Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | CARLA FRANCISCO | ||
Descritores: | REQUERIMENTO PARA ABERTURA DA INSTRUÇÃO REQUERENTE ARGUIDO REQUISITOS REJEIÇÃO SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 06/06/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
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Sumário: | 1.–O requerimento de abertura da instrução tem em vista determinar o âmbito e o limite da intervenção do juiz nesta fase processual. 2.–A vinculação do Tribunal aos factos alegados decorre da natureza judicial da instrução, da estrutura acusatória do processo penal e das garantias de defesa do arguido, consagradas no art.º 32º, nºs 1 e 5 da CRP. 3.–Caso tenha sido proferida acusação, o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido tem que expor os motivos da discordância para com a acusação e indicar as razões de facto e de direito em que se fundamenta essa discordância, para além da indicação dos meios de prova que não foram considerados no inquérito e que o deveriam ter sido. 4.–As razões de facto e de direito que fundamentam a discordância do arguido, para serem aptas e idóneas à abertura de instrução, têm de estar directamente relacionadas com a acusação contra si proferida e com o inquérito que a sustenta. 5.–Os recorrentes não se limitam a negar a prática dos factos que lhes são imputados na acusação, quando narram factos aptos a demonstrar a ausência de qualquer responsabilidade criminal ou a existência de uma causa de exclusão da ilicitude, justificadoras de uma decisão de não pronúncia. 6.– Se o arguido pretende a suspensão provisória do processo, e não tiver havido iniciativa nesse sentido por parte do Ministério Público, nos termos previstos no art.º 281º do Cód. Proc. Penal, a mesma tem que ser suscitada através da abertura da instrução com essa finalidade. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: 1–Relatório No processo nº 32/20.2PBPDL que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, Juízo de Instrução Criminal de Ponta Delgada, o Ministério Público proferiu acusação, datada de 14/09/2022, na sequência da qual vieram os arguidos AA e BB, a 13/10/22, requerer a abertura de instrução. O requerimento de abertura de instrução foi rejeitado, por despacho datado de 15/11/22, nos termos previstos no art.º 287º, nº 3, in fine, do Cód. Proc. Penal, por se ter considerado que a instrução é inadmissível. Inconformados com esta decisão, os arguidos AA e BB interpuseram o presente recurso, formulando as seguintes conclusões: “A.–Os aqui Recorrentes não se conformam com o juízo decisório espelhado no despacho de 15.11.2022, o qual rejeitou a abertura de instrução previamente requerida pelos Arguidos. B.–O despacho ora sob crise assentou na seguinte fundamentação: "Efetivamente, os arguidos pretendem, nesta sede, que se aprecie outra factualidade (contrária àqueloutra) que nunca antes trouxeram aos autos (sem prejuízo do exercício do direito a que alude o art. 61.º/1/d) do CPP, por parte de ambos os arguidos, podiam ter intervindo o processo, oferecendo provas e requerendo as diligências que entendessem convenientes e necessárias, conforme prevê a al. g) do mesmo preceito), socorrendo-se agora de um cenário de oposição/contraversão, o que, à luz do supra exposto, não é admissível (art. 287º/3 in fine CPP), consistindo, ao invés, matéria típica de contestação (...)". C.–Ora, salvo o devido respeito, a Recorrente entende que o Juiz de Instrução Criminal interpretou erradamente o disposto no artigo 287.º, n.º 3, do CPP uma vez que o legislador é firme e taxativo quanto aos casos de rejeição da abertura de instrução. D.–E na situação sub iudicio é flagrante que não colhe a argumentação da decisão recorrida, tanto mais que o silêncio dos Arguidos invocado não pode (não deve) em momento ou circunstância alguma, como é bom de ver, desfavorecer os Arguidos, e muito menos ainda, poder ser interpretado como sendo pressuposto futuro da perda/limitação/amputação do exercício de um faculdade/direito que lhes assiste. E.–Deste modo é incompreensível que o silêncio anterior dos Arguidos lhes possa, de qualquer modo, prejudicar ao ponto de verem boicotado o exercício de um direito fundamental de defesa - requerer a abertura de instrução em ordem a contrapor a versão factual da acusação, assim almejando uma hipotética não pronúncia e consequente não sujeição a julgamento (com tudo o que isso implica, consubstanciando ela mesmo uma nova fase processual). F.–Por outro lado, ainda, não convence minimamente a argumentação acolhida pelo despacho recorrido ao rejeitar a abertura de instrução como sendo uma fase processual e idónea de defesa dos Arguidos, exatamente mobilizada para oferecer a alegação e prova de uma oposição/contraversão aos factos constantes da acusação - então é caso para perguntar para que servirá a instrução? G.–Note-se que inclusivamente a jurisprudência superior admite a possibilidade de a abertura de instrução ser requerida apenas com o fito/propósito do arguido pugnar pela possibilidade de aplicação do instituto da suspensão provisória do processo. H.–Ora, tudo quanto os Arguidos fizeram, com a abertura de instrução requerida, traduz-se afinal, ao encontro do desiderato legal, na discordância, com razões de facto e de direito, quanto ao descrito na acusação. I.–Negar a possibilidade de os Arguidos exprimirem a discordância de facto e de direito com o teor da acusação, apontando os fundamentos da sua defesa, é afinal fazer tabula rasa dos normativos citados, denegando qualquer âmbito de aplicação à fase processual da instrução. J.–E se é verdade que a instrução é uma fase facultativa (está na disponibilidade dos sujeitos processuais interessados a ela recorrer ou não), tal não significa que nos casos em que a lei a admita e consinta, ela não tenha que ser realizada - como é apodítico, com todo o feixe de garantias e recursos legais que contempla. K.–E os tribunais superiores são firmes quanto aos casos (excecionais) em que não é admitida a instrução - por inadmissibilidade legal - não é, manifestamente, o caso dos presentes autos. L.–Em síntese, os Arguidos requereram a abertura de instrução em ordem a convencer o Juiz de Instrução da falta de acerto da acusação pública deduzida pelo Ministério Público, negando tais factos, apresentando uma versão factual e de direito devidamente circunstanciada e explicativa - geradora da sua não responsabilização penal, tudo em ordem a evitar, nos termos da lei, a sua submissão a julgamento, criticando ainda o exame critico da prova feita em fase de inquérito. M.–Ao ter negado/rejeitado a abertura de instrução com fundamento singelo: no silêncio anterior dos Arguidos e na oposição/contraversão da factualidade constante da acusação pública, é manifesto que o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 286.º, n.º 1, 286.º, n.º 3, a contrario, 287.º, n.º 1, alínea a), 287.º, n.º 2, 287.º, n.º 3 in fine, todos do CPP e artigo 29.º, n.º 1, da CRP, pelo que não se poderá manter na ordem jurídica.” * O recurso foi admitido, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo. * O Ministério Público apresentou resposta, formulando as seguintes conclusões: ”I- Por despacho de 15-11-2022 o Meritíssimo Juiz de instrução criminal rejeitou liminarmente o requerimento de abertura de instrução (adiante RAI) dos arguidos AA e BB por motivo de inadmissibilidade legal (artigo 287º3 in fine do CPP), II-Os recorrentes não se conformam com o juízo decisório e referem que: "Efetivamente, os arguidos pretendem, nesta sede, que se aprecie outra factualidade (contrária àqueloutra) que nunca antes trouxeram aos autos (sem prejuízo o do exercício do direito a que alude o art. 61º/1/d) do CPP, por parte de ambos os arguidos, podiam ter intervindo no processo, oferecendo provas e requerendo as diligências que entendessem convenientes e necessárias, conforme prevê a al. g) do mesmo preceito), socorrendo-se agora de um cenário de oposição/ contraversão, o que, à luz do supra exposto, não é admissível (art. 287º/ 3/ in fine do CPP), (...) Mais referem que a recorrente entende que o Juiz de Instrução criminal interpretou erroneamente o disposto no artigo 287º, nº3 do CPP, uma vez que o legislador é firme e taxativo quanto aos casos de rejeição da abertura de instrução. III- Entendemos que a decisão do Meritíssimo Juiz de instrução Criminal, não merece qualquer reparo. IV- No caso em apreço, os recorrentes, em síntese, referem no §1º RAI por um lado que, "no essencial, os arguidos contestam o teor da acusação pública, No §2 da RAI referem que BB não teve qualquer intervenção ativa na ocorrida querela ... §6 da RAI Aliás o arguido BB tinha á data dos factos 56 anos de idade, apresenta problemas sérios de coluna e nunca se viu intrometido em querelas ou agressões físicas... §10,11º ao contrário do alegado, que se impugna, o arguido AA não se apresentava em estado de embriaguez,.... Esse estado de embriaguez e predisposição para o conflito e desentendimento é característico do denunciante, que não raras vezes se encontra com essa tendência comportamental buscando a confrontação e desafiando para conflitos quem dele se aproxima ou interage. §27 da RAI que o arguido AA reagiu ou atuou em legitima defesa (sua e de terceiro) por retorsão sobre o agressor (denunciante)... V-O requerimento de abertura de instrução não é idêntico á contestação nem tem igual finalidade. VI-A instrução, que tem carácter facultativo, visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. VII-A abertura da instrução pode ser requerida pelo arguido relativamente a factos pelos quais o Ministério Público, tiver deduzido acusação. VIII-A instrução concretiza o princípio do contraditório, uma vez que nela tem o requerente [no caso, o arguido] a possibilidade de contrariar os fundamentos, de facto ou de direito, que suportam a peça processual [no caso, a acusação do Ministério Público] que encerra fase do processo [a do inquérito] dominada por quem acusa. IX-Ora, para demonstrar o desacerto da decisão de acusar com que culminou o concreto processo onde foi acusado, o arguido terá que pôr em causa o juízo indiciário determinante do exercício da acção penal, o que fará mediante a apresentação do requerimento que terá de conter uma ou mais razões por onde se vislumbre o desacerto de o sujeitar a julgamento. X-O objecto da comprovação tem que ser concreta e especificadamente enunciado ou definido no/pelo requerimento do sujeito processual nela interessado, por força da conjugação do n.º 2 do artigo 287.º com o n.º 4 do artigo 288.º ambos do CPP. XI-Assim, sem exposição de razões de discordância com a natureza e recortes definidos obstaculiza-se a concretização da actividade de comprovação judicial da decisão em acusar. XII- O requerimento de abertura de instrução dos arguidos nos termos em que foi apresentado servirá, eventualmente, as finalidades do julgamento, e não o da instrução, pelo que, na fase em que estamos não poderá ser admitido. XIII-O requerimento para abertura de instrução que não é apto a permiti-lo deve ser rejeitado com fundamento na inadmissibilidade legal de instrução; XIV-A rejeição do requerimento para abertura de instrução que se revele inapto para alcançar a finalidade dessa fase processual, não viola qualquer direito de defesa do arguido ou o direito à tutela jurisdicional efectiva, consagrados nos artigos 32.º e 20.º da Constituição da República Portuguesa; XV-Termos em que entendemos dever ser mantida a decisão proferida pelo Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal, negando-se provimento ao recurso e mantendo-se, na íntegra, o despacho recorrido.” * Nesta Relação, o Ministério Público emitiu parecer, acompanhando a posição assumida na primeira instância, nos seguintes termos: “PARECER (art 416º,1, CPP) Vem interposto Recurso pelos (co-) arguidos, AA e BB, acusados da prática do crime de ofensas à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts 143º,1, 145º, 1,a), 2, e 132º,2.e), CP, por dissentirem da decisão judicial de rejeição, liminar, do seu (comum) requerimento de abertura de Instrução, nos termos do art 287º,3, “in fine”, CPP. Já a Exmª PR, afecta ao JLCriminal e autos recorridos, expressou, através de elucidativa e proficiente Resposta, a sua oposição à tese e pretensão recursórias, cujo alinhamento argumentativo nos merece inteiro aplauso, antecipemo-lo. Na verdade, ao invés do alegado, com aquele, aliás douto, Despacho censurado não se pôs em causa o direito de defesa, “maxime” a contraditoriedade (art 32º,1, CRP), sequer o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva (art 20º, 1 e 5, do Texto Magno, ainda), até porque a pretensão manifesta (RAI) por ambos os arguidos foi apreciada, embora formal e “ab initio” indeferida (art 287º,3, parte final, CPP, por inobservância de elementar ónus processual, isto é, de omissão da especificação das razões, de facto e de direito, que suportassem o desacerto do libelo acusatório), antes foram os requerentes, “letalmente”, que desatenderam o procedimento obrigatório vertido no art 287º,2, CPP, pois que, inocuamente, enveredaram por apresentar uma verdadeira “contestação” (art 311-B, 1 e 2, CPP), articulado próprio doutra sede (Julgamento), ao oferecerem uma versão opcional da Acusação, limitando-se, em breve mas genuína síntese do RAI, a refutar a prática da factualidade atribuída ou a suscitar contornos alternativos, sem propriamente, em momento algum do requerimento (RAI), concretizarem críticas ao juízo indiciário em que se ancorou o MºPº, no seu Despacho acusatório (arts 283º,1, e 287º,2, CPP). Com isso, inexoravelmente, precludiu a possibilidade do Mmº JI (Juíz “a quo”) exercer o seu múnus processual (art 286º,1,CPP), desencadeado pelos arguidos (art 286º,2, CPP), que era o de controlar a justeza da decisão acusatória precedente, fundeando essa avaliação, vinculativa, nas objecções suscitadas no RAI (art 288º,4,CPP), direccionadas ao acervo reunido no Inquérito, e nunca em apreciações especulativas, quase “desabafos”, trazidas ao crivo judicial, impropriamente. Daí que na Decisão criticada, e pertinentemente, se refira que a versão “B” (esboçada no RAI) surge tardiamente, porquanto os requerentes ficaram, na fase Investigatória, silentes (irrepreensivelmente, é certo: art 61º,1,d), CPP), constituindo uma valoração ou narração meramente alternativas, sem outra virtualidade (assim sendo ao MºPº, antes e aquando da Acusação (versão “A”), impossível ponderar essoutra versão, escrutinando-a), sem que com essa consideração judicial se lhes negue ou censure o direito, processual e constitucional, de prestar ou não declarações, obviamente, apenas se sublinhando o “risco estratégico” da opção, que implica consequências. Ora, acaso o Mmª JI tivesse admitido a abertura da (presente) Instrução estaria a assumir tarefas de Investigação, porquanto iria abordar e aferir o que tinha sido alheio e marginal ao Inquérito, violando a matriz acusatória do processo penal português (art 32º,5, CRP), podendo, mesmo, cogitar-se se, admitindo a “contestação”/RAI, não estaria a praticar, antecipando-os, actos próprios do Juíz de Julgamento (arts 312º, 313º, 314º, CPP, com as consequências decorrentes: art 119º,e), CPP). Assim, judiciosamente, restou ao Tribunal (de Instrução) inadmitir o RAI (art 287º,3, “in fine”CPP), enfatizando-se que as finalidades (e palco/momento) da Instrução são distintas das atinentes à “contestação”, não podendo, por outro lado, o RAI servir para fazer emergir um paralelo Inquérito, legalmente insusceptível de ser acolhido e dirigido pelo JI (cfr arts 263º, 267º a 268º; CPP, e 219º, CRP). Pelo que, em suma, somos a sugerir a validação do Despacho proferido a 15.11.22, dada a sua conformidade com o Direito.” * Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, nada tendo o recorrente vindo acrescentar ao já por si alegado. * Proferido despacho liminar, teve lugar a conferência. * 2– Objecto do Recurso Conforme o previsto no art.º 412º do Cód. Proc. Penal, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso, as quais delimitam as questões a apreciar pelo tribunal ad quem, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cf. neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 1994, pág. 320, Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos Penais”, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do STJ de 5.12.2007, no Processo nº 3178/07, 3ª Secção, in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412º, nº 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.») A questão a decidir neste recurso consiste, assim, em saber se a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que determine a admissão do requerimento de abertura de instrução, por não existir inadmissibilidade legal da mesma. * 3–Fundamentação: 3.1.–Fundamentação de Facto É a seguinte a decisão recorrida: “I.– Vêm os arguidos AA e BB, em tempo e tendo legitimidade e interesse em agir para tal, requerer a abertura de instrução relativamente à acusação pública que lhes imputa a prática, em coautoria, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 143º/ 1 e 145º/ 1/ a) e 2 por referência ao 132º/ 2/ e), todos do Código Penal, pugnando pela prolação de despacho de não pronúncia em razão ora de o primeiro ter agido em legítima defesa ou exercendo retorsão, ora de o segundo nenhuma intervenção ter tido no conflito a que se reporta os autos. Requereram a prática de atos de instrução. Analisado o requerimento de abertura de instrução (RAI), verifico que (sem prejuízo do arrazoado argumentativo) os arguidos se “limitam” a invocar as razões da sua discordância, de facto e de direito, da acusação pública, envoltas, apenas, na negação – ainda que motivada – da prática da factualidade imputada e numa contraversão dos factos incompatível com aquela narrada no libelo acusatório. Vejamos da admissibilidade legal da instrução neste figurino. II.– Esta fase processual facultativa tem por escopo, à luz do disposto no art. 290º/ 1, a finalidade a que alude o art. 286º/ 1, ambos do Código de Processo Penal (CPP), qual seja, no caso dos autos, a comprovação judicial da decisão de acusação, pelos factos narrados na acusação pública e correlativa qualificação jurídica, em ordem a submeter a causa a julgamento (sendo por isso, também, o objeto da instrução). Nesta conformidade, a atividade do juiz de instrução criminal dirige-se, tão só e apenas, ao acerto ou desacerto da decisão do Ministério Público, traduzindo-se a comprovação judicial na confirmação, corroboração ou demonstração de que a acusação é, ou não, “o fruto são de um pomar, se é decorrência dos factos apurados e dos meios de prova recolhidos no inquérito e aí analisados”. Assim sendo, a discordância do arguido, face à acusação, não pode corresponder a um mero desagrado ou a uma negação dos factos, ainda que motivada – talqualmente como fazem os arguidos no caso dos autos – exigindo-se, isso sim, um “conjunto de razões vinculadas ao inquérito” (precisamente porque a acusação é o corolário da atividade pretérita desenvolvida nessa fase), “que neste ou sobre este se projetem, que desnudem ser desacertada a decisão de acusar tomada com base nos elementos que existam. Ou, então, se tomada sem determinados elementos, desde que a inexistência destes no processo não se compreenda, ante a intrínseca, evidente e notória necessidade, em ordem à decisão a tomar sobre a acusação”. Significa isto, pois, que o tal acerto ou desacerto há-de de ser encontrado, tendo presente os fundamentos de facto e de direito invocados pelo arguido em sede de instrução, tal como impõe a al. a) do nº 1 e – em especial – o nº do art. art. 287º do CPP, mas sempre e indispensavelmente com reporte à fase processual antecedente do inquérito. Nesta medida, a instrução não se apresenta como qualquer fase de “repetição do inquérito, nem uma antecipação do julgamento, mas apenas um instrumento de controlo judicial daquela decisão com que a investigação é encerrada”, devendo a comprovação judicial ser efetuada “(…) sobretudo através de uma discussão acerca do material probatório que acusação e defesa carrearam para os autos” no inquérito. III.– Feito este enquadramento, no caso dos autos, conforme acima aludi, os arguidos, no que respeita à discordância de facto, “limitam-se” a apresentar outra versão dos factos, desarrimada de qualquer projeção na antecedente fase processual de inquérito (sendo a discordância de direito apenas um reflexo da discordância de facto). Efetivamente, os arguidos pretendem, nesta sede, que se aprecie outra factualidade (contrária àqueloutra) que nunca antes trouxeram aos autos (sem prejuízo do exercício do direito a que alude o art. 61º/ 1/ d) do CPP, por parte de ambos os arguidos, podiam ter intervindo no processo, oferecendo provas e requerendo as diligências que entendessem convenientes e necessárias, conforme prevê a al. g) do mesmo preceito), socorrendo-se agora de um cenário de oposição/ contraversão, o que, à luz do supra exposto, não é admissível (art. 287º/ 3/ in fine do CPP), consistindo, ao invés, matéria típica de contestação à acusação a que alude o art. 311º-B do CPP (em ordem à demonstração, em julgamento, de uma contraversão dos factos). Noto que uma contestação em direito penal e um RAI têm finalidades, âmbitos e palcos totalmente diferentes. E sublinho que esta fase da instrução não consiste numa espécie de antecipação do julgamento, designadamente levando-se a efeito a confrontação entre as teses factuais opostas (acusação e RAI), pelo juiz de instrução criminal no (erróneo) papel de investigador, como decorre da pretensão ora subjacente… dito de outro modo, a finalidade e o objeto da instrução não se bastam com o mero argumentário contra a acusação qua tale (embora esta seja um pressuposto), sendo imprescindível o “conjunto de razões vinculadas ao inquérito” nos moldes acima explanados, o que, no caso, inexiste. IV.– Em face do exposto, rejeito o RAI por motivo de inadmissibilidade legal (art. 287º/ 3 in fine do CPP). Notifique.” Esta decisão reporta-se ao requerimento de abertura da instrução dos arguidos, no qual foram elencados os seguintes factos: “ AA e BB, Arguidos nos autos à margem referenciados e ali melhor identificados, tendo sido notificados da acusação pública deduzida pelo Ministério Público, porquanto estão em tempo e têm legitimidade, vem, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 60.º, in limine, 61.º, n.º 1, alínea g) e 287.º, n.º 1, alínea a), todos do Código de Processo Penal (CPP). REQUERER A ABERTURA DA INSTRUÇÃO O que fazem nos termos e com os seguintes fundamentos: 1.º No essencial os Arguidos contestam o teor da acusação pública, estando a mesma inquinada quanto ao real e verdadeiro contexto situacional e circunstancial dos factos efetivamente ocorridos. 2.º Por exemplo, desde já se diga que o Arguido BB não teve qualquer tipo de intervenção ativa na ocorrida querela e envolvimento físico entre o Arguido AA e o denunciante. 3º Com efeito, em momento algum, o Arguido BB teve, por ação ou omissão, qualquer tipo de intervenção ativa/agressora no conflito, fosse na condição de autor, coautor ou mesmo cúmplice no acusado crime de ofensa à integridade física, quer na forma tentada, quer na forma consumada. 4.º Com total respeito pela verdade, o Arguido BB nenhuma intervenção teve no referido conflito e desentendimento físico (agressões), e se algum contributo seu ocorreu foi no sentido inequívoco de separar as pessoas envolvidas e/ou de serenar o ânimo de tais protagonistas diretamente envolvidos (e nesse mesmo sentido depôs de forma sincera e leal a testemunha ...). 5.º Nesta conformidade, conforme se logrará demonstrar, não houve por banda do Arguido BB qualquer cometimento, sob qualquer espécie de imputação possível (objetiva e subjetiva) do crime de ofensa à integridade física, refutando-se veementemente que tenha, em algum momento, imobilizado (ou feito outra ação similar) o denunciante, com qualquer intuito de este ser agredido por si e/ou por terceiros. 6.º Aliás, o Arguido BB tinha à data dos factos 56 anos de idade, apresenta problemas sérios de coluna e nunca se viu intrometido em querelas e agressões físicas. 7.º E absolutamente razão alguma teria para agredir e/ou sequer imobilizar (para que fosse agredido) o denunciante, tanto mais que até foram colegas num curso promovido pelo centro de emprego cerca de 2 anos antes destes acontecimentos. Da factualidade ocorrida, 8.º Corresponde à verdade que os Arguidos são irmãos e que no dia 21.12.2019, cerca da hora descrita na acusação, se encontravam no local identificado - Rua M... de D... junto à roulotte que será pertença de .... 9.º Note-se que, ao contrário do alegado, ... (que se desconhece quem seja) não estava a jogar ao jogo das moedas com o denunciante e os Arguidos. Quem efetivamente estava a jogar era o denunciante, os Arguidos e ... (sendo que ... também estava excluído de tal participação no jogo). 10.º Também ao contrário do alegado, que se impugna, o Arguido AA não se apresentava em estado de embriaguez, nem fez tal exigência descrita no artigo 3.º da acusação, sendo que quem se apresentava sob um aparente estado de embriaguez ou compatível com o consumo de substâncias aditivas era o próprio Denunciante 11.º Aliás, esse estado de embriaguez e predisposição para o conflito e desentendimento é característico do denunciante, que não raras vezes, se encontra com essa tendência comportamental buscando a confrontação e desafiando para conflitos quem dele se aproxima ou interage. 12.º Na verdade, quem efetivamente foi propulsor da ideia de jogar à moeda foi o denunciante, sucedendo, porém, que todos os outros (os Arguidos e ...) estavam a ganhar nesse jogo e o denunciante a perder sucessivamente, facto que o foi «enfurecendo», criando-se um ambiente de crescente intimidação e provocação por aquele (exclusivamente) criado. 13.º Note-se até que todos (os Arguidos e ...) foram abandonando o jogo, ficando o denunciante unicamente interessado em continuar a jogar para de certa maneira inverter o desfecho e eventualmente vangloriar-se depois como vencedor. 14.º É nesse momento que o denunciante insiste junto dos restantes companheiros de jogo que continuem a jogar (mas agora com a regra do perdedor pagar bebidas), circunstância que os outros recusaram, ficando o denunciante doravante agressivo e intimidador, falando em voz alta e exaltada. 15.º O Arguido AA (que mantinha, diga-se de passagem, uma relação cordial com o denunciante, pois sempre que se cruzavam se cumprimentavam diplomaticamente) procurou então serenar o denunciante, explicando-lhe que ninguém pretendia mais continuar a jogar. 16.º E inclusivamente, o denunciante, os Arguidos e ..., uns metros afastados da roulotte estiveram ainda em conversa uns minutos, sobretudo AA com o denunciante, tentando acalmá-lo, pois, mostrava muita exaltação. 17.º E quando estavam os quatro a fazer o percurso inverso, no sentido de retornar à roulotte de ..., sem que nada absolutamente o justificasse, o denunciante desferiu um soco por trás em ..., iniciando uma agressão física contra ele. 18.º É neste momento que o Arguido AA, interpela o denunciante, procura serená-lo e desmotivá-lo deste comportamento ativamente agressivo e intimidatório, mas consecutivamente à sua amistosa abordagem é imediatamente por aquele agredido com murros e pontapés. 19.º Gera-se então uma confusão entre ambos tendo o Arguido AA efetivamente respondido às agressões de que foi objeto tendo retroagido defendendo-se e contra-atacando, envolvendo-se ambos por breves instantes em agressões físicas recíprocas. 20.º Refira-se, contudo, que em momento algum foi o Arguido AA quem iniciou qualquer agressão ou querela física, e só teve a iniciativa de intervir para amigavelmente parar uma agressão que o denunciante já havia iniciado e consumado contra a pessoa de ... (de forma cobarde, injustificada e contra um inocente que nada lhe havia feito). 21.º E quando intervém para suster o agressor (denunciante) é ele próprio vítima de uma agressão por parte daquele contra a sua pessoa, reagindo depois. 22.º Mais tarde, é o próprio dono da roulotte (...) que aconselha o arguido AA a se retirar para evitar uma escalada maior de conflito, sugestão que este acata imediatamente e já quando se dirige para a sua viatura, afastando-se do local do conflito, juntamente com o seu irmão BB, ainda avista o denunciante que havia ido buscar uma barra de ferro para o agredir vindo em sua direção com intuito de consumar tal desiderato. 23.º Agressão com a barra de ferro que não chegou a ocorrer porque os Arguidos conseguiram-se afastar antes do local do conflito e querela física. 24.º Porque o Arguido AA é pessoa de bem, conscienciosa e respeitadora, e soube que o denunciante, após aquelas agressões físicas recíprocas ocorridas entre ambos havia sido encaminhado para o hospital, teve a preocupação de se deslocar ao local, com o seu irmão, volvidas duas a três semanas depois dos factos, e dirigiu um pedido de desculpas verbal por qualquer excesso da sua parte protagonizado. 25.º É, assim, totalmente falso, o também alegado pelo denunciante quando, aos autos, em 15.11.2021 presta a informação de que nunca recebeu um pedido de desculpas - quando escasso tempo volvido o Arguido AA a si lealmente se dirige para formular tal pedido. 26.º Em síntese, o Arguido BB absolutamente nenhuma participação teve no conflito físico, pelo que deverá ser não pronunciado relativamente ao crime do qual vem acusado, 27.º E o Arguido AA reagiu ou atuou em legítima defesa (sua e de terceiros) por retorsão sobre o agressor (denunciante), facto que exclui a ilicitude do seu comportamento, ou caso se venha a concluir que possa ter ocorrido excesso de legítima defesa, o que apenas se concebe à cautela de patrocínio, então desde já se requer, porque estão objetivamente verificados os pressupostos reclamados pela lei, que possa ser ponderado e aplicado o instituto da suspensão provisória do processo. Termos em que, e nos melhores de Direito aplicáveis, se requer a V. Exa.: Seja declarada a abertura de instrução, por legal e admissível, e consequentemente, seja produzida a prova indicada, devendo, a final, ser proferido despacho de não pronúncia quanto ao Arguido BB, atenta a manifesta falta de preenchimento dos elementos objectivos e subjetivos do tipo criminal sub iudicio, o mesmo sucedendo com o Arguido AA que se limitou a atuar e agir em legítima defesa (sua e de terceiros), ou caso assim não se entenda, a final, pugna-se pela aplicação do instituto da suspensão provisória do processo, com todas as legais consequências.” A acusação pública é a seguinte: “O Ministério Público junto deste Tribunal, acusa, nos termos do art.º 283º do Cód. De Processo Penal, para julgamento em processo comum e por Tribunal de estrutura singular, I– AA, filho de ... e de ..., nascido a 21 de Abril de 1974, natural da freguesia de ..., concelho de Ponta Delgada, viúvo, empresário, residente na ... E II– BB, filho de ... e de ..., nascido a 15 de Fevereiro de 1963, natural da freguesia de ..., concelho de Ponta Delgada, divorciado, electricista, residente na ... ..., Ponta Delgada, Porquanto: 1.-Os Arguidos AA e BB são irmãos. 2.-No dia 21 de Dezembro de 2019, pelas 00h30, o Ofendido CC, os Arguidos acima identificados, bem como ... e ... encontravam-se a jogar um jogo de moedas na Rua M... de D..., em S. Pedro, Ponta Delgada. 3.-A dada altura, AA, aparentando estar em estado de embriaguez, exigiu que quem perdesse o jogo pagasse uma rodada de bebidas aos restantes jogadores. 4.-O Ofendido, desagradado com aquela exigência, disse a AA para se deixar disso, que estavam na brincadeira e que, por isso, ninguém teria de pagar bebidas aos restantes jogadores. 5.-Decorridos alguns minutos, BB surpreendeu o Ofendido pelas costas, agarrou-lhe o pescoço com um dos braços à volta daquele e arremessou-o ao chão. 6.-De seguida, enquanto BB segurava CC de molde a imobilizá-lo e assim impossibilitá-lo de defender-se, AA desferiu um número indeterminado de pontapés no Ofendido, atingindo-o na zona da cabeça, do rosto e abdómen. 7.-Como consequência directa da conduta dos Arguidos, o Ofendido sofreu uma fractura da mandíbula, em concreto, do ângulo mandibular e subcondiana esquerdas, com tumefacção mandibular esquerda, mordida aberta anterior e direita com prematuridade esquerda, dor à palpação da articulação temporomandibular (ATM), abertura dolorosa da boca com discreto desvio para a esquerda, abertura de 4cm e mobilidade patológica da mandíbula, 8.-Necessitou de ser transferido para o Hospital de São José, em Lisboa, onde foi internado e operado com colocação de parafusos de imobilização, colocação de miniplacas e de dreno aspirativo. 9.-Ademais, em 24-12-2019, o Ofendido apresentava boa evolução no internamento, tendo retirado dreno, apresentando ligeiro deficit da região enervada por ramo marginal do VII par esquerdo (nervo facial), com a radiografia de controle a evidenciar boa redução de fracturas e posicionamento de material de osteossíntese, data em que teve alta com indicação para iniciar movimentos da mímica facial. 10.-Em 9-1-2020, o Ofendido ainda evidenciava queixas a nível funcional, designadamente, dificuldade na abertura total da boca e sensação de hipostesia na metade esquerda do mento e lábio inferior, bem como, ao nível da face, sensibilidade dolorosa no dente molar inferior esquerdo, edema da hemiface esquerda, mais pronunciado na região pré-auricular, com penso a recobrir ferida cirúrgica na região do maxilar inferior que não se retirou para não interferir com o processo de cicatrização. 11.-A 20-4-2020, o Ofendido ainda manifestava queixas a nível funcional, nomeadamente, sensação de hipostesia na comissura labial esquerda e mento também à esquerda, bem como, ao nível da face, um edema discreto da hemiface esquerda, mais marcado na região infra malar esquerda e, ao nível do pescoço, cicatriz na região infra auricular esquerda, com 4,5cm vertical. 12.-A consolidação médico-legal das lesões descritas foi fixada em 4-2-2020, as quais demandaram 45 dias para a sua consolidação, com afectação da capacidade de trabalho geral por 15 dias e com afectação da capacidade de trabalho profissional por 45 dias. 13.-Os Arguidos agiram com o propósito concretizado de molestar fisicamente o Ofendido, de lhe causar dores e as lesões descritas, 14.-E motivados pelo facto de o Ofendido desvalorizar a exigência de AA, acima referida, quanto às regras do jogo da moeda que levavam a cabo, o que consubstancia um motivo fútil. 15.-Ambos os Arguidos agiram sempre, de forma livre, voluntária, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, 16.-Em execução de um plano prévio, em comunhão de esforços e de intentos, cujo alcance e desfecho previram e aceitaram. Pelo exposto, cada um dos Arguidos cometeu: - em coautoria material e na forma consumada 1 crime de Ofensa à Integridade Física Qualificada, p. e p. pelos arts. 13.º, 14.º n.º 1, 26.º 3.ª parte, 143.º n.º 1, 145.º n.º 1 al. a) e n.º 2, por referência ao art. 132.º n.º 2 al. e), parte final, todos do CP; (…)” * 3.2.–Mérito do recurso Vem o presente recurso interposto da decisão do Tribunal a quo que rejeitou o requerimento dos arguidos para abertura de instrução, com fundamento na inadmissibilidade da mesma, nos termos do art.º 287º, nº 3 do Cód. de Proc. Penal. Alegam os arguidos que requereram a abertura de instrução em ordem a convencer o Juiz de Instrução da falta de acerto da acusação pública deduzida pelo Ministério Público, negando parte dos factos descritos na mesma, apresentando uma versão factual e de direito diferente, devidamente circunstanciada e explicativa, geradora da sua não responsabilização penal, em ordem a evitar a sua submissão a julgamento, e criticando ainda o exame da prova feita na fase de inquérito. Mais alegam que, ao ter negado/rejeitado a abertura de instrução com fundamento apenas no silêncio anterior dos arguidos e na oposição/contraversão da factualidade constante da acusação pública, o despacho recorrido violou o disposto nos arts.º 286º, nº 1, 286º, nº 3, a contrario, 287º, nº 1, alínea a), 287º, nº 2, 287º, nº 3, in fine, todos do Cód. Proc. Penal e art.º 29º, nº 1 da CRP. Analisado o requerimento de abertura de instrução junto aos autos pelos arguidos, verifica-se que os mesmos apresentam uma versão diferente dos factos descritos na acusação contra si deduzida pelo Ministério Público, acrescentam novos factos e, em consequência, pretendem a não pronúncia do arguido BB, por o mesmo não ter tido intervenção nos factos referidos pelo Ministério Público, e a suspensão provisória do processo relativamente ao arguido AA, por o mesmo ter agido em legítima defesa ou, quanto muito, em excesso de legítima defesa. Sugerem também a produção de outros meios de prova. Este requerimento foi rejeitado, por o Juiz a quo ter considerado que: “ (…) os arguidos se “limitam” a invocar as razões da sua discordância, de facto e de direito, da acusação pública, envoltas, apenas, na negação – ainda que motivada – da prática da factualidade imputada e numa contraversão dos factos incompatível com aquela narrada no libelo acusatório. (…) Efetivamente, os arguidos pretendem, nesta sede, que se aprecie outra factualidade (contrária àqueloutra) que nunca antes trouxeram aos autos (sem prejuízo do exercício do direito a que alude o art. 61º/ 1/ d) do CPP, por parte de ambos os arguidos, podiam ter intervindo no processo, oferecendo provas e requerendo as diligências que entendessem convenientes e necessárias, conforme prevê a al. g) do mesmo preceito), socorrendo-se agora de um cenário de oposição/ contraversão, o que, à luz do supra exposto, não é admissível (art. 287º/ 3/ in fine do CPP), consistindo, ao invés, matéria típica de contestação à acusação a que alude o art. 311º-B do CPP (em ordem à demonstração, em julgamento, de uma contraversão dos factos). (…) a finalidade e o objeto da instrução não se bastam com o mero argumentário contra a acusação qua tale (embora esta seja um pressuposto), sendo imprescindível o “conjunto de razões vinculadas ao inquérito” nos moldes acima explanados, o que, no caso, inexiste. (…)” Vejamos a quem assiste razão. Segundo o previsto no art.º 286º, nºs 1 e 2 do Cód. de Proc. Penal, a instrução é uma das fases preliminares do processo, com carácter facultativo, que visa a comprovação judicial do despacho de encerramento do inquérito, ou seja, da decisão de deduzir acusação ou despacho de arquivamento, em ordem a submeter ou não uma causa a julgamento. Diz-nos o art.º 287º do mesmo diploma, nos seus nºs 1 e 2, que a abertura da instrução pode ser requerida no prazo de vinte dias, a contar da notificação da acusação ou do arquivamento, não estando o requerimento sujeito a formalidades especiais, mas devendo conter, em súmula, as razões de facto e de direito da discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que se justifique, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do art.º 283º do mesmo diploma. Tal como acontece com a acusação, também o requerimento de abertura da instrução tem em vista delimitar o thema probandum desta fase processual, ou seja, determinar o âmbito e o limite da intervenção do juiz em sede de instrução. A vinculação do Tribunal aos factos alegados, limitadora da atividade instrutória, decorre não só da natureza judicial desta fase processual, como também da estrutura acusatória do processo penal e das garantias de defesa do arguido, consagradas no art.º 32º, nºs 1 e 5 da CRP. Daí que o artigo 309º, nº 1 do Cód. Proc. Penal disponha que a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução. Na verdade, na instrução não se pode fazer uma verdadeira investigação, porquanto a mesma não é um novo inquérito, nem se pode através dela alcançar os objetivos próprios do inquérito, havendo outros meios processuais adequados a esse efeito, como sejam a intervenção hierárquica e a reabertura do inquérito, previstos nos art.sº 278º, nº 2 e 279º do Cód. Proc. Penal. A este respeito, refere Henriques Gaspar, in “As exigências da investigação no processo penal durante a fase de instrução” - “Que Futuro para o Processo Penal”, 2009, p. 92-93: “ (…) a estrutura acusatória do processo determina que o thema da decisão seja apresentado ao juiz, e que a decisão deste se deva situar dentro da formulação que lhe é proposta no requerimento para a abertura de instrução. (…) Os termos em que a lei dispõe sobre a definição do objecto da instrução através do requerimento para abertura desta fase processual têm de ser compreendidos pela estrutura e exigências do modelo acusatório. (…) O requerimento para a abertura de instrução constitui pois o elemento fundamental de definição e de determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz na instrução: investigação autónoma, mas delimitada pelo tema factual que lhe é proposto através do requerimento de abertura de instrução.” Verifica-se, assim, que no requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido, no caso de ter sido proferido despacho de acusação, terá necessariamente que se argumentar quais os motivos da discordância para com a acusação e indicar quais são as razões de facto e de direito em que se fundamenta essa discordância, indicando-se, se for caso disso, os meios de prova que não foram considerados no inquérito e que o deveriam ter sido. Ou seja, as razões de facto e de direito que fundamentam a discordância do arguido, para serem aptas e idóneas à abertura de instrução, têm de estar directamente relacionadas com a acusação contra si proferida e com o inquérito que a sustenta. O que se compreende uma vez que a dedução de acusação pelo Ministério Público, como neste caso sucede, depende de no inquérito terem sido recolhidos indícios suficientes de o acusado ter cometido o crime que nessa peça lhe é imputado, conforme o previsto no art.º 283º, nºs 1 a 3 do Cód. Proc. Penal. Só com o requerimento de abertura de instrução obedecendo a tais requisitos ficará definido o objeto da instrução, cuja finalidade é a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação. Convém não esquecer que a instrução não é um pré-julgamento, nem tão pouco se traduz numa forma de completar a investigação feita no inquérito, devendo o requerimento que a inicia ser o mais concreto e específico possível quanto ao seu objecto. Em face das disposições legais citadas, será, assim, admissível o requerimento de abertura de instrução quando, por uma distinta leitura dos factos, o arguido pretenda a comprovação de que os factos muito embora verdadeiros ocorreram noutras circunstâncias, que proceda à simples negação de que eles tivessem sequer sucedido ou que os reconhece, mas acrescenta outros que, a indiciarem-se, convocariam uma causa de justificação ou de exculpação (cf. neste sentido, Pedro Soares de Albergaria, in “ Comentário Judiciário do Código de Processo Penal “, Tomo III, 2ª edição, Almedina, pág. 1248). Quanto aos fundamentos de rejeição do requerimento de abertura da instrução, os mesmos são os seguintes, previstos no nº 3 do art.º 287º: - A extemporaneidade do requerimento; - A incompetência do juiz; - A inadmissibilidade legal da instrução. Os fundamentos da extemporaneidade e da incompetência do juiz não suscitam grandes dificuldades, porquanto se encontram regulados nos arts.º 17º e 287º, nº 1 do Cód. Proc. Penal, e não foram invocados nos presentes autos. Já o conceito de “inadmissibilidade legal da instrução”, uma vez que a lei não o define, tem sido objeto de larga elaboração, quer doutrinária, quer jurisprudencial. A este respeito, referiu José Souto de Moura, in “Jornadas de Direito Processual Penal”, 1987, CEJ, e “O Novo Código de Processo Penal”, Almedina, 1995, pág. 119: “O n.º 2 do art. 287.º parece revelar a intenção do legislador restringir o mais possível os casos de rejeição do requerimento da instrução. O que aliás resulta directamente da finalidade assinalada à instrução pelo n.º 1 do art. 286.º: obter o controle judicial da opção do M.ºP.º. Ora, se a instrução surge na economia do código com o carácter de direito, e disponível, nem por isso deixa de representar a garantia constitucional, da judicialização da fase preparatória. A garantia constitucional esvaziar-se-ia, se o exercício do direito à instrução se revestisse condições difíceis de preencher, ou valesse só para casos contados. (…) Quanto ao requerimento de instrução subscrito pelo arguido (…). A instrução serve o arguido, na medida em que este pretenda subtrair-se a uma imputação que o molesta. Logo, a uma acusação. Se o arguido quer a instrução por factos que não se ligam, nem instrumentalmente com os da acusação, obviamente que nenhum interesse terá em abordá-los, já que nunca o molestarão. Os factos que o arguido quer tratar na instrução serão, ou os concretamente presentes na acusação, ou os que, daí ausentes, de todo o modo neutralizam, o efeito jurídico-penal da acusação. O arguido contrariará então directamente a acusação, ou carreará factos que retiram aos da acusação a repercussão penal pretendida pelo M.º P.º” Voltando ao caso dos autos, no requerimento de abertura da instrução dos arguidos, estes negam a prática dos factos que lhes são imputados tal como vêm descritos na acusação, negam a prática de qualquer dos factos pelo arguido BB e alegam que o arguido AA agiu em legítima defesa, devendo haver quanto àquele despacho de não pronúncia e quanto a este suspensão provisória do processo. Verifica-se, assim, que os recorrentes, não se limitam a negar a prática dos factos que lhes são imputados na acusação, narrando factos tendentes a infirmar o juízo indiciário que esteve na base da dedução da acusação pelo Ministério Público e a demonstrar que não estão verificados os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena, designadamente, pela ausência de qualquer responsabilidade criminal, quanto ao BB, e pela existência de uma causa de exclusão da ilicitude, relativamente ao AA, as quais, no seu entender, justificam que venha a ser proferida uma decisão de não pronúncia e, consequentemente, que não sejam submetidos a julgamento. Os recorrentes, indicaram também, no seu requerimento de abertura da instrução, os atos de instrução que pretendem que sejam realizados pelo JIC e meios de prova que não foram considerados no inquérito. Assim sendo, observando o requerimento de abertura da instrução, apresentado pelos arguidos, verifica-se que se mostram preenchidas as exigências previstas no art.º 287º, nº 2, e que tal requerimento é formulado em temos tais que se mostra possível alcançar a finalidade da instrução, ou seja, a comprovação judicial da decisão do Ministério Público de deduzir acusação contra os arguidos. Por outro lado, um dos arguidos pretende a suspensão provisória do processo, o que, não tendo havido iniciativa nesse sentido por parte do Ministério Público, nos termos previstos no art.º 281º do Cód. Proc. Penal, a mesma tem que ser suscitada pelo arguido na fase da instrução, pelo que outra possibilidade este não tem do que requerer a abertura da instrução com essa finalidade. E tanto assim é que, segundo o disposto no nº 2 do art.º 307º do mesmo diploma, a suspensão provisória do processo na fase de instrução é proferida no debate instrutório, sendo correspondentemente aplicável o disposto no art.º 281º, obtida a concordância do Ministério Público. A suspensão provisória do processo nesta fase tem o efeito de suspender a instrução e, portanto, também a prolação da decisão instrutória. Findo o prazo da suspensão, se não tiverem sido cumpridas as prestações e regras de conduta, o juiz deve proferir uma decisão de pronúncia, atenta a existência de factos suficientemente indiciadores do crime e que constituíram o fundamento da suspensão do processo. Se tiverem sido cumpridas as injunções e regras de conduta, o juiz deve proferir uma decisão de não pronúncia. Daqui decorre que o requerimento de abertura de instrução em apreço não se confunde com a contestação, nem a instrução com ele aberta se transforma num simulacro do julgamento. É que a instrução culmina num juízo indiciário e o julgamento culmina num juízo probatório, de certeza. E esta diferença mantém-se mesmo quando o requerimento de abertura de instrução se limita a apresentar uma versão dos factos diferente da que consta da acusação, sem especificar as eventuais deficiências do inquérito. Admitir outra possibilidade, equivaleria a esvaziar completamente a fase instrutória do processo. Pelo exposto, impõe-se concluir que o requerimento de abertura de instrução dos recorrentes se mostra apto à realização das finalidades da instrução, não se estando perante um caso de “inadmissibilidade legal” da mesma, pelo que se tem que julgar o presente recurso procedente. É também este o sentido em que vem decidindo a jurisprudência maioritária, como se pode ver, por exemplo, nos seguintes acórdãos, todos in www.dgsi.pt: - Acórdão do TRC de 28/03/2012, proferido no processo nº 53/10.3GAPMS.C1, em que foi relator Luís Ramos: “O requerimento para abertura de instrução em que o único pedido seja a suspensão provisória do processo não pode ser rejeitado, visto que não viola a regra sobre a finalidade da instrução, porque a comprovação judicial a que se reporta o n.º 1 do artº 286º CPP, não se restringe ao domínio do facto naturalístico, antes compreende também a dimensão normativa do mesmo e por conseguinte, a sua suscetibilidade de levar (ou não) a causa a julgamento.”; - Acórdão do TRC de 30/01/2013, proferido no processo nº 68/10.1TATND-A.C1, em que foi relator Alberto Mira: “ Findo o inquérito, e não sendo caso de processo sumário ou abreviado, a via formal para a suspensão provisória do processo é o requerimento de abertura da instrução.” Verificados os respectivos pressupostos legais da suspensão provisória do processo, cessa o dever de acusar e emerge o dever de suspender Cfr., v.g., João Conde Correia, Concordância Judicial à Suspensão Provisória do Processo: equívocos que persistem, Revista do Ministério Público, Ano 30, Jan-Mar 2009, N.º 117, págs. 53 e 54.. (…) Face ao que ficou exposto, em consonância com as referidas disposições legais, temos como certo que é legalmente admissível um requerimento de abertura da instrução com o único desiderato de ser obtida a suspensão provisória do processo, porquanto a comprovação judicial referida no artigo 286.º, n.º 1, do CPP, não se restringe ao domínio do acontecimento naturalístico; antes compreende também a dimensão normativa do facto e, por conseguinte, a susceptibilidade de levar (ou não) a causa a julgamento. Aliás, podendo o arguido, que se conforma com a factualidade e a integração jurídica constantes da acusação, requerer ao juiz de instrução a suspensão provisória do processo, não tem outro meio de o fazer que não seja através do requerimento a que se refere o art. 287.º Cfr. foi referido no Ac. da Relação de Coimbra de 28-03-2012, publicado na Colectânea, Tomo II, pág. 51.. Como está escrito no Ac. do STJ de 13-02-2008 Publicado, em texto integral, no sítio www.dgsi.pt.: «o arguido e o assistente podem pedir hoje ao Ministério Público ou ao juiz de instrução a suspensão provisória do processo»; «enquanto no decurso do inquérito, aqueles sujeitos processuais se podem dirigir ao Ministério Público, dominus dessa fase processual, por mero requerimento, já ao seu direito a pedir, ao juiz de instrução, a suspensão provisória do processo, tem de corresponder uma adequada “acção”, destinada a efectivar esse direito e que ocorre já depois de findo o inquérito e tomada posição final pelo Ministério Público», sendo que, «a acção dirigida ao juiz , findo o inquérito como é o caso, só pode, pois, ser constituída pelo requerimento de abertura da instrução em que se pede eu se analisem os autos para verificar se se verificam os pressupostos de que depende a suspensão provisória do processo e que, em caso afirmativo, se diligencie, além do mais, pela obtenção da concordância do Ministério Público, tal como impõe o n.º 2 do art. 307.º do Código de Processo Penal». Em síntese conclusiva: findo o inquérito, e não sendo caso de processo sumário ou abreviado, a via formal para a suspensão provisória do processo é o requerimento de abertura da instrução.”; -Acordão do TRP de 29/01/2014, proferido no processo nº1878/11.8TAMAI.P1, em que foi relatora Maria do Carmo Silva Dias:“I-A instrução requerida pelo arguido destina-se a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação (para não ser submetido a julgamento, o que depende da formulação de um juízo negativo que terá por suporte factos e razões alegadas no RAI) exigindo-se, para o efeito, que o requerimento de abertura de instrução (RAI) contenha, ainda que em súmula, as razões de facto e de direito que fundamentam a discordância relativamente à acusação, podendo, se for caso disso, indicar os actos de instrução que pretende que o juiz leve a cabo, os meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e os factos que, através de uns e de outros, espera provar (art. 287º, nº 2, do CPP). II- As razões de facto e de direito que fundamentam a discordância do arguido, para serem aptas e idóneas à abertura de instrução, têm de estar directamente relacionadas com a acusação contra si proferida e com o inquérito que a sustenta. O que se compreende uma vez que a dedução de acusação (pelo Ministério Público, como neste caso sucede), depende de no inquérito terem sido recolhidos indícios suficientes do acusado ter cometido o crime que nessa peça lhe é imputado (art. 283º, nºs 1 a 3, do CPP). III-O RAI pode ser rejeitado (nº 3 do art. 287º do CPP) por “Inadmissibilidade legal da instrução”, conceito este que o legislador não define. O facto de indicar alguns casos em que se verifica formalmente essa situação (v.g. quando se está perante uma forma de processo especial, quando a instrução é requerida fora das situações indicadas no art. 287º, nº 1, do CPP), não significa que tal conceito (“inadmissibilidade legal da instrução”) deva ser interpretado de forma restrita ou que tenha de ser restringido a uma visão formal. IV-A “inadmissibilidade legal da instrução” abrange uma interpretação material, atenta a filosofia subjacente a essa fase preliminar e, por isso, engloba igualmente os casos em que o alegado no requerimento de abertura de instrução não satisfaz as finalidades da instrução, como sucede, por exemplo, quando o RAI é inepto (seja apresentado pelo assistente, seja apresentado pelo arguido). V- É o que sucede no caso em que o arguido, para além de não ter alegado factos e/ou razões que mostrassem que a acusação fora mal deduzida, esqueceu que a instrução não é um pré-julgamento. Os factos por si alegados, que temporalmente se diz terem ocorrido antes do crime de abuso de confiança qualificado que lhe foi imputado, apenas confirmam a acusação pública e, os alegados, que temporalmente se diz terem ocorrido após o cometimento do mesmo crime, são inócuos, não tendo idoneidade para abalar os pressupostos do crime imputado, cometido anteriormente.”; -Acórdão do TRP de 25/06/2014, proferido no processo nº 30/13.2PCPRT-A.P1, em que foi relator Alves Duarte: “Respeita os requisitos legais o requerimento para abertura da instrução [RAI] apresentado pelo arguido em que apenas alega que não praticou os factos de que foi acusado pelo Ministério Público e arrola testemunha para serem inquiridas acerca disso.”; -Acórdão do TRP de 4/02/2015, proferido no processo nº 681/13.5PBMAI.P1, em que foi relator Pedro Vaz Pato: “Não deve ser rejeitado, por inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do nº 3 do artigo 287º do Código de Processo Penal, um requerimento de abertura de instrução apresentado pela arguida em que esta se limita a apresentar uma versão dos factos diferente da que consta da acusação e indica testemunhas não inquiridas no inquérito.”; - Acórdão do TRG de 20/02/2017, proferido no processo nº 7/06.4GABTC.G1, em que foi relatora Fátima Bernardes: “Observa as exigências previstas no artº 287º, nº 2, do CPP, o RAI apresentado pelo arguido que nega os factos que lhe são imputados na acusação, em relação a um dos ofendidos e quanto aos factos por que vem acusado em relação ao outro ofendido, nega que o tenha agarrado pelo pescoço, alegando que apenas o empurrou e que o fez, no circunstancialismo que descreve, agindo em legítima defesa de terceiro, tendo, também, indicado os atos de instrução que pretende sejam realizados pelo JIC e os meios de prova que não foram considerados no inquérito.”; - Acórdão do TRG de 6/11/2017, proferido no processo nº 258/14.8GDGMR-A.G1, em que foi relator Armando Azevedo: “Todavia, salvo melhor opinião, a instrução deverá poder ser requerida exclusivamente para discutir questões de direito, designadamente quando requerida pelo arguido com vista a não ser submetido a julgamento em virtude de essas questões serem suscetíveis de atingir a acusação, impedindo-a de chegar a julgamento. Com efeito, pese embora o artigo 287º, nº 1 al. a) do C.P.P. se refira a factos, estes não podem ser compreendidos apenas em sentido naturalístico, porquanto os mesmos só relevam para efeitos de instrução na medida em que lhe seja atribuído um determinado enquadramento jurídico ou sentido normativo. Aliás, apenas nesta dimensão se compreende que o JIC se tenha de pronunciar sobre a verificação da suficiência dos indícios dos pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de um pena ou uma medida de segurança, cfr. artigo 308º, nº 1 do C.P.P.. O artigo 287º, nº 2 do C.P.P. refere-se a “razões de facto e de direito de discordância” relativamente à acusação ou não acusação”, pois que, como salienta Souto Moura, “…a questão controversa não será exclusivamente fáctica nem exclusivamente jurídica. A questão será prevalente fáctica se se reportar ao que se considera ou não considera provado, mas mesmo então se não poderá prescindir de critérios normativos, como seja o próprio conceito de indícios suficiente do artigo 283º, nº 1 do N.C.P.P.. Falar-se-á a seu termo duma questão prevalentemente jurídica sempre que estiver em causa a repercussão jurídico-penal duma factualidade tida por incontroversa. Só que aí também o jurídico está ancorado numa factualidade concreta, não se tratando de discutir uma questão puramente teórica”. Neste sentido, estando em causa uma questão prevalentemente jurídica, é para nós claro que o arguido poderá requerer instrução com esse fundamento. E no caso de o JIC discordar das razões de direito invocadas, isso naturalmente não o deverá impedir de fazer uma apreciação da suficiência dos indícios em ordem a submeter ou não o arguido a julgamento, proferindo despacho de pronúncia ou não pronúncia. A suspensão provisória do processo constitui uma manifestação dos princípios da diversão, informalidade, cooperação, celeridade processual, os quais assumem uma importância crescente no processo penal, com o objetivo de, sempre que possível, evitar-se o julgamento e seus eventuais efeitos socialmente estigmatizantes e penas potencialmente criminógenas. Noutros termos, a suspensão provisória do processo é uma medida de “diversão com intervenção”, cfr. Pedro Caeiro, «Legalidade e oportunidade: a perseguição penal entre o mito da “justiça absoluta” e o fetiche da “gestão eficiente” do sistema», in RMP nº 84, Out/Dez. 2000. Acresce que a suspensão provisória do processo pode ter lugar não apenas na fase de inquérito, mas também na fase de instrução, designadamente a requerimento do arguido, competindo ao juiz de instrução desempenhar, nesta fase - que é por ele dirigida - o papel desempenhado pelo M.P.na fase de inquérito, quanto aquela, cfr. artigo 307º, nº 2 do C.P.Penal. Nesta conformidade, dada a natureza e a finalidade do referido instituto, julgamos que o arguido poderá requerer instrução somente para obter a suspensão provisória do processo, uma vez que esta é claramente consentida pela lei nesta fase, o que está de acordo com a finalidade da instrução a requerimento do arguido, que é a não sujeição a julgamento.” Em face de tudo o exposto, impõe-se julgar o presente recurso procedente e revogar a decisão recorrida. * 4–Decisão Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso e, em consequência, revogam a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que admita o requerimento de abertura da instrução apresentado pelos arguidos. Sem custas. Lisboa, 6 de Junho de 2023 (texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal) Carla Francisco (Relatora) Isilda Pinho (Adjunta) Luís Gominho (Adjunto) |