Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9/22.3T8VCT-A.L1-6
Relator: ADEODATO BROTAS
Descritores: REGULAMENTO (EU) Nº 1215/2012 DE 12/12
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
MATÉRIA CONTRATUAL
RUPTURA
NEGOCIAÇÕES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: (art.º 663º nº 7 do CPC)
1- O Regulamento (EU) 1215/2012, de 12/12 (doravante Regulamento), vinculativo para todos os Estados Membros, é aplicável em matéria civil e comercial, independentemente da natureza da jurisdição (art.º 1º nº 1, 1ª parte), ou seja, aplica-se, obrigatoriamente, independentemente do tribunal que é competente na ordem jurídica interna.
2-O art.º 4º nº 1 do mesmo Regulamento, estabelece como critério geral, que as pessoas domiciliadas num Estado-Membro, devem ser demandadas nos tribunais desse Estado-Membro.
3- No que respeita à determinação do domicílio das sociedades, o art.º 63º nº 1, al. a) do Regulamento estabelece que têm domicílio no lugar em que tiverem a sua sede social.
4- O Regulamento prevê ainda critérios especiais de determinação de competência, como sucede quando está em causa matéria contratual, estabelecendo que é competente o tribunal do lugar onde a obrigação deva ser cumprida; e, tratando-se de contrato de venda de bens, o art.º 7º nº 1, als. a) e b), estabelece como critério determinativo do tribunal competente, o do lugar onde os bens devam ser entregues.
5- O elemento de conexão “Matéria Contratual” abrange, igualmente, a ruptura abrupta de relações comerciais estáveis.
6- Assim, no caso dos autos, estando em causa indemnização por ruptura abrupta de relações comerciais, que se vinham verificando há vários anos, consistente no fabrico e venda de bens por uma sociedade portuguesa, com sede em Lisboa, a um grupo de sociedades com sede em Madrid, com local de entrega da mercadoria nos estabelecimentos da ré em Espanha, resta concluir que os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para julgar essa acção de indemnização.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes desembargadores que compõem este colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - RELATÓRIO
1- Nunex Worldwinde, SA, com instalações em Viana do Castelo e sede em Lisboa, instaurou acção declarativa, com processo comum, contra:
1ª- Distribuidora Internacional de Alimentatión, SA;
2ª- Beauty By Dias, SA;
3ª- Grupo el Árbol Distribuition y Supermercados SAU;
4ª- CD Supply Innovation SL,
5ª- Dia Retail España, SAL,
Todas com sede em Madrid, Espanha, pedindo:
- Declarar-se o incumprimento contratual pelas rés;
- A condenação solidária das rés a pagarem a quantia de 2.673.942€, acrescidos de juros de mora vencidos e vincendos contados desde o incumprimento do contrato.
Alegou, em síntese, ter como objecto a fabricação e comercialização de fraldas para adulto e criança; o grupo das empresas rés celebraram com a autora um contrato pelo qual a autora se comprometia a fabricar e fornecer fraldas com as especificações indicadas pelas rés para elas comercializarem como marca delas; entre 2013 e 2018 o Grupo Dia tornou-se o principal cliente da autora, absorvendo 66% da sua produção; de 2019 a 2021 a autora foi fornecendo os seus produtos ao grupo das rés através de concurso tender que se ia renovando anualmente; em 2021 as rés não pretenderem a continuação dos fornecimentos dados os aumentos de preços; as rés fizeram cessar o contrato sem respeitarem o pré-aviso de 3 meses; com a revogação unilateral do contrato e sem observância do pré-aviso, a autora ficou com elevado stock de produtos já fabricado exclusivamente para as rés. Especifica os prejuízos em que incorreu, que totaliza em 2 673 942€.
2- Citadas, as rés contestaram.
Excepcionaram a incompetência internacional dos tribunal portugueses, invocando a regra da competência internacional resultante do art.º 4º nº 1 do Regulamento (EU) 1215/2102 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12/12, que estabelece que as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas nos tribunais desse Estado-Membro; ou nos termos do art.º 7º nº 1 do mesmo Regulamento, devendo a obrigação – fornecimento e entrega de mercadorias - ser cumprida em Espanha, são os tribunal deste Estado-Membro os competentes para a acção.
Impugnam os fundamentos da acção (o que aqui não releva).
3- A autora respondeu à excepção de incompetência internacional, pugnando pela respectiva improcedência, defendendo que a pretensão que dirige às rés configura uma pretensão de indemnização que é uma obrigação pecuniária pelo que nos termos do art.º 774º do CC determina que o tribunal competente é o do domicílio do credor; que a competência internacional deve ser estabelecida nos termos do art.º 62º do CPC. A acção funda-se no incumprimento de um determinado volume de negócios que não foi cumprido por não terem sido efectuadas encomendas à autora o que deveria ter ocorrido em Portugal. Subsidiariamente, defende a aplicação do Regulamento (CE) nº 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho de 17/06/2008, sobre obrigações contratuais, que determina que a lei aplicável aos contratos, no caso de compra e venda de mercadorias é regulada pela Lei do País do vendedor.
4- Em audiência prévia foi decidida a excepção de incompetência internacional dos tribunais portugueses, nos seguintes termos:
II. Na contestação que apresentaram, os RR. invocaram a incompetência internacional dos Tribunais Portugueses, entendendo que os autos se referem a um alegado incumprimento contratual, não estando em causa o local onde deve ser paga a indemnização pedida, mas antes o local onde devia ser cumprida a obrigação que gerou o dever de indemnizar. Assim e considerando que a A. alega que as RR. não respeitaram o volume de encomendas a que se haviam obrigado e que a ordem de encomendas seria realizada a partir de Espanha, onde se encontra localizada a sede das RR., consideram que este é o local de cumprimento e, consequentemente, os Tribunais competentes são os espanhóis.
Notificada para se pronunciar, a A. concluiu no sentido da improcedência desta exceção, por entender que estando em causa uma obrigação pecuniária, dever-se-á atender ao disposto no art.º 774º do Código Civil que estabelece como competente, o tribunal do domicílio do credor.
Apreciando.
Sobre esta matéria, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.09.2024, (Processo nº 22906/22.6T8LSB-B.L1-2, in www.dgsi.pt) decidiu que: “(…) II - Tendo sido invocada pelas Rés a exceção de incompetência absoluta, por (alegada) falta de verificação de qualquer um dos critérios de aferição da competência internacional previstos no art.º 62.º do CPC, importa apreciar se algum deles se verifica, em função dos termos em que a ação foi posta e da forma como a Autora estruturou o pedido e a respetiva causa de pedir.
III – A competência internacional é determinada, segundo uma “ordem decrescente de aplicação prática”, pelos princípios da coincidência, causalidade e necessidade previstos nas alíneas, a), b) e c), respetivamente, daquele artigo. Assim, se a atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses já resultar, desde logo, da aplicação do princípio da causalidade [sendo claro que, no caso dos autos, não se verifica a previsão da alínea a)], não haverá que recorrer ao princípio da necessidade.
IV – Segundo o princípio da causalidade, a ação pode ser instaurada nos tribunais portugueses quando a causa de pedir (ainda que apenas parte dos factos que a integram) foi praticada em território português. Já pelo princípio da necessidade, a ação pode ser instaurada nos tribunais portugueses quando uma situação subjetiva com uma ponderosa conexão, pessoal ou real, com o território português só possa ser reconhecida em ação proposta nos tribunais nacionais, o que pode suceder por uma impossibilidade jurídica ou prática. (…)”.
Deste modo e tendo presente a causa de pedir, conclui-se que não se trata de matéria da competência exclusiva dos tribunais portugueses, não se aplicando o disposto no art.º 63º do CPC.
Relativamente ao disposto no art.º 62º do CPC, há que atender que, por decisão de 24.05.2022, o Juízo Central Cível da comarca de Viana do Castelo – Juiz 1, declarou-se incompetente em razão do território, por entender que o tribunal competente correspondia ao tribunal do domicílio do credor, nos termos do disposto no art.º 71º, nº1 do CPC e art.º 774º do Código Civil. Da referida decisão não foi interposto recurso, formando-se assim caso julgado formal quanto a mesma e com efeitos no âmbito deste processo.
Assim e tendo em consideração o critério utilizado na fixação da competência territorial deste Tribunal, em conjugação com o disposto no art.º 62º, al. a) do CPC, declara-se serem os Tribunais Portugueses internacionalmente competentes para conhecer da presente ação, julgando-se assim improcedente a invocada exceção de incompetência absoluta.
Notifique.”
5- Inconformadas, as rés interpuseram o presente recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
I. A decisão recorrida errou ao fundar a sua decisão de julgar improcedente a excepção de incompetência internacional num suposto caso julgado formal formado pela sentença de 24.05.2022, na qual o Juiz 1 do Juízo Central Cível de Viana do Castelo, se declara territorialmente incompetente, remetendo os autos para os Juízos Centrais Cíveis de Lisboa.
II. A sentença proferida a 24.05.2022 pelo Juiz 1 do Juízo Central Cível de Viana do Castelo é omissa quanto à questão da competência internacional dos tribunais portugueses.
III. Estando em causa uma decisão proferida relativamente a uma excepção dilatória, o artigo 595.º, n.º 3, do CPC, é claro quanto a só se formar caso julgado quanto à questão “concretamente apreciada”, sendo certo que, na sentença proferida em 24.05.2022 a questão concretamente apreciada foi apenas e tão só a questão da competência territorial.
IV. As regras relativas ao caso julgado formal relativamente às decisões sobre excepções dilatórias exigem a pronúncia sobre questões concretas, não se compaginando com decisões genéricas e/ou implícitas.
V. O legislador estabeleceu diferentes regimes para a incompetência, com diferentes tempos e formas de arguição, sendo independentes uns dos outros, bastando ver, por exemplo, que enquanto a incompetência relativa tem de ser decidida até ao saneador, a incompetência absoluta poderá sê-lo até à decisão final.
VI. A decisão recorrida, fundada num despacho que não foi notificado às RR. e que as mesmas não puderam impugnar, viola o princípio do contraditório e as regras relativas a um processo equitativo, sendo nula.
VII. Pretendendo o Tribunal fundar a sua decisão num suposto caso julgado formal de uma decisão que nunca foi notificada às RR., tinha o mesmo de notificar as partes para que se pronunciassem sobre essa sua pretensão, sob pena de a decisão proferida consubstanciar uma decisão surpresa, violadora do princípio do contraditório, e como tal nula.
VIII. Nos presentes autos o tribunal é chamado a dirimir um conflito plurilocalizado entre entidades sediadas em diferentes Estados da União Europeia – Portugal e Espanha – sendo as RR. empresas constituídas de acordo com o direito espanhol, com sede em Espanha, e cuja actividade principal – de exploração de supermercados – é exercida em Espanha, sendo a causa de pedir um alegado incumprimento das obrigações de encomenda de produtos fabricados pela Autora e a fornecer às RR.
IX. Está em causa uma relação contratual entre uma empresa Portuguesa e empresas constituídas e sediadas em Espanha, cuja única actividade ocorre em Espanha, pelo que estamos perante um conflito transfronteiriço que implica que a competência internacional dos Tribunais Portugueses terá de ser resolvida de acordo com o disposto no Regulamento (EU) n.º 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro (adiante referido apenas como “Regulamento”).
X. Nesta acção está em causa matéria civil e comercial não excecionada pelo n.º 2, do art.º 1.º, do Regulamento, quer porque estão em causa réus domiciliados num Estado Membro da União Europeia (art.º 4º, do Regulamento) diferente do Estado Português.
XI. Muito embora as regras de determinação da competência internacional estipuladas pelo Regulamento possam ser afastadas por meio de convenção das partes, admissível pelo art.º 25.º, tal convenção inexiste no presente caso.
XII. Conforme resulta do Regulamento, a regra geral para a determinação do tribunal competente é a regra de que “(...) as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado- Membro” (art.º 4.º, n.º 1).
XIII. Esta regra, aliás, constitui manifestação clara do princípio da proximidade dos tribunais relativamente às partes e às provas, de que é manifestação, entre outros, o critério do domicílio do réu para determinação da competência internacional.
XIV. No caso presente, todas as RR. têm sede em Espanha, sendo esse, como tal, o seu domicílio (art.º 63.º, n.º 1, a), do Regulamento) e, consequentemente, os tribunais internacionalmente competentes para julgar a acção de acordo com aquele critério são, pois, os tribunais espanhóis.
XV. Apenas assim não seria, se normas especiais previstas no Regulamento determinassem a competência internacional de outros tribunais, diferentes dos tribunais espanhóis, o que não é o caso.
XVI. Em concreto, estamos perante uma acção em que a Autora pede a condenação das RR. no pagamento de uma indemnização pelo alegado incumprimento do contrato celebrado entre ambas, o que nos remete para o disposto no art.º 7.º, n.º 1, do Regulamento, nos termos do qual o tribunal competente para julgar a acção será o tribunal onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão.
XVII. Note-se que não está aqui em causa o local onde deva ser paga a indemnização pedida, mas sim, ao invés, o local em que deveria ter sido cumprida a obrigação que gerou esse dever de indemnizar.
XVIII. Na presente acção, a Autora alega, em concreto, que as RR. não respeitaram o volume de encomendas a que se haviam obrigado, sendo essa a obrigação incumprida que
geraria o dever de indemnizar.
XIX. Tendo em conta que a sede das RR. está localizada em Espanha, a ordem das encomendas – a obrigação alegadamente incumprida – seria realizada, como foi, a partir de Espanha, sendo esse, à partida, o local do cumprimento do contrato, donde, também através do art.º 7.º, n.º 1, do Regulamento, se conclui que os tribunais competentes para conhecer desta acção são os tribunais espanhóis, uma vez que Espanha seria o local do cumprimento da obrigação alegadamente incumprida.
XX. Esta conclusão é ainda fortalecida pelo critério supletivo do art.º 7.º, n.º 1, alínea a) do Regulamento, onde se estipula que se deve considerar local do cumprimento, “no caso da venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues”.
XXI. A opção do legislador da União foi no sentido de remeter o local do cumprimento para o local da realização da prestação característica do contrato que, no caso da compra e venda, será o local para o qual os bens teriam de ser entregues, i.e. nos vários armazéns das RR., sitos em Espanha.
XXII. De acordo com este critério os tribunais internacionalmente competentes para julgar esta causa serão os tribunais espanhóis, na medida em que o local da entrega dos bens encomendados pelas RR. seriam os estabelecimentos destas, situados em Espanha.
XXIII. Para efeitos de determinação da competência internacional não faz sentido recorrer ao disposto no art.º 774.º, do CC, uma vez que, para efeitos de determinação da competência internacional não é aqui aplicável a lei interna, mas antes o Regulamento, que contém critérios próprios para o efeito.
XXIV. Existindo convenção internacional, a aferição da competência internacional dos Tribunais Portugueses tem de ser feita com base na mesma, por respeito ao estabelecido nos artigos 59.º do CPC e no artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa, sendo aplicável, por conseguinte, o Regulamento.
XXV. A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 3.º, 59.º, 595.º, n.º 3, 621.º, 278.º, n.º 1, alínea a), todos do CPC, bem como o artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa, e o artigo 7.º, n.º 1, do Regulamento (EU) n.º 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro.
6- A autora contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
A. Muito bem andou o julgador da primeira instância no seu irrepreensível despacho que determinou, inter alia, a improcedência da exceção de incompetência absoluta e, consequentemente, declarou serem os Tribunais Portugueses internacionalmente competentes para conhecer a presente ação. Decisão essa fundamentada pelo tribunal, que invocou as concretas razões pelas quais não acolheu a tese de incompetência pugnada pelas RR.
B. Existe caso julgado da decisão de competência internacional dos Tribunais Portugueses, pois se é certo que as RR não foram notificadas da decisão de 24/05/2022, a verdade é que, em 11/03/2022 as RR apresentaram um requerimento ao processo com referência citius 3512138 e em 07/10/2022 o Ilustre Mandatários das RR veio aos autos requerer a prorrogação do prazo para contestar a petição inicial e juntou procuração forense (Ref. citius: 43481092). Portanto, em 07/10/2022 tiveram pleno acesso através do citius de todos os passos processuais dos autos, inclusive a sentença de 24/05/2022, com o requerimento ref. citius: 43481092 com o pedido de prorrogação e junção de procuração forense.
C. Porém, apenas em 29/11/2022, na contestação à petição, é que as RR vieram suscitar a questão da incompetência absoluta dos Tribunais Portugueses. Nessa data, 29/11/2022 já a sentença de 24/05/2022 havia transitado em julgado. Nessa sentença o Tribunal de Viana do Castelo poderia ter oficiosamente determinado a incompetência absoluta dos Tribunais Portugueses para dirimir este caso, mas não o fez. Não o fez porque, debruçando-se sobre o tema da competência territorial considerou apenas e só que a competência, in casu, dizia respeito aos Tribunais Portugueses, mas não a Comarca de Viana do Castelo, antes, a Comarca de Lisboa. Portanto, resulta evidente que o tema da incompetência absoluta ficou ultrapassado na decisão de Viana do Castelo e é conclusão ínsita à decisão de que o Tribunal Competente será o local do cumprimento da obrigação, no caso, a sede da Autora, Lisboa.
D. Ofende a lógica considerar que o julgador da primeira instância da Comarca de Viana do Castelo se tenha considerado incompetente, remetendo os autos para o Tribunal que considerou competente com base na forma como o pedido e causa de pedir está estruturado (pois a essa estrutura faz referência), e ainda assim, não tenha apreciado o tema da incompetência absoluta. Portanto, a decisão de 24/05/2022 não só (implicitamente) determinou os Tribunais Portugueses como competentes como, foi mais longe, recorrendo à normatividade vigente para remeter em concreto para o Tribunal nacional competente (Lisboa) os respetivos autos.
E. Como tal, formou-se caso julgado, não podendo as RR colocar em crise esta matéria dada como assente, por juridicamente consolidadas, ou seja, inalterável no que respeita à definição jurídica da situação sobre a qual versaram.
F. Nesse sentido vai o aresto do STJ com data de 08/03/2018, no processo 1306/14.7TBACB-T.C1.S1 e também, o douto acórdão do TRP com data de 17/05/2022 no processo 1320/14.2TMPRT.P1.
G. Ainda que se considere que não se formou caso julgado formal, ainda assim, cumpre pautar que os Tribunais Portugueses são internacionalmente competentes.
H. As RR alegam em síntese que, in casu, estamos perante um conflito plurilocalizado ao qual se aplica o Regulamento (EU) nº1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12/12/2012, que, grosso modo, determina o domicílio do Réu como regra para determinar a competência do tribunal, nos termos art.º 7º, nº1 do referido Regulamento.
I. Porém, salvo opinião contrária, não lhes assiste razão, antes de mais, sempre se dirá que a ação intentada pela Autora contra as RR configura uma ação de indemnização fundada na responsabilidade civil contratual e todo o recorte do litígio se situa na obrigação contratual, incumprida pelas Rés, de terem que efetuar encomendas à Autora, sediada em Portugal, de acordo com um determinado volume de negócio e, como contrapartida, deveriam tais encomendas serem pagas para a conta bancária da Autora domiciliada em Portugal, o que configura a obrigação pecuniária em incumprimento.
J. Estando em causa uma obrigação pecuniária, dever-se-á atender ao disposto no art.º 774º do CC, que determina o domicílio do credor como sendo o tribunal competente.
K. De resto, foi exatamente nesse sentido que, nestes mesmos autos, ficou decidido por sentença de 24/05/2022 e ainda que estejamos no âmbito de um conflito em que as partes estejam sediadas em países diferentes, sempre se dirá que os Tribunais Portugueses são internacionalmente competentes nos termos do art.º 62º do CPC.
L. Não está aqui em crise que, no âmbito de um contrato de fornecimento, tenha ocorrido incumprimento quanto à entrega de bens ou à qualidade dos mesmos, ou a qualquer outro litígio que contenda diretamente com o fornecimento da mercadoria em si. Ou seja, a fonte geradora de responsabilidade, no caso em apreço, roda em torno da existência de um acordo de aquisição de um determinado volume de negócio que não foi cumprido, porquanto não foram efetuadas encomendas à Autora, aqui credora.
M. É essa falta de envio de encomendas para a Autora (com sede em Lisboa) e correlativos pagamentos para a sua conta bancária (aberta e registada num Banco sediado em território português), que se discute nos autos em apreço.
N. Tomemos de exemplo o Acórdão 7438/08.4TVLSB.L1-2 de 08/11/2012 do Tribunal
da Relação de Lisboa e o douto Acórdão 531/15.8T8LRA.C1.S2 de 11/07/2017 do Supremo Tribunal de Justiça.
O. Sem prejuízo, caso se entenda que não se aplica a Lei Portuguesa, dever-se-á atender ao Regulamento (CE) nº 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17/06/2008 que dispõe sobre as obrigações contratuais, o qual abrange os contratos celebrados após 17/12/2009 (cfr. art.º 28º) – como é o caso.
P. Ademais, tendo presente a decisão de 24/05/2022 oriunda do Tribunal Judicial de Viana do Castelo que considerou que não houve foro convencionado entre as partes, dever-se-á ter em linha de conta o disposto na al. a) do nº 1 do art.º 4º do referido Regulamento que determina que no caso do contrato de compra e venda aplica-se a lei do país em que o vendedor tem residência habitual – in casu, Lisboa.
Q. Portanto, não tendo as partes convencionado inequivocamente um foro para dirimir um litígio emergente da sua relação contratual (como ficou decidido na sentença de 24/05/2022), a lei aplicável aos contratos, no caso da compra e venda de mercadorias, é regulada pela Lei do País em que o vendedor, neste caso a Autora, tem residência habitual.
R. As RR deveriam ter realizado e pago encomendas à Autora num determinado volume, e nessa qualidade de vendedora, tendo a sua sede em Portugal, Lisboa, deverá ser essa a Lei aplicável - o que é ditado pelos invocados artigos 71º, nº 1 do CPC e 774º do CC, que determinam o domicílio do credor, aqui Autora, como o lugar onde se considera que deva ser efetuada a prestação pecuniária e o tribunal onde deve ser proposta a ação destinada a exigir o cumprimento de obrigações e a indemnização pelo não cumprimento.
S. Ainda, no nº 2 do art.º 12º estipula-se ainda com interesse para o caso que “quanto aos modos de cumprimento e às medidas que o credor deve tomar no caso de cumprimento defeituoso, atender-se-á à lei do país onde é cumprida a obrigação.”
T. De notar que além da obrigação pecuniária que resulta de o recorte do litígio dever ser cumprida na sede do Autor, igualmente releva dizer que o contrato estabelecido com as RR não implicava a entrega de bens apenas em Espanha mas também em Portugal, dado que era um negócio com abrangência Ibérica.
Adicionalmente,
U. Ainda que se considere aplicável o Regulamento (EU) nº 1215/2012 de 12 de Dezembro, pelo qual pugnam as RR, ainda assim, serão os Tribunais portugueses os competentes, senão vejamos o que dispõe o art.º 7º, nº 1 al. a) do referido Regulamento que refere que deve ser aplicável a lei do lugar onde deva ser cumprida a obrigação, que no caso, se trata de uma obrigação de realizar encomendas deveria ser feita, como vimos, junto da sede da vendedora em Portugal e a correlativa obrigação (pecuniária) de pagamento das encomendas deveria ser cumprida, igualmente, em Portugal.
V. Incumpridas essas obrigações contratuais que pendiam sobre as RR, surge o dever de indemnizar a Autora. Sendo este, o pagamento de um quantitativo indemnizatório, o busílis da causa de pedir e do pedido e não propriamente a entrega (latu sensu) de bens.
W. Por conseguinte, ao caso não se aplica o disposto no art.º 7º, nº 1 al. b) do referido Regulamento e consequentemente, muito bem andou o julgador da primeira instância ao determinar a improcedência da exceção de incompetência absoluta e ao decidir pela competência internacional do tribunal português.
Por tudo isto e pelo mais que a Veneranda Relação ad quem queira decidir no sentido de que o presente recurso não merece atendimento, confirmando na íntegra o despacho saneador recorrido e concluindo pela competência internacional dos tribunais portugueses.
***
II-FUNDAMENTAÇÃO
1-Objecto do Recurso.
1-É sabido que o objecto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (art.º 635º nº 2 do CPC) pelas conclusões (artºs 635º nº 4, 639º nº 1 e 640º do CPC) pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e, ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.
Assim, em face das conclusões apresentadas pelas recorrentes, é a seguinte a questão que importa analisar e decidir:
- Se os Tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para julgar o presente litígio.
***
2- Matéria de Facto
Com relevo para a apreciação e decisão da questão em causa nos autos, importa ter presente a factualidade constante do RELATÓRIO que antecede.
Releva ainda o facto alegado pelas rés no ponto 27º da Contestação - não impugnado pela autora e, confirmado pelo documento nº 1 junto com a petição inicial (factura FT 2021ª1/21000448, de 11/03/2021 – na qual consta o local de entrega das mercadorias Cadiz):
- O local da entrega dos bens encomendados pelas rés seriam os estabelecimentos destas em Espanha.
***
3- A Questão Enunciada: Se os Tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para julgar o presente litígio.
As rés defendem que os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes face ao que determina o Regulamento (EU) 1215/2012, de 12/12
Já a autora entende que a decisão sobre a incompetência interna, decidiu definitivamente que o Tribunal de Lisboa é o competente para a acção.
A este argumento da autora aderiu, em síntese, a decisão da 1ª instância que julgou improcedente a excepção de incompetência internacional.
Vejamos, então, de que lado está a razão.
O Regulamento (EU) 1215/2012, de 12/12 (doravante Reg. 1215/2012), tem em vista facilitar a livre circulação de decisões em matéria civil e comercial através da unificação das regras relativas à competência judiciária dos tribunais dos Estados Membros (Considerando 4 do Reg, 1215/2012 que, expressamente enuncia um dos respectivos objectivos: “Certas disparidades das regras nacionais em matéria de competência judiciária e de reconhecimento de decisões judiciais dificultam o bom funcionamento do mercado interno. São indispensáveis disposições destinadas a unificar as regras de conflito de jurisdição em matéria civil e comercial e a fim de garantir o reconhecimento e a execução rápidos e simples das decisões proferidas num dado Estado-Membro.”)
Trata-se de Regulamento vinculativo para todos os Estados Membros e é aplicável em matéria civil e comercial, independentemente da natureza da jurisdição (art.º 1º nº 1, 1ª parte); isto é, o Reg. 1215/2012 aplica-se, obrigatoriamente, independentemente do tribunal que é competente na ordem jurídica interna.
-Critério geral.
Em termos de determinação da competência internacional, estabelece o art.º 4º nº 1 do Reg. 1215/2012, estabelece a regra geral:
1. Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado-Membro.”
Quer dizer, as regras sobre a determinação da competência segundo o Reg. 1215/2012, impõem, como regra geral, que as pessoas domiciliadas num Estado-Membro, devem ser demandadas nos tribunais desse Estado-Membro.
Ou seja, decorre destes preceitos que o Reg. 1215/2012 é aplicável sempre que o demandado tenha o seu domicílio num dos Estados-Membros.
Relevante, portanto, e determinativo da aplicação vinculativa do Reg. 1215/2012 é o local do domicílio do demandado enquanto critério geral atributivo da competência internacional.
No que respeita à determinação do domicílio das sociedades e pessoas colectivas, o art.º 63º contém a seguinte regra:
“1. Para efeitos do presente regulamento, uma sociedade ou outra pessoa coletiva ou associação de pessoas singulares ou coletivas tem domicílio no lugar em que tiver:
a. A sua sede social;
(…)
No sentido do que foi exposto, veja-se Castro Mendes/Teixeira de Sousa (Manual de Processo Civil, Vol. I, AAFDL, 2022, pág. 184): “Na hipótese de o réu ter domicílio num dos EMs, a competência afere-se segundo as seguintes regras: - O réu domiciliado num desses Estados deve ser demandado, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais do Estado do seu domicílio (art.º 4º nº 1); consagra-se, assim, o princípio actor sequitur forum rei…”; - As pessoas domiciliadas no território de um Estado podem ser demandadas perante os tribunais de um outro Estado se tal resultar de uma competência especial ou de um pacto de jurisdição (art.º 5º nº 1)
Portanto, a regra geral de competência internacional fixada pelo Reg. 1215/2012 é: o réu deve ser demandado nos tribunais do Estado-Membro onde tem o seu domicílio, ou sede, para as pessoas colectivas.
Critérios Especiais.
Não obstante, o Reg. 1215/2012 contém regras especiais que excepcionam a regra geral do domicílio do réu na determinação da competência internacional dos tribunais dos Estados-Membros.
Assim, de acordo com o art.º 5º do Reg. 1215/2012, “1. As pessoas domiciliadas num Estado-Membro só podem ser demandadas nos tribunais de outro Estado-Membro nos termos das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do presente capítulo.”
Quer dizer, o réu que seja domiciliado num Estado-Membro pode ser demandado nos tribunais de um outro Estado-Membro se se verificar um dos factores de conexão enunciados no art.º 7º a 26º do Reg. 1215/2012. “A competência que é fixada através de um critério especial concorre com aquela que é determinada pelo critério geral do domicílio do réu (art.º 4º nº 1), de modo que o autor pode escolher qualquer dos tribunais cuja competência seja determinada pela aplicação dos referidos critérios, gerais e especiais (art.º 5º nº 1)” (Castro Mendes/Teixeira de Sousa, Manual …cit., pág., 186).
Ora bem, um dos critérios especiais de determinação da competência é o que diz respeito à matéria contratual. (os outros critérios especiais fixados são relativos à competência em matéria de Seguros (artºs 10º a 16º; competência em matéria de contratos de consumo (art.º 17º a 19º), competência em matéria de contratos individuais de trabalho (artºs 20º a 23º), competências exclusivas (v.g. em matéria de direitos reais, constituição e extinção de sociedades, direito registal, propriedade industrial e, execução de decisões – art.º 24º); pactos de competência e de jurisdição (art.º 25º e 26º) e, por isso, não nos interessam para o caso dos autos).
Assim, estabelece o art.º 7º nº 1, als., a) e b) e respectivo primeiro parágrafo desta alínea, o seguinte critério especial de determinação de competência em matéria contratual:
As pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro:
1)
a) Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão;
b) Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será:
— no caso da venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues,”
(…)
Portanto, inexistindo acordo em contrário, estando em causa matéria contratual é competente o tribunal do lugar onde a obrigação deva ser cumprida, sendo certo que, tratando-se de contrato de venda de bens, o Reg. 1215/2012 estabelece como critério determinativo do tribunal competente, o do lugar onde os bens devam ser entregues.
Não o local do pagamento do preço, como menciona a autora.
No caso dos autos, vimos acima – o que não foi contestado pela autora e, de resto, consta na factura junta como documento nº 1, com a petição inicial e, pelo qual, de resto, a autora pretendia fixar a competência no tribunal de Viana do Castelo – que “O local da entrega dos bens encomendados pelas rés seriam os estabelecimentos destas em Espanha.”
A esta vista, quer à luz do critério geraldomicílio do réu – quer à luz do critério especial em matéria contratual de venda de bens - o local da entrega dos bens – temos de concluir que os tribunais portugueses não são competentes internacionalmente para julgar o litígio em causa nos autos.
Acrescente-se ainda que o elemento de conexão “Matéria Contratual” abrange, igualmente, a ruptura abrupta de relações comerciais estáveis, como é o caso do fundamento desta acção.
Na verdade, o Tribunal de Justiça, no acórdão de 14/07/2016 (Proc. C-196/15) veio esclarecer que a “Ruptura abrupta de relações comerciais estáveis” se insere no conceito de “Matéria Comercial”, como decorre, expressamente, do considerando 28 do acórdão que enuncia “…uma acção de indemnizatória com fundamento numa ruptura abrupta de relações comerciais estáveis, como a que está em causa no processo principal, não tem natureza extra-contratual…” antes tendo natureza contratual; esse entendimento resulta, igualmente, do texto da decisão final desse acórdão.
Em face do que foi exposto, temos de concluir que, internacionalmente competentes para julgar o litígio em causa nesta acção, à luz dos critérios determinativos de competência estabelecidos pelo Reg. 1215/2012, de aplicação obrigatória nos Estados-Membros, são os tribunais de Espanha.
O mesmo é dizer que os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para esta acção.
Como é sabido, a infracção das regras de competência internacional determina a incompetência absoluta (art.º 96º al. a)); o que constitui uma excepção dilatória (art.º 577º al. a)) que, procedendo, leva à absolvição do réu da instância (art.º 576º nº 2, 1ª parte).
Uma última nota: como é evidente, a decisão do Tribunal de Viana do Castelo que determinou que a competência territorial (interna) seria dos tribunais cíveis de Lisboa, não apreciou nem decidiu a questão da competência internacional e, por isso, não tem qualquer efeito/consequência quanto à matéria da invocada excepção de incompetência internacional.
Em suma: o recurso procede.
***
III-DECISÃO
Em face do exposto, acordam os juízes desembargadores que compõem este colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, julgar o recurso procedente e, em consequência, revogam o despacho sob impugnação e, declaram que os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para julgar a acção e, absolvem as rés da instância.
Custas, na instância de recurso e na 1ª instância, pela autora, por ter decaído totalmente.
Nos termos do art.º 6º nº 7 do RCP, dada a fase processual em que termina a acção e a não complexidade da questão, acha-se adequado dispensar o pagamento do remanescente da taxa de justiça superior a 275.000€.

Lisboa, 10/04/2025
Adeodato Brotas
Nuno Lopes Ribeiro
Jorge Almeida Esteves