Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10718/18.6T9LSB.L1-9
Relator: FRANCISCO SOUSA PEREIRA
Descritores: BURLA INFORMÁTICA
BURLA NAS COMUNICAÇÕES
CONVENÇÃO DE MONTREAL
APERFEIÇOAMENTO DOS ELEMENTOS OBJECTIVOS
RAI
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I-Se os arguidos tão-só se aproveitaram de uma anomalia técnica associada ao tratamento de cheques da máquina de multibanco pertencente à rede interna de uma instituição bancária situada numa sua agência sita nas Amoreiras, anomalia essa que permitiu que o valor titulado em cheques  ficasse imediatamente disponível na conta beneficiária, independentemente de a conta sacada ter ou não saldo suficiente, e dela se aproveitando, (procedendo desde logo ao levantamento de tais quantias) e da qual tiveram conhecimento,  tendo gizado um plano com vista a apropriarem-se indevidamente de quantias a que sabiam não ter direito, emitindo e fazendo o depósito de cheques através da referida máquina multibanco, sabendo que nas respectivas contas não existiam fundos suficientes para movimentar tais quantias e que mesmo assim os respectivos valores iam ser disponibilizados, como foram, nas contas beneficiárias estas condutas não perfectibilizam o tipo legal p.p. no artº 221º nº1 do CP;
II- De facto, se também com aquela conduta os arguidos não interferiram também, fosse de que forma fosse, no resultado do tratamento de dados, não interferiram no programa informático, não utilizaram dados de forma incorrecta ou incompleta, ou sem autorização, nem intervieram por qualquer outro modo no processamento de dados, pois se não fosse a anomalia da máquina, alheia ao modus operandi dos arguidos, os valores não teriam sido disponibilizados nas contas beneficiárias, perante tal quadro as condutas dos arguidos não preenchem os elementos objectivos típicos do crime referido no ponto I.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO:
No âmbito do Processo n.º 10718/18.6T9LSB, do Tribunal Judicial da Comarca de  Lisboa - Juízo de Instrução Criminal de Lisboa - Juiz 3, por despacho proferido no dia 27.9.2021, foi decidido, na parte que ora releva:
“Pelo exposto, não pronuncio os arguidos AA, BB, CC, DD, EE e FF e contra a pessoa colectiva “AC... – Assessoria Unipessoal, Lda.”, pela prática, dos crimes de crimes de burla informática p. e p. pelo art.º 221.º, n.ºs 1 e 5, al. b), do Código Penal e de um crime de tentativa de burla informática p. e p. pelos arts.º 22.º, 221.º, n.ºs 1 e 5, al. b), do Código Penal que lhes eram imputados no requerimento para a abertura da instrução.”.
Inconformados com tal decisão, dela vieram os assistentes no processo BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS, S.A. E BANCO ACTIVOBANK (PORTUGAL), S.A.  interpor o presente recurso, que, na sua motivação, após dedução das alegações, culmina com as seguintes conclusões e petitório (transcrição):
“1.º Na ótica do recorrente, factos ilícitos perpetrados pelos arguidos consubstanciam a prática de um crime de burla informática qualificada (na forma consumada e na forma tentada), p.p. pelo artigo 221º n.º 1 do CP.
2.º Com efeito, de acordo com a factualidade considerada indiciada, os arguidos bem sabendo que a conta de depósitos à ordem por si titulada não tinha saldo suficiente para os movimentos perpetrados e que como tal não podiam, de outra forma, obter aqueles montantes daquelas contas (e por isso mesmo só depositaram cheques naquela máquina e nunca noutra, onde o dinheiro não ficaria disponível), processaram inúmeros depósitos naquela concreta máquina, sabendo que lhes disponibilizava o dinheiro que não tinham na conta e do qual se poderiam apropriar, como veio a suceder.
3.º O depósito, nas circunstâncias referidas, dos cheques com os n.ºs …………….., ………….., ………….., ………….., ………….., ………….., ………….., ………….., ………….., ………….., ………….., ………….., …………, …………, ……………, …………….., ………….. e …………….., quando os arguidos bem sabiam não ter saldo para o fazer, consubstancia uma forma de engano ou fraude na utilização de dados informáticos.
4.º A apropriação de coisa móvel alheia (os montantes titulados pelos ditos cheques) conseguida através da sucessiva introdução e utilização de dados sem autorização (mais concretamente, o depósito de cheques indevidamente emitidos pelos arguidos a favor uns dos outros quando consabidamente não dispunham de saldo para o efeito) no sistema informático da máquina de multibanco instalada em agência do Banco, com intenção de obter enriquecimento ilegítimo, integra uma das modalidades da ação típica do crime de burla informática.
5.º O sucessivo e cruzado depósito de cheques em sistema informático faz com que a conduta em análise consubstancie a prática de crime de burla informática e não de (mero) crime de apropriação ilegítima em caso de acessão ou de coisa ou animal achado, p.p. pelo artigo 209º do CP, já que os arguidos não se limitaram a ver creditadas nas suas contas as quantias tituladas pelos cheques. Tal sucedeu devido à sua conduta ilícita, de emissão indevida de cheques a favor uns dos outros e com vista à emissão imediata de tais valores.
6.º A decisão recorrida violou o disposto no artigo 221º do CP, na medida em que o Tribunal recorrido considerou que os arguidos não usaram qualquer dispositivo, não utilizaram dados sem autorização, nem interferiram com o processamento dos dados ou de qualquer modo determinaram tal interferência.
7.º A decisão recorrida deveria ter concluído que a conduta dos arguidos de, concertadamente, fazer depositar nas contas uns dos outros, através da máquina de multibanco instalada na dita agência do Banco, os cheques com os n.ºs ………….., ………….., ………….., ………….., ………….., ………….., ………….., ………….., ………….., ………….., ………….., …………, ……………, …………, ……….. e ……………, quando bem sabiam não ter saldo para o fazer e que a máquina só lhes disponibilizava aquelas quantias por erro, consubstancia uma forma de engano ou fraude na utilização de dados informáticos, o que integra a prática de crime de burla informática.
8.º Na verdade, uma correta interpretação do aludido artigo imporia a prolação de um despacho de pronúncia, por existirem indícios suficientes da prática dos crimes imputados aos arguidos e por se mostrar suficiente a imputação factual vertida na acusação material deduzida pelo Banco.
TERMOS EM QUE DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE, REVOGANDO-SE A DECISÃO INSTRUTÓRIA PROFERIDA E SUBSTITUINDO-SE POR OUTRA QUE PRONUNCIE OS ARGUIDOS BB, CC, AC... – ASSESSORIA UNIPESSOAL, LDA., DD, AA, FF E EE NOS TERMOS DA ACUSAÇÃO MATERIAL CONSTANTE DO REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO DEDUZIDO PELOS ASSISTENTES, ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA!”
Na primeira instância, a Digna Magistrada do MP, notificada do despacho de admissão do recurso apresentado pelo arguido, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, apresentou resposta em que pugna pela improcedência do recurso e manutenção da sentença recorrida.
Para tanto, formulou as seguintes conclusões:
 “1- A factualidade a que os autos alude não tipifica factos ilícitos puníveis e integradores de crime de burla informática, ilícito p. no artº 2321 n° 1 e 2 do CP.
2- Ao utilizarem a ATM do banco lesado, nas circunstâncias a que os autos aludem os arguidos não usaram de qualquer estratagema, dispositivo ou programa que interferisse no tratamento de dados da máquina ou no seu modo de funcionamento ou que, de alguma forma, a determinasse a diferente laboração.
3- O deficiente funcionamento da máquina de ATM ou a sua eventual errada programação com disponibilização imediata dos montantes titulados pelos cheques depositados, independentemente de boa cobrança, não é da responsabilidade dos arguidos mas dos sistema mecânico da própria ATM, sistema a que os mesmos são alheios.
4- Não foi o sucessivo e cruzado depósito de cheques que determinou a disponibilização imediata dos valores titulados pelos cheques depositados.
5- O que permitiu a disponibilização e consequente apropriação foi um deficiente funcionamento da máquina.
6- A presente questão apenas pode ser dirimida em sede de direito civil
7. O Mmº JIC interpretou de forma correcta e legal o dispositivo p. no artº 221° do CP.
8- O despacho em crise, por legal deve ser mantido.”
Também o arguido Francisco Hélder Lima Rodrigues, notificado que foi do despacho de admissão do recurso apresentado pelos assistentes, apresentou resposta em que pugna pela improcedência do recurso e manutenção da sentença recorrida.
A final formulou as seguintes conclusões:
“Os factos praticados pelo Arguido não consubstanciam a prática do crime de Burla informática qualificada, pelo que só se pode concordar com a decisão que decidiu pela sua não pronúncia.
A decisão recorrida não violou quaisquer normas legais, sendo irrepreensível apreciação in casu, do que resulta naufragarem totalmente as alegações das recorrentes.
Com efeito, andou bem o Tribunal a quo ao decidir pela não pronúncia do arguido, decisão que deve ser mantida.”
Neste Tribunal da Relação a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer em que aduziu o seu entendimento de que o recurso deve ser julgado improcedente.
Cumprido o disposto no Art. 417.º, n.º 2, do C. P. Penal, apenas a arguida AA apresentou resposta ao sobredito parecer, considerando que deverá manter-se o despacho de não pronúncia proferido em sede de instrução, pelos fundamentos ora invocados.
Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo conhecer e decidir.
II – ÂMBITO OBJETIVO DO RECURSO (QUESTÕES A DECIDIR):
É hoje pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (ulteriormente designado, abreviadamente, CPP)1 2.
Assim sendo, no caso vertente enuncia-se a seguinte questão que importa decidir:
A – Estão indiciados factos que integram a prática, pelos arguidos, de um crime de burla informática?
III – APRECIAÇÃO:
Dada a sua relevância para o enquadramento e decisão da questão importa verter aqui a fundamentação vertida no despacho recorrido, no que releva para o caso:
 “De acordo com o teor dos documentos juntos em inquérito, em conjugação com a prova testemunhal recolhida, mostram-se indiciados todos os factos descritos no RAI.
Não existem dúvidas razoáveis sobre a ocorrência de tais factos, não se percebendo a sua ocorrência de forma diversa, considerando os movimentos verificados, a autoria desses movimentos e a localização assumida dos mesmos.
No entanto, atentos os factos indiciados, verifica-se uma ausência do preenchimento dos elementos típicos objectivos das incriminações em análise.
A incriminação de burla informática prevista no art. 221.º do Código Penal prevê a punição de... “1 - Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, causar a outra pessoa prejuízo patrimonial, interferindo no resultado de tratamento de dados ou mediante estruturação incorreta de programa informático, utilização  incorreta ou incompleta de dados, utilização de dados sem autorização ou intervenção por qualquer outro modo não autorizada no processamento,[...]”(sublinado nosso), e, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo... “2 - A mesma pena é aplicável a quem, com intenção de obter para si ou para terceiro um benefício ilegítimo, causar a outrem prejuízo patrimonial, usando programas, dispositivos eletrónicos ou outros meios que,  separadamente ou em conjunto, se destinem a diminuir, alterar ou impedir, total ou  parcialmente, o normal funcionamento ou exploração de serviços de telecomunicações”.
Conforme referiu o Ministério Público, nenhuma destas modalidades de acção se verifica neste caso concreto.
Os arguidos não usaram qualquer dispositivo, não utilizaram dados sem autorização, nem interferiram com o processamento dos dados ou de qualquer modo determinaram tal interferência; nem sequer se aproveitaram da interferência de outra pessoa, eventualmente com eles conjugada,
Tudo quanto os denunciados fizeram foi depositar os cheques, que eram legítimos (não eram falsificados) em contas a que eram destinados (não ocorreram erros de lançamento a crédito de valor em contas de pessoas não beneficiárias dos depósitos) e, aproveitando-se uns e outros do problema de má programação da máquina, usar depois os montantes disponibilizados, eventualmente todos conhecendo e sabendo que não tinham suporte no saldo das constas sacadas, deste modo lesando o banco em perto de trezentos mil euros, dado que a máquina adiantou imediatamente os valores depositados, creditando-os nas contas beneficiárias dos depósitos, ao invés de ficarem cativos até boa cobrança dos cheques.
O facto de os denunciados não serem de todo responsáveis pelo funcionamento (errado, defeituoso ou pura e simplesmente mal programado) da máquina recetora de depósitos, faz com que manifestamente não tenham interferido no resultado de tratamento de dados, nem estruturado incorretamente programa informático (tal é da exclusiva responsabilidade do Banco queixoso ou de quem tinha por função programar ou corrigir a programação e funcionamento da máquina MTM sita na agência do BCP das Amoreiras, em Lisboa), não ocorreu qualquer utilização incorreta ou incompleta de dados, nem utilização de dados sem autorização, nem nenhuma intervenção por qualquer outro modo não autorizada no processamento de dados ou do programa informático ou da máquina. A máquina é que funcionava mal, na perspetiva do Banco, não acautelando os interesses deste na disponibilização do dinheiro apenas após boa cobrança dos cheques.
Assim, quanto ao n.º 1 do art.º 221.º do Código Penal, isto é, quanto às condutas típicas que têm que se verificar para que se preencha o tipo objectivo do crime em causa, não se verifica que as condutas dos denunciados sejam subsumíveis a tal tipo legal objetivo de crime.
Resta a possibilidade de integrarem o n.º 2 do citado art.º 221.º.
Vejamos.
Incorre também na prática do referido crime, desta feita de Burla nas comunicações, quem, com intenção de obter para si ou para terceiro um benefício ilegítimo, causar a outrem prejuízo patrimonial, usando programas, dispositivos eletrónicos ou outros meios que, separadamente ou em conjunto, se destinem a diminuir, alterar ou impedir, total ou parcialmente, o normal funcionamento ou exploração de serviços de telecomunicações.
Escreveu-se acertadamente no despacho de arquivamento que “os denunciados não interferiram no normal funcionamento ou exploração de serviços de telecomunicações, nem usaram programas, dispositivos eletrónicos ou outros meios que ....diminuíssem, alterassem ou impedissem, total ou parcialmente, o normal funcionamento ou exploração de tais serviços.
A máquina do BCP erradamente programada ou com problemas de funcionamento não é um serviço de telecomunicações, nem os denunciados usaram quaisquer programas ou dispositivos eletrónicos ou outros meios para interferir na máquina. Limitaram-se a depositar cheques. A máquina é que funcionava mal, ou estava mal programada.
Assim, por não se encontrar preenchida a incriminação invocada, pelo que não estão reunidos os pressupostos de aplicação de uma pena em sede de julgamento a qualquer dos arguidos. ---”
Os factos (descritos no RAI) indiciados são os seguintes:
“1) AA, cidadã de nacionalidade brasileira, é Cliente do ActivoBank desde 8.06.2017, enquanto titular da conta de depósitos à ordem n.º ………….., domiciliada na agência daquele Banco do Saldanha (cfr. fls. 22 a 42 dos autos).
2) «AC... – ASSESSORIA UNIPESSOAL, LDA.», sociedade unipessoal por quotas, é Cliente do BCP desde 26.03.2018, enquanto titular da conta de depósitos à ordem n.º …………….., domiciliada na agência de Amadora – Queluz (cfr. fls. 43 a 57dos autos).
3) BB, cidadã de nacionalidade brasileira, é Cliente do ActivoBank desde 22.11.2017, enquanto titular da conta de depósitos à ordem n.º …………., domiciliada na agência de Amadora – Queluz (cfr. fls. 58 a 64 dos autos).
4) CC, cidadão de nacionalidade brasileira e gerente da sociedade «AC... – ASSESSORIA UNIPESSOAL, LDA.», é Cliente do ActivoBank desde 23.10.2017, enquanto titular da conta de depósitos à ordem n.º ………….., domiciliada na agência do Banco ActivoBank de Braga (cfr. fls. 65 a 70 dos autos).
5) CC é também Cliente do Banco Comercial Português desde 4.01.2018, enquanto titular da conta de depósitos à ordem n.º …………….., domiciliada na agência do Banco BCP das Amoreiras (cfr. fls. 71 a 76 dos autos).
6) DD, cidadão de nacionalidade brasileira, é Cliente do ActivoBank desde 14.06.2018, enquanto titular da conta de depósitos à ordem n.º ……………., domiciliada na agência do Banco ActivoBank das Amoreiras (cfr. fls. 77 a 83 dos autos).
7) EE, cidadã de nacionalidade brasileira, é Cliente do ActivoBank desde 14.06.2018, enquanto titular da conta de depósitos à ordem n.º …………….., domiciliada na agência do Banco ActivoBank das Amoreiras (cfr. fls. 84 a 90 dos autos).
8) FF, cidadão de nacionalidade brasileira, é Cliente do ActivoBank desde 14.06.2018, enquanto titular da conta de depósitos à ordem n.º …………….., domiciliada na agência do Banco ActivoBank do Colombo (cfr. fls. 91 a 97 dos autos).
9) No período compreendido entre final de maio e início de junho de 2018, a máquina MTM (máquinas de multibanco pertencentes à rede interna Millenniumbcp) situada na agência do Banco Comercial Português das Amoreiras sofreu uma anomalia técnica associada ao tratamento de cheques, anomalia essa que permitiu que o valor titulado em cheques ficasse imediatamente disponível na conta beneficiária, independentemente de a conta sacada ter ou não saldo suficiente.
10) Em data e circunstâncias não apuradas, os denunciados tomaram conhecimento da anomalia técnica existente na máquina MTM situada na agência do Banco Comercial Português das Amoreiras e engendraram um plano com vista a apropriarem-se indevidamente com quantias a que bem sabiam não ter dinheiro.
11) Assim, entre 28.05.2018 e 18.06.2018, os denunciados AA, CC (em nome da sociedade comercial AC... – Assessoria Unipessoal, Lda.) BB emitiram 15 cheques – com os números  ……………., ……………, ………………, ……………, ……………, ……………, …………, ………, ……………, …………, …………, …………, ……………, ……………, –, a favor de alguns dos denunciados, que fizeram depositar através da máquina de multibanco MTM existente na agência do BCP das Amoreiras, e que creditaram, cruzada e alternadamente, em seis das contas de depósitos à ordem acima identificadas, tituladas por BB, CC, AC... - Assessoria Unipessoal, Lda., DD e EE.
12) Em face da anomalia técnica de que padecia a máquina MTM em causa, os valores titulados nos ditos cheques foram de imediato disponibilizados nas contas beneficiárias.
13) Tais saldos foram, quase de imediato, dissipado pelos denunciados BB, CC, AC... - Assessoria Unipessoal, Lda., DD e EE, mediante transferências para outros dos denunciados, pagamentos de serviços, levantamentos em numerários e pagamentos em lojas e restaurantes.
14) Os referidos cheques foram posteriormente devolvidos por falta de provisão, gerando saldos devedor nas contas de depósitos à ordem indevidamente creditadas.
15) Na data em que os referidos cheques foram depositados, os denunciados AA, CC (em nome da sociedade comercial AC... – Assessoria Unipessoal, Lda.) e BB não ignoravam, que nas suas contas de depósitos à ordem e também na conta da sociedade comercial «AC... – Assessoria Unipessoal, Lda. não existiam fundos suficientes que lhes permitissem movimentar tais quantias.
16) Os denunciados AA, CC (em nome da sociedade comercial AC... – Assessoria Unipessoal, Lda.) e BB só conseguiram movimentar as quantias em causa porque se aperceberam antecipadamente que a máquina em causa disponibilizava de imediato os valores titulados pelos cheques aí depositados, o que lhes permitia movimentar e dissipar tais montantes, como o fizeram.
17) Em 23.07.2018, o denunciado FF emitiu os cheques com os n.ºs ………, ………. e ……., sacados sobre a conta de depósitos à ordem n.º …………, de que era titular junto do BCP, no valor global de € 210.000,00, e depositou-os, através da máquina MTM instalada na agência do BCP das Amoreiras, na conta de depósitos à ordem n.º …………, titulada por GG.
18) Os referidos cheques n.ºs …………, …………. e …………… foram devolvidos por falta de provisão, no dia seguinte, 24.07.2018, sendo certo que, nestes casos, contrariamente ao que sucedera anteriormente, os montantes titulados pelos cheques não ficaram imediatamente disponíveis, pois a utilização indevida do sistema informático das máquinas internas do BCP tinha já sido detetada e resolvido o problema.
19) Na data em que os referidos cheques foram depositados, o denunciado FFnão ignorava que a sua conta de depósitos à ordem não dispunha de saldo suficiente que lhe permitisse movimentar tais quantias.”
Vejamos então.
Dispõe o artigo 221.º do CP:
“Burla informática e nas comunicações
1 — Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, causar a outra pessoa prejuízo patrimonial, mediante interferência no resultado de tratamento de dados, estruturação incorreta de programa informático, utilização incorreta ou incompleta de dados, utilização de dados sem autorização ou intervenção por qualquer outro modo não  autorizada no processamento, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2 — A mesma pena é aplicável a quem, com intenção de obter para si ou para terceiro um benefício ilegítimo, causar a outrem prejuízo patrimonial, usando programas, dispositivos electrónicos ou outros meios que, separadamente ou em conjunto, se destinem a diminuir, alterar ou impedir, total ou parcialmente, o normal funcionamento ou exploração de serviços de telecomunicações.
3 — A tentativa é punível.
4 — O procedimento criminal depende de queixa.
5 — Se o prejuízo for:
a) De valor elevado, o agente é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias;
b) De valor consideravelmente elevado, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos.
6 — É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 206.º” (sublinhado nosso)
Decorre da norma citada, no que cumpre enfatizar atento o concreto objecto do recurso, que estamos perante um crime de execução vinculada, cujo resultado tem de ser atingido através de procedimentos e ações que estejam - tipicamente - previstos na descrição dos elementos materiais da infração.
Esta constatação parece, aliás, ser pacífica quer na doutrina quer na jurisprudência.
Assim, pronunciando-se sobre esta norma, escrevem Garcia Marques/Lourenço Martins que «A conexão com a informática estabelece-se pelo modo como a acção é levada a cabo, ou seja, por interferência “no resultado de tratamento de dados ou mediante estruturação  incorrecta de programa informático – recordem-se alguns dos modi operandi acima mencionados -, utilização incorrecta ou incompleta de dados, utilização de dados sem  autorização ou intervenção por qualquer outro modo não autorizado no processamento...”.»3 (sublinhamos)
No mesmo sentido Rita Coelho Santos sustenta que “Tal como nas outras manifestações de criminalidade informática, o agente actua sobre uma máquina, o computador. Embora o agente vise, em última instância, o património de uma pessoa, singular ou colectiva, o seu escopo imediato é subverter um programa informático, distorcer dados  informatizados ou perturbar um sistema informático, sem necessidade de actuar sobre qualquer indivíduo, por forma a obter enriquecimento ilegítimo.”, “(...) só relevam as  ofensas que sejam cometidas através de uma das modalidades típicas (interferência no resultado de tratamento de dados mediante estruturação incorrecta de programa informático, utilização incorreta ou incompleta de dados, utilização de dados sem autorização ou alternativa (mas, que, no caso concreto, podem conjugar-se) como formas de acção”.4 (também sublinhamos)
Esta autora desenvolve e densifica, com exemplificações, os sucessivos segmentos normativos, assim concretizando o que compreendem as previstas estruturação incorrecta de programa informático5, utilização incorrecta ou incompleta de dados6, utilização de dados sem autorização7, e intervenção por qualquer outro modo não autorizada no processamento de dados8. Relativamente a este último segmento, expende:
“Adoptando a noção de sistema informático como o “sistema de tratamento automatizado de dados mediante mecanismos informáticos e que, por isso, se caracteriza pela codificação da informação, objecto de tratamento, em forma não perceptível ao homem, mas compreensível pelo computador”, englobamos, na referida noma, in fine, as interferências no sistema informático que não correspondam à intromissão directa nos dados (expressamente contemplada pela fórmula legal), mas que neles se repercutem, em termos de alterar o resultado que se observaria se não ocorresse a referida manipulação.” (sublinhamos)
Também Paulo Pinto de Albuquerque) nos diz que “A interferência no resultado do tratamento de dados é, por um lado, a consequência necessária da interferência no processamento de dados através dos modos de execução dor crime (estruturação incorreta de programa informático, utilização incorreta ou incompleta de dados, utilização de dados sem autorização ou intervenção por qualquer outro modo não autorizado no processamento) e, por outro lado, a causa do prejuízo patrimonial.
A estruturação do programa informático é incorreta quando ela é contrária à finalidade do programa informático, produzindo as novas instruções resultados objetivamente contrários à finalidade do programa (manipulação do programa informático). A estruturação pode ter lugar pela manipulação de um programa já existente ou pela criação de um programa que produz resultados falsos (...).
A utilização incorreta de dados consiste na introdução de dados que não correspondem à realidade, como por exemplo, na introdução de dados de pessoas que não existem (...). A utilização incompleta de dados consiste na introdução parcial de dados verdadeiros, de tal modo que eles não representam a realidade (...).
A utilização de dados sem autorização implica a violação de regras de acesso aos dados, sem que a integridade desses dados seja afetada. (...)”9
Ainda, Ana Helena França Azevedo10, que escreve: “No plano da tipicidade, constitui um crime de execução vinculada. Com isto queremos dizer que a lesão do património produzir-se-á através da intromissão nos sistemas e da utilização de meios informáticos, nos quais está presente e aos quais está subjacente alguma forma de fraude ou de artificio que tenha a finalidade a especifica intenção de obter enriquecimento ilegítimo, causando a outra pessoa prejuízo patrimonial. Neste caso prescinde-se o erro ou engano em relação a uma pessoa, ou seja, a máquina não pode ser ludibriada, tal como sucede no crime de burla do artigo 217.º. Há-de estar sempre presente um erro direto com finalidade determinada, um engano ou um artifício sobre dados ou aplicações informáticas.
Acrescentamos ainda que “a coordenação entre a natureza do bem jurídico protegido e a especificidade típica como crime de execução vinculada supõe que a produção do resultado tenha de ser determinada por procedimentos e ações que sejam tipicamente vinculados na descrição específica da norma que define os elementos materiais da infração.” Mas prescindindo do erro ou engano em relação a uma pessoa, prevê, no entanto, atos com conteúdo material e final idêntico: manipulação dos sistemas informáticos, ou utilização sem autorização ou abusiva determinando a produção dolosa de prejuízo patrimonial.” (sublinhamos)
No mesmo sentido, Ac. da RL de 09.07.2015, respigando-se do respectivo sumário:
“II - O crime de burla informática é um crime de execução vinculada.
III - A burla informática assenta sempre num comportamento que constitui artifício, tipo, mas por intermediação da manipulação de um sistema de dados ou de tratamento informático, ou de equivalente utilização abusiva de dados.
IV - O bem jurídico protegido por tal ilícito criminal é não só o património mas também a fiabilidade dos dados e a sua proteção.”11 (também sublinhamos)
Ora, revertendo ao caso concreto, temos de concluir que os arguidos se “limitaram” a aproveitar da anomalia técnica associada ao tratamento de cheques da máquina de multibanco pertencente à rede interna Millennium situada na agência do Banco Comercial Português das Amoreiras, anomalia essa que permitiu que o valor titulado em cheques ficasse imediatamente disponível na conta beneficiária, independentemente de a conta sacada ter ou não saldo suficiente.
É certo, aproveitaram-se dessa anomalia (da qual tiveram conhecimento), gizando um plano com vista a apropriarem-se indevidamente de quantias a que sabiam não ter direito, e assim emitindo e fazendo o depósito de cheques através da referida máquina multibanco, sabendo que nas respectivas contas não existiam fundos suficientes para movimentar tais quantias e que mesmo assim os respectivos valores iam ser disponibilizados, como foram, nas contas beneficiárias.
Mas não interferiram, fosse de que forma fosse, no resultado do tratamento de dados, não buliram no programa informático, não utilizaram dados de forma incorrecta ou incompleta, ou sem autorização, nem intervieram por qualquer outro modo no processamento de dados.
Se não fosse a anomalia da máquina – para a qual não existe rigorosamente nada que aponte que qualquer dos arguidos tenha contribuído – os valores não tinham sido disponibilizados nas contas beneficiárias.
Não está agora em causa saber se a conduta dos arguidos é censurável ou não, certamente que o é, questão preenchem o tipo legal de crime previsto no art. 221.º/1 do CP, i. é, o crime de burla informática.
Até porque, como é consabido, nem todas as condutas ilícitas constituem crime (como se refere na decisão recorrida, pode haver «apenas» ilicitude civil), imperando no direito penal o princípio da subsidiariedade.
Recorrendo uma vez mais aos ensinamentos de Rita Coelho Santos, “A previsão do ilícito abarca modus operandi que se reconduza a essa utilização idónea a interferir no resultado do tratamento de dados (...)”
“Não obstante, traduz-se numa fórmula legal restritiva, pois, através dela, o legislador limita as condutas relevantes, para efeitos de burla informática, às manipulações informáticas que se repercutam no resultado do tratamento de dados,  alterando-o face àquele que decorreria do regular funcionamento do sistema informático (em que os dados são tratados) e desde que essa alteração decora de uma interferência na estruturação (ou funcionamento) do respectivo programa, da utilização não autorizada, incorrecta ou incompleta de dados ou de uma intervenção ilegítima, por qualquer outro modo, no tratamento automatizado”12 (realce nosso)
Se o sistema informático no caso não funcionou correctamente, gerando um errado tratamento de dados, não foi devido a qualquer actuação dos arguidos, mas à anomalia da máquina MTM a que os arguidos são alheios.
Manifestamente que as condutas dos arguidos não preenchem os elementos objectivos típicos do crime de burla informática.
IV - DISPOSITIVO:
Pelo exposto, acordam os Juízes da 9.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto pelos assistentes BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS, S.A. E BANCO ACTIVOBANK (PORTUGAL), S.A. e, consequentemente, manter a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça devida por cada um (arts. 513.º e 514.º, ambos do Código de Processo Penal, e arts. 1º, 2º, 3º, 8º, nº 9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este diploma legal).
Notifique (art. 425.º, n.º 6, do CPP).
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Lisboa, 10 de Março de 2022,
Francisco de Sousa Pereira
Lídia Renata Goulart Whytton da Terra
(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos – cf. art. 94.º, n.º 2, do CPP)
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 1 Cf., neste sentido e a título de exemplo, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª Edição Actualizada, UCE, 2009, anot. 3 ao art. 402.º, págs. 1027/1028; António Henriques Gaspar e outros, Código de Processo Penal Comentado, 3.ª Edição Revista, Almedina, 2021, anot. 3 ao art. 403.º, pág. 1265.
2 Acórdão de fixação de jurisprudência n.° 7/95, DR-I, de 28.12.1995.
3 in Direito da Informática, Almedina, pág. 519.
4 O tratamento jurídico-penal da transferência de fundos monetários através da manipulação ilícita dos sistemas informáticos, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 2005, pág.s 214 e 216.
5 Ob. citada, pág.s 244/245.
6 Ob. citada, pág.s 246/247.
7 Ob. citada, pág. 253.
8 Ob. citada, pág.s 258/259.
9 Comentário do Código Penal, 4.ª Ed. Actualizada, 2021, Universidade Católica Editora, Anotações 7 a 10 ao art. 221.º do CP, pág.s 930/931.
10 Burlas Informáticas: Modos de Manifestação, Tese de Mestrado, pág. 37, consultável in http://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/44510/1/Ana%20Helena%20Fran%c3%a7a%20Azevedo.pdf
11 CJ, Ano XL, tomo 3, pág. 339; no mesmo sentido, Ac. STJ de 20.9.2006, Proc. 06P1942, Ac. RP de 20.02.2013, Proc. 493/11.0PIPRT.P1, Ac. RP de 03.02.2016, Proc. 482/10.2SJPRT.P1, Ac. RE de 19.11.2015, Proc. 133/13.3GBODM.E1, Ac. RE de 26.06.2012, Proc. 264/06.6GBPSR.E1, todos in www.dgsi.pt
12 Ob. citada, pág.s 242/243.