Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | JORGE ROSAS DE CASTRO | ||
Descritores: | CUSTAS PRAZO DE PRESCRIÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 10/12/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | (da responsabilidade do relator ) I – Com o trânsito em julgado da decisão final, que contém um segmento condenatório em custas, fica estabelecido um crédito de custas. II – A partir desse momento, passa a depender exclusivamente da iniciativa do credor-Estado, em função da sua organização material, humana e funcional, promover a feitura da conta, da qual resultará a concretização, ou seja, a liquidação, do valor exato de um tal crédito. III – O prazo de prescrição do crédito de custas deve assim iniciar-se com o trânsito em julgado da decisão condenatória, ao abrigo do disposto no art. 306.º, n.º 4, do Código Civil. IV – Acolher a orientação segundo a qual esse termo inicial coincidiria com o final do prazo para o pagamento voluntário das custas, à luz do art. 306.º, n.º 1, do Código Civil (que supõe os prévios atos de elaboração e notificação da conta), traduzir-se-ia numa ofensa aos fundamentos do instituto da prescrição, uma vez que tornaria virtualmente possível, no caso de inércia dos serviços públicos, exigir-se o pagamento do valor apurado vinte, trinta, quarenta, cinquenta anos depois do trânsito em julgado da decisão, sem que fosse oponível a prescrição, o que não pode aceitar-se. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: 1 – Relatório No Juízo Central Criminal de Sintra (Juiz 3) foi proferido despacho, em 17.11.2022, que julgou prescrito o crédito de custas sobre a condenada AA…., despacho esse com o seguinte teor (transcrição): «Por requerimento com a Ref.ª 43656326, apresentado em 24.10.2022, veio a Condenada AA…. reclamar da conta, sustentando que a conta de custas à mesma notificada se mostra prescrita. Alega para tanto que tendo a decisão condenatória quanto a esta proferida nos autos transitado em julgado em 26.11.2015, o prazo de cinco anos de prescrição do crédito de custas, previsto no art.º 37º, n.º 1, do RCP, já decorreu. Ouvido o Ministério Público, pugnou a Digna Procuradora da República pelo indeferimento do requerido, sustentando para o efeito que o prazo prescricional apenas se inicia com a notificação da conta de custas aos responsáveis pelo seu pagamento e o decurso do prazo de pagamento voluntário da mesma. Decidindo. De acordo com o preceituado no art.º 37º, n.º 1, do Regulamento das Custas Processuais “O crédito por custas e o direito à devolução de quantias depositadas à ordem de quaisquer processos prescreve no prazo de cinco anos, a contar da data em que o titular foi notificado do direito a requerer a respetiva devolução, salvo se houver disposição em contrário em lei especial.”. A questão que se coloca no caso em apreço, atenta a posição assumida nos autos pela Requerente e pelo Ministério Público, prende-se com o momento desde quando se computa o prazo de prescrição do crédito de custas, fixado em cinco anos pelo citado art.º 37º, n.º 1, do Regulamento das Custas Processuais. Não tendo o legislador estipulado o concreto momento a partir do qual se conta o prazo de prescrição do crédito de custas, este, nos termos gerais, começa a correr “quando o direito de crédito puder ser exercido” (art.º 306º, n.º 1, do Código Civil). Pese embora não se desconheça entendimento distinto (cfr. designadamente Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 07.06.2017, Relator: Luís Teixeira, in http://www.dgsi.pt/jtrc), consideramos que da citada disposição legal não decorre que o prazo de prescrição do crédito de custas só corre depois de estas serem contadas e decorrido o prazo para o seu pagamento voluntário, ou desde que o devedor, notificado da conta que tenha sido efetuada das custas, as não pague voluntariamente. Com efeito, a exequibilidade do direito de crédito por custas judiciais não deve ser confundida com a possibilidade de este ser exercido. O “exercício” do direito até pode ser iniciado com a contabilização/liquidação do crédito ao mesmo inerente pelo respetivo titular, mas a sua possibilidade nasce com o trânsito em julgado da decisão que condena o devedor no seu pagamento. Ou seja, tal como é salientado pelo Acórdão do STJ de 17.10.2017 (Relator: Alexandre Reis, in http://www.dgsi.pt/jstj) “(…) apenas a exequibilidade do direito depende do seu completo ‘exercício’ e este tem os contornos oferecidos pelo art.º 306º, n.º 4 do CC, que prescreve: ‘Se a dívida for ilíquida, a prescrição começa a correr desde que ao credor seja lícito promover a liquidação; promovida a liquidação, a prescrição do resultado líquido começa a correr desde que seja feito o seu apuramento por acordo ou sentença passada em julgado’. (…). Temos, assim, que são instituídos dois prazos autónomos de prescrição: um começa a correr ‘quando o direito de crédito puder ser exercido’, ou seja, logo que, com o trânsito em julgado da decisão condenatória, ao credor Estado ‘seja lícito promover a liquidação’; outro, independente daquele, logo que seja feito o apuramento do resultado líquido, sem reclamação do devedor ou por decisão sobre tal reclamação, passada em julgado. Neste caso, a partir do trânsito em julgado da decisão condenatória, apenas do credor Estado ficou a depender o exercício do direito, com a contagem das custas no prazo de 10 dias – ainda que meramente indicativo ou ordenador – e com a criação das demais condições para a cobrança de tal crédito. Donde, desde então estava na inteira disponibilidade do credor a afetação e a organização dos meios aptos ao exercício do direito. (…)”. Como é sabido, a prescrição extintiva dos direitos funda-se no decurso do tempo e na duradoura inércia do credor, na negligência do titular do direito em exercitá-lo durante determinado período de tempo indicado na lei. Essa extinção por negligência do credor em não exercer o seu direito durante um determinado período de tempo – em que seria legítimo esperar que ele o fizesse, nisso estando interessado – justifica-se por razões de certeza e de segurança nas relações jurídicas, que impõem que a inércia prolongada daquele envolva consequências desfavoráveis para o seu exercício tardio, atendendo, nomeadamente, à expectativa do devedor de se considerar liberto do cumprimento. Com o instituto da prescrição, o legislador cuidou dos valores da estabilidade das relações jurídicas, da segurança e da certeza imanentes a qualquer ordem jurídica. Ora, segundo pensamos, na esteira do defendido pelo citado aresto, defender que o prazo prescricional apenas se iniciaria com o decurso do prazo para o pagamento voluntário da conta de custas liquidada “(…) desrespeitaria as regras impostas pelo art. 9º do CC, porque, por um lado, não colheria na respectiva letra uma adequada correspondência verbal e, por outro lado, contornaria os aspectos de ordem sistemática e racional envolvidos, afrontando o pensamento legislativo.” Dessa interpretação adviria que o decurso do prazo de prescrição só se iniciaria quando o credor se dispusesse, sem quaisquer limitações temporais, a liquidar o seu crédito, afinal, a exercer o seu direito, o que, em nosso entender, contrariaria a ratio do instituto da prescrição, bem como o regime legal constante do citado n.º 4 do art.º 306º do Código Civil. Tal interpretação igualmente colidiria com os princípios da segurança e da certeza jurídicas e da proteção da confiança dos cidadãos, bem como com o da igualdade de todos os credores perante a lei, plasmados nos art.ºs 2º e 13º da Constituição da República Portuguesa. Em face do exposto, tendo o Acórdão Condenatório proferido nos autos transitado em julgado em relação à ora Requerente em 26.11.2015, forçoso é concluir que lhe assiste razão, ou seja que o crédito de custas do Estado se mostra prescrito, o que se declara, porquanto já se mostra decorrido o prazo prescricional de 5 anos previsto no art.º 37º, n.º 1, do Regulamento das Custas Processuais, contado desde tal data. Notifique.» O requerimento sobre o qual se debruçara o despacho foi o seguinte (transcrição): «1. O trânsito em julgado da decisão final proferida nos presentes autos ocorreu para a aqui reclamante em 26 de novembro de 2015, conforme certidão de trânsito em julgado que consta dos autos. 2. Dispõe o artigo 29.º, n.º 1 do RCP que a conta de custas deve ser elaborada no prazo de 10 dias após o transito em julgado da decisão final, como tal ficou a partir de 26-11-2015 na disponibilidade do Estado poder exercer o seu direito de crédito. 3. Como não o fez atempadamente entende a reclamante que o Estado não poderá proceder à cobrança de um crédito prescrito. 4. Pois conforme resulta do artigo 37.º, n.º 1 do RCP e foi acolhido no Douto Despacho acima mencionado, o crédito por custas prescreve no prazo de 5 anos. 5. Atento o supra exposto, dúvidas não restam de que no momento da elaboração e notificação da conta de custas, o crédito do Estado se encontra prescrito, o que desde já se invoca, uma vez que decorreu o prazo de cinco anos desde o trânsito em julgado do Acórdão. 6. Termos em que deverá ser deferida a reclamação e declarado prescrito o crédito do Estado.» Do despacho proferido interpôs o Ministério Público o presente recurso, formulando as seguintes conclusões (transcrição): « 1- O Ministério Público não se conforma com o decidido em douto despacho proferido no dia 17 de novembro de 2022, que declara prescrito o crédito de custas em que é devedora a arguida AA…., nos termos do artigo 37º, n.º 1, do Regulamento das Custas Processuais, por entender que não se verifica prescrição, na medida em que o respetivo prazo (prescricional) ainda não se iniciou no caso em concreto. 2-Não se discute que o prazo de prescrição do crédito de custas é de cinco anos, uma vez que é o que prevê o artigo 37.º, n.º 1, do Regulamento de Custas Processuais, o ponto de discórdia consiste no momento em que se inicia o decurso daquele prazo, pois que ao invés do que resulta de douto despacho que se recorre, considera-se que o início do prazo de prescrição do crédito de custas apenas se inicia com o momento em que termina o prazo de pagamento voluntário das custas contadas, nos termos do disposto no artigo 306.º, n.º1, do Código Civil, sendo este o entendimento perfilhado por Salvador da Costa em Regulamento das Custas Processuais, Almedina, Coimbra, 2009, 398. 3-No mesmo sentido se entendeu em douto acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26.02.2013 no processo n.º 2288/04.9TBFAR-A.E1, in www.dgsi.pt, que “o prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido; se, porém, o beneficiário da prescrição só estiver obrigado a cumprir decorrido certo tempo sobre a interpelação, só findo esse tempo se inicia o prazo da prescrição”. 4-Também em douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06.07.2017 no processo n.º 1825/03.0PBLRA.C1 se decidiu: “As custas só são devidas a partir da sua liquidação, com a elaboração da respetiva conta e notificação dessa “liquidação” ao devedor. O prazo de prescrição [da dívida de custas] inicia-se com o termo do prazo de pagamento voluntário das custas que na sequência da liquidação, tenham sido notificadas ao devedor.” 5-O prazo previsto no artigo 29.º do Regulamento de Custas Processuais é o prazo para a elaboração da conta, o que não se pode confundir com o momento em que o crédito das custas pode ser exercido, que só se inicia após a sua liquidação e notificação ao devedor, ao abrigo do disposto no artigo 306.º, n.º1, do Código Civil. 6-O douto despacho proferido nos autos em 17 de novembro de 2022 ao decidir declarar prescrito o crédito de custas em que é devedora a arguida AA……. violou o disposto nos artigos 29.º, n.º 1 e 37.º , n.º1, do Regulamento de Custas Processuais e o artigo 306.º, n.º1, do Código Civil, devendo o mesmo ser revogado e substituído por decisão que determine indeferir a reclamação de conta constante de documento com a referência eletrónicas n.º 22019194 de 24 de novembro de 2022 e emitir nova guia de pagamento a ser notificada à ora arguida. Nestes termos devem Vossas Excelências conceder provimento ao recurso apresentado e, em consequência, revogar o douto despacho recorrido datada de 17 de novembro de 2022 e substituir o mesmo por decisão que determine indeferir a reclamação de conta constante de documento com a referência eletrónicas n.º 22019194 de 24 de novembro de 2022 e emitir nova guia de pagamento a ser notificada à ora arguida, fazendo assim, como sempre, a costumada JUSTIÇA.» * O recurso foi admitido como a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo. A Recorrida não apresentou resposta ao recurso. * Uma vez remetidos os autos a este Tribunal, a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta pugnou pela procedência do recurso, formulando o seguinte parecer (transcrição): «Recorre o MP junto da primeira instância, inconformado com despacho judicial que declara a prescrição do crédito do Estado, por custas devidas na sequência do trânsito em julgado de acórdão prolatado em 2014 e transitado em 2015. Em concreto, o acórdão que acaba por originar este incidente de recurso transitou em 26 de Novembro de 2015 e a conta respectiva foi elaborada decorridos (quase) 7 anos, mais precisamente em 23 de Agosto de 2022, ocasião em que foi a devedora de custas, AA…, notificada para proceder ao seu pagamento. Em consequência, a arguida elaborou requerimento ao M.º juiz a quo para que reconhecesse a prescrição daquele crédito, o que foi aceite por despacho de 17 de Novembro de 2022, e é agora causa do recurso sub judice. A certidão que nos é presente não revela que ao recurso do MP tenho sido oferecida resposta. O MP junto do tribunal a quo, confrontando com o despacho judicial que reconhece a prescrição do crédito de custas do Estado, dele recorre, pedindo a sua revogação e substituição por outro que negue a pretendida prescrição. O entendimento sufragado pelo M.º juiz a quo situa o início da contagem desse prazo a partir do momento do trânsito em julgado da decisão condenatória e daí a inevitável conclusão sobre a prescrição do crédito do Estado. No seu recurso, o digno recorrente sustenta-se em abundante jurisprudência, que aponta para que o prazo de prescrição de créditos do Estado apenas comece a correr uma vez notificado o devedor para solver a sua dívida, isto é, com o termo do prazo de pagamento voluntário das mesmas – o que exige a sua liquidação prévia. Os preceitos chamados a regular a questão, são os art.ºs 29.º e 37.º do Regulamento das Custas Processuais (RCP), além do art.º 306.º do Código Civil (CC). Em redor destas normas, no essencial, se esgrimem os argumentos contraditórios que acabam em originar posições jurisprudenciais divergentes. Na verdade, a tese que defende a prescrição dos créditos busca refúgio, igualmente, em várias decisões de tribunais superiores, não estando assim o despacho recorrido desamparado de todo. Desde a entrada em vigor do Código das Custas Judiciais, em 1962, até ao actual RCP, o legislador manteve incólume o regime de prescrição dos créditos por custas, agora com um normativo mais elaborado (art.º 37.º n.º 1, RCP): “o crédito por custas e o direito à devolução de quantias depositadas à ordem de quaisquer processos prescreve no prazo de 5 anos, a contar da data em que o seu titular foi notificado do direito a requerer a respectiva devolução, salvo se houver disposição em contrário em lei especial.” As teses que defendem que a prescrição só se inicia no termo do prazo para pagamento voluntário, isto é, após liquidação das custas, encontram respaldo na asserção de insigne mestre, citado pelo Ac. TRE tirado no Proc. 84/98.0GTSTB.E1: «O Prof. Galvão Telles fala a este propósito de “imprescritibilidade”, e escreve que “só quando o prazo expira e começa a exigibilidade se inicia a contagem da prescrição” e que “uma obrigação cujo prazo de cumprimento ainda não findou não pode prescrever. Apenas no termo desse prazo principia a correr o tempo prescricional” (Direito das Obrigações, Coimbra Editora, 4ª edição, 1982, págs. 180 e 181)». Aduz-se ainda, em defesa desta tese, que a prescrição extintiva surge como punição da inércia do credor, a qual só se surpreende a partir do momento em que ele pode executar, mas não o faz, por inércia ou desinteresse. Parece assim impor-se ao aplicador do direito um óbice incontornável, qual seja o de que só quando o credor puder executar o seu direito, isto é, findo o prazo de pagamento voluntário das custas, se inicia o prazo da prescrição. Não se trata, como amiúde se vê esgrimido, de conferir eficácia suspensiva da prescrição à inércia da Secretaria Judicial que não liquidou, como deveria, as custas em 10 dias, contados do trânsito da sentença - argumento que pune o credor de quem a liquidação não depende. Ao invés, trata-se de reconhecer que correm pari passu o direito a executar e o prazo prescricional de 5 anos estabelecido por lei. Pelo interesse que julgamos ver no acórdão supra citado da Relação de Évora, permita-se-nos ainda a seguinte transcrição: “Ora da mesma forma que o particular não pode requerer a devolução da quantia a que tenha direito senão a partir do acto que lhe dá a conhecer formalmente a existência desse direito também o Estado não pode promover a execução do seu crédito de custas senão quando estas estiverem contadas ou liquidadas e tiver decorrido o prazo para o seu pagamento voluntário, na sequência da notificação do devedor para esse efeito (e por seu turno este não podia cumprir antes de a obrigação estar liquidada e lhe ter sido formalmente comunicada). O princípio a que fazemos referência tem a sua consagração legal no art. 306º, n.º 1, do Código Civil, o qual tem, por epígrafe precisamente “início do curso da prescrição” e estabelece que “o prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido; se, porém, o beneficiário da prescrição só estiver obrigado a cumprir decorrido certo tempo sobre a interpelação, só findo esse tempo se inicia o prazo da prescrição.” Seria de recordar ainda que a Secretaria Judicial não depende funcionalmente do MP, tendo este corpo de magistratura que aguardar a liquidação feita em cada processo, para então poder reclamar o pagamento dos respectivos créditos. Propendemos assim para a tese defendida pelo digno recorrente, pugnando, com ele, pelo provimento do recurso e revogação do despacho judicial sindicado.» * Foi cumprido o preceituado pelo art. 417º/2 do Código de Processo Penal e nenhuma resposta foi junta ao douto parecer da Sra. Procuradora-Geral Adjunta. Proferido despacho liminar, foram colhidos os “vistos” e teve lugar a conferência. * 2 - FUNDAMENTAÇÃO 2.1 Questões a tratar A única problemática a tratar nesta instância de recurso é a de saber se se encontra ou não prescrito o crédito de custas invocado. Para tanto, face às circunstâncias do caso, a questão passará por decidir se o termo inicial de contagem do prazo de prescrição é definido pelo trânsito em julgado da decisão final, ou antes pelo final do prazo de pagamento voluntário das custas na sequência da elaboração da conta e da notificação para o efeito. 2.2 Factos a considerar 1) Por acórdão transitado em julgado em 26.11.2015, foi a Arguida AA…. (doravante, Recorrida) condenada nos autos: 1.1 Pela prática, como autora material, de um crime de peculato, na pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução por idêntico período, e de uma pena de multa de 20 dias, à taxa diária de € 8,00; 1.2 A pagar à Freguesia de Rio de Mouro, a título de indemnização civil, a quantia de € 4.145,28, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde 8.07.2013 até integral pagamento; 1.2 A pagar custas crime, solidariamente com os demais Arguidos, fixando-se a sua taxa de justiça em 3 unidades de conta; 1.3 A pagar custas cíveis, juntamente com os demais Demandados e o Demandante, na proporção dos respetivos decaimentos. 2) A conta cível foi elaborada em 23.08.2022, dela resultando um valor de custas a pagar pela Recorrida de € 204,00. 3) A conta crime foi elaborada em 07.10.2022, dela resultando um valor de custas a pagar pela Recorrida de € 306,00. 4) A Recorrida foi notificada dos valores a pagar nos termos de carta de notificação expedida a 7.10.2022. 2.3 Conhecendo do mérito do recurso Está ou não prescrito o crédito de custas em apreço? O Regulamento das Custas Processuais (RCP) contém uma única norma em matéria de prescrição, que estabelece o seguinte: «o crédito por custas e o direito à devolução de quantias depositadas à ordem de quaisquer processos prescreve no prazo de cinco anos, a contar da data em que o titular foi notificado do direito a requerer a respectiva devolução, salvo se houver disposição em contrário em lei especial» (art. 37º/1). Para o que aqui mais releva, o trecho a atender em particular é o que nos diz que «o crédito por custas (…) prescreve no prazo de cinco anos». Fixando o RCP o prazo de prescrição, mas já não o termo inicial da sua contagem, é incontornável recorrer para o efeito às regras gerais contidas neste domínio no Código Civil, que o mesmo é dizer, ao seu art. 306º, que tem justamente por epígrafe «início do curso da prescrição». E aqui há duas orientações possíveis que a jurisprudência tem apontado: Uma, que corresponde em suma à tese do aqui Recorrente, propugna que o prazo de prescrição das custas só começa a correr a partir do momento em que o direito puder ser exercido, no sentido em que tal se verifica só depois de feita a liquidação das custas e decorrido que esteja o prazo para o seu pagamento voluntário; a base jurídica primacial de sustentação desta corrente é o nº 1 do art. 306º do Código Civil (em abono desta posição vide por exemplo os Acs. da RE de 26.02.2013, da RE de 24.06.2010, da RC de 07.06.2017 e da RG de 11.02.2019, relatados por João Amaro, Maria da Graça dos Santos Silva, Luís Teixeira e Mário Silva, respetivamente, todos disponíveis in www.dgsi.pt; vide ainda Salvador da Costa, Regulamento das Custas Processuais - Anotado e Comentado, Almedina, 2009, pg. 398). Outra, sustenta que o prazo de cinco anos de prescrição do crédito de custas começa a correr com o trânsito em julgado da decisão final, isto é, desde o momento em que se tornou lícito ao Estado promover a liquidação das custas, sendo que a secretaria tem 10 dias para elaborar a conta depois do trânsito em julgado da sentença, nos termos do art. 29º/1 do RCP e a sua feitura tardia não constitui causa de suspensão do prazo de prescrição; em apoio desta posição é as mais das vezes convocado o regime previsto no art. 306º/4 do Código Civil (neste sentido, vide, o Ac. do STJ de 17.10.2017, da RL de 09.01.2023, da RE de 11.05.2017, da RE de 27.01.2022, relatados por Alexandre Reis, Nuno Teixeira, Maria da Graça Araújo e Tomé de Carvalho, respetivamente). Que posição adotar? A uma primeira aproximação, afigura-se-nos da maior importância ter em mente os fundamentos do instituto da prescrição. Podem eles ser expostos sob várias formulações possíveis, mas que não andarão longe disto: a prescrição assenta na negligência do titular do direito em exercitá-lo durante o período de tempo indicado na lei, negligência essa que faz presumir ter ele querido renunciar ao direito, ou pelo menos torna-o (ao titular) indigno de proteção jurídica (Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, Almedina, Coimbra, 1983, pgs. 445/446), e justifica que a ordem jurídica lhe retire a proteção, com isso ganhando-se em certeza e segurança jurídicas e atendendo-se ainda às próprias expetativas que o devedor vai formando quanto a considerar-se liberto do cumprimento da obrigação (cfr. Ac. do STJ de 17.10.2017, relatado por Alexandre Reis, in www.dgsi.pt). Dito isto, atentemos aos procedimentos que se encontram estabelecidos em matéria de contagem e pagamento de custas: (i) A conta de custas é elaborada pela secretaria do tribunal que funcionou em 1ª instância, no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado da decisão final (art. 29º/1 do RCP); (ii) elaborada a conta, são emitidas e remetidas às partes as guias, acompanhadas do respetivo documento único de cobrança (art. 27º da Portaria nº 419-A/2009, de 17/04); (iii) o prazo de pagamento voluntário das custas contadas é de 10 dias, sem prejuízo dos regimes de dilação previstos em função do local de residência do destinatário (art. 28º/1 da citada Portaria); havendo reclamação à conta, o prazo inicia-se com a notificação da nova conta ou da decisão definitiva que não atendeu à reclamação (art. 28º/3 da mesma Portaria). Ora, segundo defende o Recorrente, o prazo de prescrição apenas começa a contar-se no final do prazo de pagamento voluntário; significa isso, na prática, que se a conta for elaborada vinte, trinta, quarenta, cinquenta anos depois do trânsito em julgado da decisão, as custas continuarão a ser devidas, não sendo procedente a invocação de prescrição. Com o devido respeito, não podemos aderir a essa orientação. Em primeiro lugar e desde logo, porque essa posição contende abertamente com os fundamentos do instituto da prescrição que deixámos enunciados atrás, posto que aquilo que se vê em situações como a presente é uma inércia extraordinariamente longa na elaboração da conta, ato cuja execução em última análise depende apenas do Estado e da sua organização material, humana e funcional; aliás, a tese sustentada pelo Recorrente eleva até o crédito por custas, enquanto não efetuada a conta ou não notificado o devedor para o pagamento voluntário, ao patamar de um crédito em termos prático-jurídicos imprescritível, com isso ofendendo de forma encapotada a regra da prescritibilidade dos créditos estabelecida no art. 298º/1 do Código Civil. Em segundo lugar, o direito positivo acomoda sem particular esforço uma outra solução que é inteiramente congruente com aqueles fundamentos da prescrição. Detenhamo-nos então sobre ela com um pouco mais de pormenor, atentando ao art. 306º do Código Civil e aos seus segmentos relevantes na matéria que nos ocupa: (i) segundo o nº 1, «o prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido; se, porém, o beneficiário da prescrição só estiver obrigado a cumprir decorrido certo tempo sobre a interpelação, só findo esse tempo se inicia o prazo de prescrição»; (ii) segundo o nº 4, «se a dívida for ilíquida, a prescrição começa a correr desde que ao credor seja lícito promover a liquidação; promovida a liquidação, a prescrição do resultado líquido começa a correr desde que seja feito o seu apuramento por acordo ou sentença passada em julgado». Ora, a partir do momento em que o acórdão condenatório transitou em julgado, a Recorrida ficou devedora de custas e o Estado seu credor a esse título. O que não se sabia ainda com exatidão era o valor dessa dívida, pois esse apuramento só na conta é concretizado. Se é assim, como cremos, então não se vê por que não há de prefigurar-se aqui, à data do trânsito em julgado do acórdão condenatório, com toda a propriedade, uma obrigação ilíquida, ou seja, uma obrigação cuja existência é certa, mas cujo montante ainda não está fixado ou apurado, fixação ou apuramento estes dependentes de factos ou operações adicionais que ainda não ocorreram ou não foram realizadas (sobre este conceito vide a título de exemplo o Ac. da RC de 23.10.2012, relatado por Catarina Gonçalves, in www.dgsi.pt). Temos em suma por aplicável o regime consagrado no nº 4, e não no nº 1, do art. 306º do Código Civil. E então o que temos é que «a prescrição começa a correr desde que ao credor seja lícito promover a liquidação». Ora, ao credor Estado era lícito promover a liquidação da dívida a partir do trânsito em julgado do acórdão condenatório. A lei até define um prazo de 10 dias para o efeito, nos termos do art. 29º/1 do RCP. Decerto que este prazo é meramente ordenador e o credor Estado não fica impedido de promover a feitura da conta depois de esgotado ele; mas se a liquidação da dívida, por via da feitura da conta e dos seus procedimentos, não é realizada dentro do prazo de cinco anos a contar do trânsito em julgado da decisão final, torna-se legítimo ao devedor de custas invocar eficazmente a prescrição. E não objete o Recorrente com a ideia de que a feitura da conta é ato da competência de secretaria que não se encontra funcionalmente subordinada ao Ministério Público, de tal sorte que este nada poderia ter feito para que os procedimentos da conta fossem realizados. A este respeito, diremos que, podendo ser inteiramente genuínas as apontadas limitações funcionais do Ministério Público nesta matéria, não o é menos que não é de um crédito do Ministério Público de que aqui se trata; o crédito de custas é da titularidade do Estado, pelo que é sobre este que recaem as consequências da sua inércia, pela prescrição extintiva do seu crédito. E não se objete ainda com o cabimento do nº 1 do art. 306º do Código Civil ao caso, apelando para tanto à letra do art. 37º/1 do RCP e ao que neste se lê quanto ao direito à devolução de quantias depositadas à ordem de quaisquer processos [«O crédito por custas e o direito à devolução de quantias depositadas à ordem de quaisquer processos prescreve no prazo de cinco anos, a contar da data em que o titular foi notificado do direito a requerer a respectiva devolução (…)»]. Traduz-se este argumento, esgrimido pelo Recorrente, nesta ideia: da mesma forma que o particular não pode requerer a devolução da quantia a que tenha direito senão a partir do ato que lhe dá a conhecer formalmente a existência desse direito, também o Estado não pode promover a execução do seu crédito de custas senão quando estas estiverem contadas ou liquidadas e tiver decorrido o prazo para o seu pagamento voluntário, na sequência da notificação do devedor para esse efeito. Não acompanhamos este argumento, porque Estado e particular não estão em posições idênticas, dado que é sempre aquele primeiro quem tem, em última análise, o poder fáctico-jurídico-funcional de impulsionar a feitura da conta e de fazer avançar os autos para um ponto em que possa cobrar-se o que houver a cobrar e devolver-se o que houver a devolver. Em síntese, entendemos que não merece censura o despacho recorrido, com o que se negará provimento ao recurso. * 3 - Dispositivo Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando na íntegra o despacho recorrido. * Não são devidas custas [art. 4º/1 a) do Regulamento das Custas Processuais]. Notifique. * Lisboa, 12 de outubro de 2023 Jorge Rosas de Castro Simone Abrantes de Almeida Pereira Antero Luís |