispensado de provar a relação fundamental que alegou, verifica-se que o Executada/embargante não logrou ilidir a presunção do reconhecimento da dívida. XXIII. Para além disso, o Tribunal a quo com o despacho Saneador/Sentença procedeu à dispensa da audiência prévia nos termos dos artigos 732º/2 e 593º/1 do CPC. XXIV. O Tribunal a quo proferiu sem mais a douta sentença de que ora se recorre. XXV. Decisão essa, que surpreendeu a ora recorrente, uma vez que dos autos não decorriam quaisquer indícios que o Tribunal a quo iria agir deste modo, pelo que, salvo melhor opinião, considera a Recorrente que os autos não permitiam a tomada desta decisão surpresa. XXVI. Com efeito, refere o tribunal a quo “Em suma: a “relação subjacente” (que permitia a utilização dos cheques como título executivo) não decorreu entre exequente e executado; o executado não figura nos títulos como “devedor”; e, a entrega de meios de pagamento, desacompanhada de “contrato”, não constitui forma válida de “transmissão singular de dívidas” – factos e conclusões que conduzem à procedência dos embargos.” XXVII. Ora, ainda que se entendesse que os factos alegados pela Recorrente, importantes e necessários para ser decidida a ação, estariam alegados de forma vaga, imprecisa ou até de forma relativamente descontextualizada, certo é que isso sempre obrigaria, a nosso ver, à prolação de um despacho de aperfeiçoamento dos articulados, ao abrigo do artigo 590º, nº 2, al. b) e nº 4 do CPC, o que não se verificou. XXVIII. Certo é que apesar de o Tribunal a quo teoricamente entender que a Recorrente não alegou a relação subjacente, em momento algum deu azo a que tal acontecesse, não tendo sequer permitido a audição de testemunhas. XXIX. Na verdade, apesar de as partes terem apresentado, nos seus articulados, a prova testemunhal e documental que queriam ver produzida em sede de audiência de julgamento, o certo é que nunca lhes foi permitida produzirem esta prova, testemunhal. XXX. Ora, dada a importância e carácter marcante da audiência prévia na ação executiva, conforme reconhecem a generalidade da doutrina e jurisprudência, enquanto momento para facultar às partes uma discussão sobre as vertentes do mérito da causa que o juiz projeta decidir e, ao mesmo tempo, visando assegurar a aproximação entre as partes e estas e o tribunal, através de uma cultura de diálogo, são raras as situações em que o legislador permite a sua preterição. XXXI. Tais situações constam do artigo 592º do CPC e nelas não cabem, com toda a certeza, os presentes embargos. XXXII. A dispensa de audiência prévia carece de preencher os requisitos previstos no artigo 593º do CPC, desde logo que a ação haja de prosseguir. Só neste caso o juiz pode dispensar a realização daquela audiência, contando que se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) do nº 1 do artigo 591º do CPC. XXXIII. Ora, o conhecimento da totalidade do mérito da causa não é de considerar para efeitos do artigo 593º do CPC, pois não satisfaz o primeiro requisito da norma habilitadora da dispensa: “ações que hajam de prosseguir”. XXXIV. Em qualquer caso, o juiz não pode dispensar a realização de audiência prévia quando, para satisfação dos respetivos fins, haja necessidade de realizar qualquer dos atos previstos nas alíneas a), b) c) e g) do nº 1 do artigo 591º do CPC. XXXV. Assim, ela é de realização necessária designadamente quando o juiz tencione conhecer de todo o mérito da causa, se a questão não tiver sido debatida nos articulados. Mesmo quando o tenha sido, a decisão de dispensa deve, todavia, ser precedida da consulta das partes, em conformidade com disposto no artigo 3º, nº 3 do CPC, assim se garantindo não apenas o contraditório sobre a gestão do processo, como também uma derradeira oportunidade para as partes discutirem o mérito da causa. XXXVI. Efetivamente, a dispensa da audiência prévia só será admissível num contexto que o tribunal sempre teria que descrever no despacho respetivo e só depois de ouvidas as partes, conforme resulta dos artigos 547º e 6º do CPC. XXXVII. Com a não produção de prova testemunhal, proferindo o Tribunal a quo a decisão de mérito agora recorrida, apenas com os elementos existentes nos articulados, foi impedida a Recorrente de cumprir o ónus probatório relativo aos factos alegados, conforme lhe competia, tendo o Tribunal a quo violado o disposto no artigo 595º, nº 1, al. b) do CPC. XXXVIII. Destarte, e salvo melhor opinião, afigurasse-nos evidente a necessidade de realizar a audiência prévia antes do Tribunal conhecer do mérito dos embargos de executado, desde logo porque não ocorre nenhum dos motivos legalmente previstos para a não realização da mesma (artigos 592º e 593º do CPC). XXXIX. Pelo que deve a decisão ora recorrida ser anulada, bem como os termos processuais subsequentes a essa decisão viciada, incluindo a decisão que julgou procedente os embargos de executado, devendo determinar-se o prosseguimento dos autos com vista à delimitação dos temas do litígio e posterior produção de prova em sede de audiência de discussão e julgamento. XL. Sem prescindir, sempre se dirá que proferiu o tribunal a quo decisão sem anunciar a sua intenção de conhecer imediatamente do mérito da causa, constituindo uma verdadeira decisão surpresa. XLI. Ora, conforme já ficou dito e conforme é entendido pela maioria da doutrina e jurisprudência, não pode o tribunal julgar o mérito da causa no despacho saneador sem primeiro facultar a discussão, em audiência, às partes, como previsto no artigo 3º, nº 3 do CPC. XLII. Tal solução impede que as partes venham a ser confrontadas com uma decisão que, provavelmente, não esperariam fosse já proferida, isto é, evita-se uma decisão surpresa, ao mesmo tempo que são acautelados os casos em que a anunciada intenção de conhecimento imediato do mérito da causa derive de alguma precipitação do juiz, tanto mais que não é frequente a possibilidade de, sem a produção de prova, ser proferida já uma decisão final, tal como se verificou neste caso concreto. XLIII. O Tribunal a quo, ao dispensar a realização de audiência prévia, nos termos do artigo 732º, nº 2 e do artigo 593º, nº 1 do CPC – afinal não aplicável ao caso – com a agravante de não ter comunicado essa posição às partes antes da comunicação do teor da decisão sobre o mérito da causa no despacho saneador-sentença, violou o direito de aquelas serem ouvidas sobre a matéria de facto e de direito em causa e defraudou as suas legítimas expectativas de contribuírem para a sua discussão em função da antecipação da decisão para o momento do saneador. XLIV. Com efeito, a decisão de mérito proferida constituiu para as partes uma decisão surpresa, proibida nos termos do artigo 3º, nº 3 do CPC e em violação do artigo 591º, nº 1, al. b) do CPC. XLV. Não tendo as partes sido ouvidas, nem sequer advertidas acerca da eventual dispensa da audiência prévia, podiam legitimamente esperar que pudessem fazer valer nesse ato, através da garantia do primado da oralidade, os seus derradeiros argumentos. XLVI. Nem sequer se diga que a matéria controvertida e alegada pelas partes havia já sido debatida suficientemente nos articulados, para efeitos dos artigos 6º e 547º do CPC. XLVII. A preterição daquela formalidade processual, concretizada na violação do princípio do contraditório, constitui a omissão de um ato prescrito na lei capaz de influir no exame e na decisão da causa, incluindo-se na cláusula geral sobre as nulidades processuais constante do artigo 195º, nº 1 do CPC. XLVIII. Assim, deve a decisão recorrida ser revogada, devendo ser declarado nulo o saneador sentença recorrido e, em consequência, ser determinada a baixa do processo à 1ª instância para que aí se dê cumprimento ao princípio do contraditório e após se determine o prosseguimento dos autos, conforme for entendido de direito. XLIX. Sempre sem prescindir, acresce que, como ficou dito, com a preterição de audiência prévia, e demais consequências legais, ficou o Recorrente impossibilitado de produzir prova em benefício dos embargos de executado apresentados. L. Nos termos do artigo 341º do CC “as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos”. Com efeito, as provas são produzidas ou trazidas para análise dentro do processo com a função primordial de demonstração da verdade dos factos alegados pelas partes, o autor e réu, para a formação da convicção do juiz. LI. Se é certo que quem invoca determinado facto deve prová-lo, também é certo que deve ser dada a devida oportunidade para produção dessa prova, para cabal esclarecimento dos factos. LII. O direito à prova surge, por um lado, como uma consequência natural da garantia constitucional prevista no supracitado artigo 20º, nº 1, da CRP (acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva), mas também, por outro lado, surge como uma emanação dos direitos, liberdades e garantias que merecem tutela constitucional. LIII. Nesse sentido, o direito à prova é tomado como um direito fundamental, conferindo às partes, não só o acesso aos tribunais e a tutela jurisdicional efetiva, como também a faculdade de apresentação de prova em juízo, pois que o direito à prova é um direito decorrente do direito de ação, bem como o direito de cada uma das partes oferecer as suas provas, controlar a parte contrária e discutir dentro do processo sobre o valor atribuído e o resultado concreto das mesmas. LIV. Sendo certo que a prova testemunhal poderia e teria lugar como meio idóneo a suportar os factos alegados, porquanto é apta à descoberta da verdade material, em conformidade com o disposto nos artigos 392º a 396º do CC e artigos 413º e 500º ab initio do CPC. LV. Face ao exposto, andou mal o tribunal a quo ao prescindir da audiência prévia sem que antes permitisse às partes a produção de prova, nomeadamente para permitir a audição da testemunha arrolada pela Recorrente, pelo que deveria o douto tribunal ter suscitado essas dúvidas em sede de audiência prévia, ao invés de dar como assentes factos sobre os quais recaem dúvidas. LVI. Assim, ao decidir pela preterição da audiência prévia, proferindo despacho saneador sentença que julgou procedentes os embargos de executado sem antes permitir às partes a produção de prova e apreciação da mesma, violou o Tribunal a quo o direito fundamental dos Recorrentes ao acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva previsto no artigo 20º da CRP. LVII. Tal violação constitui omissão de um ato prescrito na lei capaz de influir no exame e na decisão da causa, incluindo-se na cláusula geral sobre as nulidades processuais constantes do artigo 195º, nº 1 do CPC. LVIII. Assim, por este motivo deve ser declarado nulo o despacho saneador-sentença recorrido e, em consequência, ser determinada a baixa do processo à 1ª instância para que aí seja garantido o direito à prova aos Recorrentes e consequente prosseguimento dos autos. LIX. Por outro lado, a decisão recorrida, com o devido respeito, que é muito, padece também de vício de falta de fundamentação, o que configura uma nulidade nos termos da al. b), do n.º 1 do artigo 615.º ex vi 613.º, n.º 3 do Código de Processo Civil. LX. Sendo certo que, a nulidade do despacho, só pode ter por fundamento um dos vícios mencionados no artigo 615.º do Código de Processo Civil, que é efetivamente a al. b) do n.º 1 do indicado preceito. LXI. Pois, dispõe a alínea b), do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil que “É nula a sentença quando: b) não justifique os fundamentos de facto e de direito que justifiquem a decisão”. LXII. Pelo que, enferma de nulidade a sentença [o despacho] que não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. LXIII. Na verdade, o Meritíssimo Juiz a quo no douto despacho limitou-se a dizer, sem qualquer fundamentação, que “(…) Em suma: a “relação subjacente” (que permitia a utilização dos cheques como título executivo) não decorreu entre exequente e executado; o executado não figura nos títulos como “devedor”; e, a entrega de meios de pagamento, desacompanhada de “contrato”, não constitui forma válida de “transmissão singular de dívidas” – factos e conclusões que conduzem à procedência dos embargos.”. LXIV. O Meritíssimo Juiz a quo devia ter fundamentado o porquê de considerar que o alegado pelo Recorrente na douta oposição à execução não se enquadra em nenhum dos fundamentos previstos para a execução baseada em sentença, o que não o tendo feito configura uma nulidade que se argui no presente recurso. LXV. Nestes termos deve este Tribunal da Relação julgar procedente o recurso ora apresentado e em consequência revogar a decisão recorrida determinando que o processo prossiga os seus termos. LXVI. Determinando ainda que, a sentença recorrida padece de nulidades que motiva necessariamente à sua respetiva revogação e a ação prossiga os seus termos. O executado não contra-alegou. Colhidos os vistos[3], cumpre decidir. OBJETO DO RECURSO[4] Emerge das conclusões de recurso apresentadas por BRANDS LEADERS, S.A., ora apelante, que o seu objeto está circunscrito às seguintes questões: 1.) Nulidade da decisão recorrida por dispensa de realização de audiência prévia. 2.) Nulidade da decisão recorrida por violação do direito à prova. 3.) Nulidade da decisão recorrida por não especificação dos fundamentos de facto. 4.) Cheques como títulos executivos. 5.) Cheques como reconhecimento unilateral de uma dívida. 2. FUNDAMENTAÇÃO 2.1. FACTO PROVADO 1.) Em 2019-11-07, o tribunal a quo proferiu despacho no qual dispensou a realização de audiência prévia, e julgou de mérito no saneador. 2.2. O DIREITO Importa conhecer o objeto do recurso, circunscrito pelas respetivas conclusões, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e as que sejam de conhecimento oficioso (não havendo questões de conhecimento oficioso são as conclusões de recurso que delimitam o seu objeto). 1.) NULIDADE DA DECISÃO RECORRIDA POR DISPENSA DE REALIZAÇÃO DE AUDIÊNCIA PRÉVIA. A apelante alega que ” a dispensa de audiência prévia carece de preencher os requisitos previstos no artigo 593º do CPC, desde logo que a ação haja de prosseguir. Só neste caso o juiz pode dispensar a realização daquela audiência, contando que se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) do nº 1 do artigo 591º do CPC.”. Mais alega que “o conhecimento da totalidade do mérito da causa não é de considerar para efeitos do artigo 593º do CPC, pois não satisfaz o primeiro requisito da norma habilitadora da dispensa: “ações que hajam de prosseguir”. Em qualquer caso, o juiz não pode dispensar a realização de audiência prévia quando, para satisfação dos respetivos fins, haja necessidade de realizar qualquer dos atos previstos nas alíneas a), b) c) e g) do nº 1 do artigo 591º do CPC.”. Assim, “tal violação constitui omissão de um ato prescrito na lei capaz de influir no exame e na decisão da causa, incluindo-se na cláusula geral sobre as nulidades processuais constantes do artigo 195º, nº 1 do CPC, devendo ser declarado nulo o despacho saneador-sentença recorrido”. Vejamos a questão. Concluídas as diligências resultantes do preceituado no n.º 2 do artigo anterior, é convocada audiência prévia, destinada a algum ou alguns dos fins seguintes: realizar tentativa de conciliação, nos termos do artigo 594.º; facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa; c) discutir as posições das partes, com vista à delimitação dos termos do litígio, e suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto que ainda subsistam ou se tornem patentes na sequência do debate; d) proferir despacho saneador, nos termos do n.º 1 do artigo 595.º; determinar, após debate, a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo 547.º; proferir, após debate, o despacho previsto no n.º 1 do artigo 596.º e decidir as reclamações deduzidas pelas partes; programar, após audição dos mandatários, os atos a realizar na audiência final, estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e designar as respetivas datas – art. 591º, nº 1, als. a) a g), ex vi, do art. 732º, nº 2, ambos do CPCivil. A audiência prévia não se realiza, nas ações não contestadas que tenham prosseguido em obediência ao disposto nas alíneas b) a d) do artigo 568.º, e quando, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de exceção dilatória, esta já tenha sido debatida nos articulados – art. 592º, nº 1, als. a) e b), do CPCivil. Nas ações que hajam de prosseguir, o juiz pode dispensar a realização da audiência prévia quando esta se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591.º – art. 593º, nº 1, do CPCivil. A realização da audiência prévia constitui, portanto, regra no processo ordinário e para ela são convocadas os mandatários das partes, e ainda estas próprias quando o objeto da causa se contenha no âmbito do direito disponível[5]. Conforme a exposição de motivos da reforma de 2013, “a audiência prévia é, por princípio, obrigatória, porquanto só não se realizará: - nas ações não contestadas que tenham prosseguido em regime de revelia inoperante; - nas ações que devam findar no despacho saneador pela procedência de uma exceção dilatória, desde que esta tenha sido debatida nos articulados”. Daí que a não realização da audiência prévia, nas hipóteses em que é obrigatória, integre nulidade processual secundária, nos termos e para os efeitos dos arts. 195º e ss[6]. A forma expressa e taxativa como estas disposições estão redigidas permite concluir com segurança que quando a ação houver de prosseguir (isto é, não deva findar no despacho saneador pela procedência de exceção dilatória que já tenha sido debatida nos articulados) e o juiz pretenda decidir de imediato, no todo ou em parte, do mérito da causa (ou apreciar exceção dilatória que não tenha sido debatida nos articulados ou que vá julgar improcedente) deve realizar-se audiência prévia para facultar às partes a discussão de facto e de direito que importe para esse conhecimento. É o que resulta claro da não inclusão da alínea b) do n.º 1 do artigo 591.º no elenco das situações para que remete o n.º 1 do artigo 593.º e da relação necessária entre o artigo 592.º e o artigo 593.º[7]. A convocação da audiência prévia para os fins previstos no artigo 591º, nº 1, alínea b), do CPC, nomeadamente quando o juiz tencione conhecer imediatamente do mérito da causa, visa assegurar o respeito pelo princípio do contraditório, evitando assim decisões-surpresa, só sendo lícito ao juiz dispensar a sua realização, nestes casos, ao abrigo do disposto nos artigos 6º e 547º, do CPC se aquele conhecimento versar sobre questão suficientemente debatida nos articulados[8]. Quando o juiz tencionar conhecer imediatamente (no todo ou em parte) do fundo, substância ou mérito do (ou dos) pedidos deduzidos pelo autor ou pelo réu-reconvinte, deve igualmente convocar a audiência prévia com essa finalidade[9]. No CPC de 1961 posterior à revisão de 1995-1996, excetuava-se o caso em que os fundamentos da decisão a proferir tivessem sido já discutidos pelas partes, não havendo insuficiências na exposição da matéria de facto a corrigir e revestindo-se a apreciação da causa de manifesta simplicidade. No novo código esta exceção desapareceu: o juiz não pode julgar de mérito no despacho saneador sem primeiro facultar a discussão, em audiência, entre as partes[10]. Reportando-nos ao caso dos autos, o tribunal a quo proferiu decisão total de mérito em sede de despacho saneador que foi precedida de uma declaração de dispensa de audiência prévia para esse fim, sem que fosse possível a não realização dessa audiência ou a sua dispensa, ao abrigo dos arts. 592º e 593º do CPCivil. E, também não foi invocada como fundamento dessa dispensa o disposto nos arts. 6º e 547º do CPCivil[11] – pelo que se impunha a realização dessa diligência, nos termos do artº 591º, nº 1, als. b) e d), do CPCivil, desse modo dando também cumprimento ao princípio do contraditório, tal como consagrado no art. 3º, nº 3, do CPCivil. Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa – art. 195º, nº 1, do CPCivil. Do disposto no art. 195.º, n.º 1, CPC decorre que se verifica uma nulidade processual quando seja praticado um ato não previsto na tramitação legal ou judicialmente definida ou quando seja omitido um ato que é imposto por essa tramitação. Isto demonstra que a nulidade processual se refere ao ato como trâmite, e não ao ato como expressão da decisão do tribunal ou da posição da parte. O ato até pode ter um conteúdo totalmente legal, mas se for praticado pelo tribunal ou pela parte numa tramitação que o não comporta ou fora do momento fixado nesta tramitação, o tribunal ou a parte comete uma nulidade processual. Em suma: a nulidade processual tem a ver com o ato como trâmite de uma tramitação processual, não com o conteúdo do ato praticado pelo tribunal ou pela parte[12]. A não realização da audiência prévia, a qual não podia ser dispensada por se ter conhecido do mérito da causa no despacho saneador, traduz-se na omissão de um ato prescrito por lei, consubstanciando, pois, uma nulidade processual, com influência relevante no processo. Constitui exemplo de omissão de ato prescrito na lei a falta de audiência prévia, fora dos casos do art. 592, que não possa ser dispensada (arts. 591-1 e 593)[13]. Concluindo, o tribunal a quo julgou de mérito no despacho saneador sem primeiro ter facultado a discussão, em audiência, entre as partes, omitindo deste modo um ato prescrito por lei (convocação de audiência prévia, como estatuído no art. 591º, nº b), do CPCivil). Como a omissão desse ato consubstancia uma nulidade processual com influência relevante no processo, deve ser declarado nulo todo o processado subsequente à apresentação da contestação à oposição à execução, devendo, por isso, os autos prosseguir desde aí os seus termos normais (no caso, convocando-se audiência prévia se o tribunal tencionar conhecer do mérito da causa no despacho saneador). Destarte, procedendo, nesta parte, o recurso, há que declarar nula a decisão proferida pelo tribunal a quo, por omissão de ato prescrito na lei (no caso, a não convocação de audiência prévia). O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cujas decisões esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras – art. 608º, nº 2, ex vi, do art. 663º, nº 2, ambos do CPCivil. Do princípio de que a sentença deve resolver todas as questões suscitadas pelas partes excetuam-se aquelas cujas decisões esteja prejudicada pela solução dada a outras». Assim, por exemplo, se o tribunal se declara incompetente para conhecer do pedido, em razão da matéria ou da hierarquia, não faria sentido que na sentença se pronunciasse ainda sobre as questões levantadas pelas partes quanto ao mérito da causa[14]. Sendo nula a decisão proferida pelo tribunal a quo, e todo o processado subsequente à apresentação da contestação à oposição à execução, mostra-se prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas pela apelante, nomeadamente, as nulidades da decisão recorrida, por violação do direito à prova[15] e por não especificação dos fundamentos de facto[16], bem como se os cheques dados à execução serão títulos executivos. 3. DISPOSITIVO 3.1. DECISÃO Pelo exposto, acordam os juízes desta secção cível (2ª) do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso de apelação e, consequentemente, decide-se anular a decisão proferida pelo tribunal a quo, declarando-se nulo todo o processado subsequente à apresentação da contestação à oposição à execução, devendo os autos a partir de aí prosseguir os seus termos normais (no caso, convocando-se audiência prévia se o tribunal tencionar conhecer do mérito da causa no despacho saneador). 3.2. REGIME DE CUSTAS Sem custas, por elas não serem devidas. Lisboa, 2020-05-21 Nelson Borges Carneiro Pedro Martins Inês Moura _______________________________________________________ [1] Para além do dever de apresentar a sua alegação, impende sobre o recorrente o ónus de nela concluir, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão – ónus de formular conclusões (art. 639º, nº 1) –FERREIRA DE ALMEIDA, Direito Processual Civil, volume II, 2ª edição, p. 503. [2] O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão. Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar, as normas jurídicas violadas; o sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas, e invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada – art. 639º, nºs 1 e 2, do CPCivil. [3] Na sessão anterior ao julgamento do recurso, o processo, acompanhado com o projeto de acórdão, vai com vista simultânea, por meios eletrónicos, aos dois juízes-adjuntos, pelo prazo de cinco dias, ou, quando tal não for tecnicamente possível, o relator ordena a extração de cópias do projeto de acórdão e das peças processuais relevantes para a apreciação do objeto da apelação – art. 657º, n.º 2, do CPCivil. [4] Todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso. Vem sendo entendido que o vocábulo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a dirimir. [5] LEBRE DE FREITAS, A Ação Declarativa Comum, À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 4ª ed., p. 198. [6] FERREIRA DE ALMEIDA, Direito Processual Civil, volume II, 2ª edição, p. 211. [7] Ac. Tribunal da Relação do Porto de 2017-09-27, Relator: RODRIGUES DE ALMEIDA, http://www.dgsi.pt/jtrp. [8] Ac. Tribunal da Relação de Évora de 2016-06-30, Relator: MÁRIO SERRANO, http://www.dgsi.pt/jtre. [9] FERREIRA DE ALMEIDA, Direito Processual Civil, volume II, 2ª edição, p. 217. [10] LEBRE DE FREITAS, A Ação Declarativa Comum, À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 4ª ed., p. 201. [11] Por outro lado, e não sendo à partida possível essa dispensa, esta ainda será concebível, mas apenas no quadro da aplicação do princípio da adequação formal, por via do artº 547º do NCPC, sendo que, nesse caso, será exigível que a questão já esteja suficientemente debatida nos articulados, e isto sem prejuízo de a dispensa ser precedida de consulta das partes, por exigência do princípio do contraditório, como decorre do artº 3º, nº 3, do NCPC,PAULO RAMOS DE FARIA e ANA LUÍSA LOUREIRO, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, p. 494. [12] TEIXEIRA DE SOUSA, Blogue do IPPC, “O que é uma nulidade processual?”, post publicado em 2018-04-17. [13] LEBRE DE FREITAS – ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, volume 1º, 4ª ed., p. 403. [14] ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, vol. 5º, p. 58. [15] A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos – n.º 1, do art. 20º, da CRPortuguesa. O direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva é, ele mesmo, um direito fundamental constituindo uma garantia imprescindível da proteção de direitos fundamentais, sendo, por isso, inerente à ideia de Estado de direito - GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1º vol., 4ª ed., p. 408. [16] Ao juiz cabe especificar os fundamentos de facto e de direito da decisão (art. 607-3). Há nulidade quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto e de direito da decisão, não a constituindo a mera deficiência de fundamentação. A fundamentação da sentença é, alem do mais, indispensável em caso de recurso: na reapreciação da causa, a Relação tem de saber em que se fundou a sentença recorrida - LEBRE DE FREITAS, A Ação Declarativa Comum, Á Luz do Código de Processo Civil de 2013, 4ª ed., pp. 380/81. |