Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | CONCEIÇÃO GONÇALVES | ||
Descritores: | MUTILAÇÃO GENITAL FEMININA | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 07/14/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
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Sumário: | Perante práticas de mutilação genital feminina de tipo IV, de acordo com a Classificação da OMS as exigências de prevenção geral são elevadas tendo em conta a frequência com que ocorre a prática deste crime, com consequências muito nefastas para a saúde, física e psíquica, das crianças, adolescentes e mulheres adultas. A prevalência da prática reiterada deste crime, sobretudo nos países de Africa e Médio Oriente, de acordo com os dados da OMS, afecta cerca de 100 a 140 milhões de meninas e de mulheres em todo o mundo, sendo realizadas cerca de 3 milhões de excisões por ano (informação destes dados retirada do livro “Combate à Violência de Género -Da Convenção de Istambul à nova legislação” - Coordenação Maria da Conceição Ferreira da Cunha, pa.101). Na determinação da medida concreta da pena e ponderando a suspensão da mesma há que atentar a que a arguida, na sua postura em audiência revelou um sentimento de quem cumpriu um dever que lhe foi imposto, do qual não podia fugir, restando-lhe então em sua defesa negar a prática dos factos em Tribunal. A arguida fez apenas o que era o anseio da sua família, assim como ela e a irmã também foram sujeitas a esta prática, e provavelmente todas as mulheres da sua família, sendo que a arguida não teria condições para criticar e opor-se àquelas práticas, defendidas pela sociedade em que está inserida. A arguida é uma jovem mãe então com 19 anos de idade, incapaz de se sobrepôr à pressão exercida pela sua família, encontrando-se num contexto de grande vulnerabilidade, sem condições para resistir às normas sociais impostas. Não tem registo criminal de espécie alguma. Concorrem assim factos que permitem um juízo de prognose favorável face ao comportamento da arguida e a suspensão da execução da pena. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em Conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa. I. RELATÓRIO. 1. No processo comum com intervenção de Tribunal Colectivo, procedente do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste -Juízo Central Criminal de Sintra -Juiz 5, com o número supra identificado, a arguida RD_____ nascida em 25/12/1999, natural da Guiné-Bissau, nacionalidade guineense, solteira e residente em Portugal, por acórdão proferido em 8/01/2021, foi condenada, pela prática de um crime de mutilação genital feminina, na forma consumada, p e p. pelo artigo 144-A, nº 1, do Código Penal, na redacção da Lei nº 83/2015, de 5 de Agosto, na pena de 3 (três) anos de prisão efectiva. 2. Não se conformando com a decisão proferida, a arguida veio interpor recurso, terminando a motivação com a formulação das seguintes conclusões (transcrição): “I. A recorrente entende que a pena de 3 (três) anos de prisão efectiva que lhe foi aplicada é manifestamente desproporcional e incorre num acrescido sofrimento (multinível) não só para a recorrente como também para a filha aqui vítima. Senão vejamos: II. A arguida/recorrente, assim que observou que a filha/ menor apresentava os referidos sinais, deslocou-se, de imediato, ao centro de Saúde Unidade de Saúde Familiar Conde da Lousã (pois estava e está em causa o superior interesse da sua filha). III. Ou seja, não houve intenção propositada de retardar a consulta recomendada, com intuitos apenas dilatórios, ou seja, com o propósito de permitir que a ferida provocada na menor cicatrizasse (fls. 6 a 8 do acórdão recorrido). IV. Pois se fosse esse o propósito da arguida, mais eficaz seria permanecer no seu país de origem. V. Com efeito, a aqui arguida/recorrente justificou tal lapso de tempo alegando ter entendido aguardar pelos resultados do tratamento a que a filha/menor estava submetida (fls. 9 do acórdão recorrido). VI. O acórdão reconhece que não ficou provado que tivesse sido a arguida/recorrente a cortar a região da vulva/filha (fls. 5 do acórdão recorrido). VII. Se o entendimento do Tribunal, conforme versa no seu Douto Acórdão é de que não ficou provado que “a referida intervenção sobre a zona genital da filha da arguida foi feita sem o conhecimento e o consentimento da própria arguida/recorrente, num momento da sua ausência” (fls. 5 do acórdão recorrido). VIII. Também é verdade que, ao longo de todo o julgamento, não ficou provado que a arguida tivesse conhecimento e dado o seu consentimento à referida intervenção sobre a zona genital da filha (fls. 5 do acórdão recorrido). IX. Pelo que se questiona como pode uma dúvida razoável quanto à existência (ou falta de) consentimento por parte da recorrente na prática da intervenção em causa redundar na pena de prisão efectiva da mesma (fls. 5 e 24 do acórdão recorrido). X. A recorrente é contra a prática da mutilação genital feminina, conforme prova testemunhal produzida em sede de julgamento (fls. 11 do acórdão recorrido). XI. O Douto acórdão não teve em conta que, à data dos factos, a qui arguida/recorrente tinha apenas 19 nos de idade (fls. 6 do acórdão recorrido). XII. A jovem mãe/recorrente se encontrava sozinha a cuidar da filha e em situação de desemprego e abandonada pelo pai da sua filha, vivendo de ajudas de familiares, nomeadamente, da mãe e dos irmãos (fls. 14 do acórdão recorrido). Da Inexistência de antecedentes criminais/recorrente. XIII. A aqui arguida sempre pautou a sua conduta com as regras socialmente aceites, conforme afirma o acórdão recorrido “A arguida não apresenta qualquer condenação averbada no respectivo certificado de registo criminal” (fls. 3 do acórdão recorrido). XIV. A recorrente tem uma história de integração e inserção no meio social, sendo cumpridora de todas as normas, condutas e regras sociais e penais, de resto como realçado pelo próprio Acórdão Recorrido a fls. 9 “a arguida negou peremptoriamente que tivesse “cortado ou mandado cortar a zona genital da sua filha”. XV. O douto acórdão reconhecido que ficou provado que “a arguida interveio no julgamento negando a prática de mutilação genital feminina. XVI. Acresce ainda que a recorrente, desde que chegou a Portugal com 12 anos de idade e apesar de ter sido socializada e educada no contexto socio-económico-legal-cultural da Guiné-Bissau, tem pautado o seu comportamento por uma enorme preocupação em cumprir com todas as normas do país de acolhimento (Portugal), tendo por referência mental e sociocultural a intersecção entre diferentes culturas e ditames sociais quer do País de acolhimento quer do País de origem (GuinéBissau) (quanto intersecção veja-se a obra de Crenshaw, K. (1989) (…). Do Interesse Superior da Criança XVII. A possibilidade de a criança ser privada do convívio da mãe comportará maior prejuízo, impactando o seu desenvolvimento pessoal, físico e mental. Juntar ao sofrimento físico (conforme prova da prática do crime de MGF mencionada nos autos) ao sofrimento psicológico e emocional de ser afastada da mãe terá repercussões negativas no normal desenvolvimento da criança e do relacionamento entre mãe e filha. Tal poderá impor um duplo sofrimento à vítima: infligido pela prática de mutilação e agora pelo Estado que era quem em última instância deveria zelar, mais do que nunca, pela protecção da menor e o seu normal desenvolvimento e crescimento saudáveis junto da Mãe. XVIII. Ficou bem saliente ao longo de todo o julgamento que a aqui recorrente é única referência para a menor em causa. É a pessoa que sempre está presente na sua vida. Sendo Pai e Mãe simultaneamente. XXIV. Saliente-se que os autos recorridos reconhecem a impossibilidade de prova quanto à autoria da prática do crime de MGF (fls. 2, 5 e 11 do acórdão recorrido) Necessidade da Prevenção Geral. XIX. No douto acórdão diz-se que uma das finalidades, senão a maior, desta condenação, é a de dissuadir estas práticas, ou seja …visa prevenir a comissão destas práticas nefastas para a saúde de todas e quaisquer mulheres, incluindo as crianças e adolescentes que se encontram em risco neste momento” (fls. 21 do acórdão). XX. Salvo o devido respeito, que é muito e devido, as referidas ficaram já acauteladas de forma eficaz e inquestionável. XXI. O impacto da notícia foi grande, em particular na Europa, África e com especial incidência em Portugal, país de acolhimento e na Guiné-Bissau, país de origem. XXII. Todos os órgãos de comunicação social portugueses e guineenses, em particular, difundiram, de forma sistemática e até educativa, durante dias, a notícia da condenação da ora recorrente. XXIII. Por ser o primeiro julgamento e a consequente condenação nos termos conhecidos, o impacto e repercussões foram bastante profundos na opinião pública nacional e internacional, motivando, como fruto, um debate sério, quer em Portugal sobretudo na comunidade africana/guineense, e quer na Guiné-Bissau. XXIV. Para todas quelas mães ou jovens mães que ainda poderiam ter subjacentes quaisquer intenções ou pretensões, ficaram claras quais as consequências penais. XXV. Por isso e agora há que cuidar do superior interesse da criança, impondo à mãe, com a colaboração do Estado, mecanismos de protecção, assim como um quadro saudável de desenvolvimento e crescimento. XXVI. Tudo em conformidade com os ditos e conhecidos instrumentos internacionais que pugnam pela tutela das crianças: Declaração do direito da criança e Convenção sobre o direito da criança, entre outros. XXVII. Isso só será logrado não com a condenação efectiva da ora recorrente, mas sim, com suspensão, na sua execução, da pena de 3 anos que lhe foi aplicada, com a certeza de que, do ponto de vista da prevenção especial, à data de hoje, afigura-se suficiente. XXVIII. Acresce ainda que, muitos elementos da comunidade portuguesa têm-se manifestado contra a desproporcionalidade da pena efectiva. Por exemplo, Sónia Duarte Lopes, membro da Direcção da End FGM Eu e Coordenação da Delegação de Lisboa da Associação para o Planeamento da Família (APF), mencionou, relativamente à pena de prisão efectiva é uma sentença desproporcional, especialmente no caso de uma mãe com 19 anos -ela própria sobrevivente a esta prática. Como jovem mãe, ela não está preparada para resistir à tradição familiar e às normas sociais, onde o secretismo envolve esta prática. Aquando das condenações, os Tribunais devem considerar o contexto de especial vulnerabilidade que mulheres nestas situações enfrentam todos os dias” (Vide Declaração conjunta proferida por diversas entidades, conforme consultada online a 06 de Fevereiro de 2021 em https://docs.google.com/forms/d/e/FAIpQLScbHTcfO4BSKCnLeSXBiUMRVIeT5nI3G3NMUjcb4LcUsbmw/viewfor?gxids07628. XXIX. Não obstante a aplicação e implementação da lei ser fundamental para enviar uma mensagem de censura à sociedade, tal como defendido por Teresa Pizarro Beleza, "as mulheres devem continuar a insistir na tentativa de resolução dos seus problemas também pela via jurídicopenal. E que devem ter consciência de que ela não é única, nem porventura, em certos planos, a mais eficaz" [Beleza, T. P. (1990). Mulheres, Direito, Crime ou a Perplexidade de Cassandra; Lisboa: Faculdade de Direito de Lisboa, p. 394]. Também é sobejamente conhecido que a lei, por si só, não é suficiente para promover uma alteração de mentalidades quanto aos papéis sociais em função de género em múltiplas e distintas sociedades. Tal como afirma Catharine MaCkinnon apud Teresa Pizarro Beleza "the law alone cannot change our social condition. lt can help. So far, it has helped remarkably little" (MaCkinnon apud Beleza, 1990 ibidem, p. 278). Desta forma, e no caso concreto a pena de prisão efectiva não é o lugar indicado para desconstruir as percepções sociais, mitos e preconceitos da mutilação genital feminina nem é o lugar para promover a alteração de comportamentos, nesse sentido a frequência de programas desenvolvidos por associações e instituições a nível nacional é mais eficaz. XXX. De igual forma, Anna Widergren, Diretora da End FGM EU, afirmou a necessidade de "trabalhar de perto com as comunidades e criar as condições para que resistam às normas sociais impostas, que tornam a prática de MGF não numa escolha individual, mas numa consequência da pressão colectiva da comunidade. [devendo] (a prevenção ( ... ) ser feita através da capacitação de profissionais-chave para que estas pessoas sejam capazes de informar as comunidades sobre os riscos reais da MGF." (cfr. Declaração conjunta consultada em linha em 02.02.2021, online em https://docs.google.com/forms/d/e/lFAlpQLScbHTcfO4BSKC-nleSXBiUMRVle T5nl3G3NMUjcb4LcUsbmw /viewform ?gxids= 7 628). XXXI. De igual forma, Rosa Monteiro defende que a intervenção sobre a MGF (entre outras práticas nefastas) "tem de acontecer num quadro feminista de interpretação" da lei com uma abordagem "directa, sensível e com uma perspectiva de género" e não de uma "visão judicialista e criminalizadora", com vista a evitar uma "estigmatização e ( ... ) um fechamento ainda maior destas comunidades, ( ... ) que já vivem situações de segregação e exclusão social" (vide entrevista de Rosa Monteiro consultada em linha em 06.02.2021, e online em: https://observador.pt/2021/02/05/praticastradicionais-nefastas- como-a-excisao-genital-devem-fazer-parte-de-formacao-profissional/). XXXII. A própria Organização das Nações Unidas, recomenda uma abordagem que privilegie a saúde e os direitos humanos das mulheres e raparigas, de forma a que seja promovida "a libertação de alguns papéis ou estereótipos de género e a capacitação de mulheres e raparigas, que tiveram uma importância fundamental" (vide UNICEF (2009). "Uma questão de igualdade de género" Plataforma de Acção para a Eliminação da Mutilação Genital Feminina/Excisão (MGF/E), p. 3). XXXIII. Apela-se, assim, a uma leitura sócio-cultural do comportamento com reconhecimento de que não é tão linear como a lei quer fazer parecer. No fundo, apela-se, a uma maior inclusão, que não passa por alienar e encarcerar a recorrente através de pena de prisão efectiva, mas que assegure que perspectivas e culturas diferentes se reconheçam e se encontram a meio caminho, no cumprimento do espírito e princípios da lei portuguesa. Uma vez que a mutilação genital feminina "enquadra-se no que os cientistas sociais designam por convenção social auto-imposta" (vide UNICEF (2009), ibidem, p. 3). Pelo que a alteração desta mesma convenção social importa uma escolha colectiva e coordenada, de forma a assegurar que "nenhuma rapariga ou família seja colocada numa posição desvantajosa por esta decisão (...) sem terem de enfrentar a vergonha ou a exclusão". (vide UNICEF (2009) ibidem, p . 3). XXXIV. Face ao exposto, defendemos que a pena de prisão efectiva é uma resposta manifestamente desproporcional, e que não concorre para a inclusão, integração da recorrente, logo concorrendo para a clivagem entre a construção social e percepção acerca de “nós e os outros” (Beauvoir, ibidem 1949) que poderá levar, precisamente, a um reforço da identidade de determinados grupos acolhidos, o que poderá aumentar recurso a práticas que promovam um sentimento de pertença a um determinado grupo, perante a rejeição por parte da sociedade de acolhimento. Da necessidade de adoptar uma análise interseccional no artigo 144º-A do Código Penal XXXV. Não obstante o supra exposto e sem prescindir da principal motivação e o propósito do presente recurso (suspensão da pena na sua execução), acresce ainda que, o disposto no artigo no 144.º-A, nº l, do Código Penal, deve ser objecto de uma análise e interpretação interseccional, senão vejamos: XXXVI. O acórdão recorrido deu como provado, que a ora recorrente pertence a uma família que professa a religião muçulmana (fls. 4 do acórdão recorrido). XXXVII. Acresce ainda que, a ora recorrente pertence ao grupo étnico fula presente numa vasta área do continente africano que inclui o país de origem da recorrente a Guiné-Bissau (fls. l do acórdão recorrido). XXXVIII. No acórdão recorrido ficou provado que a recorrente e suas irmãs (à excepção da mais nova) foram submetidas à mutilação genital feminina (fls. 4 do acórdão recorrido). XXXIX. Conforme menciona o douto acórdão, a ora recorrente repudia a prática da mutilação genital feminina (fls. 4 do acórdão recorrido). XL. Acresce ainda que, a Mãe da recorrente, e avó da vítima, "ligou várias vezes para a Guiné-Bissau para pedir à cunhada para não fazerem nada à sua neta durante a respectiva estada naquele país africano" (fls.10 do acórdão recorrido). XLI. Assim, é inegável que quer a recorrente quer a sua mãe de tudo fizeram e fazem para se enquadrarem nos ditames sociais e legais de Portugal, ao mesmo tempo que deram a conhecer o nascimento da bebé (ora vítima) à família residente em Guiné-Bissau, de forma a manter o vínculo afectivo com a família no país de origem. XLII. É bem sabido o limbo que tantas e tantos migrantes experienciam, não pertencendo já completamente a uma realidade sociocultural “deixada para trás” e sendo na maior das vezes olhadas/olhados como "o/a outro/a" pela cultura de acolhimento (Beauvoir, ibidem, 1949). XLIII.Saliente-se ainda o defendido por Clara Sottomayor, segundo a qual será “mais fácil' identificar na “cultura do outro” o que está “errado” e que padece de alteração do que reconhecer na própria cultura (neste caso na cultura portuguesa) a margem de manobra que persiste para melhorar questões associadas, por exemplo, à violência sexual e de género entre a população de acolhimento (vide Clara Sottomayor (2015), "A convenção de Istambul e o novo paradigma da violência de género" in ex Aequo, n. 31, disponível http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?scripi=sciarttext&pid=$087455602015000100009 [ consultado em linha em 06.02.2021]). XLIV. Defende Clara Sottomayor que: "A crença na superioridade da cultura europeia, no que concerne ao respeito pelos direitos das mulheres, é posta em causa pela denúncia de discriminações e violências sofridos por estas, de forma sistemática, no seu quotidiano, como o assédio sexual nas ruas e no trabalho, a violência doméstica e a violação «não violenta». Em conformidade com esta postura verificou-se uma maior facilidade, no Parlamento, em criminalizar comportamentos oriundos de culturas não europeias - mutilação genital feminina e casamento forçado - do que em criminalizar formas de violência sexual mais subtis contra as mulheres e cuja incriminação implicará restrições ao que tem sido considerado uma liberdade «natural» ou um privilégio dos homens." (vide Clara Sottomayor (2015), "A convenção de Istambul e o novo paradigma da violência de género" in ex Aequo, n.31,disponívelhttp://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sciorttext&pid=S0874-55602015000100009 [consultado em linha em 06.02.2021]). XLV. Face ao exposto, e quanto à valorização e desvalorização de determinados comportamentos em sociedade cuja relevância penal é reconhecida através de decisões de política criminal que levam à criminalização ou descriminalização de determinados comportamentos, cumpre referir, que a recorrente, (tal como tantas outras mulheres enfrentam em situação semelhante), enfrenta múltiplas discriminações que devem ser relevadas pela lei no momento da sua interpretação e aplicação. XLVI. Quantos patamares de discriminação podem uma mulher suportar, bem como a sua descendência feminina? Quanta violência tem a recorrente e a vítima que suportarem até que finalmente possam ser simplesmente quem desejam ser, livres de convenções sociais que as discriminam e violentam seus corpos ora por imposição de mutilação ou por imposição do encarceramento e afastamento e quebra do vínculo entre Mãe e Filha? Quanta violência pode o corpo e o espírito de uma mulher (Mãe - recorrente - e Filha - vítima) suportar para que finalmente possam ser livres? XLVII. Não será através de prisão efectiva que ambas (Mãe - recorrente - e Filha - vítima) poderão sarar e prosseguir com as suas vidas para o futuro que a ora recorrente sempre desejou e acalentou e sonhou ao imigrar para Portugal. Certamente nunca foi a prisão, certamente nunca foi a dor e sofrimento para si (recorrente) e para a sua filha (vítima) que aquela acalentou ao migrar para Portugal. XLVIII. Não obstante o disposto do artigo 144-A, e conforme declarações citadas supra, a comunidade de acolhimento, a comunidade portuguesa, pode, deve e quer apoiar a ora recorrente, não a penalizando uma segunda ou terceira vez, acrescendo mais um nível de discriminação, de violência e de sofrimento na sua vida. Mas ao invés, apoiando-a, bem como à sua filha para que juntas caminhem em direcção ao futuro risonho almejado pela recorrente aquando da longa viagem até Portugal. XLIX. É de concluir que, a prisão não é o lugar de redenção, mas a presença constante e o acompanhamento da sua filha apoiada por instituições nacionais com experiência na área da inclusão, igualdade, e com programas de prevenção da mutilação genital feminina é o caminho e o lugar certo para o cumprimento do espírito da lei portuguesa. Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, consequentemente, determinar que a pena de 3 anos de prisão efectiva aplicada a aqui arguida /recorrente RD_____ pelo douto Acórdão ora recorrido, seja suspensa na sua execução”. 3. O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo. 4. A Magistrada do Ministério Público veio responder ao recurso, terminando a motivação com a formulação das seguintes conclusões: “1. À luz da motivação da ora recorrente, não merece qualquer reparo o douto acórdão proferido pelo Tribunal a quo; 2. Do teor do douto acórdão recorrido resulta que a convicção do Tribunal a quo relativamente à matéria de facto dada por assente se fundou na análise crítica e conjugada de toda a prova produzida em audiência de julgamento, incluindo a prova por declarações da arguida, os depoimentos das testemunhas de acusação e de defesa, a prova documental, bem como a relevante prova pericial considerada e igualmente analisada naquela sede, fazendo ainda apelo às regras da vida e da experiência comum, em obediência ao princípio da livre apreciação da prova ínsito no art.º 127º do Código de Processo Penal; 3. Nem se surpreende no acórdão recorrido qualquer estado de dúvida que cumprisse valorar a favor da arguida, aplicando o princípio in dúbio pro reo, ao contrário do que, de forma apenas vagamente enunciada, parece resultar das alegações da arguida; 4. A mutilação genital feminina viola os direitos humanos fundamentais, tutelados pela Declaração Universal dos Direitos do homem e pelas Convenções que a complementam, tais como: -o direito à vida; -o direito à integridade física e sexual; -o direito à saúde; -o direito a não sofrer tratamentos cruéis ou degradantes; -o direito à reprodução; 5. Viola ainda os direitos da criança tal como definidos na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança. 6. A pena de 3 anos de prisão imposta à arguida (sendo a única aplicável ao caso) não é desproporcionada nem ultrapassa a medida da culpa, satisfazendo, do mesmo passo, pelo mínimo, os interesses gerais e especiais; 7. A execução de uma conduta de uma gravidade extrema sobre uma criança que lhe incumbia proteger, a sua filha, que tinha então cerca de 1 ano e 6 meses de idade, a intensidade da culpa revelada pela Recorrente, e as elevadíssimas necessidades de prevenção geral e especial- estas últimas resultantes das exigências de defesa do ordenamento jurídico perante violação tão intensa e irreversível dos bens jurídicos inerentes à qualidade da pessoa humana e de permanentes necessidades de intimidação, por forma a evitar, tanto quanto possível for, a reincidência nestas práticas- não são consentâneas com uma pena de prisão inferior à imposta pelo Tribunal recorrido, sob pena de ficar em xeque a confiança na eficácia do próprio aparelho judiciário e desguarnecido de tutela do importante bem jurídico ofendido pelo cometimento do crime. 8. A suspensão da execução da pena de prisão não é aplicável ao caso dos autos, pois que, á luz das circunstâncias inerentes aos factos e à personalidade da arguida, não se mostra viabilizada a prognose de que a simples censura do crime e a ameaça de execução da pena de prisão possam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição – art.º 50º, nº 1, a contrario, do CP; 9. Deve, consequentemente, ter-se por definitivamente fixada a decisão proferida em primeira instância relativamente à matéria de facto e à matéria de direito, no que respeita à arguida e ora recorrente RD_____ . Termos em que se conclui que o douto acórdão recorrido efectuou um correcto enquadramento jurídico-penal do caso concreto em apreço, pelo que deverá ser mantido nos seus termos. 5. Neste Tribunal, o Exmº Procurador Geral Adjunto na oportunidade do disposto no art.º 416º do CPP acompanhou a resposta do Ministério Público junto da 1ª instância. 6. Colhidos os Vistos legais, procedeu-se à conferência. Cumpre, agora, decidir. II-Fundamentação. Recurso Penal 1. Conforme é aceite pacificamente pela doutrina e jurisprudência dos tribunais superiores, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extraia da motivação, assim se definindo as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso[1]. Atentando nas conclusões apresentadas pela recorrente, o objecto do recurso centra-se na suspensão da execução da pena de 3 anos de prisão pela qual a arguida foi condenada. 2. Vejamos a factualidade em que assentou a condenação proferida, dando-se aqui por reproduzida a factualidade apurada. 2.1. Dos factos. “Factos provados: 1. A arguida é mãe de M_______ , nascida no dia 25 de Agosto de 2017. 2. Desde o seu nascimento que M_______ reside com a arguida, com a avó materna e com duas tias maternas, na habitação sita na Avenida , 2720-425 Amadora. 3. No dia 4 de Janeiro de 2019, a arguida viajou de avião com M______, com destino à Guiné-Bissau, local onde permaneceu com a filha menor até ao dia 15 de Março de 2019, data em que regressaram a Portugal. 4. Em data não concretamente apurada, mas situada no período de tempo em que permaneceram na Guiné-Bissau, e sem que para tal houvesse indicação médica em virtude de doença ou patologia clínica de que M____ padecesse, pessoa não identificada, a pedida da arguida, cortou a região da comissura posterior dos pequenos lábios, fazendo uso de com objecto de características não concretamente apuradas, mas de natureza corto-contundente/corto-perfurante, 5. Como consequência directa e necessária desse comportamento da arguida, M_______ ficou com as seguintes lesões na região vulvar: -Cicatriz hipocrómica na região da glande, irregular e discretamente saliente na porção posterior, com maior componente sensivelmente ântero-posterior, medindo cerca de 1 (um) centímetro de comprimento depois de rectificada: e -Cicatriz hipocrómica, sensivelmente ântero-posterior, na região da comissura posterior dos pequenos lábios, com cerca de 0,5 centímetro de comprimento; 6. A arguida actuou com o propósito alcançado de cortar genitalmente a sua filha M_______ , bem sabendo que ao agir da forma descrita mutilava a menor nos seus genitais, provocando-lhe dores, lesões, sequelas permanentes e aptas a afectar a fruição sexual daquela. 7. Mais sabia a arguida que M_______ não tinha nenhum problema médico que exigisse que a mesma fosse submetida ao actos/intervenções descritos em 4). 8. A arguida agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal. Mais se provou: 9. A arguida interveio no julgamento, negando a prática dos factos e não manifestando qualquer arrependimento. 10. A arguida não apresenta qualquer condenação averbada no respectivo certificado de registo criminal. Mais se provou (condições socioeconómicas da arguida) 11. a arguida nasceu em 25 de Dezembro de 1999. 12. RD_____ é natural de Bissau onde viveu até aos 12 anos de idade. 13. A arguida nunca conheceu o pai e foi criada pela mãe até aos 5 anos de idade até esta emigrar para Portugal. 14. Dos 5 aos 12 anos, a arguida ficou aos cuidados de um tio materno, taxista de profissão, e do seu cônjuge, doméstica, sendo que o casal tinha ainda um filho ao seu cuidado. 15. A situações económica familiar deste agregado é descrita sem referência a privações na satisfação das necessidades básicas. 16. A arguida iniciou a escolaridade no seu país de origem, tendo frequentado a escola até à 2ª classe. 17. Com a vinda para Portugal, ocorrida quando tinha 12 anos de idade, a mesma voltou a integrar o sistema de ensino que frequentou até concluir o 7º ano de escolaridade. 18. A arguida abandonou a escola com 17 anos de idade por ter ficado grávida, no decurso de uma relação de namoro já terminada, e, segundo referiu, por ter começado a evidenciar algum desconforto físico/fisiológico (náuseas, vómitos) que se tornaram sintomas limitativos do desempenho de um quotidiano funcional. 19. Já em Portugal, RD_____ veio residir com a mãe e padrasto, fazendo parte deste agregado familiar mais seis irmãos uterinos. 20. A família da arguida professa a religião muçulmana e o seu modo de vida assenta nas crenças e nos valores culturais da mesma. 21. A arguida e as suas irmãs, à excepção da irmã mais nova- a única nascida há 11 anos em Portugal- foram submetidas à mutilação genital, prática que a arguida refere repudiar. 22. Á data dos factos sob julgamento, a arguida residia com a mãe, duas irmãs e com a sua filha. 23. O padrasto encontra-se em França desde 2015 a trabalhar na construção civil, contribuindo para o sustento da sua família, juntamente com a mãe da arguida. 24. A família habita uma casa adquirida por compra através de empréstimo bancário no valor de 260€/mês. 25. A situação económica familiar é avaliada como equilibrada face às despesas do quotidiano. 26. A arguida teve uma breve experiência de trabalho em 2018 na área da restauração, encontrando-se desde então desocupada. 27. Após ter regressada da Guiné-Bissau em Março de 2019, a arguida inscreveu-se no Instituto de Emprego e Formação profissional da Amadora; 28. Em Março de 2020, a arguida foi indicada para frequentar um curso online de apoio à família e à comunidade, devido à situação epidemiológica da pandemia da Covid 19; porém não foi possível à arguida integrar essa formação por não ter computador. 29. Actualmente, a arguida já é detentora de um computador pelo que perspectiva a curto prazo poder frequentar um curso de cozinha, revelando, contudo, como ambição profissional a área do secretariado. 30. Em termos afectivos, RD_____ não voltou a ter ligação ao pai da sua filha que não quis assumir as suas funções e responsabilidades parentais, tendo aquele apenas assumido legalmente a menor como sua filha. 31. A arguida recebe o apoio da Segurança Social a título de pensão de alimentos no valor de 75€. Factos Não Provados. 1. A arguida cortou a região vulvar da menor M_______ ; 2. A referida intervenção sobre a zona genital da filha da arguida foi feita sem o conhecimento e o consentimento da própria arguida, num momento de ausência desta. 2.2. O Tribunal recorrido fundamentou a sua convicção nos seguintes termos: “1. O juízo probatório positivo e negativo alcançado pelo Tribunal fundou-se na análise global e sistemática das declarações da arguida, dos depoimentos das testemunhas e da prova documental e pericial constante dos autos, tudo à luz da regra da livre apreciação e das restrições legais existentes, com a concorrência de critérios objectivos que permitam estabelecer um substrato racional de fundamentação e de convicção. 2. O objecto do presente processo versa o tema da mutilação genital feminina e a questão de facto central neste processo consiste na determinação da autoria das lesões alegadamente detectadas na região vulvar da menor M_______ . A abordagem probatória dos crimes de mutilação genital feminina pressupõe invariavelmente a avaliação de dois planos ou subtemas de prova nucleares: a) o plano da identificação e caracterização das lesões existentes no aparelho genital da vítima do sexo feminino, o qual depende da realização incontornável de um exame pericial médico; b) e o plano da determinação do agente responsável pelas referidas lesões, o qual suscita outras dificuldades probatórias, pois tais factos decorrem usualmente num círculo de privacidade e de encobrimento familiar, por referência a crianças de pouca idade, sem qualquer capacidade de resistência e de denúncia do mal contra si praticado. 3. Em primeiro lugar, vejamos os factos apurados à custa de meios de prova que dispensam o contributo da própria arguida — a qual, aliás, não está sequer obrigada a prestar declarações, nem está juridicamente obrigado a falar com verdade, podendo declarar o que bem entender e formular a estratégia de defesa que melhor lhe aprouver. M_______ é filha da arguida e nasceu em 25 de Agosto de 2017 (Vide assento de nascimento de fls. 23). No dia 8 de Janeiro de 2019, o Delegado de Saúde do Concelho da Amadora sinalizou a situação da menor M_______ junto da CPCJ da Amadora, dando então conta de que a mesma faltara a consulta de vigilância de saúde infantil em virtude de ter viajado no dia 4 de Janeiro de 2019 para a Guiné-Bissau para aqui ficar durante cerca de 3 meses, havendo receio sobre a eventual sujeição da mesma a práticas de mutilação genital feminina em território guineense (fls. 4-7). No dia 15 de Março de 2019, a referida menor regressou a Portugal (Informação do SEF de fls. 12). No dia 4 de Abril de 2019, a arguida apresentou-se com a referida criança na Unidade de Saúde Familiar Conde da Lousã, na Amadora, para efeito de consulta, havendo então recomendação de encaminhamento da menor para o serviço de urgência do Hospital da Amadora suspeita de escarificação genital MGF tipo 4; porém, a arguida não levou a sua filha ao hospital conforme aconselhado (Vide declaração médica de fls. 86 subscrita pela médica de família Nelylena da Costa). No dia 22 de Julho de 2019, a menor foi sujeita a perícia médica no INML e apresentava então as seguintes lesões na região genital vulvar: i) cicatriz hipocrómica na região da glande, com cerca de 1 cm de comprimento; ii) cicatriz hipocrómica na comissura posterior dos pequenos lábios, com cerca de 1 cm de comprimento. Tais lesões são compatíveis com práticas de mutilação genital feminina de tipo IV, de acordo com a Classificação da OMS. Tais lesões pressupõem a existência prévia de soluções de continuidade naquelas regiões e não são compatíveis com infecção ou assadura da fralda, As sequelas actualmente observáveis são compatíveis com incisões, cortes, perfurações ou introdução de objectos na vagina, resultando soluções de continuidade com dimensões e orientações semelhantes às cicatrizes descritas (relatório pericial de fls. 133 e esclarecimentos periciais de fls. 216). Atenta a idade da menor, estas lesões foram necessariamente causadas por terceiros e apresentam etiologia criminosa. Qual a relação da arguida com as referidas lesões? A perícia médica não permite responder a esta questão, havendo que proceder a uma sintonia mais fina no plano probatório. 4. Vejamos o que se passou pouco tempo depois de a menor M_______ ter regressado a Portugal no dia 15 de Março de 2019, vinda da Guiné-Bissau. No início da aludida consulta de vigilância de saúde infantil, ocorrida em 4 de Abril de 2019, a arguida não comunicou previamente aos profissionais de saúde do Centro de Saúde que a sua filha M_______ tinha algum problema na região genital. Esta começou a chorar quando aqueles a quiseram observar e se aproximaram da mesma, assumindo uma posição defensiva ao ser despida. Enquanto isto sucedia, a arguida limitava-se a dizer: -“Eu não fiz nada!”. Não obstante a resistência oferecida pela menor, foi então possível observar que a zona genital da menor estava muito inflamada e muito irritada. À face desta resistência manifestada pela menor, foi solicitada a presença da médica de família da menor. Após a chegada da médica de família, a menor M_______ continuou a chorar, a fechar as pernas e a oferecer resistência ao exame médico da respectiva zona genital. A arguida foi então expressamente questionada sobre a referida inflamação e não deu qualquer explicação à médica de família da menor M_______ A zona genital estava muito irritada e a arguida foi aconselhada a deslocarse com a menor ao serviço de urgência hospitalar. A arguida não seguiu esta indicação e não levou a sua filha à urgência hospitalar (depoimentos da Médica e da Enfermeira). Em virtude da actuação da arguida, a menor só viria a ser examinada por um médico no INML no aludido dia 22 de Julho de 2019, o que impossibilitou que as lesões existentes na zona genital tivessem sido observadas na sua fase mais aguda. Não obstante esta avaliação pericial mais tardia, a verdade é que a mesma concluiu que esta intervenção sobre as estruturas internas da vulva da menor causou necessariamente dores e hemorragias, pois trata-se de uma zona muito vascularizada. Estas lesões acarretam complicações crónicas com repercussão na fruição sexual, nomeadamente alterações da sensibilidade, dores e ausência do próprio orgasmo. O processo de desinflamação destas lesões terá durado um período não inferior a cerca de três semanas (esclarecimento do Senhor Perito Médico JR___). Se recuarmos três semanas por referência à ida ao Centro de Saúde, somos confrontados com a presença da arguida e da menor na Guiné-Bissau, sendo indiscutível que a mutilação genital feminina é praticada no seio de determinadas etnias neste país. Vejamos então aquilo que a arguida tem a dizer sobre os factos sob julgamento. 5. No julgamento, a arguida confirmou que esteve na Guiné-Bissau com a sua filha M_______ entre 4 de Janeiro e 15 de Março de 2019 e que pretendeu então, com esta viagem, mostrar a sua filha aos familiares ali residentes. A arguida negou peremptoriamente que tivesse “cortado” ou “mandado cortar” a zona genital da sua filha, não obstante a própria arguida e a sua irmã mais velha terem sido mutiladas genitalmente durante as respectivas infâncias. Por referência ao período ora sob julgamento, a arguida afirmou que nunca detectou feridas na zona vaginal da sua filha, nem observou a presença de sangue na roupa e nas fraldas da mesma, sendo que esta esteve sempre consigo durante a estada na Guiné-Bissau, excepto quando precisava de se ausentar por umas horas para ir às compras e a mesma ficava aos cuidados do tio materno da arguida. A arguida confirmou que a menor regressou a Portugal com vermelhidão na zona da vagina e que na aludida consulta no Centro de Saúde, a médica de família - Drª NG___ - lhe disse que tinha uma infecção urinária e prescreveu a ingestão frequente de água. Não obstante esta vermelhidão genital, a arguida disse que a menor nunca se queixou de dores e que o choro da mesma no Centro de Saúde se ficou a dever apenas à intervenção de “estranhos” que a queriam despir. Posteriormente, na mesma sessão de julgamento, a arguida acabou por admitir que a sua filha já se queixava de dores e fechava as pernas quando estavam ambas na Guiné-Bissau, mais concretamente quando faltava cerca de uma semana para regressar a Portugal. A arguida deu ainda conta de que sabia que a mutilação genital feminina era proibida em Portugal e na própria Guiné-Bissau, e não deixou ainda de dizer que a sua própria mãe — avó da menor M_______ — ligou várias vezes para a Guiné-Bissau para pedir à cunhada para não fazerem nada à sua neta durante a respectiva estada naquele país africano. Na fase de inquérito, perante Magistrada do Ministério Público, a arguida já tinha negado a prática dos factos e justificara então a inflamação existente na vagina da filha com o calor que se fazia sentir no território guineense e com a assadura das fraldas (fls. 173). Vejamos então a prova oferecida pela arguida. 6. A mãe da arguida — foi ouvida no julgamento e veio dar conta que esteve na Guiné-Bissau com a arguida e a sua neta M_______ durante a quinzena que antecedeu imediatamente a viagem de regresso destas a Portugal. Enquanto esta avó esteve na Guiné-Bissau, a mesma nunca se apercebeu de que a sua neta tivesse algum problema na zona vaginal, nem a sua filha lhe reportou qualquer queixa desta natureza. A mãe da arguida admitiu que as mulheres da sua família — incluindo a arguida e a irmã mais velha desta — foram sujeitas à mutilação genital feminina até aquela ter emigrado para Portugal e que as crianças assim mutiladas ficavam cerca de dois meses a sarar as feridas numas casas afastadas das respectivas famílias. Todas as demais testemunhas arroladas pela arguida — os amigos e familiares — foram ouvidas em julgamento e revelaram nada saber sobre os factos concretos sob discussão, pois não viram a vagina da menor M_______ no período que ora releva, não se aperceberam das dores da menor que a própria arguida acabaria por admitir e vieram tão-só manifestar a sua actual oposição ao “fanado” e a respectiva crença na total inocência da pessoa da arguida. 7. Não obstante a negação dos factos pela arguida, resulta à saciedade da prova pericial e testemunhal acima enunciada que a menor M_______ foi cortada na respectiva zona genital enquanto esteve na Guiné-Bissau e que só veio a ser apresentada na consulta de saúde infantil quando já tinham passado mais de três semanas sobre a intervenção na respectiva região vulvar. Na verdade, a menor, então com 1 ano e 6 meses de idade, tinha sido cortada na região vulvar e sofrido dores e sangramento que não poderiam passar despercebidas à arguida quando ainda estavam na Guiné-Bissau, e a mesma, tendo regressado com a menor a Portugal no dia 15 de Março de 2019, só viria a apresentá-la no Centro de Saúde em 4 de Abril de 2019, isto sem qualquer revelação ou explicação mínima sobre o estado da menor e sobre as práticas sofridas pela menor, pensando erradamente que a mesma já estava numa fase menos aguda que não lhe traria quaisquer dissabores junto das autoridades nacionais. Por outro lado, resultou igualmente provado que a arguida não cortou ela própria a zona genital da sua filha e que aquela se deslocou propositadamente à Guiné-Bissau também para esse efeito, vindo a solicitar aqui a intervenção material de terceiro não identificado que se dedicava mais ou menos “profissionalmente” a este tipo de “práticas culturais” enraizadas em certas etnias. As declarações da arguida foram contrariadas pelos depoimentos de todos os profissionais de saúde ouvidos no julgamento, incluindo o perito médico e a médica de família da menor dos autos. Em particular, importa realçar que a alegada tese da assadura da fralda, ensaiada pela arguida desde a fase de inquérito, não passou pelo crivo da perícia médica e não suscita qualquer comentário adicional, senão deixar consignado que a arguida não soube proteger a M_______ das tradições lesivas da sua família e assumir as suas responsabilidades até ao final do julgamento. 8. Para o apuramento da factualidade respeitante às condições sociais e familiares da arguida relevou o relatório social oportunamente elaborado pela DGRS e os depoimentos dos familiares da arguida. 9. Finalmente, a inexistência de anteriores condenações criminais da arguida foi alcançada a partir do respectivo certificado de registo criminal”. 3. Apreciando. 3.1. Da substituição da pena de prisão. 3.1. Começamos por referir que a arguida, ora recorrente, embora na motivação de recurso se reporte num ou noutro segmento à forma como o tribunal procedeu à apreciação e valorização da matéria de facto dada como provada, o certo é que não procedeu ao devido cumprimento dos ónus de especificação imposto pelo art.º 412º, nºs 3 e 4 do CPP, assim se restringindo o âmbito do recurso à invocada suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada. 3.2. Para melhor decidir, atentemos na fundamentação da pena aplicada pelo Tribunal a quo: “(…) a arguida não confessou o mal praticado sobre a sua própria filha e não manifestou qualquer arrependimento em julgamento, chegando ao ponto de negar a evidência científica e de depreciar a intervenção dos médicos e enfermeiro do centro de saúde que tiveram a premonição de que tal iria acontecer, como veio a suceder, mas não foram a tempo de evitar os maus tratos e os sofrimentos infligidos à menor M_______ (…). Medida concreta da pena: (…). Primordialmente, a finalidade visada pela pena há-de ser a tutela necessária dos bens jurídico-penais no caso concreto, com um significado prospectivo, traduzido pela necessidade de tutela da confiança e das expectativas de comunidade na manutenção da vigência da norma violada (prevenção geral positiva ou de integração) - Vide FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal - Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, pp. 78-85 Existe uma medida óptima de tutela de bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena se deve propor alcançar; medida esta que não pode ser excedida (princípio da necessidade) por considerações de qualquer tipo, nomeadamente por exigências (acrescidas) de prevenção geral, derivadas de uma particular perigosidade do delinquente. Abaixo do ponto óptimo ideal outros existirão em que aquela tutela é ainda efectiva e consistente até se alcançar um limiar mínimo - chamado de defesa do ordenamento jurídico -, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar de bens jurídicos. Dentro da moldura da prevenção geral positiva ou de integração devem actuar pontos de vista de prevenção especial: seja a função positiva de socialização, seja qualquer uma das funções negativas subordinadas de advertência individual ou de segurança ou de inocuização. A medida da necessidade de socialização do agente é, em princípio, o critério decisivo das exigências de prevenção especial. Ele só entra em jogo se o agente se revelar carente de socialização. Se uma tal carência não se verificar tudo se resumirá, em termos de prevenção especial, em conferir à pena uma função de suficiente advertência; o que permitirá que a medida da pena desça até perto do limite mínimo da moldura de prevenção geral ou mesmo que com ele coincida. Por seu turno, a culpa constitui pressuposto necessário da culpa e o seu limite inultrapassável - “não há pena sem culpa e a medida da pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa”. A função culpa é a de estabelecer o máximo da pena ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa humana e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade nos quadros próprios de um Estado de Direito Democrático. No que respeita aos factos, o crime de mutilação genital feminina praticado na pessoa da ofendida M_______ apresenta uma elevada ilicitude na medida em que é cometido pela mãe contra a sua própria filha e envolveu a premeditação inerente à organização de uma viagem à Guiné Bissau para efeito de comissão dos factos típicos dados como provados. A arguida traiu a relação de confiança e de protecção relativamente à sua própria filha, que tinha então cerca de 1 ano e 6 meses de idade, e contribuiu mais uma vez para o risco não despiciendo de gerar uma repetição transgeracional deste tipo de violência exercidas sobre as crianças do sexo feminino. Recurso Penal No plano do desvalor do resultado, trata-se de uma mutilação genital de tipo IV com os contornos e com as consequências dadas como provadas, as quais afectaram de forma permanente a saúde da vítima. O dolo do agente foi directo e intenso, como sucede naturalmente neste tipo de criminalidade. No que respeita à personalidade da arguida, importa ter presente que a mesma tinha 19 anos de idade quando cometeu os factos sob julgamento e não tem antecedentes criminais de qualquer natureza. Porém, a arguida relaciona-se com os factos provados desvaliosos de uma forma problemática, pois não manifesta qualquer arrependimento e até assume uma postura de vitimização por referência aos profissionais de saúde que sinalizaram a situação antes da viagem para a Guiné Bissau e que a denunciaram após a arguida ter erradamente cogitado que a apresentação da menor numa fase menos aguda não lhe traria quaisquer dissabores junto das autoridades nacionais. A arguida revela dificuldades de descentração, vitimização e reduzida capacidade de avaliação crítica em relação à situação em que se encontra. Apenas abona a favor da arguida a inexistência de antecedentes criminais, mas essa até será a condição normal dos progenitores que sujeitam os seus filhos a este tipo de práticas nefastas para a saúde dos seus filhos e até poderão gozar de elevada consideração social e profissional fora das portas do seu lar. O processo de socialização de RD_____ decorreu no seio de uma família de cariz nuclear onde não foram referidas problemáticas de relevo em termos de dinâmica familiar, apresentando um padrão de desenvolvimento psicossocial dentro de parâmetros socialmente comuns consonantes com as crenças e valores culturais familiares e do seu país de origem. Actualmente desocupada, a arguida revela uma postura de pró-actividade para a aquisição e desenvolvimento de competências profissionais, que a par do enquadramento familiar de que beneficia, constituem-se como factores de protecção, não se descurando, porém, alguns factores de risco que poderão estar associados a crenças e valores culturais que contextualizam o seu modo de vida. As necessidades de prevenção geral são elevadíssimas relativamente ao crime de mutilação genital feminina, pois as cifras negras respeitantes a este crime são elevadas e muitas vezes escapam à punição em virtude da tenra idade das vítimas que não se podem queixar e, sobretudo, do pacto de silêncio familiar que emerge em torno destas práticas nefastas, como sucedeu neste julgamento, o que reclama, por isso mesmo, uma forte resposta de reposição da eficácia da norma jurídica e dos bens jurídicos afectados. Acresce que as mutilações genitais femininas cometidas contra crianças não raras vezes acabam por redundar em sequelas físicas graves e mortes que urge igualmente prevenir. As necessidades de prevenção especial são elevadas pois a arguida diligenciou pela mutilação genital da sua própria filha, negou a evidência científica das lesões causadas à sua própria bebé e não manifestou qualquer arrependimento pelo mal praticado, existindo assim uma forte probabilidade de a arguida vir a reincidir em comportamentos semelhantes, a prevenir necessariamente com a privação temporária da liberdade inerente à aplicação da pena. A culpa da arguida é elevada relativamente ao crime sob julgamento, pois, não obstante a juventude da mesma, a arguida é mãe da vítima e violou a relação de confiança e os deveres especiais de protecção e de cuidado relativamente à menor M_______ . Tudo ponderado, entende-se como necessária, adequada e proporcional a aplicação da pena de 3 anos de prisão”. “Quanto á eventual suspensão da pena. (…) Aqui chegados, apenas se vislumbra uma circunstância que milita a favor do arguido, a saber, a ausência de quaisquer condenações criminais, por factos pretéritos, contemporâneos ou mesmo posteriores aos factos ora sob julgamento. Porém, o cadastro limpo não é condição suficiente para a aplicação de uma pena de substituição. A gravidade e especificidade dos factos provados, a falta de confissão relevante e de arrependimento manifestados pela arguida no julgamento, a ausência de consciência critica revelada sobre o mal praticado e a minimização das suas consequências nas vítimas, a postura de vitimização adoptada, e as elevadas necessidades de prevenção geral sentidas em Portugal e no próprio território da União Europeia, inculcam a ideia de que já não é possível prevenir a prática de novos crimes desta natureza com a aplicação de uma pena de substituição. É incontornável que “a real interiorização do desvalor do comportamento constitui factor determinante para a assunção da culpa e o degrau inicial para o sentimento de responsabilização pelo crime perpetrado e a desejada mudança de vida do agente (vide Ac. TRE 21/5/2013 (Des. Renato Barroso), disponível em www.dgsi.pt). Por outro lado, a pena aqui aplicada não pretende apenas prevenir a comissão de mais violência deste tipo sobre a ofendida M_______ , mas antes visa prevenir a comissão destas práticas nefastas para a saúde de todas e quaisquer mulheres, incluindo as crianças e as adolescentes que se encontram em risco neste momento. Neste circunstancialismo, não é possível formular um prognóstico favorável de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. Conhecendo: Refira-se, para melhor compreensão, que a mutilação genital feminina (MGF) se define como sendo qualquer procedimento que envolva a remoção total ou parcial dos órgãos genitais femininos externos e/ou que provoque danos infligidos aos mesmos por razões não médicas - definição dada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2008. a) Consignou o acórdão proferido que “a arguida não demonstrou arrependimento, nem admitiu os factos essenciais, nem demonstrou interiorização do desvalor do ilícito e do resultado perpetrado”. Considerou elevadas as exigências de prevenção geral positivas reclamadas pela sociedade na estabilização contrafáctica da norma jurídica violada, sendo elevadas as exigências de prevenção geral que se fazem sentir neste tipo de crime, com consequências negativas para a saúde física e psíquica da vítima, com 18 meses de idade, assim como são elevadas as exigências de prevenção especial, havendo que atentar na personalidade revelada pela arguida, marcada pela ausência de autocrítica e de arrependimento, assumindo uma atitude de negação quanto ao cometimento dos factos. Por outro lado, a arguida não tem antecedentes criminais. O tribunal a quo sopesou as circunstâncias agravantes e atenuantes, tendo em conta, designadamente, “o modo de actuação da arguida, objectivamente revelador de elevado grau de ilicitude, e sem que a arguida tenha reflectido nas consequências nefastas do crime para a saúde da vítima, sua filha”. Assim, ponderados os supracitados elementos de ilicitude e de culpa, assim como as exigências de prevenção e reprovação do crime, bem como as condições pessoais da arguida e a ausência de antecedentes criminais, temos a pena fixada pelo Tribunal capaz de acautelar as exigências de tutela dos bens jurídicos em causa dentro do que é consentido pela culpa, donde, temos a pena que foi fixada, de 3 anos de prisão, como justa e equilibrada. b) Da substituição da pena de prisão. Vejamos então se assiste razão à recorrente ao pretender ver suspensa a execução da pena de prisão que lhe foi aplicada? Não merece dúvida que a grande finalidade do instituto da suspensão da execução da pena se contem no afastamento do delinquente da prática de futuros crimes. A aplicação da suspensão da execução da pena de prisão só pode e deve ser aplicada se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, o tribunal vier a concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (cfr. art.º 50º, nº 1, do CP). Para tanto importa que o tribunal se convença de que a censura expressa na condenação e a ameaça de execução da pena de prisão aplicada serão suficientes para afastar o arguido de futuros comportamentos delituosos. Ou seja, é preciso a concorrência de factos concretos que permitam formular um prognóstico favorável sobre o comportamento futuro da arguida, que levem a acreditar na probabilidade de ela não voltar a delinquir, tendo em vista a sua personalidade, as suas condições de vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime e as circunstâncias deste. Referidos estes parâmetros de apreciação, atentemos então no caso concreto dos autos. O Tribunal a quo considerou, no que respeita às circunstâncias do crime que “… a gravidade e especificidade dos factos provados, a falta de confissão relevante e de arrependimento manifestados pela arguida no julgamento, a ausência de consciência crítica revelada sobre o mal praticado e a minimização das suas consequências nas vítimas, a postura de vitimização adoptada, e as elevadas necessidades de prevenção, inculcam a ideia de que já não é possível prevenir a prática de novos crimes desta natureza com aplicação de uma pena de substituição. Por outro lado, a pena aqui aplicada não pretende apenas prevenir a comissão de mais violência deste tipo sobre a ofendida M_______ , mas antes visa prevenir a comissão destas práticas nefastas para a saúde de todas e quaisquer mulheres, incluindo as crianças e as adolescentes que se encontram em risco neste momento”. “Neste circunstancialismo, não é possível formular um prognóstico favorável de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. O Tribunal a quo considerou assim não ser possível formular um juízo de prognose favorável no sentido de a simples censura do facto e ameaça da execução da pena de prisão asseverar as finalidades da punição, motivo pelo qual não decretou a suspensão da execução da pena. Mas com o devido respeito, somos a discordar da decisão do Tribunal recorrido. Somos a entender que no caso do crime em causa as exigências de prevenção geral são elevadas tendo em conta a frequência com que ocorre a prática deste crime, com consequências muito nefastas para a saúde, física e psíquica, das crianças, adolescentes e mulheres adultas violentadas. A prevalência da prática reiterada deste crime, sobretudo nos países de Africa e Médio Oriente, de acordo com os dados da OMS, afecta cerca de 100 a 140 milhões de meninas e de mulheres em todo o mundo, sendo realizadas cerca de 3 milhões de excisões por ano (informação destes dados retirada do livro “Combate à Violência de Género -Da Convenção de Istambul à nova legislação” - Coordenação Maria da Conceição Ferreira da Cunha, pa.101). Importa, contudo, atender à personalidade revelada pela arguida, às suas condições de vida, vivendo com a sua filha ainda criança, no seu meio familiar. E somos a entender que à arguida assiste razão quando pugna pela declaração de suspensão da execução da pena, porquanto a factualidade apurada leva a nosso ver à formulação de um juízo de prognose favorável como reclamado pela recorrente. A arguida, na sua postura em audiência revelou um sentimento de quem cumpriu um dever que lhe foi imposto, do qual não podia fugir, restando-lhe então em sua defesa negar a prática dos factos em Tribunal. A arguida fez apenas o que era o anseio da sua família, assim como ela e a irmã também foram sujeitas a esta prática, e provavelmente todas as mulheres da sua família, sendo que a arguida não teria condições para criticar e opor-se àquelas práticas, defendidas pela sociedade em que está inserida. A arguida é uma jovem mãe então com 19 anos de idade, incapaz de se sobrepôr à pressão exercida pela sua família, encontrando-se num contexto de grande vulnerabilidade, sem condições para resistir às normas sociais impostas. Por outro lado, a arguida não tem antecedentes criminais e entendeu, face ao seu contexto familiar, não confessar os factos. Por fim refira-se que o cumprimento efectivo da pena de 3 anos de prisão por parte da arguida não deixaria de representar um novo castigo para a sua filha de tenra idade, já por si fragilizada pelo sofrimento que lhe foi infligido, e a precisar da mãe para o seu crescimento. Concorrem assim factos que a nosso ver permitem um juízo de prognose favorável face ao comportamento da arguida. Assim, e em face de todo exposto somos a entender que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, declarando-se, assim, suspensa a execução da pena aplicada pelo período de quatro (4) anos- cfr. art. 50º nº 5 do Código Penal. Procede, assim, o recurso. III-Decisão Termos em que as Juízas da 3ª Secção deste Tribunal da Relação de Lisboa acordam em conceder provimento ao recurso interposto pela arguida, declarando-se suspensa a execução da pena que lhe foi aplicada pelo período de quatro (4) anos. Sem custas por não serem devidas face ao vencimento do recurso. Notifique. Lisboa, 14/07/2021. Conceição Gonçalves Maria Elisa Marques [1] Cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed. 2007, pág.103; entre outros, mais recentemente, o ac.do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt, e ainda, o acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ nº 7/95, de 19.10.95, DR, I-A, de 28.12.1995. |