Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
810/24.3T8LRS.L1-2
Relator: RUTE SOBRAL
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR COMUM
MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA
GESTÃO PROCESSUAL
FACTOS ESSENCIAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: (elaborado nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, CPC):
I – Resultando do requerimento inicial apresentado no âmbito de procedimento cautelar comum que a requerente atribui à requerida a prática de um facto ilícito, consubstanciado na demolição de edifícios confinantes com o seu, causador de danos graves ao nível da sua empena oeste, colocando em causa a sua estabilidade estrutural e gerando elevados níveis de infiltração e humidades, com impacto na saúde dos seus arrendatários e na conservação das mercadorias acondicionadas nas frações arrendadas, deverão considerar-se alegados os factos essenciais da tutela cautelar que requereu.
II - Independentemente da procedência final da pretensão formulada, não pode deixar de considerar-se que o pedido deduzido (reparação do edifício ao nível da empena oeste) decorre da causa de pedir invocada (facto ilícito gerador de responsabilidade civil), não se verificando uma manifesta improcedência da providência cautelar.
III - A imediata decisão quanto à improcedência da causa, nos termos do disposto nos artigos 226º, nº 4, alínea b) e 590º, nº 1, CPC, coartou à requerente a possibilidade de obter uma decisão de mérito, na qual fossem ponderados os factos essenciais nucleares que alegou em conjunto com outros (complementares ou instrumentais) que resultassem da instrução da causa ou até de um convite ao aperfeiçoamento do articulado;
IV – O indeferimento liminar de providência cautelar deve ser reservado para situações de manifesta improcedência do pedido.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa que compõem este coletivo:

I - RELATÓRIO
1.1– A requerente A…, identificada nos autos, instaurou, em 19-01-2024, o presente procedimento cautelar comum contra a requerida “(…) – Compra e Venda de Imóveis, Ldª”, também identificada nos autos, alegando ser proprietária de um prédio sito na Avenida …, nºs …, em Sacavém, Loures. Mais alegou que, adjacentes ao seu prédio, a oeste, existiam outros edifícios a cuja demolição a requerida procedeu, não rodeando tal operação das necessárias cautelas. Consequentemente, tal demolição originou danos graves e de difícil reparação no interior e exterior da empena oeste do prédio da autora, colocando mesmo em risco a sua estabilidade estrutural. Acresce que a demolição efetuada pela requerida coloca em perigo a saúde dos arrendatários das frações da requerente e gera a deterioração dos materiais ali armazenados (nas frações …).
Ora, existindo o fundado receio de que tais danos se venham a agravar, concluiu a requerente solicitando a condenação da requerida a executar as obras de reparação dos danos por ela causadas no seu edifício, discriminadas nas conclusões de relatório pericial que juntou aos autos e para o qual remeteu, designadamente:
5.1 Corrosão das armaduras e destacamento de betão.
Em todos os locais onde se nota o destacamento de recobrimento, devido à corrosão, deverão ser executados os seguintes trabalhos:
1.Remoção do recobrimento de armaduras em todos os locais que apresentem destacamento desse recobrimento, desagregação ou presença de óxido de ferro numa extensão de 2 cm;
2. Eliminação da oxidação das armaduras, por meio de jato de areia ou escova de aço, de forma a eliminar por completo os vestígios de corrosão;
3. Introdução de varões adicionais para reposição das secções diminuídas pela corrosão (perdas superiores a 20% de secção), com empalmes mínimos de 1 m, quando necessário;
4. O tratamento das armaduras com produto à base de cimento, monocomponente com resina sintética e sílica de fumo, tipo Sika MonoTop 910;
5. Aplicação de argamassa tixotrópica monocomponente à base de cimento e reforçada com fibras de poliamida, sobre as superfícies de betão para garantia de aderência das argamassas, tipo Sika MonoTop 612;
6. Aplicação de 2 a 3 demãos de verniz para betão, em todas a superfícies reparadas e zonas onde se identifique desgaste do revestimento existente, tipo Dyrup Ref. 5050.
5.2 Deterioração de rebocos exteriores.
Para as paredes exteriores deverá ser seguido o seguinte esquema de reparação, de modo a reparar zonas da empena:
7. Limpeza da parede para retirar areias mal ligadas à superfície do reboco;
8. Remoção/picagem de argamassas degradadas;
9. Abertura de eventuais fendas numa largura mínima de 1,5 cm;
10. Lavagem com solução de hipoclorito de sódio (lixívia) a 5% e posterior lavagem a jato de água de modo a remover o hipoclorito e todos os resíduos desagregados de todas as paredes exteriores;
11. Após secagem, reparação de fendas e rebocos com argamassa Alltek Exterior, da CIN, ref. 15-970, ou similar, armada com fibra de vidro na confluência de materiais diferentes;
12. Aplicação de 2 demãos de Antifungos Concentrado, da CIN, ref. 89-260 em toda a superfície das paredes exteriores;
13. Aplicação de primário selante e aglutinante Cinolite Incolor, da CIN, ref.54-852, ou produto similar;
14. Pintura a tinta impermeabilizante Cinoxano, da CIN, ref. 10- 110 (mínimo 2 demãos), ou produto similar.
5.3 Degradação de revestimentos em paredes interiores.
Para as paredes interiores deverá ser seguido o seguinte esquema de reparação, onde se verifique degradação de revestimento:
1. Remoção/picagem de argamassas degradadas;
2. Abertura de fendas numa largura mínima de 1,5 cmm (apenas para fissuras de largura superiora 1 mm);
3. Lavagem com solução de hipoclorito de sódio (lixívia) a 5% e posterior lavagem com água de modo a remover o hipoclorito e todos os resíduos desagregados de todas as paredes exteriores;
4. Reparação de fendas e rebocos com argamassa adequada;
5. Aplicação de 2 demãos de Antifungos Concentrado, da CIN, ref. 89-260 em toda a superfície das paredes exteriores;
6. Aplicação de primário selante e aglutinante Cinolite Incolor, da CIN, ref.54-852, ou produto similar;
7. Pintura com tinta idêntica ao existente. Na execução da pintura de acabamento deverão ser pintados panos completos de modo a não se notarem diferenças tonais”.
Por fim, solicitou a requerente: “(…) nos termos do artigo 369.º do CPC, que a decisão cautelar a proferir, consolide como definitiva a composição do litígio”.
A requerente indicou prova testemunhal e juntou cinco documentos, designadamente certidão permanente, caderneta predial, fotografia de aviso em obra colocado pela requerida, relatório pericial e email trocado com representante da requerida).
1.2 – Em 22-01-2024 foi liminarmente indeferida a presente providência cautelar, ali se tendo exarado:
Posto o que, não decorrendo da alegação o preenchimento dos pressupostos dos quais depende o decretamento da providência cautelar requerida, revela-se o presente procedimento, ab initio, como manifestamente inviável, impondo-se o seu indeferimento liminar.
Nesta conformidade, pelo exposto e de harmonia com as normas legais citadas, além do prevenido pelos arts. 226º, nº4, alínea b), e 590º, nº1, do Cód. de Proc. Civil, indefere-se liminarmente o presente procedimento cautelar”.
2 - Não se conformando com a decisão proferida, a requerente da mesma interpôs recurso, pugnando pela sua revogação e substituição por outra que ordene o prosseguimento dos autos, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:
1.O presente recurso tem por objeto a douta sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo Central Cível – …, no âmbito do Proc.º nº ….
2. A recorrente é proprietária do prédio urbano sito na Av…. nºs …, Sacavém, Loures.
3. A Requerida procedeu, em maio de 2023, à demolição dos edifícios adjacentes (confinantes, contíguos) a oeste do da requerente.
4. Tal demolição, porque efetuada de modo incompetente, negligente e imprudente, provocou, diretamente, danos graves e de difícil reparação na estrutura da empena oeste do identificado prédio da recorrente.
5. As expressões “mínima cautela” e “devida competência” não revelam, pois, qualquer ambiguidade da recorrente na caracterização da conduta da Requerida.
6. No Relatório Pericial junto aos presentes autos como Doc. 4, descrevem-se esses danos, bem como os elevados valores do teor de humidade existente no interior das lojas situadas na zona da fachada oeste que ofende, necessariamente, a saúde dos inquilinos e dos respetivos colaboradores.
7. Apesar de repetidamente instada a realizar as obras de eliminação dos referidos danos, a Requerida tudo ignorou e nada fez nesse sentido.
8. A recorrente não possui meios que lhe permitem suportar o custo dessas obras.
9. Enquadrando-se esta demolição negligente, incompetente, desqualificada de capacidade técnica e prática numa violação de direitos da recorrente, incluindo os de personalidade, é a Requerida responsável, exclusiva, pela reparação de todos os danos em causa.
10. Urge, por isso, ser condenada a eliminá-los, realizando as obras descritas no Relatório Pericial, até porque é sério o grande e fundado receio de os mesmos ainda virem a acentuar-se por força das condições climatéricas e a colocar em risco, irreversível, a estabilidade estrutural da mesma empena do edifício da recorrente, para além de evitar a progressiva degradação da qualidade do arrendado e da deterioração dos materiais armazenados nas lojas ….
11. A recorrente não teve conhecimento prévio da demolição, nada podendo ter feito para evitar os danos causados no seu prédio.
12. Os documentos e o vídeo juntos aos autos, constituem igualmente prova do estado do mesmo.
13. Perante o silêncio da Requerida aos seus apelos e sustentada em factos traduzidos no Relatório Pericial e nos outros documentos juntos aos autos, que a prova testemunhal confirmará e atualizará nomeadamente os factos que as fotos e o vídeo juntos aos autos revelam, sobrou à recorrente requerer a presente providência cautelar não especificada.
14. Os factos invocados pela recorrente, como causa do fundado receio da grave lesão do seu direito demonstram ser séria a probabilidade da existência deste para que seja decretada a presente providência, são concretos, específicos, atuais e bastantes visíveis.
15. A providência consubstancia-se, como afirmado no requerimento inicial, na realização urgente, pela Requerida, dos trabalhos de construção civil necessários e adequados à neutralização dos danos verificados na estrutura da identificada empena do prédio da recorrente, mormente os descritos no Relatório Pericial.
16. Existe adequação da providência à situação da lesão, progressivamente agravada desde a apresentação em juízo desta providência.
17. Não há providência específica que acautele o direito da recorrente.
18. O prejuízo resultante, para a Requerida, do deferimento da providência não excede o dano que com ela a recorrente pretende evitar.
19. Encontram-se, pois, reunidos os requisitos do procedimento cautelar comum (art.ºs 362º a 364º, todos do C.P. Civil)
20. A matéria alegada permitirá, a final, após a produção da prova oferecida pela recorrente, aferir, na posse de todos os dados, se a providência deve ou não ser decretada, devendo, por isso, prosseguir os autos.
21. No humilde entendimento da recorrente, o Tribunal a quo, considerando os factos expostos, OU, deveria ter decidido apreciar e julgar a providência cautelar, conforme o entendimento de, entre muitos outros, do Ac. do T. R. de Lisboa, de 01.10.2009:
I.O despacho liminar de indeferimento de providência cautelar terá de ser reservado para situações de manifesta e indiscutível improcedência do pedido.
II. Nos casos de fronteira, onde a dúvida se coloca, deverá dar-se seguimento ao procedimento, ainda que se admite à partida a eventualidade do seu insucesso no âmbito da sua regular tramitação.”, do Ac. T.R. do Porto, de 22.02.21:
III - Os despachos liminares de indeferimento das providências cautelares terão de ser reservados para situações de manifesta e indiscutível improcedência do pedido. Mesmo que o tribunal a quo, atenta a factualidade alegada, tenha ficado na dúvida sobre a possibilidade de procedência do presente procedimento cautelar, ou até crendo pouco provável esse desfecho, ainda assim deveria ter determinado o seu prosseguimento. Só lhe era admissível decidir pelo indeferimento liminar em caso de manifesta improcedência.
IV - Por outro lado, se porventura entendeu que a alegação é insuficiente, que é coisa diferente de faltar em absoluto a indicação dos factos necessários para sustentar a pretensão submetida a juízo, isto é, da falta de causa de pedir, então deveria ter providenciado no sentido dessa falta ser suprida, formulando convite ao recorrente., do
Ac. T. R. de Guimarães, de 28.01.21:
I - Com a providência cautelar não especificada visa-se evitar a lesão grave e dificilmente reparável decorrente da demora na tutela da situação jurídica, assim se contornando periculum in mora.
II- Atenta a urgência da situação carecida de tutela, o tribunal pode antecipar a realização do direito que previsivelmente será reconhecido na ação principal.
III- As medidas deste tipo excedem a natureza simplesmente cautelar que caracteriza a generalidades das providências, garantindo-se, desde logo, e independentemente do resultado a alcançar na ação principal, um determinado efeito que acaba sempre por ter caráter definitivo.
IV- É o que sucede quando a não realização de obras por parte do senhorio, coloca em risco a integridade física do inquilino e até os seus direitos de personalidade., do
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25.01.11:
“Deve reservar-se o indeferimento liminar por manifesta improcedência do pedido para quando a improcedência da pretensão do autor for tão evidente, indiscutível e irrefutável, que se torne inútil qualquer instrução e discussão posterior, isto é, quando o seguimento do processo não tenha razão alguma de ser, seja desperdício manifesto de atividade judicial, e, nessa medida, revoga-se a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos.”. do
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 29.06.10:
“Se o indeferimento liminar tem como fundamento a inexistência dos requisitos para o decretamento da providência deduzida, só deverá ocorrer quando se mostre, por forma evidente e inquestionável, ser desnecessária qualquer instrução ou discussão posterior.” e, do
Ac. Tribunal da Relação de Coimbra, de15-05-2012:
“A “manifesta improcedência” do pedido, que legitima o indeferimento liminar de procedimento cautelar comum, pressupõe uma pronúncia valorativa antecipatória sobre o mérito, quanto a saber se a pretensão formulada contem uma razoável probabilidade de êxito, e apenas se justifica quando seja inequívoco que o procedimento nunca pode proceder.”,
22. OU, então, se o Tribunal a quo tivesse porventura entendido que a alegação da recorrente é insuficiente, deveria ter providenciado no sentido dessa falta ser suprida, formulando-lhe, para tanto, o respetivo convite. (Cfr. Ac. T. R. Porto, de 22.02.21).
23. Legitimada a utilização da presente providência enquanto forma de composição provisória de conflitos de interesses, aqui efetivamente traduzida, como alegado, nas ditas obras a realizar, com urgência, pela Requerida, por forma a eliminar os danos graves e de difícil reparação e os consequentes riscos por ela causados na estrutura da empena oeste do prédio contíguo da recorrente aquando da demolição, da sua inteira responsabilidade, ocorrida em maio de2023,
24. É entendimento na Jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, que têm decidido, nemine contradicente, como, por todos, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 08.10.2009, em cujo sumário se lê: “É de revogar a decisão que indeferiu liminarmente a providência requerida, até porque tratando-se de um despacho «radical» que à partida coarcta toda e qualquer expectativa de o autor ver a sua pretensão apreciada e julgada, o mesmo só se justifica nos casos em que a inviabilidade da pretensão do autor seja tão evidente que torne inútil qualquer instrução posterior”.
25. Ao decidir-se pelo indeferimento, a douta sentença recorrida violou, nomeadamente, o disposto nos artigos 362º e 368º, ambos do C.P. Civil, pelo que, procedendo esta Apelação, deve ser revogada e substituída por douto Acórdão que ordene o prosseguimento dos autos”
3. Foi admitido o recurso como apelação, com subida imediata e nos próprios autos da providência cautelar, e ordenada a citação da requerida, nos termos do disposto no artigo 641º, nº 7, CPC.
4. A requerida apresentou contra-alegações, nas quais pugnou pelo indeferimento do recurso, dado a recorrente, na sua perspetiva, não ter concretizado quais os seus fundamentos, e pela manutenção do indeferimento liminar da presente providência.
5. Remetidos os autos a este tribunal em 10-04-2024, inscrito o recurso em tabela, foram colhidos os vistos legais, cumprindo apreciar e decidir.
II QUESTÃO PRÉVIA – Rejeição do recurso
Nas contra-alegações considerou a recorrida que: “(…) a recorrente não concretizou a matéria concreta da qual recorre, não apresenta qualquer fundamento que contrarie os fundamentos da Sentença de que recorre, nem tão pouco, sendo este um recurso de matéria de direito, concretiza as normas que concretamente entende terem sido violadas e como deveria o Tribunal “a quo” ter aplicado o direito em concreto” – conclusão nº 54. Concluiu a recorrida que: “Atenta a falta de concretização do objeto e dos fundamentos do recurso, deve o mesmo, nos termos do art.º 638, n.º 6 do CPC, ser indeferido liminarmente” (conclusão enunciada sob o nº 57).
Compulsada a decisão recorrida, verifica-se que aí se considerou, no essencial, que o requerimento inicial não contém factos que fundamentem a providência requerida, não indiciando nem a aparência do direito, nem qualquer periculum in mora que a justifiquem.
Nas alegações, reiterou a recorrente a factualidade por si alegada quanto à execução de obras de demolição pela requerida de prédios que confinam com o seu a oeste, gerando danos na empena oeste do seu prédio, colocando em risco a sua estabilidade estrutural. Mais considerou que tais danos se mostram descritos no relatório pericial que juntou aos autos. Por fim, concluiu que estão reunidos todos os pressupostos que determinariam o decretamento da providência, ou, em caso de se considerar ser a sua alegação insuficiente, sempre se justificaria um convite a concretizá-la.
Assim sendo, evidenciam as alegações da recorrente que defende a revogação da decisão de indeferimento liminar proferida, que expressamente considerou violar os artigos 362º a 369º CPC, e a sua substituição por decisão que ordene o prosseguimento dos autos (ou com a produção da prova por si indicada ou com um convite ao aperfeiçoamento do seu articulado inicial).
Consequentemente, não pode concluir-se que a recorrente não tenha enunciado os fundamentos do recurso, a cuja apreciação se procede, de seguida, por a tal nada obstar.
III – QUESTÕES A DECIDIR
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso pelo tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido, nos termos do disposto nos artigos 608, nº 2, parte final, ex vi artigo 663º, nº 2, 635º, nº 4, 636º e 639º, nº 1, CPC.
Consequentemente, nos presentes autos, constitui questão a decidir:
- Análise dos pressupostos de indeferimento liminar da presente providência por insuficiência de factos que a fundamentem; 
IV – FUNDAMENTAÇÃO
A decisão recorrida indeferiu liminarmente a presente providência cautelar, apresentando o seguinte teor:
“A…, residente na Avenida … , …, em Lisboa, requer contra (…) - Compra e Venda de Imóveis, Lda., com sede na Rua (…), procedimento cautelar comum, pedindo seja esta condenada «a realizar, por sua conta exclusiva, as obras de reparação dos danos por ela causados no prédio urbano propriedade da requerente, sito na Av.…, Sacavém, Loures», propostas em relatório pericial, que junta, «por ordem de prioridade de intervenção», que transcreve, «e ainda em custas, incluindo as de parte, revelando-se justa e adequada a fixação de um prazo de oito dias para dar-lhes início». Trabalhos esses que vão desde a «remoção do recobrimento de armaduras em todos os locais que apresentem destacamento desse recobrimento, desagregação ou presença de óxido de ferro numa extensão de 2 cm», a eliminação «da oxidação das armaduras, por meio de jacto de areia ou escova de aço, de forma a eliminar por completo os vestígios de corrosão», tratamento «das armaduras com produto à base de cimento», aplicação de verniz para betão, limpeza de parede para retirar areias, lavagem, aplicação de antifungos, etc.
Aduz:
- ser proprietária do prédio urbano sito na Av. James Gilman nºs (…), Sacavém, Loures;
- que a requerida, no exercício da sua atividade de compra, permuta, venda e arrendamento de imóveis, revenda dos adquiridos para esse fim, gestão de imóveis, promoção e gestão imobiliária, estudos e elaboração de projetos, serviços e indústria de construção civil, procedeu, em maio de 2023, à demolição dos edifícios adjacentes a oeste do seu;
- essas obras foram efetuadas sem a mínima cautela e competência devidas, daí resultando, direta e necessariamente, danos graves e de difícil reparação, nomeadamente no interior e no exterior da empena oeste do identificado prédio, necessitando, todos, de reparação urgente, como pode ler-se, em resumo, na página 20, último §, de relatório pericial, que junta;
- não obstante ter sido repetidamente, alertada, quer pessoalmente e por telefone pelo representante e filho da requerente, quer pelo mandatário desta, da necessidade urgente para realizar as obras de reparação dos danos que causou no prédio, a requerida tudo ignorou;
- urge, por isso, impedir a continuação desses atos lesivos no prédio da requerente por via da adoção de medidas que evitem o agravamento dos prejuízos deles resultantes, tais como o revela a dimensão das obras propostas no dito relatório pericial;
- porquanto existe o fundado receio de os mesmos virem, necessariamente, a acentuar-se, cada vez mais, com as chuvas, seja no que diz respeito ao risco para a estabilidade estrutural da empena oeste do edifício, seja quanto à degradação da qualidade do arrendado e à deterioração dos materiais armazenados nas lojas (…), seja, ainda, quanto ao perigo evidente para a saúde, em especial respiratória, muscular e óssea, dos arrendatários e dos trabalhadores das lojas, em virtude do elevado grau de humidade, causado pelas infiltrações;
- riscos e perigos esses que não seria razoável exigir que fossem eliminados pela requerente, até porque não possui meios que lhe permitam adoptar e custear as medidas necessárias a tanto.
Estabelece o art. 362º, nº1, Cód. de Proc. Civil, que «Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado».
A doutrina e a jurisprudência têm, de forma unânime, apontado como requisitos para a procedência deste procedimento:
a)Probabilidade séria da existência do direito invocado (para o decretamento da providência, basta um juízo de verosimilhança não se exigindo um juízo de certeza);
B)Fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito (Periculum in mora) – o receio tem de assentar em factos objetivos e convincentes que permitam afirmar que a ameaça é séria e atual e que se impõe a adoção de medidas tendentes a evitar o prejuízo iminente; O receio tem de se reportar a lesões graves que sejam simultaneamente de difícil reparação, pois só nesses casos se justificará o decretamento de uma medida provisória.
c) Adequação da providência à situação de lesão iminente;
d) Não existência de providência específica que acautele aquele direito;
e) O prejuízo resultante da providência para o requerido não exceder consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar (sendo este um requisito negativo por constituir um facto impeditivo nos termos do artigo 362º, n.º 2, do Código de Processo Civil) – vd. António Santos Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, III volume, 3ª edição, Procedimento Cautelar Comum, Coimbra, p. 98; e na jurisprudência, inter alia, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28/09/1999, in CJSTJ, tomo III, p. 42.
Sendo que «Só lesões graves e dificilmente reparáveis têm a virtualidade de permitir ao tribunal, mediante iniciativa do interessado, a tomada de uma decisão que o coloque a coberto de uma previsível lesão», não sendo qualquer lesão que justifica a introdução na esfera jurídica do requerido, tendo aqui o interesse em agir «uma especial relevância, de modo a evitar abusos na utilização desta forma de composição provisória dos conflitos de interesses» (Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, III Volume, Almedina, págs. 83/84).
Por outro lado, nos termos da lei o receio deve ser fundado, ou seja «apoiado e em factos que permitam afirmar, com objetividade e distanciamento, a seriedade e atualidade da ameaça e a necessidade de serem adotadas medidas tendentes a evitar o prejuízo», não bastando, pois «simples dúvidas, conjeturas ou receios meramente subjetivos ou precipitados, assentes numa apreciação ligeira da realidade» (Ob. cit., pág. 87).
Olhando ao requerimento em apreço, temos que facto algum, concreto e específico, é alegado, de modo a permitir aferir do preenchimento dos enunciados requisitos, sendo certo que providência alguma, em bom rigor, se requer.
Na verdade, desconsiderando, o carácter instrumental do procedimento cautelar, apresenta-se a requerente a pretender, mais do que uma tutela antecipatória de um direito (ainda não constituído), a tutela do próprio direito, trazendo para o âmbito de um procedimento cautelar – associado à prossecução de medidas judiciais e urgentes com a finalidade de evitar o perigo de que a morosidade própria de uma normal ação judicial acabe por inviabilizar, na prática, o direito de que o requerente se arroga -, esgotando neste processo especial e urgente o objeto da ação a intentar, visando a condenação da requerida na realização de obras que afirma necessárias à reparação de danos (que se depreendem) alegadamente decorrentes de uma ação da requerida.
A factualidade que se discerne do requerimento resume-se à titularidade do direito de propriedade da requerente quanto ao prédio urbano sito na Av. …, Sacavém, Loures, ao âmbito da atividade exercida pela requerida (compra, permuta, venda e arrendamento de imóveis, revenda dos adquiridos para esse fim, gestão de imóveis, promoção e gestão imobiliária, estudos e elaboração de projetos, serviços e indústria de construção civil) e a que esta, no desenvolvimento dessa atividade, procedeu, em maio de 2023, à demolição dos edifícios adjacentes a oeste do prédio da requerida.
Tudo o mais se consubstancia em generalidades e enunciações conclusivas:
- essas obras foram efetuadas sem a mínima cautela e competência devidas, daí resultando, direta e necessariamente, danos graves e de difícil reparação, nomeadamente no interior e no exterior da empena oeste do identificado prédio, necessitando, todos, de reparação urgente; urge impedir a continuação desses atos lesivos no prédio da requerente por via da adoção de medidas que evitem o agravamento dos prejuízos; existe o fundado receio de os mesmos virem, necessariamente, a acentuar-se, cada vez mais, com as chuvas seja no que diz respeito ao risco para a estabilidade estrutural da empena oeste do edifício, seja quanto à degradação da qualidade do arrendado e à deterioração dos materiais armazenados nas lojas 8A e 8C, seja, ainda, quanto ao perigo evidente para a saúde, em especial respiratória, muscular e óssea, dos arrendatários e dos trabalhadores das lojas, em virtude do elevado grau de humidade, causado pelas infiltrações; riscos e perigos esses que não seria razoável exigir que fossem eliminados pela requerente, até porque não possui meios que lhe permitam adotar e custear as medidas necessárias a tanto.
E assim, também, o relatório junto e para o qual remete a requerente, na referida página 20, se lendo: o edifício sito na Av. …, Sacavém, apresenta danos graves e de reparação difícil na parede de empena esquerda com a substituição de varões. Estes danos têm expressão tanto no interior como exterior do edifício (…).
Competia à requerente trazer aos autos os factos ou acontecimentos, visíveis ou aparentes, externos ou psicológicos, justificativos da providência, não se tomando sequer a aparência do direito, enquanto fundamento da requerida providência, claramente indiciada. Afirmando-se o nexo de causalidade – sem mais – entre as obras de demolição levadas a cabo pela requerida, em Maio de 2023 – que também não se precisam ou especificam – e danos graves e de difícil reparação, nomeadamente no interior e no exterior da empena oeste do prédio da requerente, a carecer todos, de reparação urgente, nada é alegado de modo a poder aferir-se desse afirmado nexo, como as condutas concretas subjacentes e consequências concretas e específicas decorrentes das mesmas. Menos ainda se lobriga o que possa corporizar periculum in mora para efeitos de decretamento de uma qualquer providência que se justifique (sendo certo que, como enunciado, a requerente antes formula pedido de condenação da requerida na realização de vários trabalhos de reparação, cuja urgência afirma, mas não factualiza).
Sendo certo que, no que a este requisito concerne, o seu critério de avaliação não deve assentar em juízos puramente subjetivos do juiz ou do credor (isto é, em simples conjeturas, como refere Alberto dos Reis), antes deve basear-se em factos ou em circunstâncias que, de acordo com as regras da experiência, aconselham uma decisão cautelar imediata como fator potenciador de eficácia de ação declarativa ou executiva (Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, Almedina, IV volume, págs. 191 e seguintes) – vd. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 07.02.2019, processo 1186/17.0T8LSB-A.L1, in www.dgsi.pt
«A petição inicial tem de reproduzir um raciocínio lógico, em que o pedido há-de conter-se nas razões de direito e nos fundamentos de factos expostos como causa de pedir (Jacinto Bastos, Ob. Cit., pág. 254), devendo o autor, na petição inicial, expor os factos e as razões de direito que servem de fundamento à ação [art. 552º, nº1, alínea d), do Cód. de Proc. Civil], traduzindo-se, assim, a causa de pedir no ato ou facto jurídico de que procede a pretensão deduzida em juízo, identificando-se e individualizando-se a ação pelos elementos de facto que converteram em concreta a vontade legal. Ainda, se o autor não indicar o efeito jurídico que pretende obter com a ação ou não mencionar o facto concreto que lhe serve de fundamento (…), a petição será inepta, assim como será inepta se a indicação do pedido ou da causa de pedir for feita em termos verdadeiramente obscuros ou ambíguos (ininteligíveis), não bastando, para o preenchimento da exigência legal, a indicação vaga ou genérica dos factos em que o autor fundamenta a sua pretensão – (Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, págs. 234/235). Isto porque, a lei processual (art. 581º, nº4, do Cód. de Proc. Civil) acolhe a teoria de substanciação da causa de pedir, fazendo recair sobre o autor o ónus de articular os factos dos quais emerge a sua pretensão (Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Almedina, págs. 190/191), não bastando a invocação de um determinado direito subjetivo e a formulação da vontade de obter do tribunal determinada forma de tutela jurisdicional.
«Deste modo, não estando alegados factos bastantes de onde resulte o receio da lesão do direito (…) e não competindo ao tribunal trazer para o processo tais factos não alegados (a não alegação é situação processual distinta da alegação deficiente ou imprecisa, única que justifica o aperfeiçoamento), tal como o procedimento cautelar se apresenta (…) O que equivale a dizer que não se mostram reunidos os pressupostos de que depende a concessão da providência requerida, motivo pelo qual se há de considerar a mesma manifestamente improcedente.» - Ac. do TRE, de 28.03.2019, processo 76/18.7T8ABF.E1
Posto o que, não decorrendo da alegação o preenchimento dos pressupostos dos quais depende o decretamento da providência cautelar requerida, revela-se o presente procedimento, ab initio, como manifestamente inviável, impondo-se o seu indeferimento liminar.
Nesta conformidade, pelo exposto e de harmonia com as normas legais citadas, além do prevenido pelos arts. 226º, nº4, alínea b), e 590º, nº1, do Cód. de Proc. Civil, indefere-se liminarmente o presente procedimento cautelar.
Custas pela requerente, fixando-se o valor à causa de 587.679,17€ [arts. 527º, nº1, 304º, nº3, alínea e), e 306º, nº2, do Cód. de Proc. Civil].”
Presssupostos da providência cautelar comum
Dispõe o artigo 362º, nº 1, do Código Civil, sob a epígrafe “Âmbito das providências cautelares não especificadas”:
1. Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado”.
Assim, o decretamento de uma providência cautelar comum depende da concorrência dos seguintes requisitos: a) probabilidade séria da existência do direito invocado (fumus boni júris); b) fundado receio de que outrem, antes de a ação ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito (periculum ín mora); c) adequação da providência à situação de lesão iminente; d) não existência de providência específica que acautele aquele direito; e) que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que com ela se quis evitar.
Como refere Abrantes Geraldes[1]: “A principal função da tutela cautelar consiste (…) em neutralizar os prejuízos a suportar pelo interessado que tem razão, derivados da duração do processo declarativo ou executivo (…)”. Assim, os procedimentos cautelares constituem mecanismos que, conciliando os interesses de celeridade e da segurança jurídica, permitem assegurar os efeitos de ação judicial, evitar prejuízos ou mesmo antecipar a realização do direito.
Na decisão recorrida considerou-se que se revelava ab initio inviável o presente procedimento cautelar, impondo-se, por isso, o seu indeferimento liminar, nos termos do disposto nos artigos 590º, nº 1 e 226º, nº 4, CPC.
O artigo 590º, sob a epígrafe “Gestão inicial do processo”, dispõe no seu nº 1:
1-Nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis (…)”
 In casu, a pretensão deduzida foi considerada manifestamente improcedente, considerando-se na decisão recorrida não terem sido alegados factos que permitissem aferir dos pressupostos da providência requerida.
Ora, por forma a indagar da verificação do mencionado vício, haverá que ter presente que da alegação contida na petição inicial extrai-se, no essencial, o seguinte:
- A requerente é proprietária de prédio urbano sito na Avenida ... Sacavém, Loures;
- Em maio de 2023, a requerida executou obras de demolição de prédios que confinam a oeste com o da requerente causando danos no interior e exterior da respetiva empena oeste;
- Tais danos necessitam de reparação urgente a e requerida recusou à mesma proceder;
- Por força da atuação da requerida nos trabalhos de demolição de prédios adjacentes, existe risco para a estabilidade estrutural da empena oeste do edifício e mostra-se degradada a qualidade das frações arrendadas pela requerente, pelas infiltrações e humidade que passaram a aí existir, com impacto na saúde dos arrendatários e na conservação da mercadoria ali acondicionada;
- Impõe-se a realização de várias obras com vista a suprimir a “corrosão das armaduras e destacamento de betão”, bem como a “deterioração de rebocos exteriores” e a “degradação de revestimentos em paredes interiores”, causados pela operação de demolição levada a cabo pela requerida.
A interpretação de tal articulado deverá ser efetuada de harmonia com os cânones interpretativos vigentes para a declaração negocial, atribuindo-lhe o sentido que um declaratário normal atribuiria, nos termos do disposto no artigo 236º do Código Civil, ex vi artigo 295º do mesmo código.
Ora, da leitura e interpretação da petição inicial, de harmonia com o princípio interpretativo exposto, conclui-se que a requerente atribui à requerida a prática de um facto ilícito, consubstanciado na demolição de edifícios confinantes com o seu, “sem a mínima competência e cautelas devidas”. Tal demolição, na perspetiva da requerente, provocou danos na empena oeste do seu edifício, que poderão colocar em causa a sua estabilidade estrutural e geram elevados níveis de infiltração e humidades, com impacto na saúde dos seus arrendatários e na conservação das mercadorias acondicionadas nas frações arrendadas.
Julgamos que a descrição factual operada pela requerente no requerimento inicial, atenta a sua imprecisão relativamente a alguns dos pontos alegados, suscita dúvidas e reservas. Tal sucede designadamente quando, apesar de referir, com pormenor, quais as obras que, na sua perspetiva, se mostram adequadas a remover o perigo causado pela requerida ao nível da empena oeste do seu edifício, não usa o mesmo grau de concretização para referir quais os danos que a demolição em concreto causou na referida empena oeste. Assim, como não concretiza por que forma a demolição foi efetuada e qual o procedimento omitido que teria evitado os danos que, na sua perspetiva, foram causados no seu edifício. Acresce que o próprio perigo para a estabilidade estrutural da empena oeste se mostra alegado de forma vaga e imprecisa, desconhecendo-se qual o risco concreto ali existente, designadamente se apresenta risco de ruína ou outro.
Ou seja, ao requerimento inicial é possível assacar insuficiências e imprecisões na alegação da matéria de facto.
Porém, daí não resulta que a tal requerimento deva ser apontado o vício da ineptidão, no sentido da falta ou da ininteligibilidade da causa de pedir, nos termos do disposto no artigo 186º, nº 2, alínea a) CPC. Efetivamente, consistindo a causa de pedir no facto constitutivo “da situação jurídica material que quer fazer valer[2] é integrada “(…) pelo facto ou pelos factos concretos que preenchem a norma jurídica da qual o Autor faz derivar os direitos que, segundo ele, conduzirão à procedência do pedido” – Acórdão da Relação de Coimbra de 10-07-2019[3].  Tal entendimento decorre da teoria da substanciação, consagrada no nosso regime processual civil no artigo 581º, nº 4, CPC.
No entanto, sem olvidar que incumbe às partes a alegação dos factos essenciais que constituem a causa de pedir que introduzem em juízo, como resulta do disposto no artigo 5º, nº 1, CPC, afigura-se que a requerente, não obstante as imprecisões supra mencionadas (e outras que possam ser apontadas), cumpriu suficientemente tal ónus.
Efetivamente, o requerimento inicial contém os “factos essenciais” em que a requerente fundamenta a sua pretensão cautelar, e que se reconduzem à alegação da prática pela requerida de um facto ilícito extracontratual (demolição realizada à margem das práticas regulamentares), com a consequente produção de danos na empena oeste do edifício da autora, afetando o seu direito de propriedade e, reflexamente, a saúde e o património dos seus arrendatários.
Mostra-se, pois, suficientemente indiciado o direito de propriedade que a requerente invoca (cuja titularidade sempre se deveria presumir, atenta a junção de certidão de registo predial junta que comprova a inscrição, a seu favor do referido direito, nos termos do artigo 7º do Código de Registo Predial). Mas também o periculum in mora se extrai do requerimento inicial, dada a alegação de que a demolição levada a cabo pela requerente deteriorou a empena oeste do prédio da requerente, colocando até em causa a sua estabilidade e originando infiltrações e humidades que se repercutem na saúde dos arrendatários das frações de tal prédio, e no respetivo património, por gerarem a deterioração das mercadorias aí armazenadas. Por fim, na tese da requerente, a execução das obras que peticiona, mostra-se adequada à remoção da lesão que invoca.
É ainda certo que, por via da providência requerida, poderá a requerente, como se refere na decisão recorrida, “esgotar o objeto da ação a intentar”. No entanto, tal “esgotamento” apenas poderá ocorrer se “a matéria adquirida no procedimento (…) permitir formar uma convicção segura acerca da existência do direito acautelado e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio” – cfr. artigo 369º, nº 1, CPC. Significa o acabado de expor que a pretensão de inversão do contencioso que foi deduzida pela requerente apenas no momento da decisão de mérito poderá ser ponderada, não podendo extrair-se de um eventual juízo de probabilidade do seu indeferimento (designadamente atenta a complexidade da matéria a apurar para o efeito) uma automática conclusão de desnecessidade da tutela cautelar.
Haverá ainda que salientar que caso os autos prosseguissem para a audiência final, com produção de prova, sempre haveria possibilidade de considerar factos instrumentais resultantes da instrução da causa (cfr. artigo 5º, nº 2, alínea a) e factos complementadores ou concretizadores dos alegados pela requerente, também resultantes da instrução da causa, desde que às partes fosse conferido o direito de sobre eles se pronunciarem (artigo 5º, nº 2. Alínea b), CPC). Porém, a imediata decisão quanto à improcedência da causa coartou à requerente tais possibilidades, inviabilizando a obtenção de uma decisão de mérito. E o certo é que a decisão recorrida se revela desadequada por o requerimento inicial conter factos essenciais nucleares que, em conjunto com outros (complementadores ou instrumentais) que resultassem da instrução da causa ou até de um convite ao aperfeiçoamento do articulado, poderiam viabilizar uma decisão de mérito da causa.
A este propósito, ainda com atualidade, refere Alberto dos Reis[4]:
Se o autor exprimiu o seu pensamento em termos inadequados, serviu-se de linguagem tecnicamente defeituosa, mas deu a conhecer suficientemente qual o efeito jurídico que pretendia obter, a petição será uma peça desajeitada e infeliz, mas não pode qualificar-se de inepta. Importa não confundir petição inepta com petição simplesmente deficiente (…) quando (,….) sendo clara quanto ao pedido e à causa de pedir, omite facto ou circunstâncias necessárias para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta: o que então sucede é que a ação naufraga”.
 Ou seja, uma causa de pedir que foi exposta em termos obscuros ou imprecisos não se equipara a uma causa de pedir inexistente ou ininteligível.
Consequentemente, afigurando-se que o requerimento inicial padece de insuficiência na exposição da matéria de facto, será por via de convite ao seu aperfeiçoamento, nos termos do disposto no nº 4 do artigo 590º, CPC, que tal vício poderá ser suprido. Efetivamente, como referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[5]O aperfeiçoamento é, pois, o remédio para os casos em que os factos alegados por autor ou réu (os que integram a causa de pedir e os que fundam as exceções) são insuficientes ou não se apresentem suficientemente concretizados”.
Reitera-se, pois, que o requerimento inicial contém os “factos essenciais” em que a requerente fundamenta a sua pretensão cautelar, e que se reconduzem à alegação da prática pela requerida de um facto ilícito extracontratual (demolição realizada em moldes que afetaram o seu direito de propriedade), gerador de danos (na empena oeste do edifício da requerente), existindo a possibilidade do seu agravamento.
Afigura-se, por isso, que apenas depois de operada tal complementação factual (seja por via de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento inicial, seja por via da ponderação de factos instrumentais e complementares que resultem da instrução da causa, nos termos já expostos) e após análise crítica e objetiva da prova produzida, haverá que verificar dos pressupostos da providência requerida. Certo é que no atual estado dos autos, tendo por base a alegação da autora, não pode deixar de ser configurada a eventual existência de uma carência de tutela cautelar, revelando-se prematuro o indeferimento liminar da providência. Ao invés, independentemente da procedência final da pretensão formulada, não pode deixar de considerar-se que o pedido formulado (reparação do edifício ao nível da empena oeste) decorre da causa de pedir invocada (facto ilícito gerador de responsabilidade civil), não se verificando a apontada manifesta improcedência.
Não deixará de salientar-se que no nosso regime processual civil, fortemente influenciado pelo princípio do dispositivo, cabe às partes carrear para o processo os factos (pelo menos os essenciais) que integrarão o objeto do processo. Porém, trata-se também de um regime processual civil que assume inequivocamente o “princípio da prevalência do fundo sobre a forma”, consagrando, em conformidade, soluções que envolvem quer o convite à correção de imprecisões e incompletudes verificadas na matéria de facto alegada, quer a sua complementação decorrente da instrução da causa, com base nos no “dever de gestão processual” atribuído ao juiz, sempre na perspetiva da justa composição do litígio e, consequentemente, da efetiva tutela jurisdicional– cfr. artigos 6º, 7º, e 590º CPC e artigo 20º da Constituição da República Portuguesa. É neste sentido que na exposição de motivos da Lei 41/2013 de 26/06 que operou a revisão do Código de Processo Civil se alude à criação de um novo paradigma pautado pelo “(…) princípio da prevalência do mérito sobre meras questões de forma, em conjugação com o assinalado reforço dos poderes de direção, agilização, adequação e gestão processual do juiz, toda a atividade processual deve ser orientada para propiciar a obtenção de decisões que privilegiam o mérito ou a substância (…)”. Em consonância com tal paradigma deverá ser interpretado o dever de gestão do processo” consagrado no artigo 6º CPC, com o seguinte contéudo:
1. Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.
2.O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando esta a praticá-lo”.
A este propósito, refere-se no acórdão da Relação de Évora de 17-06-2021[6] :
No novo regime processual civil foi reforçada a ideia que sustentava que a atividade processual desenvolvida pelas partes deve ser aproveitada até ao limite, de forma que todos os esforços deverão ser levados a cabo, quer pelo Juiz, ainda que ex officio, quer pelas partes, por sua iniciativa ou a convite daquele, sempre que seja possível corrigir as irregularidades ou suprir as omissões verificadas, de modo a viabilizar uma decisão de meritis (…) Efetivamente, a generalidade das exceções dilatórias são supríveis, quer por iniciativa do autor, quer por determinação oficiosa do Tribunal” e na mesma decisão, citando Abrantes Geraldes[7]  a propósito da falta de requisitos dos pedidos, refere-se que “(…) deve prevalecer o entendimento de «impor o aproveitamento da instância, em conjugação com todo um conjunto de princípios que sempre devem orientar o intérprete na busca das melhores soluções – (economia processual, prevalência da substância sobre a forma, eficiência do sistema, cooperação mútua) – exigem que a questão em análise seja resolvida de forma diversa daquela que deveria emergir do anterior CPC, ao nível do despacho saneador».
Nesta ótica de obtenção de uma justa composição do litígio e de aproveitamento dos atos praticados pelas partes, afigura-se correto o entendimento que tem vindo a firmar-se a nível jurisprudencial, no sentido de que “os despachos liminares de indeferimento das providências cautelares terão de ser reservados para situações de manifesta e indiscutível improcedência do pedido, pois que nos casos de fronteira, onde a dúvida se coloca, deverá dar-se seguimento ao procedimento (…)” – Acórdão da Relação de Lisboa de 1-10-2009[8].
No mesmo sentido se decidiu no Acórdão da Relação de Évora de 29-09-2022[9], onde também no âmbito de uma providência cautelar comum se decidiu:
II – O indeferimento liminar de uma petição inicial apenas se mostra previsto para situações particularmente gravosas, nas quais não se mostram alegados os factos essenciais que permitam a procedência do pedido formulado.
III – A mera insuficiente alegação fáctica, desde que não abranja a essencialidade dos factos, não implica o indeferimento liminar da petição inicial, antes sim, o convite ao aperfeiçoamento dessa petição”.
Seguindo o mesmo entendimento, a Relação de Coimbra, no acórdão de 12-04-2023 decidiu que o indeferimento liminar de providência cautelar (arresto naquele caso) “(…) deverá ser reservado para aquelas situações em que seja óbvio que a pretensão do autor ou do requerente não poderá proceder, independentemente das várias soluções de direito possíveis”.
Também no acórdão da mesma Relação (de Coimbra) de 15-05-2023[10] se referiu:
O indeferimento liminar da petição apenas pode ocorrer quando for manifesto que o pedido não pode proceder, ou seja, quando for evidente e ostensivo que os factos alegados e a subsunção jurídica dos mesmos efetivada, não possam, de todo em todo, sustentar a pretensão deduzida”.
Idêntico entendimento foi seguido no Acórdão da Relação de Lisboa de 02-07-2009[11], constando do respetivo sumário que:
III - Deve reservar-se o indeferimento liminar por manifesta improcedência do pedido para quando a improcedência da pretensão do autor for tão evidente que se torne inútil qualquer instrução e discussão posterior, isto é, quando o seguimento do processo não tenha razão alguma de ser, seja desperdício manifesto de atividade judicial”.
Pelos fundamentos expostos, importa determinar a revogação da decisão recorrida, substituindo-a por outra que ordene a prossecução dos autos (seja dirigindo um convite à requerente para concretizar os pontos da matéria de facto que se revelem imprecisos ou ordenando a passagem para a fase da instrução da causa).
Revelando-se procedente o recurso, as custas serão suportadas pela recorrida “(…) – Compra e Venda de Imóveis, Ldª”, por ter contra-alegado e ficado vencida – cfr. artigo 527º, nºs 1 e 2, CPC
*
III – DECISÃO
Pelo exposto, decide-se conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que determine o prosseguimento do procedimento cautelar.
Custas da apelação pela recorrida – cfr. artigo 527º, nºs 1 e 2, CPC.
D.N.

Lisboa, 23 de maio de 2024
Rute Sobral
Paulo Fernandes da Silva
António Moreira
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[1] Temas da Reforma do Processo Civil, III Volume, 1998, pág. 41
[2] Código de Processo Civil anotado, Vol 1, 3ª edição, pag. 353.
[3] Proferido no processo nº 5149/19.3YIPRT.C1, disponível em www.dgsi.pt
[4] Comentário 2º, pág. 364 e 371.
[5] Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª edição pág 634
[6] Proferido no processo nº 112/20.4T8TBV-E1, disponível em www.dgsi.pt
[7] Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. I, 2ª edição pág. 126, 132, 147 a 150 e 158
[8] Proferido no processo nº 1617/08.0TBSCR.L1-6, disponível em www.dgsi.pt
[9] Proferido no processo nº 956/22.2T8TMR.E1, disponível em www.dgsi.pt
[10] Proferido no processo nº 5101/22.1T8LRA.C1, disponível em www.dgsi.pt
[11] Proferido no processo nº 663/09.1TVLSB-A.L1-6, disponível em www.dgsi.pt