Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10376/06-2
Relator: MARIA JOSÉ MOURO
Descritores: REGISTO PREDIAL
TERCEIROS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/15/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - O nº 4 do art. 5 do Código de Registo Predial (na do dl 533/99, de 11-12) consagrou o entendimento restritivo de “terceiro” para efeitos de registo: serão terceiros os que tenham adquirido, por via negocial e a título oneroso, e também de boa-fé, direitos incompatíveis advindos do mesmo transmitente; porém, não o são os credores exequentes, sujeitos activos dos actos que consistam em mera diligência judicial, como, por exemplo, penhora, arresto ou hipoteca judicial.
II - Aquele diploma legal (dl 533/99, de 11-12) veio efectuar uma interpretação autêntica do art. 5 do Código de Registo Predial quanto ao conceito de terceiros para efeitos de registo.
(M.J.M.)
Decisão Texto Integral: 7

Acordam na Secção Cível (2ª Secção) do Tribunal da Relação de Lisboa:
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I - Por apenso aos autos de execução em que é exequente «M» e são executados J A S e M L S P A, deduziu F N os presentes embargos de terceiro.
Alegou o embargante, em resumo, que tendo sido penhorado em 1-2-2002 o prédio rústico denominado “C”, descrito na Conservatória de Registo Predial do Cartaxo e inscrito na matriz predial da freguesia de Pontével, concelho do Cartaxo, tal prédio não pertence aos executados mas sim ao embargante que o adquiriu àqueles por escritura de compra e venda lavrada em 2-6-98, tendo pago o preço e sendo-lhe feita a entrega do prédio que passou a usufruir na frente de todos; mencionou, ainda, que da penhora só teve conhecimento por nota enviada em 14-1-2004 pela conservatória de registo predial.
Requereu que se ordene o levantamento da penhora que impende sobre o seu prédio e se ordene o cancelamento da inscrição da penhora.
Os embargos foram recebidos e determinada a notificação das partes primitivas na execução para os contestarem.
A exequente – agora denominada «Banco» - contestou, após o que foi proferida decisão que julgou os embargos improcedentes.
Desta sentença apelou o embargante, concluindo pela seguinte forma a respectiva alegação de recurso:
1- O prédio penhorado é propriedade do embargante e não dos executados, sendo certo que o primeiro não é parte na execução de que estes embargos são apenso, e é completamente alheio às responsabilidades dos segundos;
2 - O imóvel penhorado foi adquirido pelo embargante, através de escritura de compra e venda anterior à penhora, sendo que o registo da aquisição só veio a ser efectuado posteriormente à realização e ao registo desta;
3 - O contrato de compra e venda constitui um instrumento suficiente à transmissão da propriedade da coisa vendida;
4 - O registo dos factos relativos à situação jurídica dos bens imóveis, salvaguardando o caso especial das hipotecas, tem natureza meramente declarativa;
5 - Os factos que nos termos da lei registral estão sujeitos a registo, conforme sucede com a transmissão do direito de propriedade sobre imóveis (art. 2° n.° 1 al. a) do CRP), não são oponíveis a terceiros enquanto não se encontrem registados (art. 5° , n.° 1 do mesmo Código);
6 - A definição do conceito de "terceiros", para efeitos de registo predial, consagrado na disposição legal atrás transcrita foi introduzida pelo DL n.° 533/99 de 11/12 e veio a reproduzir, no essencial, o entendimento dessa realidade jurídica perfilhado pelo Acórdão unificador de jurisprudência n.° 3/99 do STJ (DR, I, série-A, 10/07/99);
7 - A transmissão a favor do embargante da propriedade de bem penhorado é oponível à exequente, ainda que, à data da efectivação e do registo da penhora, a propriedade do bem não estivesse registada a favor do embargante;
8 - Terceiros, para efeitos do disposto no art. 5° do CRP, são os adquirentes, de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa;
9- Exigindo-se, agora, que ambos os direitos advenham de um mesmo transmitente comum, de uma diligência judicial, seja ela arresto, penhora ou hipoteca judicial;
10 - Num conflito entre uma compra e venda anterior não registada e uma penhora posterior, mas registada, esta não prevalece necessariamente sobre o direito decorrente da compra e venda, apesar do registo deste direito ser posterior ao da penhora.
11- Sendo essa transmissão anterior à penhora, impõe-se concluir que as aludidas diligências incidiram sobre um bem que não pertence aos executados e não responde, como tal, pela dívida exequenda;
12- Nos termos do art. 821° do CPC, apenas os bens do executado podem ser objecto de penhora em sede de execução, pelo que o facto de a referida providência haver recaído sobre bem de outrem torna-a legalmente inadmissível;
13 - Nesta conformidade, necessário será concluir pela existência do direito invocado pelo embargante sobre o bem penhorado e pela lesão de tal direito, por efeito da penhora.
A embargada «Banco» contra alegou nos termos de fls. 137 e seguintes.
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II - O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
a) Por escritura de compra e venda celebrada em 2 de Junho de 1998 no Cartório Notarial do Cartaxo, J A A S e M L S P A declararam vender a F N e este declarou comprar, o prédio rústico denominado C, sito, concelho do Cartaxo, descrito na Conservatória do Registo Predial do Cartaxo, inscrito na matriz .
b) O embargante pagou o preço do imóvel.
d) Em 1 de Julho de Março de 2002 procedeu-se à penhora do imóvel referido em a), conforme termo de fls. 76 do processo principal, penhora essa registada como provisória por dúvidas a favor do exequente conforme apresentação, tendo posteriormente sido removidas as dúvidas acto a que corresponde a apresentação 10/20030318, conforme certidão junta a fls. 43.
e) O embargante F N requereu o registo da aquisição do prédio em 23-12-2003, mediante carta enviada para a Conservatória do Registo Predial do Cartaxo, recebendo em 15 de Janeiro de 2004 a nota de registo e uma certidão de teor da descrição do imóvel, encontrando-se o direito de propriedade sobre o imóvel descrito em a) registado a seu favor a que corresponde a apresentação 06/20031223.
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III – 1 - São as conclusões dos recursos que definem o objecto dos mesmos, consoante resulta dos arts. 684, nº 3 e 690, nº 1 do CPC. Deste modo, a questão que, essencialmente, se coloca na presente apelação é a de se a aquisição a favor do embargante do direito de propriedade do imóvel penhorado é oponível à embargada «Banco», mesmo que á data da penhora do mesmo imóvel e respectivo registo aquela aquisição ainda não estivesse registada. *
III – 2 - De acordo com o nº 1 do art. 351 do CPC «se qualquer acto, judicialmente ordenado, de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro».
Assim, com a reforma do CPC, os embargos de terceiro deixaram de se basear exclusivamente na posse, fundando-se igualmente na titularidade do direito de fundo; o que legitima os embargos é a posse ou o direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência judicial ordenada.
O conceito de terceiro, para efeitos do art. 351 do CPC, é um conceito residual, delimitado processualmente: é terceiro quem não é parte na causa em que foi judicialmente ordenado o acto de apreensão ou entrega de bens (1).
No caso que nos ocupa, o embargante – terceiro para aqueles efeitos, porque não é parte na execução de que os embargos são dependência - diz haver adquirido aos executados determinado prédio, por escritura pública de compra e venda celebrada anteriormente à penhora que, no âmbito da execução que constitui o processo principal, veio a efectivar-se sobre aquele prédio, prédio que o embargante passara a usufruir. Sucede que o embargante não procedera então ao registo da aquisição, vindo a fazê-lo posteriormente, quando a penhora em referência já tivera lugar e fora registada.
Na sentença recorrida foi entendido que, face ao art. 5 do CRP, o embargado «Banco» é terceiro relativamente ao embargante, tendo este o ónus de registar oportunamente a seu favor a aquisição do imóvel; não o tendo feito, em relação á penhora realizada e registada, a venda anterior - não registada - não produz qualquer efeito.
Vejamos.
Entre os factos sujeitos a registo encontram-se os que determinam a aquisição do direito de propriedade sobre imóveis – art. 2-a) do CRP.
Nos termos do nº 1 do art. 5 daquele Código os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo.
O conceito de terceiro para efeitos do disposto o art. 5 do CRP (situamo-nos agora numa latitude diferente da acima abordada no que concerne ao art. 351) não tem sido univocamente considerado; tanto a doutrina como a jurisprudência têm assumido diferentes posições, dando-lhe um âmbito mais lato ou mais restrito, consoante os casos (2).
Assim, Antunes Varela e Henrique Mesquita (na Rev. Leg. e Jurisp., ano 127º, pag. 31) concluíam: «Terceiros, para efeitos de registo, relativamente a determinada aquisição não registada, são não apenas aqueles que adquirem (e registem) direitos incompatíveis do mesmo transmitente, mediante negócio que com ele celebrem, mas também aqueles que adquiram (e registem) direitos incompatíveis em relação ao transmitente, sem a cooperação da vontade deste, através de um acto permitido por lei (hipoteca legal ou judicial, arresto, penhora, apreensão de bens para a massa falida ou insolvente, compra em processo executivo, etc.)».
Já anteriormente (pag. 19) haviam considerado: «Se, por exemplo, A vende um imóvel a B que não inscreve a aquisição no registo, e, mais tarde, um credor de A regista uma hipoteca judicial ou uma penhora sobre esse imóvel, a aquisição feita por B é inoponível, em virtude de ter sido omitida a sua inscrição no registo, ao beneficiário destes actos de oneração praticados sem a cooperação do alienante».
Todavia, no acórdão uniformizador de jurisprudência nº 3/99, de 18-5-99, publicado no DR, 1ª série-A, de 10-7-99, veio a ser adoptado um diverso conceito de terceiro, um conceito restrito: terceiros, para efeitos do disposto no art. 5 do Código do Registo Predial, são os adquirentes de boa fé, de um mesmo transmitente, comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa. Da parte expositiva do acórdão conclui-se que nos casos de diligência judicial – penhora, arresto ou hipoteca judicial – não se tendo ainda concretizado a venda do imóvel, não se verifica a existência de um mesmo transmitente comum, pelo que está arredada a possibilidade de considerar como terceiro o credor exequente, sujeito activo dessas diligências. Aliás, isso mesmo é tido em conta no acórdão do STJ de 7-7-99 (3).
Como refere Isabel Pereira Mendes (4) fazendo um apanhado da jurisprudência contida nos vários acórdãos ultimamente proferidos pelo STJ, o conceito restritivo de terceiro ficaria com este conteúdo: «São terceiros os que tenham adquirido, por via negocial e a título oneroso, e também de boa-fé, direitos incompatíveis advindos do mesmo transmitente. Porém, não são considerados terceiros os credores exequentes, sujeitos activos dos actos que consistam em mera diligência judicial, como, por exemplo, penhora, arresto ou hipoteca judicial».
O entendimento restritivo acima referido veio a ser consagrado pelo nº 4 do art. 5 do CRP, na redacção que lhe veio a ser dada pelo dl 533/99, de 11-12, preceituando: «Terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si».
Tem sido entendido que este diploma legal (dl 533/99, de 11-12) veio efectuar uma interpretação autêntica do art. 5 do CRP quanto ao conceito de terceiros para efeitos de registo, pelo que as situações anteriores ao seu início de vigência que viessem a ser apreciadas judicialmente em momento posterior deviam ser vistas à luz desta última redacção (5).
Atento o conceito restritivo de «terceiros» que se encontra consagrado, a inscrição registral realizada pelo embargado/exequente e a que se reportam os autos não lhe poderia dar a pretendida protecção, já que se encontram excluídos – como vimos – do âmbito do art. 5 do CRP os casos em que o direito em conflito com o direito não inscrito deriva de uma diligência judicial (seja ela arresto, penhora ou hipoteca judicial).
A aquisição do imóvel pelo embargante aos executados, apesar de não registada anteriormente, é, pois, oponível por aquele embargante ao embargado/exequente «Banco», contra ele produzindo efeitos.
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III – 3 - Nestas circunstâncias não poderiam desde logo, por ocasião do saneador e com aquele fundamento, ser os embargos julgados improcedentes, antes devendo a sua tramitação prosseguir, nos termos dos arts. 508-A e 508-B do CPC (aplicáveis pela remissão constante do art. 357 do mesmo Código) e sem prejuízo da eventual utilização dos poderes conferidos ao juiz pelo art. 508, também ele do CPC. *
IV - Face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando a sentença recorrida e determinando o prosseguimento dos autos nos termos acima apontados.
Custas da apelação pela apelada (a responsabilidade pelas custas dos embargos será determinada a final).
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Lisboa, 15 de Fevereiro de 2007

Maria José Mouro
Neto Neves
Isabel Canadas
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1 Ver, a propósito, Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, «Código de Processo Civil Anotado», vol. I, pag. 617.
2 Ver, a propósito, Isabel Pereira Mendes, «Estudos Sobre Registo Predial», pags. 115 e segs..
3 Publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano VII, tomo 2, pag. 164.
4 Citado «Estudos Sobre Registo Predial», pag. 163.
5 Nesse sentido, designadamente, o acórdão do STJ de 19-2-2004, ao qual se pode aceder em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, processo 03B4369.