Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2294/08.4TBOER-C.L1-1
Relator: TERESA DE JESUS S. HENRIQUES
Descritores: JUSTO IMPEDIMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/28/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: i) Com o disposto no art.145º,permite-se a prática de actos sujeitos a prazos peremptórios, depois de estes terem terminado, fora dos casos de justo impedimento;
ii) A lei, na prática, alonga os prazos, sem impor a apresentação a juízo de qualquer justificação;
iii) Pode assim ser invocado como justo impedimento, um facto ocorrido num dos três dias úteis previstos no n.º5, do art.145º do CPC.
(Sumário da Relatora
Decisão Texto Parcial:Acordam os Juizes do Tribunal da Relação de Lisboa
I.Relatório
I.A.-Antecedentes processuais
A apelante notificada de sentença proferida nos autos principais, que a condenou parcialmente no pedido formulado pela apelada, interpôs recurso da mesma.
O prazo normal, para interpor recurso terminou no dia 4 de Fevereiro de 2011(6ª feira), sendo que ,com o acréscimo do art.145º do CPC, o último dia foi 09-02-2011.
As alegações deram entrada, via CITIUS, às 00,11 horas do  dia 10-02-2011.
A apelante invocou, em simultâneo, o justo impedimento que obstou à prática atempada do acto.
A apelada respondeu ao incidente pugnando pelo seu indeferimento.
O tribunal  a quo , em 14 de Fevereiro de 2011, proferiu o seguinte despacho sobre a invocação de impedimento:
“Importa apreciar – considerando que os factos que justificam uma situação de “justo impedimento” além de não se poderem referir à pessoa do Mandatário ou sua organização (CPC 146º/1), não podem ser invocados em relação ao prazo excepcional (como indica a expressão “Independentemente de justo impedimento”), neste(s) sentido(s) decidiu o STJ em 27-V-10 […], e em 27-XI-08 […]. Motivos porque não se admite o recurso da R.”
A apelante interpôs recurso deste despacho
O tribunal a quo não admitiu o recurso por entender que da decisão em crise não cabia recurso mas reclamação, e que o recurso não podia ser convolado em reclamação por ter sido interposto depois de terminado o prazo para reclamar, que coincida com o dia  de Carnaval.
Por Ac deste Tribunal, datado de 31/01/2012,foi decidido que:
i) A reclamação era tempestiva porquanto no ano de 2011,foi concedida tolerância de ponto aos trabalhadores que exercem funções públicas (despacho  n.º37729/2011 de 23-02-2011),sendo aplicável o disposto no art.144º,n.º2 e 3 ,do CPC;
ii) O tribunal a quo devia pronunciar-se sobre as questões de fundo relativas ao justo impedimento.
Regressados os autos à primeira instância, o tribunal a quo procedeu  à apreciação da prova oferecida.
Foi então proferido despacho impugnado cujo segmento decisório é o seguinte:
“Apesar de se considerar que o justo impedimento não se pode referir à pessoa do mandatário (CPC 146º/1), importa analisar a matéria de facto supra – uma vez que parece ser outro o entendimento do Tribunal da Relação de Lisboa.
Não tendo sido apurados factos relativos às horas finais do prazo, não se pode concluir pela verificação do justo impedimento – sendo certo que a Advogada da A., tendo constatado a existência de problemas informáticos, podia ter optado por outra forma de envio da peça (“fax”) ainda no escritório.
Não se verificando justo impedimento, e tendo o recurso dado entrada no 4º dia útil subsequente ao final do prazo, mantém-se a decisão de não admissão do recurso.”
I.B.Síntese conclusiva
I.B.1-Apelante.
(…)
I.B.2.Apelada
(…)
I.C. Objecto do recurso.
A única questão colocada à apreciação deste tribunal resume-se a sabe ser a factualidade que se apurou ( e que não foi impugnada) integra o conceito de justo impedimento.
II.Fundamentação
II.A.Facto
1 – A Advogada da R. é assistente na F…, estando (em 10-II-11) desde há semanas a realizar provas orais de uma disciplina com centenas de alunos e onde só há um júri de orais, que necessariamente integra.
2 - Apesar de não ser a única pessoa com procuração nos autos, sempre foi a Advogada da R. a acompanhar o processo, não sendo exequível atribuir esta tarefa a outrem.
3 - Não foi possível pedir a colaboração da Dr.ª E., pois está ausente do País esta semana.
4 - No dia 9-II-11 a Advogada da R. esteve a realizar provas orais das 9h às 16h – estando as alegações de recurso concluídas, faltando elaborar as conclusões.
5 - Dirigiu-se então ao escritório, para continuar a trabalhar – e, entretanto, o sistema informático do escritório teve uma anomalia, que tornou o funcionamento dos computadores extremamente lento.
6 - Foram chamados os técnicos de informática, que não conseguiram resolver a situação.
7 - Perante esse facto, a Advogada da R. procedeu à emissão de DUCs e aos pagamentos da taxa de justiça e da multa (fls 3418 e 3419).
8 - Pediu aos informáticos que instalassem numa ‘pen’ o seu certificado digital, bem como o módulo de acesso remoto ao computador do escritório, de modo a permitir à Advogada da R. trabalhar em casa, ali terminando a peça, e enviando pelo ‘citius’.
9 - Era importante para a Advogada da R. sair rapidamente do escritório uma vez que tem filhas pequenas e tinha que ir buscar uma delas à escola de ‘ballet’.
10 - A empregada doméstica da Advogada da R., que geralmente leva e traz as crianças da escola e das actividades, está (em 10-II-11) doente há dias.
11 - Entretanto, a Advogada da R. descobriu que havia perdido as chaves de casa (deduzindo tê-las deixado na Faculdade).
12 - Procurou então instalar os certificados e o modo de acesso remoto no seu computador – mas não resulta: o computador dá sucessivas mensagens de erro.
13- E, assim, já só depois da meia-noite conseguiu enviar as alegações.
II.B.Direito
Antes do mais há que referir que, contrariamente ao propugnado pela recorrida, e também em alguma jurisprudência [1], não se vislumbra qualquer obstáculo à invocação da figura do justo impedimento, ainda mesmo no decurso do prazo a que se reporta o art.145º do CPC.
Mas, nada no texto da lei permite essa interpretação.
Considera-se que o acréscimo referido no art.145º do CPC, constitui parte integrante do prazo para praticar qualquer acto, dependendo a sua aplicação do pagamento da multa.
Assim a parte pode recorrer no prazo inicial, e pode optar por alongar aquele prazo, desde que pague a respectiva multa. Sem quaisquer justificações!
Ora prazo, é prazo, e ocorrendo um facto, não controlável pela parte, e que obsta à pratica do acto no último dia desse prazo, pode a parte interessada invocar o justo impedimento, como causa obstativa, independentemente da natureza do mesmo.
Maria dos Prazeres Beleza em recente acórdão[2], com resenha histórica do preceito, diz o seguinte” A redacção actual do nº 5 do artigo 145º resulta do Decreto-Lei nº 34/2008, de 26 de Fevereiro; mas a possibilidade de praticar um acto dependente de um prazo peremptório, depois de o mesmo ter terminado, foi introduzida no Código de Processo Civil pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 323/70, de 11 de Julho. Permitia-se, então, apenas, a prática do acto “no primeiro dia útil seguinte” ao termo do respectivo prazo, com o “pagamento imediato de uma multa de montante igual a 25 por cento do imposto de justiça que seria devido a final pelo processo ou parte de processo, mas nunca inferior a 500$00”, explicando-se no respectivo preâmbulo que “Pela modificação do artigo 145.º, torna-se possível a prática de actos no primeiro dia útil seguinte ao termo do respectivo prazo, sem necessidade da prova – que nem sempre é fácil – do justo impedimento.”
E continua “Foi o artigo 1º do Decreto-Lei nº 242/85, de 9 de Julho, que veio acrescentar a possibilidade de utilização de mais dois dias úteis, mantida nas subsequentes modificações do preceito (operadas pelo Decreto-Lei nº 92/88, de 17 de Março, pelo Decreto-Lei nº 329/95, de 17 de Março, pelo Decreto-Lei nº 324/2003, de 27 de Dezembro, e pelo Decreto-Lei nº 34/2008, de 26 de Fevereiro). Trata-se de uma alteração que não constava do projecto elaborado pela Comissão de Revisão do Código de Processo Civil, presidida por Antunes Varela (cfr. Acta nº 27 das Actas das Sessões da Comissão de Revisão do Código de Processo Civil, Boletim do Ministério da Justiça nº 364, pág. 299 e segs.), embora tenha sido proposta e discutida na comissão, como se pode verificar na Acta nº 26, in Actas cit., sep. do Boletim do Ministério da Justiça, Lisboa, 1989, pág. 585 e segs. e ainda em Cardona Ferreira, Decreto-Lei nº 242/85, de 9 de Julho, Reforma Intercalar do Processo, Lisboa, 1986, mas que se manteve até hoje.”
“O objectivo com que o Decreto-Lei nº 323/70 veio alterar o artigo 145º do Código de Processo Civil, no ponto que agora nos interessa, foi o de permitir a prática do acto no dia seguinte ao do termo do prazo sem que a parte tivesse que invocar e provar justo impedimento; e que, como se sabe, nem sempre a exacta contagem dos prazos foi simples e isenta de controvérsia.”
“Este regime possibilita ainda às partes e aos seus mandatários a gestão do tempo disponível, de acordo com as respectivas conveniências, ponderando se compensa ou não dilatar o prazo mediante o pagamento da multa; mas não legitima qualquer juízo de censura em relação à parte (ou ao seu mandatário) que dele decide beneficiar.”
“E prossegue, do mesmo passo, o objectivo (salientado por Antunes Varela, como se viu) da prossecução do “primado da justiça material sobre a pura legalidade formal”, valor decididamente protegido pelo legislador português nas recentes alterações das leis de processo. Recorde-se, por exemplo, o princípio da “prevalência do fundo sobre a forma”, desenvolvido no preâmbulo do Decreto-Lei nº 329-A/95 e inspirador de diversas soluções então introduzidas, ou o objectivo ali proclamado de se “obviar ( …) a que regras rígidas, de de natureza estritamente procedimental, possam impedir a efectivação em juízo dos direitos (…)”.
Como já se referiu supra, nada obsta à invocação de justo impedimento da prática do acto, mesmo que ocorrido no prazo previsto no art.145º do CPC.
Estipula o art. 146º do CPC que “1 - Considera-se justo impedimento o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários, que obste à prática atempada do acto.
2 - A parte que alegar o justo impedimento oferecerá logo a respectiva prova; o juiz, ouvida a parte contrária, admitirá o requerente a praticar o acto fora do prazo, se julgar verificado o impedimento e reconhecer que a parte se apresentou a requerer logo que ele cessou.
3 - É do conhecimento oficioso a verificação do impedimento quando o evento a que se refere o n.º 1 constitua facto notório, nos termos do n.º 1 do artigo 514.º, e seja previsível a impossibilidade da prática do acto dentro do prazo.”
O n.º1 deste preceito sofreu uma importante alteração com o DL n.º329-A /95,de 12-12,na medida em que foi do mesmo eliminada a expressão “normalmente imprevisível”, apresentado, actualmente, maior flexibilidade na apreciação das causas obstativas da prática atempada o acto..
Como diz Lebre de Freitas “[3] À luz do novo conceito, basta, para que estejamos perante o justo impedimento, que o facto obstaculizador da prática do acto não seja imputável à parte ou ao mandatário, por ter tido culpa na sua produção. Tal não obsta à possibilidade de a parte ou o mandatário ter tido participação na ocorrência, desde que, nos termos gerais, tal não envolva um juízo de censurabilidade…..
”Passa assim o núcleo do conceito de justo impedimento da normal imprevisibilidade do acontecimento para a sua não imputabilidade à parte ou ao mandatário (ou a um auxiliar deste:cfr.art.808-1CC).Um evento previsível pode agora excluir a imputabilidade do atraso ou da omissão. Mas, tal como na responsabilidade contratual, a culpa não tem que ser provada, cabendo à parte que não praticou o acto alegar e provar a sua falta de culpa, isto é, a ocorrência de caso fortuito ou de força maior impeditivo (art.799-1CC):embora não esteja em causa o cumprimento de deveres, mas a a observância de ónus processuais, a distribuição do ónus a prova põe-se nos mesmos termos.”
Analisa-se agora a factualidade que se apurou.
Alega a recorrida que não pode a parte prevalecer-se da figura do justo impedimento porque “…a apreciação do justo impedimento terá de se cingir aos factos ns. 5, 11 e 12: a avaria do sistema informático do escritório da Mandatária da R., a perda das chaves de casa, e a nova avaria informática, desta feita no computador pessoal da Mandatária da R.
Da discussão dos autos resulta, isso sim, que após detectar a anomalia, a R. dispôs de cerca de sete ou oito horas para concluir um trabalho que apenas lhe tomou trinta e cinco minutos.
Tendo a avaria sido identificada a meio da tarde (perto das 16h), e não resolvida, tinha a R. o dever de proceder ao envio por fax ou correio, à luz de um critério de diligência normal (para não dizer mínima).
Os autos deixam a nu uma manifesta falta de diligência por parte da R. na origem da sua própria falha.!”
Mas não se vê como.
Com efeito, não lhe pode ser imputada a avaria nos computadores do escritório, porque a Srª.Adv nenhuma intervenção teve na sua ocorrência  (factos n.º 5 e 6).
E se as conclusões não estevam terminadas na ocasião, também não seria possível enviar as mesma por fax, como se sugeriu na decisão impugnada.
E quanto aos outros factos diz-se o seguinte.
A Sr.Adv. terminou a peça processual em casa, tendo antes, no seu escritório , tomado as providências necessárias para o efeito (facto n.º8).
Pretendeu enviá-la a partir do computador instalado em sua casa.
Mas o mesmo acusou sucessivas mensagens de erro!
E, assim, já só depois da meia-noite conseguiu enviar as alegações.- facto n.º 13
As alegações deram entrada no sistema 11 minutos depois da meia-noite.
Ora na apreciação da “falta de culpa “ do evento fortuito que impediu a prática atempada do acto, há que considerar o disposto no art.487º,n.º2, do CCiv.-a diligência de um bom pai de família, ou seja um cidadão medianamente instruído e diligente, em face das circunstâncias de cada caso.
Assim, para Pereira Coelho [4], se um bom pai de família, nas mesmas circunstâncias externas  teria procedido de outro modo a conduta do agente será errada e haverá culpa.
Também para Antunes Varela[5]O julgador não está vinculado às práticas de desleixo, de desmazelo, de incúria que porventura se tenham generalizado, se outra for a conduta exigível dos homens de boa formação e  sã conduta.
A figura do bom pai de família é um conceito simbólico, destinado a cobrir não só a actuação do homem no seio da sociedade familiar, mas todos os sectores por onde se reparte a vida as pessoas.
Ora do que se expôs, não se vê como se possa imputar à Sr.ª Advoga a anomalia do seu computador!
O ocorrido integra pois o disposto no art.146º,n.º1, o CPC.
As conclusões a recorrente procedem pois.
Em síntese, diz- se o seguinte :
i) Com o disposto no art.145º,permite-se a prática de actos sujeitos a prazos peremptórios, depois de estes terem terminado, fora dos casos de justo impedimento;
ii) A lei, na prática, alonga os prazos, sem impor a apresentação a juízo de qualquer justificação;
iii) Pode assim ser invocado como justo impedimento, um facto ocorrido num dos três dias úteis previstos no n.º5, do art.145º do CPC.

III.Decisão
De tudo o que se acaba de expor julga-se procedente a apelação e revoga-se o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que, julgando verificado o justo impedimento, admita o recurso da sentença proferida nos autos principais.

Custas pela apelada.

Lisboa 28/05/2013

Teresa Jesus Ribeiro de Sousa Henriques

Eurico José Marques dos Reis

Isabel Maria Brás da Fonseca

[1] Ac STJ de 27/11/2008,proc n.º08B2372 (Santos Bernardino), disponível in www.dgsi.pt
[2] Ac STJ de 25/10/2012,proc n.º1627/04.7TBFIG-a.C1.S1, disponível in www.dgsi.pt
[3] Em colaboração com João Redinha e Rui Pinto,CPC Anot 2ªed,Coimbra,273/274
[4] Obrigações, Sumário das Lições (1966/1967),Coimbra,1967
[5] C Civ Anot (com Pires de Lima), Coimbra,I vol,462,Das Obrigações em Geral,3ºed.,Coimbra, I volume,466/467.

Decisão Texto Integral: