Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | MICAELA SOUSA | ||
Descritores: | EMBARGOS DE EXECUTADO LETRA PROCEDIMENTO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO (PER) RESPONSABILIDADE DOS AVALISTAS | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 06/21/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | 1–O aval tem sido entendido como uma garantia pessoal especial, materialmente autónoma e formalmente dependente da obrigação avalizada e o avalista responde da mesma forma que a pessoa afiançada, atento o estatuído no artigo 32º da Lei Uniforme relativa a Letras e Livranças. 2–O avalista da sociedade subscritora da letra responde solidariamente com os demais obrigados, mantendo-se a sua obrigação ainda que a obrigação garantida seja “nula por qualquer razão que não seja um vício de forma”, nos termos dos artigos 47º,§ 1º e 32º, § 2º da Lei Uniforme relativa a Letras e Livranças. 3–Atenta a redacção dos artigos 17º-F, n.º 7 e 17º-A, n.º 3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 79/2017, de 30 de Junho, o estatuído no artigo 217º, n.º 4 do referido diploma legal colhe aplicação subsidiária no âmbito do Procedimento Especial de Revitalização. 4–As medidas adoptadas no Procedimento Especial de Revitalização não se estendem aos avalistas/garantes do devedor, pelo que o credor mantém intocados os direitos de que dispõe contra os terceiros avalistas podendo deles exigir aquilo a que estavam obrigados. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam as Juízas na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa. I – RELATÓRIO: A, sociedade comercial anónima de direito francês, com domicílio em 1001 Avenue de La R..... G.....-G..... 07... G____-G____ F_____ apresentou, em 2123 de Novembro de 2019, requerimento executivo para pagamento de quantia certa contra B, com domicílio à Casa A..... B....., T____. - St.ª R....., A..... - A_____- 2...-... - A_____ e C, com domicílio à Rua A..... F..... C....., Cond. P..... C..... - C_____ - 2...-... - C_____ com base em título executivo constituído por quinze letras, aceites pela sociedade Classe e Distinção, S. A., na sequência do aceite de várias letras, sucessivamente reformadas, para pagamento do preço das mercadorias vendidas pela exequente a esta e avalizadas por B e C, sendo o valor da quantia exequenda de € 88 889,12 (certidão com a Ref. Elect. 24320034 dos autos principais). Em 11 de Maio de 2020, os executados deduziram oposição à execução mediante embargos de executado, com a seguinte ordem de fundamentos (cf. Ref. Elect. 16784639): – A sociedade Classe e Distinção S.A. iniciou um processo especial de revitalização, em Agosto de 2019; – O saque das letras ocorreu ao longo do primeiro semestre do ano de 2019, mas na data do respectivo vencimento já o Processo Especial de Revitalização[1] se encontrava pendente; – Nos termos da tramitação do PER, a exequente reclamou o seu crédito, participou nas negociações do plano, que votou favoravelmente, tendo sido aprovado; – O requerimento de execução foi apresentado em Novembro de 2019, momento no qual decorriam as negociações do plano de revitalização; – Com a aprovação do plano de revitalização, os credores da Classe e Distinção S.A., verão os seus créditos pagos como planeados, incluindo a ora exequente, donde a presente execução é inútil, pretendendo a exequente fazer pagar-se duas vezes; – Actuou a exequente com má fé uma vez que apresentou o requerimento em Novembro de 2019, quando decorriam as negociações, pelo que não tinha qualquer vontade de cumprir o plano que aprovou, emitindo uma declaração contrária à vontade real com o intuito de enganar o declaratário, visando prejudicar e enganar a Classe e Distinção S. A. e os seus avalistas, que confiaram na declaração da exequente e na sua declaração favorável ao pagamento da sua dívida por via do plano especial de revitalização; – O artigo 217.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[2] não se encontra entre as normas para as quais o artigo 17.º-F, n.º 7 do CIRE remete, mas é potencialmente aplicável ao PER, cujo n.º 4, numa interpretação extensiva, contemplará também as modificações respeitantes aos prazos de pagamento; – Constitui princípio indiscutível do direito das garantias pessoais, o de que o incumprimento (temporário ou definitivo) é a condição necessária para que o garante possa ser chamado a cumprir em vez do devedor principal, condição que, com a aprovação do plano de revitalização, ainda não se verifica; – O plano de revitalização não tem um propósito de liquidação, sendo um instrumento transitório destinado à superação de uma fase de crise económico-financeira do devedor, tendo em vista evitar a sua insolvência, pelo que a moratória ou o novo prazo de pagamento que os credores concedem ao devedor com a aprovação do plano de revitalização deverá aproveitar aos terceiros que pessoalmente garantem o crédito, enquanto o devedor continuar a cumprir o plano acordado; – Não existindo, no caso concreto, nem incumprimento de obrigações nem afectação quantitativa do crédito, deverá entender-se que a aprovada modificação temporal aproveita aos terceiros que garantem o cumprimento das obrigações; – No caso, os garantes da Classe e Distinção, S.A. são os seus sócios, sendo que a procedência da execução seria excessivamente onerosa ou penalizadora dos avalistas, por já estarem a efectuar um esforço a nível pessoal, bem como a nível da empresa; – Apesar do plano de recuperação ter sido aprovado e homologado, a Classe e Distinção, S.A., ainda não foi capaz de proceder ao início do pagamento das dívidas devido à actual situação de saúde pública ocasionada pela pandemia da doença COVID-19, que conduziu ao encerramento dos estabelecimentos, para além de a decisão ainda não ter transitado em julgado; – As despesas exigidas pela executante, no valor de € 1 525,00 (mil quinhentos e vinte e cinco euros), não são da responsabilidade dos avalistas, que só respondem pelas despesas do respectivo desconto bancário se tiverem assumido a obrigação desse pagamento. Pugnam, assim, pela extinção da execução por falta de exigibilidade da obrigação executada aos avalistas e condenação da exequente em multa por litigar de má-fé. Mais requereram a determinação do efeito suspensivo aos presentes embargos, nos termos do art.º 733.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil[3] ou, assim se não entendendo, pela redução do valor do crédito exequendo na proporção das despesas não devidas. Em 9 de Junho de 2020 os embargos foram liminarmente admitidos e ordenada a notificação da exequente para contestar (cf. Ref. Elect. 125339714). A exequente/embargada deduziu contestação concluindo pela improcedência da oposição, realçando o seguinte (cf. Ref. Elect. 17056200): – O plano aprovado em PER prevê o pagamento das dívidas aos fornecedores comuns, entre os quais a embargada, em 108 prestações mensais e um período de carência de capital de 12 (doze) meses após o trânsito em julgado da sentença de homologação do plano; – A pendência do PER de uma sociedade avalizada não obsta à execução do avalista, pois que o art.º 17.º-E, n.º 1 do CIRE suspende a exigibilidade judicial das dívidas perante o insolvente, não perante os demais obrigados; – A doutrina e a jurisprudência maioritária vão no sentido de que a exequente pode executar os embargantes, na qualidade de avalistas, que não lhe podem opor as estipulações do plano quanto ao reescalonamento da dívida da sociedade devedora; – A exequente não apresentou as letras a desconto bancário, mas tão-só as apresentou a pagamento nas respectivas datas de vencimento, pelo que as despesas bancárias discriminadas no requerimento executivo têm origem na sua falta de pagamento nas respectivas datas de vencimento, despesas que a exequente pode reclamar aos executados nos termos da norma do 48.º, 3.º, da Lei Uniforme relativa a Letras e Livranças[4]; – Em face do alegado, não tem fundamento a pretensão dos embargantes quanto à sua condenação por litigância de má-fé, assim como não deve ter lugar a suspensão da execução, porque é manifesto que a obrigação exequenda é exigível. Em 20 de Janeiro de 2020 realizou-se a audiência prévia tendo sido concedida às partes a oportunidade de discutirem a causa, de facto e de direito, após o que, considerando-se que os autos forneciam os elementos necessários para tanto, foi proferido despacho saneador-sentença que conheceu do mérito da causa, julgando os embargos de executado improcedentes (cf. Ref. Elect. 135135079). É desta sentença que os executados/embargantes recorrem, concluindo assim as respectivas alegações (cf. Ref. Elect.20383518): A.–O presente recurso é interposto do despacho saneador proferido pelo Tribunal a quo que decidiu pela improcedência dos presentes embargos de executado por “Daqui decorre que a aprovação e homologação judicial do Plano de Recuperação da Classe e Distinção – Comércio e Vestuário, SA, não impede o prosseguimento da execução contra os embargantes/avalistas, nem as medidas adotadas no PER lhe são extensíveis.” B.–Contra os recorrentes/embargantes foi apresentada uma ação executiva de uma dívida no valor de € 88.889,12 (oitenta e oito mil oitocentos e oitenta e nove euros e doze cêntimos), resultante de um contrato comercial celebrado entre a empresa Classe e Distinção – Comércio de Vestuário, S.A., na qual os embargantes são administradores, e a exequente. C.–Para pagamento do preço das mercadorias fornecidas, a sociedade Classe e Distinção, S.A. sacou várias letras de câmbio à exequente, ora recorrida, as quais foram garantidas pelos administradores daquela, ora recorrentes, como avalistas. D.–O saque das letras em questão correu ao longo de primeiro semestre de 2019, antes da tramitação do PER, contudo, na data de vencimento das mesmas já o PER se encontrava em marcha. E.–A ora recorrida, nos termos da tramitação do PER reclamou o seu crédito e participou nas negociações do plano de revitalização, votando favoravelmente o mesmo, tendo aquele sido aprovado pela maioria absoluta dos credores da empresa Classe e Distinção – Comércio de Vestuário, S.A. Nestes termos, a recorrida considerou que o plano de revitalização apresentado pela empresa era viável tanto para subsistência da empresa como para o cumprimento e pagamento da sua dívida. F.–O Supremo Tribunal de Justiça no processo n.º 1563/16.4T8AMT.P1.S2. de 29.01.2019, concluiu, em suma, que “(i)- com a aprovação do plano de recuperação que estabelece uma moratória para o garante ser chamado a cumprir em vez do devedor principal ainda não se verifica; (ii) não se verificando o incumprimento da obrigação, nem afetação quantitativa do crédito, a execução da obrigação modificada deve aproveitar aos garantes, sobretudo se a dilação temporal relativa ao cumprimento da obrigação não foi irrazoavelmente excessiva ou desequilibrada face à capacidade económico-financeira dos sujeitos envolvidos (credor e garantes);(…)” G.–É princípio indiscutível no direito das garantias pessoais o de que o incumprimento, seja temporário ou definitivo, é condição necessária para que o garante possa ser chamado a cumprir em vez do devedor principal, pelo que se concluiu que, com a aprovação do plano de revitalização esta condição ainda não se verifica. H.–O plano de revitalização pode, em concreto, comportar apenas a possibilidade quanto ao modo de cumprimento das obrigações, como se verifica nos presentes autos, no qual foi modificado o tempo de cumprimento daquelas. I.–A esta hipótese têm a jurisprudência e a doutrina aplicado uma interpretação extensiva do artigo 217.º, n.º 3 do CIRE, de modo que esta norma abarcasse igualmente a hipótese quanto ao tempo de cumprimento das obrigações. J.–O plano de revitalização aprovado no âmbito do PER contém um conjunto de medidas destinadas à sociedade que visam a recuperação e a restruturação do passivo do devedor, podendo dilatar os prazos de pagamento com a introdução de moratórias ou novo prazo de pagamento que os credores concedem ao devedor deverá aproveitar aos terceiros que pessoalmente garantem o crédito, enquanto o devedor continuar a cumprir o plano acordado. K.–Assim, não existindo, nos presentes autos, nem incumprimento de obrigação nem afetação quantitativa do crédito, deverá entender-se, salvo melhor opinião, que a aprovada modificação temporal aproveita aos terceiros que garantem o cumprimento das obrigações, sobretudo porque a dilação do tempo de execução da obrigação modificada não é irrazoavelmente excessivo ou desequilibrado face à capacidade económico-financeira dos sujeitos envolvidos, sejam credores sejam garantes. L.–Também o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, no processo n.º 1066/19.5T8VFZ.L1-1 de 28.04.2020, refere que “Acrescentando, ainda, e agora numa perspetiva que atende aos efeitos práticos de interpretação diversa, que impedir que as modificações supra referidas se estendam aos terceiros garantes seria o mesmo que consentir num venire contra factum proprium (na suposição que os credores votaram favoravelmente) e, simultaneamente, possibilitar que o credor se desinteresse de imediato do PER, concentrando-se na perseguição do garante, realçando que a interpretação que defende não se revela intolerável ou excessivamente oneroso para o credor, porquanto não está em causa o retirar à garantia a sua finalidade natural (garantia de cumprimento) devendo, antes, ser contextualizada no âmbito da recuperação do devedor (…).” M.–Continua o Tribunal da Relação de Lisboa, “(…) Donde decorrer que o credor do direito não se encontra limitado no direito de accionar de imediato o avalista desde que haja incumprimento do pagamento por parte do devedor principal e ainda que o mesmo se encontre abrangido por um plano de recuperação insolvência, ou dizemos nós, por identidade de razão no âmbito de um PER. (…)” N.–A constatação da realidade sociológica permite concluir que, em regra, os terceiros que prestam garantias pessoais para financiamento de empresas são os seus sócios ou gerentes, conforme ocorre nos presentes autos. Assim, do ponto de vista geral da solução proposta, esta justifica-se para evitar uma excessiva onerosidade ou penalização os garantes que também são gerentes ou administradores das empresas, expondo o seu património pessoal ou familiar, quando a dívida garantida se encontra a ser paga. O.–Pelo exposto, é evidente que, tendo em consideração que os administradores expuseram o seu património, pessoal e familiar, para garantir uma dívida, que se encontra a ser paga, justifica-se que o estipulado no plano de revitalização seja extensível àqueles, nomeadamente por não estar prevista a condição principal para que a garantia seja accionada, isto é, o incumprimento da obrigação, muito pelo contrário. Terminam requerendo a alteração da sentença no sentido de as medidas do PER serem extensíveis aos avalistas, impedindo o prosseguimento da execução. Não foram apresentadas contra-alegações. * II–OBJECTO DO RECURSO Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. De notar, também, que o tribunal de recurso deve desatender as conclusões que não encontrem correspondência com a motivação - cf. A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, 3ª edição, pág. 95. Assim, perante as conclusões da alegação dos embargantes/recorrentes há que apreciar se as medidas inseridas em plano de revitalização, aprovado e homologado, relativo ao devedor principal, podem opostas pelos avalistas ao exequente. Colhidos que se mostram os vistos, cumpre apreciar e decidir. * III–FUNDAMENTAÇÃO 3.1.–FUNDAMENTOS DE FACTO Na primeira instância foram considerados assentes os seguintes factos: 1)–Em 23/11/2019, a exequente instaurou execução para pagamento de quantia certa contra B e C, peticionando o pagamento coercivo da quantia de € 88 889,12. 2)–Apresentou como título executivo quinze letras, aceites pela sociedade Classe e Distinção - Comércio e Vestuário, SA, e avalizadas pelos embargantes, juntas nos autos principais e que aqui se dão por reproduzidas. 3)–Com o não pagamento das letras, a exequente suportou os custos constantes dos documentos n.ºs 17 a 31, juntos com o requerimento executivo, que aqui se dão por reproduzidos. 4)–A Classe e Distinção- Comércio e Vestuário, SA, submeteu-se a PER, que corre termos no Juízo de Comércio de Santo Tirso - J4 - do Tribunal Judicial da Comarca do Porto sobre o nº 2576/19.0T8STS, que culminou com a aprovação e homologação judicial do Plano de Recuperação, por sentença de 08-03-2020, oportunamente transitada. 5)–A exequente/embargada foi parte nesse PER, com crédito comum. 6)–O Plano de Recuperação relativamente aos créditos comuns estabeleceu que: «• Consolidação, para efeitos do PER, do montante em dívida a 6 de agosto de 2019; • Pagamento da totalidade do valor consolidado em 108 prestações mensais e sucessivas, sendo que serão pagos, em ordem cronológica, 15% em 36 prestações constantes, 20% em 24 prestações constantes, 45% em 36 prestações constantes e 20% em 12 prestações constantes; • Existência de período de carência de capital de 12 meses, porquanto a primeira prestação do acordo vencer-se-á no último dia do 13º mês seguinte ao trânsito em julgado da sentença de homologação do PER; • Relativamente aos valores sob condição, no valor indicativo de 26.809€, será paga a totalidade do capital nos exatos termos dos restantes créditos destes fornecedores, caso a condição se verifique. • Perdão de juros vencidos e vincendos.» * 3.2.–APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO A exequente instaurou a execução de que os presentes embargos de executado constituem apenso alegando ter celebrado com a sociedade Classe e Distinção, S. A. um contrato mediante o qual lhe vendeu diversos artigos têxteis, sendo que, para pagamento do preço das mercadorias, a sociedade compradora aceitou diversas letras de câmbio à exequente, que foram sendo sucessivamente reformadas; apesar das reformas, o preço das mercadorias não foi integralmente pago, encontrando-se por pagar as letras que apresenta como título executivo, com data de vencimento a 30 de Agosto de 2019, num total de 86 216,15 €; as letras foram apresentadas a pagamento e não foram pagas; os executados deram o seu aval à sociedade aceitante. Os embargantes opuseram-se à execução referindo que, em Agosto de 2019, a sociedade Classe e Distinção S.A., iniciou um processo especial de revitalização, que estava pendente à data do vencimento das letras; a sociedade aceitante negociou o plano de revitalização e votou favoravelmente, tendo sido aprovado, pelo que o crédito exequendo será pago no seu cumprimento; mais alegaram que o incumprimento da obrigação é condição para que o garante possa ser chamado a cumprir em vez do devedor principal, o que, face à aprovação do plano de revitalização, não se verifica, devendo o novo prazo de pagamento concedido pelos credores aproveitar aos terceiros garantes. A sentença recorrida apreciou a questão em referência nos seguintes termos: “1.–Segundo o disposto no n.º 1 do art.º 17.º-A do CIRE, o PER destina-se a permitir à empresa que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes um acordo conducente à sua revitalização. Por sua vez, como resulta do n.º 1 do art.º 17.º-E do CIRE, o PER obsta à instauração ou à prossecução de ações para cobrança contra o devedor. Seguindo de perto o entendimento constante do Acórdão do TRL de 06.06.2019 (Proc. n.º 38/18.1T8LRS-A.L1-6, acessível em www.dgsi.pt), trata-se de uma norma restritiva do direito de ação e, por conseguinte, de uma exceção ao princípio geral do direito a exigir judicialmente o cumprimento da obrigação, estabelecido no art.º 817.º do C.Civil, que o legislador, no PER, dirigiu apenas a favor do devedor, protegendo-o. Por isso, estão fora da eficácia do PER todos os demais devedores ou garantes das obrigações objeto do PER, à semelhança do que sucede com o art.º 88.º, n.º 1, do CIRE, como sejam, nas obrigações plurais, os condevedores solidários ou parciários; nas obrigações com garantia, os terceiros garantes [tanto garantes principais (o avalista ou o obrigado por garantia autónoma), como garantes subsidiários (o fiador) e os garantes reais]. Isto porque se trata de terceiros em relação ao âmbito de eficácia do PER, pois não são eles quem está em situação económica difícil ou em situação de insolvência para efeitos daquele procedimento. Por isso, pode o credor deduzir reclamação de créditos no PER e, simultaneamente, intentar execução contra outros devedores, como condevedores (fiadores), avalistas e terceiros garantes, em geral. 2.–Por outro lado, as medidas adotadas no PER não se estendem aos garantes. Conforme se pode ler no referido Acórdão: «O artº 17º-F nº 5 do CIRE determina que o juiz decide se recusa ou se homologa o plano de recuperação aplicando, com as necessárias adaptações, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no capítulo IX, em especial o disposto nos artº 215º e 216º. Como bem salienta Rui Pinto (Eficácia do Processo…cit., pág. 73), a norma do artº 17º-F nº 5 do CIRE tem de ser lida com algum cuidado, tanto quanto ao seu destinatário como quanto ao seu objeto.O destinatário é o juiz e a remissão é para as regras sobre “aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no capítulo IX”. Ou seja, o preceito remete para normas operativas da atividade do tribunal e não para normas relativas à eficácia externa do plano de recuperação como sucede com a previsão do artº 217º nº 4 do CIRE. O regime da eficácia da decisão de homologação, incluindo na vertente da sua eficácia externa resulta da norma do artº 17º-F nº 6, onde se determina a eficácia da medida sobre os credores, mesmo os que não tomaram parte nas negociações. E dessa norma decorre que a decisão judicial homologação do plano não tem efeitos sobre os não credores, condevedores e garantes, sendo ineficaz relativamente a eles (Cf. TRL, de 27/10/2015, Rosa Ribeiro Coelho). Continuando com Rui Pinto (Eficácia do Processo…cit., pág. 74) esta “…solução é conforme ao princípio sobre os limites do caso julgado que envolva parte de uma pluralidade de credores: o caso julgado entre o credor e um dos devedores não é oponível aos restantes devedores ou ao fiador como aflora expressamente nos artºs 522º, 635º e 717º nº 2 do CC…”. A decisão judicial de homologação do plano apenas tem efeitos materiais na parte da dívida respeitante ao devedor do PER sendo ineficaz quanto aos terceiros. “Portanto, não somente o artº 217º nº 4 não tem aplicação subsidiária ao PER como apresenta natureza excecional que exclui a sua aplicação analógica”. (Rui Pinto, Eficácia do Processo…cit., pág. 74).» Assim, o plano de recuperação aprovado e homologado no PER só vincula os credores e o devedor que se apresentou à revitalização e o aí acordado quanto à dívida deste (moratórias, períodos de carência, perdão de juros de mora, extinção parcial da dívida) não é extensível às obrigações dos condevedores nem dos garantes, nem por estes invocável, mantendo-se inalterada a responsabilidade dos avalistas quanto ao montante e às condições da dívida. Se assim não fosse, no caso das garantias, frustrar-se-ia o seu fim, pois a sua constituição tem como função cobrir riscos deste género. Acresce que só esta solução está de acordo com o espírito do PER, tendo em conta que a aplicação do regime imposto no art. 17º-E, n.º 1, do CIRE aos condevedores e terceiros garantes consubstanciaria uma restrição injustificada do direito dos credores. Daqui decorre que a aprovação e homologação judicial do Plano de Recuperação da Classe e Distinção- Comércio e Vestuário, SA, não impede o prosseguimento da execução contra os embargantes/avalistas, nem as medidas adotadas no PER lhes são extensíveis.” Os executados/embargantes insurgem-se contra o assim decidido sustentando que, prevendo o plano aprovado uma moratória, não se verifica o incumprimento da obrigação, pelo que a modificação da obrigação deve aproveitar aos garantes enquanto a devedora principal mantiver o cumprimento da obrigação garantida, para além do que sendo eles os administradores da sociedade sacada, expuseram o seu património pessoal para garantir a dívida, que está a ser paga, o que justifica que o estipulado no plano de revitalização lhes seja extensível. Colocam, assim, em causa a exigibilidade da obrigação exequenda. A oposição à execução por embargos constitui um incidente de natureza declarativa, enxertado no processo executivo e dele dependente, através do qual o executado requer ao tribunal a improcedência total ou parcial da execução, mas não deixa, contudo, de tomar o carácter de uma contra-acção destinada a impedir a produção dos efeitos do título executivo, sendo estruturalmente autónoma, ainda que funcionalmente ligada à acção executiva. Sendo uma verdadeira acção declarativa enxertada no processo executivo, ainda que com especialidades próprias, e não uma contestação à petição executiva, o executado/embargante e o exequente/embargado, não deixam de ter de cumprir o ónus de alegação, sendo-lhes aplicáveis os critérios gerais da repartição do ónus da prova (cf. art. 342º do Código Civil), cabendo ao embargante a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito que o exequente invoca e, presumidamente existe, nos termos em que é documentado pelo título executivo – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26-04-2016, processo n.º 36/14.4TBNLS-A.C1[5]. O art. 10º, n.º 4 do CPC estatui: “Dizem-se «ações executivas» aquelas em que o autor requer as providências adequadas à realização coativa de uma obrigação que lhe é devida.” E o n.º 5 deste normativo legal acrescenta: “Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva.” Por norma, a acção executiva prescinde da apreciação sobre a existência ou configuração do direito exequendo, daí que a realização coactiva duma prestação devida dependa de dois tipos de condição: a)-a existência de título executivo – o dever de prestar tem de constar de um título, constituindo este pressuposto formal que condiciona a exequibilidade do direito, conferindo-lhe o grau de certeza que se entende suficiente para admitir a execução (exequibilidade extrínseca); b)-a prestação deve mostrar-se certa, exigível e líquida - certeza, exigibilidade e liquidez são pressupostos de carácter material (exequibilidade intrínseca). José Lebre de Freitas qualifica a certeza, exigibilidade e liquidez como “condições da acção executiva, enquanto características conformadoras do conteúdo duma relação jurídica de direito material”, que, porém, só constituirão requisitos autónomos da acção executiva “quando não resultem já do título executivo (art. 802); caso contrário, diluem-se no âmbito das restantes características da obrigação e a sua verificação é, tal como elas, presumida pelo título […]” – cf. A Acção Executiva à Luz do Código Revisto, 2ª edição, pág. 26. A acção executiva pressupõe o incumprimento da obrigação que emerge do próprio título dado à execução e que o direito nele inscrito esteja definido e acertado. O título executivo contém a definição da relação jurídica, constituindo a base da execução, por ele se determinando o fim e os limites da acção executiva – cf. art. 10º, n.º 5 do CPC. “Temos assim que a relevância especial dos títulos executivos que resultam da lei deriva da segurança tida por suficiente da existência do direito substantivo o que permite dispensar a prévia indagação sobre se existe ou não o direito de crédito que consubstancia e faz presumir a existência e exigibilidade da obrigação exequenda. O título constitui condição da acção executiva e a prova legal da existência do direito nas suas vertentes fáctico-jurídicas. Nesta conformidade o título executivo é condição necessária e suficiente da acção. Necessáriaporque não há execução sem título. Suficiente porque, repete-se, perante ele, deve ser dispensada qualquer indagação prévia sobre a real existência ou subsistência do direito a que se refere. Efectivamente a obrigação exequenda tem de constar no título o qual, como documento que é, prova a existência de tal obrigação. O título executivo é um pressuposto da acção executiva na medida em que confere ao direito à prestação invocada um grau de certeza e exigibilidade que a lei reputa de suficientes para a admissibilidade de tal acção.” – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 9-10-2018, processo n.º 154/17.7T8ALD.C1. Nos autos de execução de que os presentes embargos constituem apenso a exequente apresentou como título executivo quinze letras avalizadas pelos executados, ora recorrentes. Os títulos de crédito, como é o caso da letra, constituem títulos executivos passíveis de basearem uma execução, atento o estatuído no art. 703º, n.º 1, c) do CPC. A mencionada alínea c) do n.º 1 do art. 703º do CPC decompõe-se em duas normas com previsões distintas, quais sejam: à execução podem servir de base títulos de crédito e à execução podem servir de base títulos de créditos, meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo. Na primeira previsão estão em causa “documentos que incorporam certo direito de crédito – o crédito não existe sem o título -, caracterizados pela literalidade, autonomia e abstração. Eles valem nos estritos limites objetivos e subjetivos do que enunciam e independentemente das vicissitudes que afetem a relação subjacente que lhes dá causa. Por isso […] a causa de pedir da sua execução consiste no facto aquisitivo do direito à prestação pecuniária – cambiária, diga-se – e não a relação subjacente (causa debendi) correspondente a esse direito.” – cf. Rui Pinto, A Acção Executiva, 2019 Reimpressão, pág. 193. Uma das características do negócio cambiário, para além da formalidade, é a sua abstracção, ou seja, embora pressupondo uma relação jurídica anterior (subjacente ou fundamental), e podendo desempenhar uma diversidade de funções económico-jurídicas[6] é independente da sua causa, da função determinada que visa. No entanto, embora seja abstracto, o negócio cambiário radica sempre numa causa, sucedendo, apenas, que esta é separada daquele, decorrendo não dele próprio, mas de uma convenção subjacente, extracartular, sendo que os vícios de que esta padeça não poderão ser opostos ao portador mediato de boa-fé, mas já o poderão ser ao portador imediato. Sendo o título executivo uma letra, quem nele se obriga, mediante a aposição da respectiva assinatura, assume a respectiva obrigação cambiária. A letra de câmbio, cujo documento deve conter os dados indicados no art.º 1º da LULL, é um título de crédito à ordem, sujeito a determinadas formalidades, pelo qual uma pessoa (sacador) ordena a outra (sacado) que lhe pague a si ou a terceiro (tomador) determinada importância, representando, pois, a forma de uma ordem de pagamento. A letra incorpora um direito de crédito pecuniário, constituindo um título à ordem, ou seja, circula por endosso – cf. art.º 11º da LULL. O saque é o negócio cambiário que cria o título. “É um negócio unilateral abstracto que tem por conteúdo uma ordem dirigida ao sacado para que pague uma quantia ao tomador ou à sua ordem e uma promessa dirigida ao tomador ou à sua ordem de que o sacado irá aceitar e pagar a letra e que, caso tal não suceda, o sacador pagará ele próprio.” – cf. Pedro Pais de Vasconcelos, Direito Comercial – Títulos de Crédito, AAFDL 1990, pág. 107. É através do aceite (cf. art.º 21º da LULL) que o sacado se torna obrigado cambiário, assumindo a obrigação de pagar a letra. É o negócio jurídico cambiário, unilateral e abstracto, pelo qual o sacado aceita a ordem de pagamento que lhe foi dirigida pelo sacador e promete pagar a letra no vencimento ao tomador ou à sua ordem – cf. art.º 28º da LULL O art.º 30.º da LULL estabelece que o “pagamento de uma letra pode ser no todo ou em parte garantido por aval”. O aval é o negócio cambiário unilateral e abstracto que tem por conteúdo uma promessa de pagar a letra e por função a garantia desse pagamento, tendo de ser prestado a favor de um dos obrigados – cf. art.ºs 30º e 31º da LULL. O aval é garantia não subsidiária mas cumulativa, porque não goza do benefício de excussão prévia e o avalista responde solidariamente, nos termos do art. 47º § 1º da LULL, introduzindo um novo valor patrimonial que acresce ao valor patrimonial de direito do crédito que é próprio da operação, garantindo-o. É garantia cambiária do pagamento da letra e não obrigação de cumprimento da obrigação avalizada. A maioria da doutrina tende a considerar o aval como uma garantia pessoal especial, distinta da fiança, materialmente autónoma (cf. art. 32º, 2º parágrafo, primeira parte da LULL) e formalmente dependente (cf. art. 32º, 2º parágrafo, segunda parte da LULL) da obrigação avalizada. Atente-se nos dizeres constantes do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-05-2011, processo n.º 5903/09.34TVLSB.L1.S1: “O aval é uma garantia cambiária unilateral, não receptícia; abstracta, formal e escrita; espontânea e independente; pode ser parcial e configura um direito literal autónomo. Unilateral porquanto decorre da literalidade, autonomia, abstracção dos títulos valores que suprimem perante terceiros as defesas que se sustentam da inexistência de discernimento livre ou de causa, pelo que resulta juridicamente transcendente para criar responsabilidade a existência material do acto cambiário ainda que lhe falte a causa ou existam vícios de vontade do avalista. O referido pronunciamento voluntário torna-se incondicional, irrevogável e obriga tão só pela manifestação externa da sua existência jurídica perante qualquer tomador determinado ou a determinar. Não receptícia significa que não necessita de aceitação para que possa gerar todos os efeitos, o que exclui poder considerar-se o aval como um contrato. O aval apresenta-se como uma garantia, dado que refere precisamente a sua desvinculação substancial com os actos cambiários cujo fim é desempenhar funções cambiárias principais distintas (para circulação do título, o endosso; para a sua satisfação, a aceitação) e de que o aval não surge como consequência de tais transacções mas sim por um acto espontâneo alheio ao curso normal (natural) do título de crédito e totalmente casual. Ao tratar-se de um acto cambiário a obrigação que nasce do aval é abstracta, isto é, prescinde da causa na sua relação circulatória. A qualificação da garantia pessoal fundamenta-se na adição (aglutinação) de um novo sujeito a uma ligação objectiva prévia e não ao nexo pessoal entre o avalista e o avalizado. Efectivamente, o aval, qual garantia objectiva não se vincula com a pessoa nem com a obrigação avalizada, mas tão só porque, singelamente, é uma garantia de pagamento de uma obrigação que objectivamente emerge do título. De modo que a abstracção do aval é idêntica às demais obrigações cambiárias posto que esta dá vida justamente a uma relação cartular dessa qualidade, independente e diferente.” Tendo os recorrentes prestado o seu aval à sociedade aceitante das letras dadas à execução, respondem da mesma forma que a pessoa afiançada, atento o estatuído no art. 32º da LULL. Daqui se conclui que o avalista não é um obrigado cambiário posicionado ao lado do aceitante, garantindo, de forma puramente acessória, o crédito do legítimo portador do título sobre o aceitante. Na verdade, embora a medida da responsabilidade do avalista se defina pela do avalizado, o avalista é titular de uma obrigação cambiária materialmente autónoma da que vincula o avalizado, que vive e subsiste independentemente da obrigação deste. Os embargantes, enquanto avalistas da sociedade sacada, respondem solidariamente com os demais obrigados (cf. art.º 47º, § 1º, da LULL). A obrigação do avalista mantém-se ainda que a obrigação garantida seja “nula por qualquer razão que não seja um vício de forma” - cf. art.º 32º, § 2º da LULL). A exequente, titular das letras, pode demandar os avalistas sozinhos ou conjuntamente com o aceitante da letra. Com efeito, na solidariedade entre devedores, qualquer deles responde perante o credor comum pela prestação integral, que a todos exonera – cf. art. 512º do Código Civil. Assim, para efeitos do exercício do direito de acção do portador nada obsta a que a obrigação cambiária possa ser logo exigida tanto ao obrigado aceitante como ao avalista, sendo que este é um obrigado em termos semelhantes ao próprio avalizado (art. 32º, n.º 1 da LULL). No caso em apreço, a exequente instaurou acção executiva apenas contra as pessoas singulares que apuseram a sua assinatura, a título pessoal, sob a menção “Bom por aval ao subscritor”, os aqui recorrentes. De acordo com o disposto no art. 728º do CPC o executado pode opor-se à execução, sendo que, quando esta não se baseie em sentença, pode alegar, para além dos fundamentos enunciados no art. 729º do mesmo diploma legal, quaisquer outros que lhe seria lícito deduzir como defesa no processo de declaração - cf. art. 731º do CPC. Os embargantes vieram sustentar que as letras dadas à execução não podem servir como título de crédito, porquanto a obrigação não é exigível, por não se mostrar incumprida pela devedora principal em face da aprovação do plano de recuperação, no contexto do qual foi consolidada a dívida e foi reescalonado o seu pagamento em prestações mensais e sucessivas, com um período de carência de capital de doze meses. Conforme decorre do conteúdo dos factos descritos sob os pontos 4) e 6), a sociedade subscritora da letra, Classe e Distinção, S. A., submeteu-se a PER, onde teve lugar a aprovação e homologação judicial do plano de recuperação, por sentença de 8 de Março de 2020, transitada em julgado, onde foi estabelecida a moratória supra referida, tendo a exequente participado nessas negociações, por referência ao crédito aqui em causa. Na senda do atrás explanado, a exigibilidade é uma das condições da acção executiva, ou seja, uma condição material para a realização coactiva da prestação, estando subentendida na previsão do art.º 817º do Código Civil[7], onde se exige que a obrigação não tenha sido voluntariamente cumprida. A exigibilidade é a qualidade substantiva da obrigação que deva ser cumprida de modo imediato e incondicional após interpelação ao devedor. Assim, a obrigação exigível é a obrigação que está em tempo de cumprimento. In casu, os embargantes alegam que a obrigação exequenda é inexigível, uma vez que a subscritora das letras, pessoa colectiva, está em PER, tendo a exequente reclamado o seu crédito e aprovado em determinadas condições o plano, estando os pagamentos em prestações a ser cumpridos pela sociedade. Trata-se, pois, de determinar se a obrigação exequenda é inexigível aos recorrentes, enquanto avalistas das letras dadas à execução, em virtude da aprovação e homologação do PER da sociedade aceitante. Pressupondo que esteja a ser cumprido o plano de recuperação conducente à revitalização da empresa e que a dívida é anterior à abertura do PER, nenhuma dúvida parece existir sobre a circunstância de o credor não poder exigir da empresa o cumprimento de uma dívida anterior fora do quadro fixado pelo plano, dado que a decisão de homologação vincula a empresa e os credores, mesmo que não hajam reclamado os seus créditos ou participado nas negociações, relativamente aos créditos constituídos à data em que foi proferida a decisão prevista no nº 4 do artigo 17º-C (nomeação de administrador judicial provisório) do CIRE – cf. art.º 17º-F, n.º 10 deste diploma legal, na redacção do DL n.º 79/2017, de 30 de Junho. Contudo, tal asserção já não se apresenta como linear relativamente à exigência a terceiros do cumprimento da obrigação, em observância das garantias pessoais ou reais que prestaram para assegurar tal cumprimento por parte da empresa sujeita a plano de recuperação. A execução de terceiros garantes do devedor sujeito a um PER homologado judicialmente tem suscitado divergências na doutrina e também na jurisprudência, confrontando-se duas teses: uma, que defende que as medidas adoptadas no PER se estendem aos garantes do devedor; outra, que sustenta que tais medidas não abrangem os garantes do devedor. Mais concretamente, o que importa dilucidar é se as medidas adoptadas no PER, no que concerne a condicionamentos quanto ao tempo de cumprimento da obrigação incumprida, estabelecendo moratórias, se estendem ou não aos condevedores e garantes. Com efeito, no que diz respeito à modificação da obrigação incumprida referente à existência e montante dos direitos dos credores – que não é o caso dos autos -, ainda que a questão se possa colocar no que concerne à aplicação do disposto no art.º 217.º, n.º 4 do CIRE ao plano de revitalização alcançado no PER, a maioria da jurisprudência e doutrina defende a aplicação do preceito. Portanto, o ponto é, precisamente, o de saber se a moratória quanto ao cumprimento das obrigações vencidas e em incumprimento por parte da devedora principal (empresa que iniciou o PER), enquanto o plano se encontrar em cumprimento, também aproveita aos garantes (avalistas), que avalizaram letras aceites pela devedora no âmbito da relação subjacente ou causal. Na análise desta questão, há que resolver, desde logo, se colhe aplicação ao processo de revitalização, o disposto no art.º 217.º, n.º 4, do CIRE, normativo inserido no Capítulo III do Título IX, que regula o plano de insolvência. O art.º 17º-F, n.º 7, do CIRE, na redacção dada pelo DL n.º 79/2017, de 30 de Junho, inserido no conjunto normativo referente à homologação ou recusa de homologação do plano de recuperação conducente à revitalização da empresa, estipula que são aplicáveis “com as necessárias adaptações, as regras previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 194.º a 197.º, no n.º 1 do artigo 198.º e nos artigos 200.º a 202.º, 215.º e 216.º.” Por sua vez, o art.º 17.º-A, n.º 3 do CIRE, na redacção introduzida pelo referido DL 79/2017, determina que se aplicam ao processo de revitalização “todas as regras previstas no presente código que não sejam incompatíveis com a sua natureza.” Como tal, pelo menos após 1 de Julho de 2017, data de entrada em vigor do DL n.º 79/2017, parece segura a aplicação subsidiária ao PER do disposto no art.º 217.º, n.º 4 do CIRE, dada a remissão consignada no referido n.º 3 do artigo 17.º-A, para além de, anteriormente, não ser de desprezar a remissão meramente exemplificativa constante do n.º 7 do art.º 17º-F. Veja-se, neste sentido, Rui Pinto, A execução do aval. Algumas notas com ilustração jurisprudencial, Abril de 2019, pp. 22-23:[8] “Constitui entendimento dominante o de que há lugar à aplicação do disposto no artigo 217º nº 4 CIRE: as “providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afetam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os codevedores ou os terceiros garantes da obrigação, mas estes sujeitos apenas podem agir contra o devedor em via de regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra ele os seus direitos”. No passado defendemos que o artigo 217º nº 4 CIRE, na versão da Lei nº 16/2012, de 20 de abril, não tinha aplicação ao PER: o artigo 17º-F nº 5 CIRE remetia para “as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título ix” e não para todas as regras previstas nesse título, nomeadamente as atinentes à execução e efeitos do plano (cf. artigos 217º ss. CIRE). Os efeitos do PER sobre o aval ter-se-iam de buscar no direito material. Porém, com as alterações trazidas pelo Decreto-Lei nº 79/2017, de 30 de junho o artigo 17º-F nº 7 CIRE passou a remeter para “as regras previstas no titulo ix” e o artigo 17º-A nº 3 CIRE — mas também o artigo 222º-A nº 3 CIRE, para o PEAP - passou a determinar que ao processo especial de revitalização se aplicam “todas as regras previstas no presente código que não sejam incompatíveis com a sua natureza”. Mas para além disto, importa determinar se essa norma do art.º 217º, n.º 4 do CIRE, em face da sua finalidade, é aplicável ao PER. O plano de recuperação aprovado no âmbito do PER contém um conjunto de medidas destinado à sociedade que visa a recuperação e à reestruturação do passivo do devedor, podendo prever, designadamente, uma redução das prestações mensais, condicionantes ao cumprimento, dilatando os prazos de pagamento com a introdução de moratórias, redução de juros, e ainda, eventualmente, um perdão de parte do capital das dívidas – cf. art.ºs 17.º-A, n.º 1, 17.º-F, n.º 1, e 196.º do CIRE. Por sua vez, o plano de recuperação, que não seja um mero plano de liquidação, destina-se “a prover à recuperação do devedor” – cf. art.º 192.º, n.º 3 do CIRE – através da adopção de várias medidas com incidência no passivo do devedor que podem passar, como estipula o artigo 196.º, n.º 1, alíneas a) a e), do CIRE, por, entre o mais, extinguir total ou parcialmente créditos sobre a insolvência, incidindo sobre o capital e juros, condicionamento dos reembolsos de todos os créditos ou parte deles à disponibilidade do devedor, modificação de prazos de vencimento ou de taxas de juros, constituição de garantias, cessão de bens aos credores. Assim, como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28-04-2020, processo n.º 1066/19.5T8VFX.L1-1, “não existe […] um distanciamento em termos de conteúdo, finalidade e efeitos do plano de recuperação gizado no PER ou no processo de insolvência (quando, neste processo, não seja meramente liquidatário do passivo da empresa) que evidencie incompatibilidades que justifiquem, sem mais, que não seja aplicável ao PER o regime do artigo 217.º do CIRE, que regula a execução do plano e os seus efeitos, mormente o n.º 4 do preceito, que se reporta aos efeitos das providências aprovadas no plano de recuperação na insolvência no que concerne às obrigações dos codevedores ou terceiros garantes da obrigação.” Na compatibilização dos interesses dos credores e do devedor, a previsão do art.º 217º, n.º 4 do CIRE[9] visa a aprovação de um plano de recuperação que, independentemente da posição do credor que vote o plano, não afecte os direitos de que este dispunha contra os co-devedores e terceiros garantes, a quem continua a poder exigir aquilo que resulta das garantias prestadas. Sucede que a norma é clara quando esteja em causa a existência e o montante do direito de crédito, colocando-se então a dúvida em relação à modificação dos prazos de cumprimento ou moratórias de pagamento. Quanto a este último aspecto, Catarina Serra argumenta no sentido da primeira tese supra mencionada, in Lições de Direito da Insolvência, pp. 447-453, nos seguintes termos: “[…] o plano de recuperação é um contrato. Situa-se, portanto, no domínio da liberdade contratual, o que significa que é possível convencionar as modificações às formas de satisfação do crédito que as partes pretendam, contanto que se assegure o respeito das normas imperativas. […] A questão essencial é, então, a de saber se existe alguma norma imperativa que limite aquela liberdade contratual. No regime do PER não se encontra nenhuma normas regulando a matéria mas existe ma norma no processo de insolvência com manifesta relevância para estes efeitos. É ela a norma do art. 217º, n.º 4, determinando que as providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo da empresa não afectam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os condevedores ou os terceiros garantes da obrigação, mas estes sujeitos apenas podem agir contra a empresa em via de regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra ele os seus direitos. Não se vê razões para recusar a aplicação analógica da norma do art.º 217º, n.º 4, ao PER […] mais do que simplesmente não ser incompatível com o regime do PER, a norma do art. 217º, n.º 4, apresenta-se como a norma própria ou adequada para regular a situação. Resta determinar exactamente o seu significado […] O que se diz na norma […] é que o perdão concedido ao insolvente não extingue a responsabilidade dos condevedores e garantes e que a redução do valor da dívida do insolvente não desonera os condevedores da responsabilidade de pagamento da totalidade – nada mais e nada menos. […] Ficam de fora do alcance da norma os casos em que sobre o crédito incidam providências com efeitos menos drásticos, como o condicionamento do reembolso, a modificação do prazo de vencimento ou a moratória. Confrontando a norma do art. 217º, n.º 4, com a sua predecessora [do art.º 63º do CPEREF], é possível dizer que, ao contrário do que acontecia antes, hoje se concede alguma tutela aos interesses dos credores mas uma tutela excepcional e limitada aos casos de extinção do crédito e de redução do seu montante. […] […] é possível formular duas conclusões: em primeiro lugar, que só não produzem efeitos em relação aos garantes certas modificações (a extinção e a redução do montante do crédito), estendendo-se-lhe, pois, todas as restantes; em segundo lugar, desde que sejam respeitados aqueles limites (desde que não se vise a existência nem o montante do crédito), são admissíveis modificações à forma de satisfação do crédito pelos garantes. […] Impedir a extensão das modificações aos garantes seria o mesmo que consentir num venire contra factum proprium. Dificilmente se encontraria um credor com alguma garantia pessoal que genuinamente se empenhasse na recuperação da empresa. […] A extensão ao garante das modificações que beneficiam a empresa pressupõe sempre […] um contexto de recuperação, um contexto em que seja previsível que a empresa readquirirá, num prazo delimitado e em condições definidas num plano, a capacidade para satisfazer os direitos dos seus credores. Só aí, naturalmente, faz sentido que se retire (retire) à função-garantia […] o valor absoluto que lhe é habitualmente reconhecido. Evidentemente, deverão ser salvaguardados os casos em que a extensão seja incompatível com a natureza da garantia. […] No que respeita ao caso […] aval, é […] favorável à harmonização o disposto no art. 32º, I, da LULL, onde se dispõe que o dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada.” É, aliás, ao que se depreende, nesta linha de entendimento que assenta o aresto do Supremo Tribunal de Justiça de 29-01-2019, proferido no processo n.º 1563/16.4T8AMT.P1.S2[10],em que os apelantes basearam seja a sua petição inicial de embargos, seja a argumentação recursória ora deduzida, sem, porém, rebaterem de qualquer outro modo a fundamentação da decisão recorrida, que cinge os efeitos materiais do PER ao devedor, sem atingir os terceiros, por via do disposto no art.º 17º-F, n.º 10 do CIRE. Para além deste aresto, detecta-se, na jurisprudência, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 8-01-2015, processo n.º 703/14.2TBBRG.G1, que a propósito da admissibilidade de uma cláusula do plano que estabelecia uma moratória no pagamento da dívida de avalistas, consignou, no respectivo sumário, que “da homologação de medida que estabelece uma moratória no pagamento da dívida de avalistas, não decorre violação do n.º 4 do artigo 217º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, porque a mesma não afecta a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os condevedores ou os terceiros garantes da obrigação. 3 - Esta moratória é uma condicionante que não é intolerável nem excessiva e que se justifica em prol da revitalização dos devedores com o Plano de Recuperação, a que o Apelante tem que se sujeitar por ter sido aprovado com a maioria e quórum legalmente exigidos, e assim homologado” e o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 3-03-2014, processo n.º 1327/13.7TBSTR.E1, em idêntico sentido: “A estipulação no Plano de Recuperação no Processo Especial de Revitalização, que condiciona o pagamento pelos devedores, avalistas de crédito reclamado e reconhecido, ao incumprimento do Plano de Insolvência aprovado no processo de insolvência do avalizado, onde o mesmo crédito foi contemplado, não viola os artigos 32º da LULL e 217º, n.º 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. II. Tal condicionante não é intolerável e justifica-se em prol da revitalização dos devedores com o Plano de Recuperação, a que o credor tem que se sujeitar por resultar do acordo dos credores e ter sido aprovado com a maioria e quórum legalmente exigidos, e assim homologado.”; e ainda o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24-04-2012, processo n.º 1248/10.5TBBCL-A.G2. Como se dá conta no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 6-06-2019, processo n.º 38/18.1T8LRS-A.L1-6, adoptam este entendimento Luís M. Martins, Processo de Insolvência, 3ª edição, pp. 466-468, referindo que com a homologação do PER surge uma nova dívida que se repercute na relação entre o credor e o avalista, que pode invocá-la em oposição à execução; Bertha Parente, Da aplicação das normas relativas ao processo de insolvência ao plano de recuperação conducente à Revitalização, II Congresso de Direito da Insolvência, 2014, pág. 275, que defende que os terceiros garantes podem invocar a inexigibilidade do crédito decorrente da aprovação do PER e escusarem-se ao cumprimento da obrigação garantida nos termos inicialmente previstos por força do princípio da acessoriedade; no mesmo sentido, Catarina Peixoto, A Responsabilidade do Avalista pelas Dívidas do Insolvente por ele afiançadas no Âmbito da Reestruturação dos Créditos, Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Direito de Universidade de Coimbra, 2017[11], pág. 45, aderindo à posição de Catarina Serra e aos fundamentos por esta aduzidos. Em sentido diverso e seguindo a segunda tese supra identificada, Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, referem que, independentemente da posição assumida no processo, o credor mantém intocados os direitos de que dispõe contra os terceiros garantes podendo exigir-lhes aquilo a que estavam obrigados e, em anotação ao art.º 217º, n.º 4 do CIRE, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª Edição Lisboa 2015, pág. 794, explanam: “Embora convenhamos em que a solução da questão não emerge literalmente do preceito em consideração, cremos que o espírito que lhe preside e os fins que o determinam devem conduzir a uma solução de princípio diferente. Com efeito, não se descortinam razões determinantes para concluir diferentemente, conforme se esteja perante uma extinção – total e parcial – de dívida ou, simplesmente, o seu reescalonamento, protegendo melhor o credor na primeira situação. Potenciar-se-iam, aliás, resultados perversos, contrários ao interesse da generalidade dos credores e do próprio devedor, que o plano de insolvência intenta promover: por um lado, criar-se-ia um obstáculo ao apoio do credor a planos de reescalonamento de dívidas quando beneficie de garantias pessoais; além disso, os credores seriam induzidos a preferir o perdão face à recalendarização, o que, aliás, redundaria em prejuízo dos próprios garantes. De resto, na hipótese de se cumularem – como, aliás, é frequente – a redução e a moratória para um mesmo crédito não deixaria de ser algo estranho que a posição final do titular com relação aos garantes fosse objecto de um tratamento diferenciado, tutelando-o mais onde o garante é mais prejudicado.” Também Rui Pinto, op. cit., pp-27-28, parece propender neste sentido: “Efetivamente, à pergunta de se o plano de recuperação pode alterar não somente as condições dos créditos sobre o devedor, mas também as condições das garantias prestadas por terceiro, e sem prejuízo de alguma doutrina favorável, o grosso da jurisprudência tem concluído que tais medidas violam “de forma grosseira e não negligenciável, regras relativas ao conteúdo do plano, nomeadamente o disposto no nº 4 do art. 217º do CIRE”, sendo nulas ou ineficazes, pelo que o juiz não o deve homologar, por força do artigo 17º-F nºs 5 [atual artigo 17º-F nº 7] e 215º CIRE. […] Este entendimento quanto às consequências da aplicação do artigo 217º nº 4, por força do disposto no artigo 215º, e os artigos 17º-A nº 3 e 17º-F nº 7, ao PER do avalizado tem um lado de direito substantivo que importa notar. Ele é o seguinte: se a mera sujeição do devedor aos efeitos de um PER homologado não consubstancia em si mesma incumprimento (STJ 29-1-2019/Proc. 1563/16.4T8AMT.P1.S2 (MARIA OLINDA GARCIA)), porém, decorre daquele artigo 217º nº 4 CIRE (como afirmado pela jurisprudência dominante) que para o avalista ou o fiador se mantém a data de vencimento original. Ou seja: que a data relevante para se aferir o incumprimento é a original e não a data fixada em “reescalonamentos” em sede de PER (ou de PEAP) das dívidas avalizadas. Por isso, vencidas as obrigações do devedor garantido, nas datas iniciais, podem ser executados os fiadores ou os avalistas. Naturalmente, que enquanto não se der esse incumprimento aferido à luz das condições contratuais iniciais não se pode cobrar os garantes. Para tal, é irrelevante se esse vencimento se deu antes, durante ou depois da pendência do processo especial de revitalização.” Carolina Cunha, aceita, em termos apenas genéricos, que o avalista não se pode defender com as excepções próprias do avalizado, dada a autonomia (cf. art.º 32º II da LULL) da sua obrigação cambiária e a circunstância de se estar numa relação cambiária mediata, quando se esteja perante um título de crédito totalmente preenchido, pois que “se, no próprio plano cambiário, a nulidade da obrigação do avalizado não se comunica à vinculação assumida pelo avalista, por maioria de razão não há-de ser possível ao avalista invocar vicissitudes extracambiárias atinentes ao avalizado para justificar uma recusa de cumprimento da sua própria obrigação”, só não sendo assim nas situações em que avalista e credor estejam ligados por uma convenção extracartular, mas admite a interferência da aprovação do plano de revitalização quando se esteja perante um título subscrito em branco, pois que num contexto pré-insolvencial não ocorre inevitavelmente um incumprimento da obrigação fundamental, podendo suceder que à data em que é homologado o plano não exista ainda um incumprimento, não chegando a verificar-se o preenchimento e a constituição do crédito cambiário, concluindo que não existe uma lacuna de regulamentação da situação dos garantes de uma obrigação afectada pelo plano de revitalização, que deve encontrar solução no regime geral da garantia concreta prestada – cf. A execução do avalista após homologação do plano de revitalização do avalizado – Anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Maio de 2017, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 147º, N.º 4007, pág. 128 e seguintes. Crê-se que será de perfilhar a segunda das teses indicadas, seja em respeito do regime substantivo do aval e da responsabilidade dos terceiros garantes, seja pela circunstância de não ser convincente o argumento do venire contra facutm proprium convocado por Catarina Serra, porquanto a genuinidade do empenho do credor na aprovação do plano provirá, certamente, da circunstância de se saber ainda protegido pelas garantias prestadas, sem prejuízo de, em última instância, manter-se sempre o risco de não alcançar a satisfação do seu crédito, ainda que demande o terceiro garante. Além disso, se o credor vota favoravelmente um plano de revitalização fá-lo em função daquele devedor e das respectivas dificuldades, mas sem que daí se retire que pretende abdicar das garantias que o avalista lhe proporciona, tanto mais que, a ser assim, provavelmente seria outro o seu sentido de voto. Acresce que, no quadro de um contrato que se estabelece colectivamente entre o devedor e os seus credores, sujeito a homologação judicial, a que os garantes são alheios, não se vê como o voto favorável de um credor possa ser tido como uma actuação contrária à intenção de exercer o seu direito contra o terceiro garante, quando decorre da lei que este não integra sequer tais negociações e, mais do que isso, que a sua obrigação não é afectada pelas vicissitudes da relação fundamental. Ademais, as características do aval acima enunciadas, a sua literalidade, autonomia e abstracção, prescindindo aquele de causa na sua relação circulatória, garantindo o pagamento de uma obrigação que objectivamente emerge do título, justificam que a obrigação dele decorrente permaneça alheia às vicissitudes da relação existente entre o devedor e o credor. Veja-se, neste sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28-04-2020, processo n.º 1066/19.5T8VFX.L1-1: “[…] é incontornável que a interpretação extensiva da previsão do artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, aos casos em que o plano estabelece uma moratória quanto aos prazos de cumprimento da obrigação, não se pode desligar do regime jurídico da garantia que, no caso, seja aplicável. Esse será efetivamente, em nosso entender, o critério definitivo que, perante cada caso concreto, há que ponderar aquando da prolação da decisão de homologação, ou de recusa dessa homologação, do plano de recuperação aprovado num PER que tenha consignado cláusulas como aquela que se apresenta na situação em análise. […] A função do aval é uma função de garantia (pessoal) das obrigações cartulares, inserida ao lado da obrigação de um certo subscritor cambiário, a cobri-la ou caucioná-la, sendo o dador de aval, nos termos do artigo 32.º, n.º 1, da LULL, responsável da mesma maneira que a pessoa por ele avalizada, o que significa que a medida da responsabilidade do avalista é a do avalizado. Ou seja, a sua obrigação tem a mesma extensão e conteúdo que a do avalizado. Porém, o aval é uma garantia dada pelo avalista à obrigação cambiária e não em relação à obrigação extracartular ou subjacente, ou seja, a obrigação do avalista adquire a tipicidade das obrigações cambiárias (abstração, autonomia e literalidade). O aval é irrevogável e não pode estar sujeito a condição, respondendo o avalista por uma obrigação autónoma, própria, direta e pessoal, não com o avalizado, mas perante o credor cambiário, pelo pagamento do título. O avalista garante que o título será pago e não que o avalizado o pagará. Daí que o avalista assuma igual responsabilidade cambiária de igual grau que a do avalizado. Consequentemente, a obrigação do avalista subsiste independentemente da obrigação do avalizado, como resulta do artigo 32.º da LULL […] Para além do vício de forma, apenas o avalista pode opor ao portador a exceção de pagamento, nada mais que se reporte a exceções passíveis de serem opostas pelo devedor principal ao respetivo credor. Assim, «(…) a responsabilidade do avalista não é subsidiária da do avalizado. Trata-se de uma responsabilidade solidária. O avalista não goza do benefício da excussão prévia, mas responde pelo pagamento da letra solidariamente com os demais subscritores (art. 47º, I). Além de não ser subsidiária, a obrigação do avalista não é, senão imperfeitamente, uma obrigação acessória relativamente à do avalizado. Trata-se de uma obrigação materialmente autónoma, embora dependente da última quanto ao aspecto formal. De facto, a lei estabelece o princípio de que a obrigação do avalista se mantém, ainda que a obrigação garantida seja nula.» (Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, vol. III, Letra de Câmbio, Coimbra, 1966, p. 203 e ss). Como se consignou no corpo do AUJ proferido em 11-12-2012 (DR, I Série, n.º 14, de 21-01-2013, p. 433 e ss) «o avalista não se obriga perante o avalizado mas sim perante o titular da letra ou livrança […] «A circunstância de a relação subjacente se modificar ou possuir contornos de renovação não induz ou faz seguir que esses efeitos se repercutam ou obtenham incidência na relação cambiária. A relação cambiária constituída permanece independente às mutações ou alterações que se processem na relação subjacente, não acompanhando as eventuais transformações temporais e/ou qualidades da obrigação causal», para concluir que a funcionalidade e a estrutura do aval «não são passíveis de ser redutíveis a relações contratuais ou de concertação de vontades» e sendo uma figura jurídico-comercial distinta de outras garantias pessoais, mormente da fiança, o aval «não pode ser reconvertível a um contrato consensualizado entre o avalista e qualquer dos demais obrigados cambiários (…).» Por força do disposto nos artigos 43º a 48º da LULL., aplicável ex vi do artigo 77º do mesmo diploma, o portador pode exercer o seu direito de ação contra qualquer obrigado cambiário, reclamando o pagamento da livrança não paga, bem como juros, despesas de protesto, avisos dados e outras despesas. […] É verdade que o avalista do subscritor da livrança responde perante o portador do título nos termos em que este responde, podendo ser acionado pelo portador, individualmente ou juntamente com os demais subscritores. Mas, como já referido, o avalista não é responsável ou não se obriga ao cumprimento da obrigação constituída pelo avalizado (obrigação subjacente), mas ao pagamento da quantia titulada no título de crédito (obrigação cartular), constituindo esta uma obrigação autónoma e independente daquela. Ora, estas caraterísticas do regime jurídico do aval evidenciam que a obrigação do avalista é imune a alterações introduzidas por via contratual na estrutura da obrigação subjacente, ainda que até tenham sido aceites ou impostas pela regra das maiorias em sede de aprovação de um plano de recuperação em sede de PER. Torna-se, pois, mais percetível que o legislador ao redigir o artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, se tenha alheado até da questão da votação favorável do plano, uma vez que o direito de ação contra os codevedores e garantes apenas poderá sofrer limitação em função das normas substantivas que regem a contitularidade e as garantias prestadas. Daí que, salvo o devido respeito, não tenha qualquer apoio na lei defender que o devedor principal e o credor tenham a faculdade, ao abrigo do princípio da liberdade contratual, de limitar, ainda que temporariamente, o direito do credor contra o avalista das livranças subscritas pela devedora e avalizadas por terceiro quando a obrigação cartular garantida se encontra em incumprimento. A questão é mesmo de inoponibilidade desse acordo por parte do avalista ao portador do título cambiário. Nada mais, nem menos do que isso. Donde decorre que o credor do direito não se encontra limitado no direito de acionar de imediato o avalista desde que haja incumprimento do pagamento por parte do devedor principal e ainda que o mesmo se encontre abrangido por um plano de recuperação insolvencial ou, dizemos nós, por identidade de razão, no âmbito de um PER. A larga maioria da jurisprudência tem alinhado neste sentido e tem sido essa a jurisprudência que o STJ tem vindo a aplicar noutros arestos, mormente no âmbito da oposição à execução instaurada pelo credor contra o avalista estando o devedor principal abrangido por um plano de insolvência.” Adere-se a tais argumentos precisamente porque se impõe realçar a finalidade e função das garantias prestadas, não podendo o devedor em situação de pré-insolvência beneficiar da contemporização dos seus credores que, perante cedências, o auxiliarão na manutenção da actividade sem entrar em incumprimento generalizado das suas obrigações e, simultaneamente, repercutir os efeitos do plano nas obrigações dos terceiros garantes que se obrigaram precisamente em vista de garantir a solvência dos créditos. Carolina Cunha aponta, precisamente, para a limitação da concepção que cinge a função negocial de garantia à verificação de um vínculo de interdependência e de subordinação entre a obrigação garantida e a obrigação do garante, pois que a função de garantia pode ser desempenhada por uma multiplicidade de esquemas estruturais, incluindo a criação de uma obrigação independente, de modo que o avalista não garante a obrigação do avalizado, mas sim o pagamento da letra, o seja, vincula-se a garantia o resultado programado – cf. Manual de Letras e Livranças, 2016, pp. 40-41. E, como sustentam Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis, in O Processo especial de revitalização – Comentários aos artigos 17º-A a 17º-I do Código da Insolvência e da Recuperação da Empresa, apud Catarina Serra, op. cit., pág. 450, nota 680, é ainda por identidade de razão que o plano de pagamentos ou a moratória estabelecidos no plano serão, tal como a redução ou perdão da dívida, inoponíveis aos garantes, tanto mais que o plano é aprovado e homologado para recuperar a empresa e não para afastar a responsabilidade de terceiros, o que inquinaria a razão subjacente à prestação da garantia, que visa assegurar o cumprimento da obrigação, independentemente das causas que venham a motivar um eventual incumprimento, como é o caso do estado de insolvência ou de quase-insolvência. Em suma, o avalista não pode invocar perante o portador das letras as providências previstas no plano de revitalização do avalizado. Ou seja, os terceiros garantes, tal como os aqui recorrentes, não beneficiam das modificações sofridas pelo crédito por força do plano de recuperação, seja em termos de redução do crédito, seja, como é o caso, no âmbito do reescalonamento do pagamento, pelo que a aprovação do PER não obsta à instauração e prosseguimento da execução onde lhes é exigido o pagamento da quantia titulada pelas letras, sendo certo que, no caso, a data de vencimento destas, que se mantém inalterada face aos garantes, já se verificou, e o pagamento não ocorreu. Note-se, que é este o sentido maioritário da jurisprudência, não se vislumbrando razões para dela dissentir, pelos motivos supra expendidos, podendo elencar-se os seguintes arestos que concluíram pela inviabilidade de o avalista beneficiar do plano de revitalização aprovado a favor do subscritor: – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4-05-2017, processo n.º 206/14.5T2STC-A.E1.S1.S1; – Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 20-09-2020, processo n.º 5332/15.0T8ALM-A.L1-6; de 24-10-2019, processo n.º 9171/16.3T8LRS-A.L1; de 7-06-2018, processo n.º 7643/14.3YYLSB-A.L1; de 7-06-2018, processo n.º 7643/14.3YYLSB-A.L1-2; de 6-04-2015, processo n.º 125-13.2TCFUN-A.L1-6; – Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 6-03-2014, processo n.º 1030/13.8TBTMR-B.C1; de 12-01-2015, processo n.º 808/14.0TBCVL-A.C1;´ – Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 14-05-2020, processo n.º 1775/18.6T8LOU-A.P1; de 23-10-2018, processo n.º 407/17.4T8AGD-A.P1; de 18-12-2018, processo n.º 403/17.1T8AGD-b.P1; – Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-11-2019, processo n.º 824/17.0T8PTL-A.G1; de 30-05-2019, processo n.º 3830/18.3T8VNF-A.G1; de 12-05-2013, processo n.º 2088/12.2TBFAF-B.G1; de 5-12-2013, processo n.º 2088/12.2TBFAF-B.G1; – Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 28-10-2021, processo n.º 2427/19.5T8STB-A.E1; de 10-09-2020, processo n.º 7601/17.6T8STB-A.E1; de 27-02-2020, processo n.º 9414/15.0T8STB-C.E1; de 16-05-2019, processo n.º 8607/16.8T8STB-A.E1; de 7-06-2018, processo n.º 1216/15.0T8LLE-A.E1; de 24-05-2018, processo n.º 71/14.2T2STC-B.E1; de 15-11-2016, processo n.º 252/13.6TBPTM-A.E1; de 10-02-2016, processo n.º 206/14.5T2STC-A.E1. Em face expendido, a exequente, titular das letras dadas à execução, já vencidas, mantendo os direitos de que dispunha contra os terceiros garantes, os avalistas ora executados/recorrentes, apesar da aprovação do plano de recuperação em sede de PER em que interveio enquanto credora da sociedade aceitante, pode exigir daqueles tudo aquilo por que respondem, em conformidade com o regime de responsabilidade originário. Improcedem, assim, na íntegra, as conclusões das alegações do recurso, devendo manter-se inalterada a decisão recorrida. * Das Custas De acordo com o disposto no art. 527º, n.º 1 do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for. Nos termos do art. 1º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais, considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria. Os recorrentes decaem quanto à pretensão que trouxeram a juízo, pelo que as custas (na vertente de custas de parte) ficam a seu cargo. * IV–DECISÃO Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em julgar improcedente a apelação, mantendo, em consequência, a decisão recorrida. As custas ficam a cargo dos apelantes. * Lisboa, 21 de Junho de 2022[12] Micaela Marisa da Silva Sousa Cristina Silva Maximiano Amélia Alves Ribeiro [1]Adiante designado pelo acrónimo PER. [2]Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, adiante designado pelo acrónimo CIRE. [3]Adiante designado pela sigla CPC. [4]Estabelecida pela Convenção internacional assinada em Genebra em 7 de Junho de 1930, aprovada em Portugal pelo Decreto-Lei nº 23 721, de 29 de Março de 1934, e ratificada pela Carta de Confirmação e Ratificação, no suplemento do "Diário do Governo", nº 144, de 21 de Junho de 1934, adiante designada pela sigla LULL. [5]Acessível na Base de Dados Jurídico-documentais do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I.P. em www.dgsi.pt, onde se encontram disponíveis todos os arestos mencionados sem indicação de origem. [6]A obrigação cambiária pode ser assumida “pro soluto” ou “pro solvendo”, com uma função de garantia ou de pagamento, com ou sem eficácia novadora, e pode ser assumida em face das mais diversas relações jurídicas: compra e venda, mútuo, etc.” – A. Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, Vol. III Letra de Câmbio, pág. 47. [7]“Não sendo a obrigação voluntariamente cumprida, tem o credor o direito de exigir judicialmente o seu cumprimento e de executar o património do devedor, nos termos declarados neste código e nas leis de processo.” [8]Acessível em file:///C:/Users/Admin/Documents/Processo%20Civil/Execu%C3%A7%C3%A3o/PINTO,%20R.,%20A%20execu%C3%A7%C3%A3o%20do%20aval.%20Algumas%20notas%20com%20ilustra%C3%A7%C3%A3o%20jurisprudencial.%20(04.2019).pdf [9]Invertendo a orientação decorrente do art.º 63º do CPEREF que dispunha: “As providências de recuperação a que se refere o artigo anterior não afectam a existência nem o montante dos direitos dos credores contra os coobrigados ou os terceiros garantes da obrigação, salvo se os titulares dos créditos tiverem aceitado ou aprovado as providências tomadas e, neste caso, na medida da extinção ou modificação dos respectivos créditos.” [10]De que, aliás, é a referida autora primeira adjunta. [11]Acessível em bttps://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/83853/1/Catarina%20Peixoto%20Disserta%c3%a7%c3%a3o%20de%20Mestrado.pdf. [12]Acórdão assinado digitalmente – cf. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página. |