Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | GABRIELA DE FÁTIMA MARQUES | ||
| Descritores: | DIREITO DE PREFERÊNCIA ARRENDATÁRIO SEM PROPRIEDADE HORIZONTAL INCONSTITUCIONALIDADE SINAL EM DOBRO CULPA | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 02/06/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | PARCIALMENTE PROCEDE | ||
| Sumário: | I. É a nível jurisprudencial e doutrinal e após a declaração de inconstitucionalidade do nº 8 do art.º 1091º do CC, que se passou de forma unanime, no que diz respeito a decisões publicadas, a considerar que inaplicado tal preceito, se devia interpretar que o arrendatário de parte do prédio não constituído em propriedade horizontal, não teria direito de preferência sobre a totalidade do prédio, nem sobre a parte arrendada. II. Porém, o legislador não teve até hoje qualquer reação concreta e lapidar sobre tal questão, tendo sobrevivido a previsão do n.º 9 do art.º 1091º do CC, como instrumento de proteção ao arrendatário de parte de um imóvel não constituído em propriedade horizontal, o qual, pode suscitar a interrogação sobre se qualquer um dos arrendatários pode adquirir a totalidade do prédio, face ao desinteresse dos demais, ou mesmo quando ele é o único arrendatário de uma parte do prédio III. Tendo os promitentes vendedores concedido à arrendatária duma parte do prédio o direito de preferência em relação à totalidade do prédio vendido onde se situava o local arrendado, não resulta evidente que tal direito não resulte da lei, resultando a inexistência desse direito da posição assumida na jurispruência e doutrina maioritária. IV. A venda do prédio prometido vender à arrendatária naqueles moldes não consubstancia, de forma evidente, o incumprimento culposo dos promitentes vendedores, com a consequente aplicação do regime do sinal e, logo, o pagamento pelos mesmos ao promitente comprador do dobro do sinal entregue. V. Porém, ainda que se possa nesse caso presumir a culpa dos promitentes vendedores, obsta a tal indemnização a actuação do promitente comprador que, avisado do exercício do direito de preferência, optou, por receber em singelo o valor, criando nos RR. a convicção que o exercício do direito de preferência, nos moldes sem que foi admitido pelos mesmos, não determinaria qualquer incumprimento do contrato promessa celebrado com o Autor, nem consequentemente, determinaria a possibilidade e o Autor em exigir dos RR. o pagamento do dobro do sinal. (Sumário elaborado pela relatora) | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa: I. Relatório: JG… intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra contra J… e mulher H… e E…, por si e ainda na qualidade de herdeiro de sua falecida mulher, M… apresentando o pedido de condenação dos Réus a pagar ao A., o valor de € 110,000,00 (cento e dez mil euros), correspondente ao montante da indemnização prevista na Cláusula Oitava nº 2 do Contrato Promessa de Compra invocado nos autos, ou seja, correspondente ao sinal em dobro pelo incumprimento do Contrato Promessa de Compra e Venda, quantia esta que deve ser acrescida dos juros legais vincendos, à taxa de 4%, desde a data da citação, até efectivo e integral pagamento. Regular e pessoalmente citados vieram os Réus apresentar contestação invocando abuso de direito por parte do Autor, alegando que o contrato promessa celebrado foi revogado por mútuo acordo das partes e pedindo, a título reconvencional, que tal acordo fosse reconhecido judicialmente. O Autor replicou e respondeu às excepções invocadas na contestação, mantendo o alegado no seu petitório. Teve lugar a audiência prévia, na qual foram proferidos despachos de não admissão da reconvenção, de saneamento do processo, de fixação do objecto do litígio e de seleção dos temas de prova. A audiência de julgamento foi realizada e de seguida foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: “Julgo a acção procedente e, em consequência, condeno os Réus a pagar ao Autor, a título de indemnização, a quantia de 110.000,00 euros (cento e dez mil euros), acrescida de juros, à taxa legal, desde a data da citação até integral pagamento. Absolvo do pedido o Réu E…, na qualidade de herdeiro de sua falecida mulher, M….” Inconformados vieram os RR. recorrer pugnando pela revogação da sentença e a sua absolvição do peticionado, formulando as seguintes conclusões: «1. O Tribunal a quo errou no julgamento de facto ao dar apenas como provado que “O A. através da sua mandatária, questionou os Réus sobre a veracidade e credibilidade, da reivindicada qualidade de arrendatária, da compradora, MT…, necessária a que esta tivesse legitimidade, para exercer o direito de preferência sobre a compra e venda prometida” (ponto nº 15 da matéria de facto provada), uma vez que a redacção deste facto não reflecte, de forma clara e rigorosa, a realidade. 2. A primeira vez que o A. – ainda que através da sua mandatária – questionou a qualidade de arrendatária de MT... foi apenas a 6 de Outubro de 2022 – cfr. documento nº 6 da contestação. 3. Apenas voltou a questioná-lo por carta de 10 de Outubro de 2022 e nunca antes – cfr. documento nº 19 da petição inicial – o que, aliás, o autor não logrou afastar em sede de declarações de parte - Declarações gravadas em Sistema H@bilus Media Studio, na sessão de 15.01.2024, com início às 14h15m e fim às 14h51m. 4. É do encadeamento cronológico dos factos – e não apenas dos factos, em si mesmos – que se pode extrair se o Autor agiu, ou não em abuso de direito. 5. Assim, a decisão do ponto nº 15 da matéria de facto provada deve ser revogada, e substituída por uma outra com a seguinte redacção: “A 6 de Outubro de 2020, o A., através da sua mandatária, questionou os Réus sobre a veracidade e credibilidade da reivindicada qualidade de arrendatária da compradora, MT…, necessária a que esta tivesse legitimidade para exercer o direito de preferência sobre a compra e venda prometida”. 6. O Tribunal a quo olvidou que o Autor, tal como, aliás, os Réus, foi acompanhado por advogado durante o processo de compra e venda do prédio objecto dos presentes autos, o que resulta da prova da prova documental, em concreto, dos documentos nºs 5 a 13 da petição inicial e do documento nº 6 da contestação. 7. Dos referidos documentos resulta que, pelo menos cerca de 1 mês e meio antes do exercício da preferência por MT... o Autor já estava a ser acompanhado e aconselhado por advogado. 8. Assim, quando a 06.09.2022, os Réus informaram o Autor que MT... havia exercido o direito de preferência, este sabia – ou estava em condições de saber – se esse direito existia ou não. 9. É absolutamente relevante para a decisão da causa que seja valorado o facto de ambas as partes estarem em igualdade de circunstâncias, pois, se não é expectável que um leigo tenha conhecimentos jurídicos, em concreto, sobre direitos de preferência, já não é expectável que a parte que está acompanhada de advogado não questione se esse direito existe ou não, quando o mesmo lhe foi oposto como causa impeditiva do negócio que almejava celebrar. 10. Em face do exposto, deve ser aditado ao elenco da matéria de facto provada um novo facto, com a seguinte redacção: “Durante o processo de compra e venda do prédio objecto dos presentes autos, ambas as partes foram acompanhadas de advogados.” 11. Antes de celebrar o contrato-promessa de compra e venda objecto dos autos, o Autor já tinha arrendado um dos respectivos andares. Na verdade, essa relação de arrendamento era até anterior a 2018, conforme resultou do depoimento da testemunha PM… – Depoimento gravado em Sistema H@bilus Media Studio, na sessão de 29.02.2024, com início às 10h25m e fim às 10h46m. 12. O conhecimento prévio que o autor tinha dos arrendamentos em vigor resulta ainda das cláusulas 2ª e 5ª do documento nº 1 da petição inicial. 13. Da análise concatenada da prova testemunhal e da prova documental junta aos autos resulta que o Autor bem sabia que o prédio estava arrendado e a quem os andares estavam arrendados. 14. Resulta ainda que o Autor sempre assumiu a existência do risco de um dos arrendatários – em particular, MT… – exercer o direito de preferência e que sempre se comportou como conhecedor desse risco. 15. O facto de o Autor ter recebido aconselhamento jurídico durante o processo de compra e venda do prédio objecto dos presentes autos, deveria ter sido ponderado aquando da apreciação da obrigação de verificar se o invocado direito de preferência existia ou não. 16. O conhecimento do Autor da existência de arrendatários no prédio é essencial para a apreciação do invocado abuso de direito. 17. Em face do exposto, deve ser aditado ao elenco da matéria de facto provada um novo facto, com a seguinte redacção: “O Autor sempre soube que os andares do prédio objecto dos autos estavam arrendados”. 18. O negócio foi desenhado precisamente para evitar que a então arrendatária, MT... exercesse o direito de preferência, conforme decorre do depoimento da testemunha PM… – Depoimento gravado em Sistema H@bilus Media Studio, na sessão de 29.02.2024, com início às 10h25m e fim às 10h46m. 19. Em face do exposto, deve ser aditado ao elenco da matéria de facto provada um novo facto, com a seguinte redacção: “O negócio foi desenhado para evitar que a arrendatária MT... exercesse o direito de preferência.” 20. Os pontos nºs 27 e 28 da matéria de facto provada não reflectem a realidade de forma clara e rigorosa, em concreto, não reflectem as circunstâncias e a cronologia em que os factos sucederam. 21. Do documento nº 8 da contestação, decorre que por email de 22.09.2022, o mandatário dos réus informou a mandatária do autor do dia e local da escritura, 22. Do documento nº 9 da contestação, decorre que por email de 29.09.2022, o mandatário dos réus informou ainda a mandatária do autor da alteração do local da escritura. 23. O que, aliás, foi corroborado pelo próprio autor, em sede de declarações de parte – Declarações gravadas em Sistema H@bilus Media Studio, na sessão de 15.01.2024, com início às 14h15m e fim às 14h51m. 24. Da análise concatenada da prova documental junta aos autos, bem como das declarações de parte do autor, resulta que este, devidamente informado da realização da escritura: • Não se opôs à cessação do contrato-promessa compra e venda objecto dos presentes autos; • Aceitou e pediu a restituição do sinal em singelo; • Não exigiu o pagamento de qualquer indemnização; • Não questionou a preferência exercida pela arrendatária; • Não se opôs à celebração da escritura pública de compra e venda entre os réus e a referida MT…. 25. Só a cronologia dos factos, tal como eles efectivamente sucederam, permite que se possa concluir pela revogação do contrato por mútuo acordo entre as partes, já que é desta que resulta que o Autor, reiteradamente, e, não obstante ter recebido duas comunicações sobre a referida escritura, decidiu nada fazer. 26. E, desta cronologia também se extrai que o Autor agiu em abuso de direito, se não na modalidade de venire contra factum proprium pelo menos, na modalidade de suppressio. 27. Em face do exposto, devem ser aditados ao elenco da matéria de facto provada dois novos factos, com a seguinte redacção: “Por email de 22.09.2022, o mandatário dos réus informou a mandatária do autor do seguinte: “Exmª Colega, Conforme combinado com a minha secretária, informo que a escritura do prédio sito na Rua …, se encontra agendada para o próximo dia 30 de Setembro, pelas 10 horas, no Cartório Notarial da Amadora, da Drª A…, sito na Praça …, …, Amadora” E, “Por email de 29.09.2022, o mandatário dos réus informou ainda a mandatária do autor do seguinte: “Exmª Colega, Junto a minha troca de emails com o n/Colega Dr. S…, advogado da parte compradora, referente à escritura do prédio da Cova da Piedade, agendada para amanhã, dia 30 às 10h. A escritura terá lugar, não no Cartório que lhe indiquei anteriormente, mas sim em casa da compradora, sita na Rua …, ao cuidado da Notária Drª D…, do Cartório Notarial de Almada, com domicílio profissional na Rua …, Almada.” 28. Em sede de contestação, os Réus alegaram que o autor não se opôs à celebração nem compareceu na escritura pública de compra e venda que outorgaram com MT... facto que é essencial para a defesa dos Réus, que invocaram que o contrato-promessa de compra e venda que haviam celebrado com o Autor foi revogado por mútuo acordo entre as partes. 29. Para concluir pela revogação do contrato por mútuo acordo é necessário valorar os factos que à mesma subjazem. 30. No caso concreto, o comportamento omissivo do Autor, consubstanciado na não comparência e na não oposição, é essencial para determinar que este comportamento foi concludente no sentido de o Autor ter aceitado, ainda que tacitamente, a revogação do referido contrato. 31. Esse comportamento, foi confessado pelo próprio em sede de declarações de parte – Declarações gravadas em Sistema H@bilus Media Studio, na sessão de 15.01.2024, com início às 14h15m e fim às 14h51m. 32. Em face do exposto, deverá ser aditado à matéria de facto provada um novo facto, com a seguinte redacção: “O autor não se opôs à celebração nem compareceu na escritura pública de compra e venda outorgada entre os réus e a referida MT…”. 33. Da instrução da causa resultou que, em momento algum do processo de compra e venda do prédio objecto dos presentes autos, o Autor questionou que MT... enquanto arrendatária de um prédio em propriedade total, pudesse exercer o direito de preferência na aquisição da totalidade do referido prédio, o que não pode ser descurado – cfr. Documento nº 6 da contestação e documento nº 19 da petição inicial 34. Contudo, a acção que veio a intentar nada tem que ver com a qualidade de arrendatária de MT… – ou tem, mas apenas veladamente – mas apenas com o exercício do direito de preferência de arrendatários de prédios em propriedade total. 35. A análise das circunstâncias em que decorreu todo este processo e da cronologia dos factos impõe concluir que o Autor sabia perfeitamente, bem antes da celebração da escritura, que o tema da preferência se prendia com a circunstância de o prédio não estar em propriedade horizontal, e não com a qualidade de arrendatária de MT…, que o Autor, aliás, conhecia perfeitamente. 36. O que demonstra, clara e cristalinamente, que o Autor age em abuso de direito e, como tal, deve ser aditado à matéria de facto provada um novo facto, com a seguinte redacção: “O autor nunca questionou que, enquanto arrendatária de um prédio em propriedade total, MT... pudesse exercer o direito de preferência na aquisição da totalidade do prédio.”. 37. Do correcto encadeamento dos factos resulta que o contrato-promessa de compra e venda foi revogado por mútuo acordo entre as partes. 38. Ao receber a informação do exercício da preferência e ao aceitar a devolução do sinal em singelo, o autor não se limitou a conformar-se com essa realidade, tal como lhe foi exposta pelos Réus. 39. Ao invés, o autor conhecia essa realidade, equacionou-a e aceitou-a plenamente. 40. O autor, sabendo do dia, local e hora da realização da escritura, podia – e devia, se era esse, afinal, o seu entendimento – ter comparecido para se opor à prática do acto. O que não fez. 41. Durante 24 dias o autor esteve em condições de impedir a prática do acto. E decidiu não o fazer. 42. Em face do exposto, deverá a douta decisão recorrida ser revogada e substituída por uma outra que declare que o contrato-promessa objecto dos presentes autos foi revogado por mútuo acordo entre as partes, absolvendo-se os réus de todos os pedidos. 43. O autor sempre demonstrou aceitar a cessação do contrato-promessa de compra e venda, levando, com o seu comportamento, os réus a acreditar que tinha, efectivamente, aceite que assim fosse. 44. Assume especial relevância o facto de o autor ter engendrado toda uma estratégia para tentar obstar que MT... exercesse o direito de preferência, relegando a escritura para Setembro de forma a que esta tivesse dificuldade em obter o financiamento bancário necessário. 45. Tal comportamento criou nos réus a firme convicção de que, por um lado, o autor reconhecia e aceitava o direito de preferência de MT... e, por outro, que, como tal, o autor aceitava as consequências previstas na cláusula 5ª do contrato-promessa (cfr. Doc. nº 1 da petição inicial) e que se resumiam à restituição do sinal em singelo. 46. As circunstâncias que envolveram o negócio em especial, em particular, o facto de o próprio autor ter tentado obstar ao exercício da preferência, com a marcação da escritura logo no após o período habitual das férias de Verão, associadas ao facto de o autor, devidamente avisado do exercício da preferência, da marcação da escritura, e da alteração do local onde a mesma seria celebrada, não ter tido qualquer reacção em tempo útil criaram nos réus a firme e justa convicção que o Autor nada tinha a opor à cessação do contrato-promessa. 47. E é aqui que reside o comportamento abusivo do autor, que deve ser travado. 48. Em face do exposto, deve a douta decisão recorrida ser revogada e substituída por uma outra que absolva os réus do pedido. 49. Ainda que assim não se entenda, sempre se dirá que o autor contribuiu de forma essencial e muito significativa para o dano que sofreu. 50. Ao não reagir à comunicação de que a arrendatária havia exercido o direito de preferência, o autor adoptou um comportamento que revela uma total e absoluta falta de zelo e diligência, para o qual os réus em nada contribuíram. 51. Pelo que o caso dos autos se integra na figura da culpa do lesado. 52. Em face do exposto, deverá a douta decisão recorrida ser revogada e substituída por uma outra que absolva os réus do pedido, 53. Ou, caso assim não se entenda, no que não se concede, deverá a quantia arbitrada ao autor ser reduzida em montante não inferior a 50%. 54. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou o disposto nos arts. 6º, 217º, 334, 406º e 570º, todos do CC e, ainda, o art.º 4º do CPC.». O Recorrido respondeu formulando as seguintes conclusões nas contra-alegações apresentadas: «A - Estando em causa um contrato de compra e venda, de um prédio, que não constituído em propriedade horizontal, cabia aos proprietários do mesmo, aqui Apelantes e ao seu mandatário o dever de cuidado de se inteirar, devidamente, de todas as premissas legais que envolviam este negócio. B - Foram os Recorrentes, e somente estes, que decidiram vender e venderam de facto, o prédio em causa a MT…, considerando que esta era arrendatária do prédio e omitindo o básico dever de cuidado no estudo e conhecimento da Lei (cfr art.º 6º do C.C.). C - Só a falta de diligência dos Apelantes, e de quem os aconselhava, originou que fosse concretizada a venda do prédio a MT…, incumprindo, os aqui Apelantes, culposamente, o contrato celebrado com o Apelado. D - A exótica versão dos Apelantes, sobre a igualdade de posição e do dever de diligência na averiguação do direito, entre o Autor e os Réus, sobre o direito da arrendatária a comprar o prédio, objecto dos presentes autos, é totalmente desprovida de sentido. E - Pelo que bem andou a sentença recorrida, F - O Autor foi avisado por carta remetida pelo Mandatário dos Réus de que a arrendatária iria exercer o direito de preferência, comunicando-lhe a hora e o local da realização da escritura. G – Não decorre dos factos que o Autor estivesse obrigado (ao contrário dos Réus), a assegurar-se, que o direito de preferência da arrendatária estava de acordo com a lei. H- O Autor agiu de boa-fé, ao não interferir na realização da escritura de compra e venda. I - Não há qualquer fundamento ou razão, para se qualificar o exercício do direito do Autor de reclamar dos Réus o pagamento de uma indemnização pelo incumprimento definitivo do contrato de compra e venda celebrado entre as partes, como abusivo. J - A decisão recorrida, não violou o disposto nos artigos 6º, 217º, 334º 406º 570º todos do C.C. e ainda o artigo 4º do Código de Processo Civil.». Admitido o recurso neste tribunal e colhidos os vistos, cumpre decidir. * Questões a decidir: O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida. Importa assim, saber, no caso concreto: - Se é de considerar a impugnação factual nos termos propugnados pelos recorrentes, a saber, alterando o ponto 15. e aditando factos; - Se haverá que considerar a revogação do contra promessa por mútuo acordo entre as partes, não sendo devido ao Autor o sinal em dobro, ou - Se é de considerar o abuso do direito por parte do A. que obstaria à indemnização pelos RR. decorrente do regime do sinal, ou a “culpa do lesado” por banda do mesmo que determinaria a redução em 50% do valor devido. * II. Fundamentação: No Tribunal recorrido foram considerados provados os seguintes Factos: 1. A 12 de Novembro de 2020, foi celebrado um contrato promessa de compra e venda respeitante ao prédio sito Rua …, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …º da União das Freguesias de … e descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de …, freguesia da … sob a ficha …. 2. Neste contrato, os intervenientes foram o A., na qualidade de promitente comprador, os Réus como os promitentes vendedores e ainda, PM… e esposa C… 3. Nos termos do acordado pelas partes, este contrato promessa de compra e venda estipulava que o preço do imóvel era € 310.000,00. 4. Sendo que a título de sinal o A. pagou € 60.000,00: - € 30.000.00 a J…, - e € 30.000.00 a E… (cfr cláusula terceira do contrato promessa de compra e venda). 5. A Cláusula Nona deste contrato promessa de compra e venda, previa, que PM…, pudesse doar a sua quota parte do prédio, a J…, o que efectivamente veio a acontecer. 6. Posteriormente, a 1 de Outubro de 2021, o A., e os Réus, E…, M…, J… e H… celebraram e assinaram, um aditamento ao contrato promessa de compra e venda acima referenciado. 7. Neste aditamento ao contrato promessa de compra e venda, ficou esclarecido que se tinha concretizado a doação da sua quota-parte do imóvel, que PM…, tinha feito ao irmão J… 8. Também as alíneas b) e c) da Cláusula Terceira do contrato promessa de compra e venda foram alteradas, ficando estipulado, - na alínea b) um reforço de sinal pago pelo A. de € 50.000,00, - sendo € 25.000,00 pagos a J…, - e € 25.000,00 a E…, - na alínea c), que o valor o remanescente por pagar, no acto da escritura é de € 200.000,00. 9. No contrato promessa de compra e venda ficou também estipulado que a escritura publica seria marcada pelo Promitente Comprador, e que este deveria avisar os Promitentes Vendedores: “…da data, hora e Cartório Notarial onde a mesma seria lavrada por carta registada com aviso de recepção, com a antecedência mínima de 60 (sessenta) dias, reportados à data marcada para a celebração da escritura….”. 10. Dando cumprimento ao aí estipulado, a 22 de Julho de 2022, o A., por intermédio da sua mandatária, enviou aos Réus, J… e E… e a seu irmão PM…, cartas registadas com aviso de recepção, notificando-os de que: “…pela presente sou a notificá-lo, para comparecer, na sua qualidade de vendedor, no Cartório Notarial R…, sito na Rua …. Loures, pelas 10h, do dia 30 de Setembro de 2022, a fim de outorgar a escritura de compra e venda, do prédio sito na Rua …, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …º da União das freguesias de …, e descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de …, freguesia da … sob a ficha …, conforme contrato promessa de compra e venda de compra e venda celebrado com o meu constituinte, a 12 de Novembro de 2020, e que foi objecto de um aditamento a 1 de Outubro de 2021…” . 11. As cartas foram recepcionadas pelos destinatários 12. A 6 de Setembro de 2022, o A. recebeu um carta, remetida pelo advogado dos Réus, informando-o que: “ Exmº Senhor, “…Faço referencia ao contrato promessa de compra e venda de 12 de Novembro de 2020 aditado em 1 de Outubro de 2021 e respeitante à totalidade do prédio sito na Rua …, freguesia da …, concelho de … para lhe comunicar que a arrendatária MT... exerceu o direito de preferência que a lei lhe concede, nos termos da comunicação e respectivos cheques bancários cujas cópias remeto em anexo. Neste contexto, e em cumprimento do sobredito contrato, solicito que me informe do IBAN para onde pretende que os meus Constituintes transfiram a quantia que entregou a título de sinal, no montante € 110.000,00 (cento e dez mil euros)” 13. O A. forneceu o IBAN solicitado pelos Promitentes Vendedores. 14. E a 19 e 20 de setembro de 2022, recebeu o valor de € 110.000,00 (cento e dez mil euros), resultado de duas transferências no valor de € 55.000,00 cada uma, enviadas pelo Primeiro e Terceiro Réus. 15. O A. através da sua mandatária, questionou os Réus sobre a veracidade e credibilidade, da revindicada qualidade de arrendatária, da compradora, MT... necessária a que esta tivesse legitimidade, para exercer o direito de preferência sobre a compra e venda prometida.* Alterado nesta decisão, passando a ter a seguinte redacção: 15. A 6 de Outubro de 2022, o A. através da sua mandatária, questionou os Réus sobre a veracidade e credibilidade, da reivindicada qualidade de arrendatária, da compradora, MT... necessária a que esta tivesse legitimidade, para exercer o direito de preferência sobre a compra e venda prometida. 16. Em resposta, o único documento enviado ao A., foi um contrato, celebrado entre I…, como senhoria e AS… como inquilino. 17. No dia 30 de setembro de 2022, realizou-se a escritura publica de compra e venda do prédio em causa, sendo compradora, MT... e vendedores os Primeiro e Terceiro Réus, aqui representados por um procurador. 18. Esta aquisição já está registada na Conservatória do Registo Predial. 19. Em 10 de Outubro de 2022, o A. enviou duas cartas registadas com aviso de recepção, dirigidas ao Primeiro e Terceiro Réus solicitando “… cópia do contrato de arrendamento celebrado com MT... com comprovativo da comunicação do mesmo à Autoridade Tributária, para efeitos de Imposto de Selo….” 20. O contrato de arrendamento correspondente ao único documento enviado ao A. diz respeito somente ao rés do chão do prédio. 21. O imóvel em causa é constituído por r/c e mais dois andares (1º e 2º), e duas garagens. 22. Os réus adquiriram o prédio objecto dos presentes autos por legado que lhes foi deixado pela primitiva proprietária, I…. 23. O arrendatário AS… faleceu em 31 de maio de 2005 no estado de casado com MT…. 24. MT… sucedeu na posição do arrendatário falecido, passando a pagar a respectiva renda. 25. Em janeiro de 2018, na qualidade de arrendatário, o Autor celebrou com PM… um contrato de arrendamento habitacional, pelo prazo de um ano, renovável, relativo à cave esquerda do mesmo prédio. 26. Em resposta à carta dos Réus de 6/09/2022, a 15.09.2022, o autor enviou ao mandatário dos réus o seguinte email: “Caros Srs., Acuso a recepção da v/ carta de 6 de Set. em que me informaram que a Sr.ª MT... exerceu o direito de preferência na compra do prédio sito na R. … pelo que solicito a devolução do dinheiro que entreguei como sinal (110.000,00 euro) para a conta abaixo indicada. (…)” doc. 7 da contestação 27. Até à realização da escritura de compra e venda, os réus mantiveram o autor informado sobre o processo de venda.* Alterado nesta decisão, passando a ter a seguinte redacção: 27. Por email de 22.09.2022, o mandatário dos réus informou a mandatária do autor do dia, hora e local onde se iria realizar a escritura do prédio em causa, tendo igualmente o mesmo mandatário, por email de 29.09.2022, dirigido à mandatária do Autor a seguinte informação: “Exmª Colega, Junto a minha troca de emails com o n/Colega Dr. S…, advogado da parte compradora, referente à escritura do prédio da …, agendada para amanhã, dia 30 às 10h. A escritura terá lugar, não no Cartório que lhe indiquei anteriormente, mas sim em casa da compradora, (…), ao cuidado da Notária (…).”. 28. O Autor, sabia do dia, local e hora da realização da escritura.* Alterado nesta decisão, passando a ter a seguinte redacção: 28. O Autor não compareceu na escritura pública de compra e venda outorgada entre os Réus e a referida MT... nem questionou que esta, enquanto arrendatária de um prédio em propriedade total, pudesse exercer o direito de preferência na aquisição da totalidade do prédio. 29. O Réu E… foi casado com M… no regime de separação de bens. * Factos aditados nesta decisão: 30. O Autor tinha conhecimento aquando do contrato celebrado com os RR. que alguns dos andares do prédio objecto dos autos se encontravam ocupados, mediante contratos de arrendamentos. 31. Nos termos da cláusula quinta do contrato promessa celebrado entre as partes e em causa nos autos estabeleceu-se que: “UM- Os promitentes-vendedores obrigam-se a, se o Promitente-Comprador o desejar, notificar o presente contrato promessa de compra e venda a todas as entidades que sejam titulares de direito de preferência na venda prometida. Dois- Caso alguma dessas entidades venha a exercer o direito de preferência que lhe assiste, o presente contrato ficará imediatamente sem qualquer efeito, devendo os Promitentes-Vendedores restituir ao Promitente-Comprador a parte do preço que dele recebeu em singelo e sem quaisquer juros, nos 15 (quinze) dias seguintes àquele em que venham a tomar conhecimento desse exercício.” * No Tribunal de 1ª Instância ficou consignado que não foram considerados quaisquer factos não provados. * Da impugnação da decisão de matéria de facto: Em caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o recorrente deve identificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, não podendo limitar-se a indicar os depoimentos prestados e a listar documentos, sem fazer a indispensável referência àqueles pontos de facto, especificando os concretos meios de prova que impunham para cada um desses pontos de facto fosse julgado provado ou não provado. A apresentação das transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art.º 640.º do C.P.C. (Cfr. Acs. do S.T.J. de 19.02.2015, Proc. n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1 (Tomé Gomes) e Proc. n.º 405/09.1TMCBR.C1.S1 (Maria dos Prazeres Pizarro Beleza), in www.dgsi.pt). Logo, o ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, consagrado no art.º 640.º do C.P.C., impõe, sob pena de rejeição, a identificação, com precisão, nas conclusões da alegação do recurso, os pontos de facto que são objecto de impugnação. Acresce que o mesmo preceito exige ao recorrente a concretização dos pontos de facto a alterar, assim como dos meios de prova que permite pôr em causa o sentido da decisão da 1ª instância e justificam a alteração da mesma e, ainda, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre os pontos de facto impugnados. Não obstante, este conjunto de exigências reporta-se especificamente à fundamentação do recurso, não se impondo ao recorrente que, nas suas conclusões, reproduza tudo o que alegou acerca dos requisitos enunciados no art.º 640.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.C. Versando o recurso sobre a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, importa que nas conclusões se proceda à indicação dos pontos de facto incorrectamente julgados e que se pretende ver modificados (Cfr. Ac. do STJ de 03.12.2015, in www.dgsi.pt). Com efeito, o S.T.J. “tem vindo a sedimentar como predominante o entendimento de que as conclusões não têm que reproduzir (obviamente) todos os elementos do corpo das alegações e, mais concretamente, que a especificação dos meios de prova, a indicação das passagens das gravações e mesmo as respostas pretendidas não têm de constar das conclusões, diversamente do que sucede, por razões de objectividade e de certeza, com os concretos de facto sobre que incide a impugnação.”(Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 771; cfr. ainda os Acs. do S.T.J. citados pelos Autores). Assim, se o recorrente impugna determinados pontos da matéria de facto, mas não impugna outros pontos da mesma matéria, estes não poderão ser alterados, sob pena de a decisão da Relação ficar a padecer de nulidade, nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. d), 2ª parte, do C.P.C. É, assim, dentro destes limites objectivos que o art.º 662.º do C.P.C. atribui à Relação competências vinculadas de exercício oficioso quanto aos termos em que pode ser feita a alteração da matéria de facto, o mesmo é dizer, quanto ao modus operandi de tal alteração. No caso concreto, tais ónus ditos adjectivos foram efectivamente cumpridos pelos recorrentes, pelo que haverá que aferir o que preside à almejada alteração. No nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, face ao qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção firmada acerca de cada facto controvertido, tendo porém presente o princípio a observar em casos de dúvida, consagrado no artigo 414º do C.P.C., de que a “dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita”. Conforme é realçado por Ana Luísa Geraldes (“Impugnação”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I. Coimbra, 2013, pág. 609 e 610), em “caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte”. E mais à frente remata: “O que o controlo de facto em sede de recurso não pode fazer é, sem mais, e infundadamente, aniquilar a livre apreciação da prova do julgador construída dialecticamente na base dos referidos princípios da imediação e da oralidade.” Assim, apesar de se garantir um duplo grau de jurisdição, tal deve ser enquadrado com o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, previsto no art.º 607 nº 5 do C. P. Civil, sendo certo que decorrendo a produção de prova perante o juiz de 1ª instância, este beneficia dos princípios da oralidade e da mediação, a que o tribunal de recurso não pode já recorrer. De acordo com Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 347, “Algumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto controvertida e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final (…) estão sujeitas à livre apreciação do Tribunal (…) Esta apreciação baseia-se na prudente convicção do Tribunal sobre a prova produzida (art.º 655.º, n.º1), ou seja, as regras da ciência e do raciocínio e em máximas da experiência”. Para que a decisão da 1ª instância seja alterada haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que deu como assentes. Porém, e apesar da apreciação em primeira instância construída com recurso à imediação e oralidade, tal não impede a “Relação de formar a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação das provas, tal como a 1ª instância, sem estar de modo algum limitada pela convicção que serviu de base à decisão recorrida(…) Dito de outra forma, impõe-se à Relação que analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, de modo a apreciar a sua convicção autónoma, que deve ser devidamente fundamentada” (Luís Filipe Sousa, Prova Testemunhal, Alm. 2013, pág. 389). Acresce que não se deverá proceder à reapreciação da matéria de facto quando os factos objecto de impugnação não forem susceptíveis, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processuais (arts. 2º, nº 1, 137º e 138º, todos do C.P.C.; neste sentido entre outros Acórdão do STJ de 17/05/2017 - proc. nº 4111/13.4TBBRG.G1.S). Feito este enquadramento e verificado o cumprimento formal quanto à possibilidade de alteração factual em sede de recurso, haverá que aferir quais os pontos concretos que devem ser apreciados por este tribunal e a prova que os sustenta. Insurgem-se os recorrentes quanto à redacção do ponto 15., e a par da alteração/aditamento na esteira do provado em 27. e 28., pretendem ainda que se considerem aditados outros factos. No que concerne ao ponto 15. este resultou provado com o seguinte teor: 15. O A. através da sua mandatária, questionou os Réus sobre a veracidade e credibilidade, da revindicada qualidade de arrendatária, da compradora, MT... necessária a que esta tivesse legitimidade, para exercer o direito de preferência sobre a compra e venda prometida. Os recorrentes aludem que o facto nº 15 extrai-se do teor da carta mencionada no facto provado com o nº 19 que contém um parágrafo donde se pode concluir já ter existido uma interpelação para esclarecer a qualidade de MT… Na verdade, a alteração do ponto em causa prende-se com a data em que ocorreu tal facto, o que se revela importante para aferir do encadeamento dos actos praticados em termos negociais. Pois, do teor do ponto em causa conjugado com a circunstância de no ponto 17. constar a data da realização da escritura de venda do prédio, permite ter uma percepção incorrecta sobre a cronologia dos factos. Quanto à possibilidade de a alteração se fundar na prova, é, em nosso entender, por demais evidente. Senão vejamos. Ouvidas as declarações de parte do autor, JG…, começa o mesmo por indicar a tentativa de comprar o prédio, inicialmente com o réu PM…, pois nunca falou com os demais, mais indicou que houve dificuldade de marcação da escritura pelo facto de se estar na fase da pandemia (Covid), referindo ainda que quer um, quer o outro (o réu PM…), passavam períodos fora de Portugal. Só depois lhe é dito que havia a preferência da arrendatária, quando o próprio “já tinha um comprador para o prédio”. Aludiu que pediu várias vezes os contratos de arrendamento do prédio e nunca lhes foram facultados, pois sendo o seu negócio o imobiliário, também não estaria descartado o arrendamento. Só depois de terem acordado a marcação da escritura é que foi informado que seria vendido à D. MT…, quando já tinha “empatado tal valor”, depois da escritura é que insistiu até para ver o contrato de arrendamento, e nessa altura é que foi alertado pela imobiliária (o vendedor da Remax) que a arrendatária não teria preferência pelo prédio. Confessou que também foi inquilino desse prédio, da cave do mesmo, mas nunca teve contrato de arrendamento escrito, não se destinava a habitação, apenas “arrumava no local as ferramentas e a moto”, mas nessa altura viu que o andar de cima estaria ocupado (era estendida roupa). Na verdade, das suas declarações resulta que a dúvida surgiu quanto à qualidade de arrendatária da compradora e não o seu eventual direito de preferência relativamente ao prédio, e a dúvida sobre a existência desse face à natureza do prédio, ou seja, o facto de não estar constituído em propriedade horizontal. Quando teve conhecimento do exercício do direito de preferência, alegou que “ficou surpreendido” acabando por dizer que sabia que lá vivia a inquilina, mas achava que também não teria contrato, como era a sua situação. Só depois da escritura é que indagou com mais precisão, acabou ainda por dizer que teve conhecimento da marcação e da alteração do local da mesma, pois referiu que seria celebrado “em casa da senhora”. Confirmou que recebeu o contrato de arrendamento, depois da escritura, mas em que figuravam pessoas que já não existiam e chegou a saber que afinal o arrendatário era o marido falecido da arrendatária. Confirmou, porém, que nas visitas que fez ao prédio, o andar em causa (r/c direito) estaria ocupado. Confirmou que aceitou o valor do sinal em singelo porque confiou que existiria a preferência, só depois viu que “não era bem assim, mas já era tarde”, só depois de ser alertado pelo vendedor da Remax é que pôs em causa o direito de preferência, sem aludir que afinal já estava a ser acompanhado por mandatária, a qual aliás, figura como tal nesta acção. Manifestamente e ainda que existissem dúvidas sobre a qualidade de arrendatária, o A. baseia esta acção na interpretação relativa ao direito de preferência de um arrendatário de uma parte do prédio sobre este e não sobre que está a montante, ou seja a qualidade de arrendatária. Logo, não é verosímil que não tivesse conhecimento que o prédio não estava constituído em propriedade horizontal, pois até ocupou a cave do mesmo e bem sabia dessa circunstância, dedicando-se ao negócio imobiliário, logo, a questão que manifestamente conhecia era a ocupação do r/c, pois até confessou a mesma, pelo que a posição do mesmo não se prendia com a eventual existência ou não do arrendatário, pretende sim socorrer-se da interpretação que deva considerar-se quanto à preferência neste caso, dizendo que só foi “alertado pelo vendedor da Remax”, quando na carta que enviou e em momento anterior, nomeadamente após a comunicação da data da escritura (que confessou ter recebido) já estaria a ser acompanhado por mandatário e quando fez a démarche para receber o valor do sinal em momento algum objectou dizendo que afinal lhe seria devido o dobro. Importa ainda referir que foi junto como doc. 5 com a contestação o contrato de arrendamento da cave do prédio entre o A. e o Réu PM…, contrariando assim, o inicialmente referido pelo Autor da inexistência de contrato, e ainda que tal pudesse ter ocorrido em data anterior (ou seja, antes de 2018, data que figura no contrato, plasmado no ponto 25. dos factos provados) o que resulta é o conhecimento cabal do prédio pelo Autor, inclusive da ocupação do mesmo por inquilinos, ou pelo menos pela preferente, ainda que desconhecesse em concreto o contrato existente e os pormenores sobre o seu direito de preferência concreto em termos jurídicos, porém, resulta claro do seu depoimento que nunca pôs em causa perante os RR. a qualidade de inquilina, ou sequer que entendia que esta não teria direito de preferência nos moldes em que foi concedido pelos RR. Tal fica ainda corroborado, pelas declarações do réu PM…, o qual confirmou que foi o próprio que tratou de tudo com o A. e que este conhecia o prédio há mais de quinze anos, pois chegou a ser arrendatário, pelo que sabia o que se passava no prédio. O A. sempre lhe afirmou que era um bom negócio, e quando a mãe do A. faleceu passou a ter dinheiro e nessa altura fez uma proposta. O réu foi assertivo ao afirmar que o A. foi alertado que caso quem ocupasse o prédio preferisse, o negócio deixaria de se concretizar. Foi peremptório na afirmação que o A. sabia da eventual preferência, a arrendatária acabou por preferir, aliás, até afirmou que a marcação da escritura em setembro visou impedir a arrendatária de se socorrer de crédito bancário, pois em Agosto seria mais difícil. Quando foi informado, o A. nada obstou nem referiu, apenas perguntou se a preferente iria devolver o dinheiro e “ficou tranquilo”. O negócio foi sempre com o A. aliás, afirmou que teriam mais interesse em vender a este, pois poderia estar em causa a posterior compra de alguma das fracções ao próprio. Inicialmente no âmbito do negócio o A. sugeriu que a venda fosse feita directamente a um novo comprador que tinha sido encontrado pelo próprio, através da Remax, mas os irmãos do declarante, os demais RR. não aceitaram, pois já não seria pelo mesmo valor e existiriam mais valias. Confirmou o réu que a preferente era arrendatária há 50 anos e o A. bem sabia, dado que foi arrendatário em 2013, essencialmente colocava a moto na cave objecto da locação. As rendas da preferente eram pagas ao réu E…, através de depósito. Também confirmou que o A. foi avisado da escritura e da marcação de novo local, não compareceu nem nada disse. Na percepção de tais declarações resulta que a interpelação da ilustre mandatária do A. foca-se na comunicação do arrendamento às Finanças, quando não é essa a questão que está em causa, mas tal sempre após a escritura. Do doc. nº 6 junto com a contestação, que constituem os emails de resposta à solicitação da mandatária do A. também nestes autos, Dra. MW… (identificada nos emails de resposta juntos), resulta claro que foi solicitada, a 6/10/2022 (cf. consta da parte final do email junto como doc. 6) cópia do contrato de arrendamento, sendo que inicialmente, a 11/06/2022, se respondeu, também pelo mandatários dos RR., no sentido de não ter sido encontrado por ser “coisa muito antiga”. No email seguinte, de 12/10/2022, é que se responde no sentido de se juntar o contrato “que, entretanto, recebei”. Sendo que tais emails foram trocados entre a mandatária do A. e o mandatário dos RR. Dr. LP…. De tudo o que resulta de tal prova é manifesto que é de alterar o ponto 15 dos factos provados, passando a constar do mesmo que: 15. A 6 de Outubro de 2022, o A. através da sua mandatária, questionou os Réus sobre a veracidade e credibilidade, da revindicada qualidade de arrendatária, da compradora, MT... necessária a que esta tivesse legitimidade, para exercer o direito de preferência sobre a compra e venda prometida. No que concerne aos aditamentos pretendidos pelos recorrentes, pretendem os mesmos que se aditem os seguintes factos: - “Durante o processo de compra e venda do prédio objecto dos presentes autos, ambas as partes foram acompanhadas de advogados.”. - “O Autor sempre soube que os andares do prédio objecto dos autos estavam arrendados”. - “O negócio foi desenhado para evitar que a arrendatária MT... exercesse o direito de preferência”. - “O Autor não se opôs à celebração nem compareceu na escritura pública de compra e venda outorgada entre os Réus e a referida MT…” - “O Autor nunca questionou que, enquanto arrendatária de um prédio em propriedade total, MT... pudesse exercer o direito de preferência na aquisição da totalidade do prédio.”. A par de tais aditamentos e tendo por base os pontos 27. e 28., que no entender dos recorrentes não reflectem a realidade de forma clara e rigorosa, haverá que aferir se é considerar a correspondência trocada para o efeito, dando-a por reproduzida, a saber: “Por email de 22.09.2022, o mandatário dos réus informou a mandatária do autor do seguinte: “Exmª Colega, Conforme combinado com a minha secretária, informo que a escritura do prédio sito na Rua …, se encontra agendada para o próximo dia 30 de Setembro, pelas 10 horas, no Cartório Notarial da Amadora, da Drª A…, sito na Praça …, …, Amadora” E, “Por email de 29.09.2022, o mandatário dos réus informou ainda a mandatária do autor do seguinte: “Exmª Colega, Junto a minha troca de emails com o n/Colega Dr. S…, advogado da parte compradora, referente à escritura do prédio da …, agendada para amanhã, dia 30 às 10h. A escritura terá lugar, não no Cartório que lhe indiquei anteriormente, mas sim em casa da compradora, sita na Rua …, ao cuidado da Notária Drª D…, do Cartório Notarial de Almada, com domicílio profissional na Rua … Almada.”. Em primeiro lugar, quanto ao aditamento em termos conclusivos que “ambas as partes foram acompanhadas de advogados durante o processo negocial”, tal resulta quer do referido ponto 15., mas igualmente dos pontos 10. e 19., de onde resulta a marcação da escritura pela mandatária do Autor, para o dia 30/09/2022, data em que acabou por ser celebrada com a preferente, e ainda os emails e cartas trocados posteriormente, igualmente através de mandatários. Pelo que não é de aditar o facto conclusivo, mas sim os actos concretos, os quais já constam dos factos, ou serão considerados a propósito das demais alterações. Porém, já resulta das declarações do A. que o mesmo tinha conhecimento da ocupação de alguns dos andares do prédio, dado que foi inclusive arrendatário da cave em 2013 e em 2018, ainda que pudesse desconhecer em concreto o teor dos contratos, mas o que resulta evidente é que este sabia da existência de arrendamentos, dado inclusive a cláusula do contrato promessa sobre a existência de eventuais preferências (Cl. 5ª) e a forma como actuou depois de ter sido notificado pelos RR., através de mandatário, do exercício da preferência e da escritura que seria celebrada com a preferente, no mesmo dia que o A. tinha aprazado e indicado, alterando-se apenas o local. Aliás, o próprio confessou que não mostrou estranheza com o arrendamento, o que determinou a sua actuação em sede judicial foi a interpretação de que deveria ser feita da preferência da arrendatária, alertado pela agência imobiliária, que já teria providenciado um comprador ao Autor para o prédio, adquirido que fosse o mesmo pelo Autor. Logo, haverá que aditar quer o conhecimento da ocupação do prédio pelo A., bem como o teor da cláusula 5ª do CPCV, passando a figurar nos factos provados os seguintes (sob os pontos 30. e 31): - O Autor tinha conhecimento aquando do contrato celebrado com os RR. que alguns dos andares do prédio objecto dos autos se encontravam ocupados, mediante contratos de arrendamentos. - Nos termos da cláusula quinta do contrato promessa celebrado entre as partes e em causa nos autos estabeleceu-se que: “UM- Os promitentes-vendedores obrigam-se a, se o Promitente-Comprador o desejar, notificar o presente contrato promessa de compra e venda a todas as entidades que sejam titulares de direito de preferência na venda prometida. Dois- Caso alguma dessas entidades venha a exercer o direito de preferência que lhe assiste, o presente contrato ficará imediatamente sem qualquer efeito, devendo os Promitentes-Vendedores restituir ao Promitente-Comprador a parte do preço que dele recebeu em singelo e sem quaisquer juros, nos 15 (quinze) dias seguintes àquele em que venham a tomar conhecimento desse exercício.”. Todavia, já não resulta corroborado por qualquer outra prova, além das declarações do réu PM…, que “O negócio foi desenhado para evitar que a arrendatária MT... exercesse o direito de preferência”, pelo que tal facto não pode ser considerado provado. No que concerne às alterações ou aditamentos, considerando o teor dos factos contidos nos pontos 27. e 28., entendo que haverá que alterar os mesmos tendo por base a documentação que os suporta, ou seja, a informação entre mandatários da venda a ser feita à preferente nos termos preconizados pelos recorrentes, mas igualmente a forma como o Autor reagiu a tal comunicação e diligências, sendo que tal advém das suas declarações nos termos supra aludidos. Assim, os pontos 27. e 28. passarão a ter a seguinte redacção: 27. Por email de 22.09.2022, o mandatário dos réus informou a mandatária do autor do dia, hora e local onde se iria realizar a escritura do prédio em causa, tendo igualmente o mesmo mandatário, por email de 29.09.2022, dirigido à mandatária do Autor a seguinte informação: “Exmª Colega, Junto a minha troca de emails com o n/Colega Dr. S…, advogado da parte compradora, referente à escritura do prédio da …, agendada para amanhã, dia 30 às 10h. A escritura terá lugar, não no Cartório que lhe indiquei anteriormente, mas sim em casa da compradora, (…), ao cuidado da Notária (…).”. 28. O Autor não compareceu na escritura pública de compra e venda outorgada entre os Réus e a referida MT... nem questionou que esta, enquanto arrendatária de um prédio em propriedade total, pudesse exercer o direito de preferência na aquisição da totalidade do prédio.”. Deste modo, procede parcialmente o recurso quanto à alteração dos factos a subsumir ao direito. * III. O Direito: Na decisão recorrida começa por se abordar a questão do direito de preferência da arrendatária, afastando tal direito, para, de seguida se concluir que com a concretização da venda com a arrendatária e não com o promitente comprador, ora Autor, ocorreu o incumprimento do contrato promessa celebrado entre as partes, assistindo ao Autor o direito a obter o dobro do valor do sinal entregue, ou mais concretamente, valor idêntico ao que já havia recebido, assim perfazendo o dobro. Seguimos de perto o entendimento do Tribunal a quo quanto à solução jurídica relativa ao direito de preferência da arrendatária de parte do prédio, na venda da totalidade do imóvel, que não se encontra constituído no regime da propriedade horizontal e, logo, não possui fracções autónomas diferenciadas, ainda que a ocupação como inquilina fosse apenas de parte do imóvel, correspondente a um dos andares específicos. No entanto, haverá que considerar que nesta matéria se tem assistido, quer em termos legislativos, quer jurisprudenciais, a uma evolução nem sempre unanime e por vezes em sentidos opostos. A Lei n.º 63/77, de 25 de agosto, estabeleceu o direito de preferência do arrendatário habitacional em caso de transmissão onerosa do local arrendado e, posteriormente. A RAU replicou no art.º 47º e em termos idênticos esse mesmo direito. Ora, na vigência desses dois diplomas o entendimento maioritário da doutrina e da jurisprudência era no sentidou que quando não se achasse instituído o regime de propriedade horizontal e o direito de preferência existisse a favor dos locatários habitacionais, o arrendatário duma parte ou os arrendatários coligados podiam exercer o direito de preferência em relação à totalidade do prédio vendido onde se situasse o local arrendado. No entanto, havia ainda, na vigência desses dois diplomas, um entendimento minoritário na doutrina e na jurisprudência que defendia a inadmissibilidade desse direito de preferência por a lei não contemplar no seu texto o direito de preferência de arrendatário de parte alíquota sobre a totalidade do prédio urbano indiviso e, também, porque constituído o direito de preferência do arrendatário sobre a sua condição de locador de um determinado e concreto arrendado, excederia esse fundamento a possibilidade de ele adquirir através da preferência a totalidade do imóvel constituído por várias partes integrantes arrendadas ou arrendáveis. Com o NRAU passou a ser unânime na jurisprudência do STJ o entendimento de o direito de preferência conferido ao arrendatário estar confinado ao andar ou à parte do prédio que constitui o objeto concreto do contrato de arrendamento, o qual, para ser transacionável, devia estar juridicamente autonomizado não tendo o arrendatário, de parte do prédio não constituído em propriedade horizontal, direito de preferência sobre a totalidade do prédio, nem sobre a parte arrendada. É certo que Menezes Cordeiro (in “O Novo Regime do Arrendamento Urbano: dezasseis meses depois, a ineficácia económica do direito”, in O Direito (139), 2007, V, p. 950-951) sustenta a completa eliminação, no nosso ordenamento jurídico, desta prerrogativa do arrendatário, considerando que “A preferência desvaloriza o domínio e mantém vínculos fora de época”, do mesmo modo que Brandão Proença ( in “Para uma leitura restritiva da norma (art.º 1091.º do Código Civil) relativa ao direito de preferência do arrendatário”, in Estudos em Honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, vol. II, Coimbra, Almedina, 2008, p. 946) defende que a manutenção da prelação em matéria de arrendamento significa um entrave à autonomia privada e que esta faculdade do arrendatário se torna especialmente problemática num sistema como o nosso, em que por força da política legislativa, vigora um princípio geral de autonomia da vontade. Também Rute Teixeira Pedro aborda a problemática para sublinhar que o legislador tem revelado uma expressão e vontade no sentido de “(re)garantir um maior espaço para o funcionamento da autonomia privada”, pelo que a manutenção do direito de prelação do arrendatário parece estar em “contraponto com o sentido geral da reforma” ( in “O direito de preferência do arrendatário no ocaso do vinculismo – breves reflexões à luz da reforma de 2012”, in Cadernos de Direito Privado, CEJUR, 2013 (42), p.14.). No caso em apreço e na data da outorga da escritura pública de compra e venda, celebrada em 30 de setembro de 2022, previa o art.º 1091º do CC (com a redação operada pela Lei nº 64/2018, de 29-10, em vigor desde 30/10/2018), que: «1 - O arrendatário tem direito de preferência: a) Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de dois anos, sem prejuízo do previsto nos números seguintes; (…) 8 - No caso de contrato de arrendamento para fins habitacionais relativo a parte de prédio não constituído em propriedade horizontal, o arrendatário tem direito de preferência nos mesmos termos previstos para o arrendatário de fração autónoma, a exercer nas seguintes condições: a) O direito é relativo à quota-parte do prédio correspondente à permilagem do locado pelo valor proporcional dessa quota-parte face ao valor total da transmissão; b) A comunicação prevista no n.º 1 do artigo 416.º deve indicar os valores referidos na alínea anterior; c) A aquisição pelo preferente é efetuada com afetação do uso exclusivo da quota-parte do prédio a que corresponde o locado. 9 - Caso o obrigado à preferência pretenda vender um imóvel não sujeito ao regime da propriedade horizontal, podem os arrendatários do mesmo, que assim o pretendam, exercer os seus direitos de preferência em conjunto, adquirindo, na proporção, a totalidade do imóvel em compropriedade.» Logo, vigoraria, à partida, neste caso o previsto no nº 8 do art.º 1091º do CC, o que excluíria a preferência da arrendatária sobre a venda da totalidade do prédio, ficando tal direito circunscrito à quota-parte do prédio correspondente à permilagem do locado pelo valor proporcional dessa quota-parte face ao valor total da transmissão. Tal preceito levantava desde logo a questão do interesse do promitente comprador na aquisição que visasse a totalidade do prédio, quando a venda afinal seria feita sem tal quota-parte, correspondente ao exercício do direito de preferência do arrendatário, a par de todas as criticas da doutrina supra referidas quanto à manutenção de tal direito, no entender de tais autores, desfasado da actual realidade, e assente num tempo em que se privilegiava uma política de acesso à habitação própria. Ora, não obstante a redacção operada na norma em causa pela Lei nº 64/2018, o disposto no nº 8 do art.º 1091º do CC foi objecto de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, pelo Acórdão do Tribunal Constitucional nº 299/2020, Diário da República n.º 183/2020, Série I de 2020-09-18. Entendeu-se que a norma em apreço limitava desproporcionalmente o direito de propriedade privada do senhorio, tendo-se concluído que: «(…) o regime especial de preferência contido no n.º 8 do artigo 1091.º sacrifica excessivamente o direito à livre transmissibilidade do prédio, sem satisfazer o objetivo da estabilidade habitacional. Como vimos, para o proprietário-senhorio, o exercício do direito de preferência traduz-se num duplo limite à livre disponibilidade do bem: está impedido de alienar a totalidade do prédio e, se o arrendatário declarar preferir, está obrigado a vender uma quota ideal do mesmo; e para os demais consortes, tem o efeito de impedir o uso de parte da coisa comum, enquanto não se proceder à divisão ou venda do prédio. Por sua vez, o arrendatário converte-se em comproprietário, sem ter a certeza sobre a possibilidade da coisa comum se dividir em substância, por se verificarem os requisitos da propriedade horizontal, e sem ter quaisquer garantias de que não ação de divisão de coisa comum o local arrendado lhe poderá ser adjudicado. Significa isto que o resultado obtido não é proporcional à carga coativa que a norma comporta. A preferência causa prejuízos consideráveis ao proprietário e posteriormente aos consortes: não é concedida em condições de igualdade com outrem; sujeita o proprietário a alienar parte alíquota do prédio contra a sua vontade; priva os demais consortes da utilização direta ou aproveitamento imediato de parte da coisa comum. Ou seja, a preferência prevista no n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil acaba por desvalorizar a propriedade a que está ligada muito para além do que normalmente ocorre nas demais preferências legais, que apenas limitam a liberdade de escolha do contraente, e por diminuir o uso ou aproveitamento que os demais consortes poderiam ter e retirar da propriedade comum. Ora, estes entraves colocados ao proprietário e aos comproprietários no interesse do arrendatário são excessivos, desrazoáveis e gravosos, na medida em que também se constata que a preferência não permite alcançar os objetivos que estão na base da mesma. Com efeito, o exercício desse direito não permite o acesso imediato à propriedade plena do local arrendado, nem a compropriedade garante a estabilidade na habitação. Trata-se, pois, de uma intervenção legislativa que, nos seus efeitos restritivos ou lesivos, não se encontra numa relação proporcional ou razoável – de justa medida – com os fins prosseguidos. A ponderação entre a intensidade da intervenção e o peso da sua justificação, o interesse da estabilidade na habitação, tem como resultado que a preferência numa quota-parte do prédio, correspondente ao locado, ultrapassa os limites impostos pela proporcionalidade à determinação do conteúdo e limites do direito de propriedade. Assim, a intervenção na propriedade excede a medida constitucionalmente adequada da vinculação social. Por tudo o que se conclui que a norma sub juditio, ao limitar desproporcionalmente o direito de propriedade privada do senhorio, viola o disposto no artigo 62.º, n.º 1, da Constituição.». Aqui chegados e amputando o nº 8 do art.º 1091º do CC, sendo que sem dúvida também não estará em causa a aplicação do nº 9 do referido art.º 1091º do CC, entendemos que não segundamos a sentença recorrida quando conclui que “a Lei não atribui qualquer direito de preferência do arrendatário de parte de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, quer quanto à parte do prédio que ocupa, quer quanto à totalidade do prédio.”. Na verdade, a Lei atribui tal direito nos termos da alínea a) do nº 1 do art.º 1091º do CC ou na interpretação levada a cabo quanto ao nº 9 do mesmo preceito, ou seja, ao arrendatário, verificadas determinadas circunstâncias, ferida que está de inconstitucionalidade, confere-se a possibilidade de a preferência incidir sobre a tal quota parte ideal e correspondente ao objecto do locado, ou quiça à totalidade do prédio. Donde, não é directamente da Lei que decorre que afinal o inquilino neste caso não terá qualquer direito, mas sim da interpretração jurisprudencial, ainda que unanime, sobre a inexistência que tal direito, bem como da doutrinal no mesmo sentido. Ora, com a eliminação do elenco das fontes normativas, ou mais concretamente o previsto no art.º 2º do Código Civil, na redação anterior ao Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, deixou de vigorar a norma que previa que os tribunais pudessem fixar, por meio de assentos, doutrina com força obrigatória geral, ainda que possam existir Acórdãos Uniformizadores de Jurisprudencia, estes não têm carácter normativo como ocorria com os Assentos. Como bem se alude no Acórdão do STJ de 24/05/2022 (proc. nº 1562/17.9T8PVZ.P1.S1): “A publicidade dos acórdãos uniformizadores de jurisprudência proferidos pelo STJ, consubstanciando uma exigência do princípio do Estado de direito democrático, tem a ver, fundamentalmente, com o direito de os cidadãos tomarem conhecimento do sentido interpretativo fixado relativamente às normas que os regem em situações de conflito de jurisprudência; não, com a obrigatoriedade do respectivo acatamento. Não foi atribuída aos acórdãos uniformizadores força obrigatória geral, nem sequer vinculativa para a organização judiciária. Não obstante, a jurisprudência uniformizada deve ser respeitada pelos tribunais de instância e pelo próprio STJ, uma vez que a aplicação do direito não pode ser alheada dos valores da igualdade, da segurança e da certeza jurídicas, pressupostos da própria legitimação da decisão.”. Relativamente a tal questão jurídica nem sequer está em causa a aplicação da doutrina de qualquer Acórdão uniformizador de jurisprudência, mas sim a interpretação nos termos que se passará e explicitar. É a nível jurisprudencial e após a declaração de inconstitucionalidade do nº 8 do art.º 1091º do CC, que se passou de forma unanime, no que diz respeito a decisões publicadas, a considerar que inaplicado tal preceito, se devia interpretar que o arrendatário de parte do prédio não constituído em propriedade horizontal, não teria direito de preferência sobre a totalidade do prédio, nem sobre a parte arrendada. É certo que na decisão sob recurso se alude, primeiramente, a decisões do Tribunal Superior anteriores à redação operada pela Lei nº 64/2018, mormente o decidido no Ac. STJ de 24-05-2018, Proc. 1832/15.0T8GMR.G1.S1, com o seguinte sumário: “I – Atento o teor do artigo 1091.º, n.º 1, al. a), do CC, o direito de preferência conferido ao arrendatário está confinado ao andar ou à parte do prédio que constitui o objeto concreto do contrato de arrendamento, o qual, para ser transacionável, deve estar juridicamente autonomizado; II - O arrendatário de parte do prédio não constituído em propriedade horizontal, não tem direito de preferência sobre a totalidade do prédio, nem sobre a parte arrendada”. Claramente quer no Acórdão invocado, quer na jurisprudencia citada não estava ainda em causa nem a aplicação do nº 8 do art.º 1091º, nem a sua desconsideração ou inaplicabilidade por força da declaração de inconstitucionalidade, contudo já seria esse o entendimento da maioria da jurisprudência a partir da NRAU. Na verdade, como referimos supra, com a Lei n.º 63/77 de 25 de agosto, bem como face ao disposto no art.º 47º do RAU, e na vigência desses dois diplomas, o entendimento maioritário da doutrina e da jurisprudência, era no sentido que quando não se achasse instituído o regime de propriedade horizontal e o direito de preferência existisse a favor dos locatários habitacionais, o arrendatário duma parte ou os arrendatários coligados podiam exercer o direito de preferência em relação à totalidade do prédio vendido onde se situasse o local arrendado (ver quanto a esta evolução, o Acórdão do STJ de 13/10/2022, proc. nº 3391/08.1TVLSB.L1.S1, in www.dgsi). Na vigência de tais diplomas, o entendimento na doutrina e na jurisprudência que defendia a inadmissibilidade desse direito de preferência por a lei não contemplar no seu texto o direito de preferência de arrendatário de parte alíquota sobre a totalidade do prédio urbano indiviso e, também, porque constituído o direito de preferência do arrendatário sobre a sua condição de locador de um determinado e concreto arrendado, excederia esse fundamento a possibilidade de ele adquirir através da preferência a totalidade do imóvel constituído por várias partes integrantes arrendadas ou arrendáveis, era minoritário. Daqui resulta que com o NRAU, a corrente de entendimento jurisprudencial que era minoritária evoluiu para a que hoje é unanime no Supremo e em sentido inverso. Tal entendimento unanime mantém-se actualmente, pois perante a declaração de inconstitucionalidade do nº 8 do art.º 1091º, tem sido entendido que o artigo 1091.º do Código Civil, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 64/2018, de 29 de outubro, não confere ao arrendatário habitacional de parte de um imóvel, que não se encontra sujeito ao regime da propriedade horizontal, o direito de preferência na compra desse imóvel (v. Acórdão do STJ de 14/09/2023, proc. nº 135/20.3T8PVZ.P1.S1, no qual se faz uma resenha histórica sobre tal direito e seus fundamentos, nomeadamente histórios, económicos e sociais). Com efeito, o nº 8 do art.º 1091º do CC veio por cobro a tal divergência doutrinal e jurisprudencial, prevendo-se com tal preceito ficcionar uma alienação de quotas ideais do direito de propriedade sobre o imóvel, com posterior afetação do uso exclusivo da quota-parte do prédio a que corresponde o locado, ao arrepio das regras da compropriedade. Como comentou Menezes Leitão, esta conversão legal do objeto da preferência, que deixa de ser o imóvel para passar a ser uma quota do mesmo, corresponde assim a um novo direito atribuído ao arrendatário habitacional, que já não é uma mera preferência, passando a ser um direito à constituição de uma compropriedade sobre o imóvel, em caso de ocorrer a sua alienação. Mas a verdade é que não estava em causa a alienação de uma quota desse imóvel, nem é provável que o comprador aceite continuar a comprar um imóvel cuja propriedade não vai adquirir plenamente. O mais provável em caso de exercício do direito de preferência será assim a desistência do projeto de aquisição do imóvel pelo comprador, ficando o arrendatário nesse caso como comproprietário do senhorio, situação a todos os títulos indesejável (O novo regime do direito de preferência do arrendamento urbano, “Código Civil. Livro do Cinquentenário”, vol. II, Almedina, 2019, p. 283.). As soluções de proteção ao arrendatário de parte de um imóvel não constituído em propriedade horizontal aprovadas pela Lei n.º 64/2018, de 29 de outubro, não contemplaram, pois, a possibilidade de este preferir na compra da totalidade do imóvel, ao contrário do que sucedeu, por exemplo, com a Lei n.º 42/2017, de 14 de Junho, que conferiu esse direito ao arrendatário de parte do imóvel em que esteja instalado um estabelecimento ou uma entidade de interesse histórico e cultural. Já a atribuição do direito de preferência aos arrendatários habitacionais, com início em 1977, visou proporcionar a estes contraentes o acesso a casa própria, conferindo-lhes a estabilidade máxima na habitação, relevando a ligação do arrendatário com o imóvel locado por ele habitado durante um período de tempo significativo. Como decorre do Acórdão do Tribunal Constitucional o direito de preferência delienado pela Lei nº 64/2018, causava limitações desproporcionadas à livre transmissão dos bens que a elas estão sujeitos, restringindo severamente a sua liberdade de disposição, porém, mesmo ferida de insconstitucionalidade não ocorreu, quer por banda do Tribunal Constitucional, quer em termos legislativos, a eliminação do direito de preferência do arrendatário (a resenha do ocorrido em termos parlamentares, nomedamente com a aprovação, em 18.11.2004, da Lei de autorização legislativa da reforma do regime do arrendamento urbano -o Decreto 208/IX da A.R.- que autorizava o Governo a suprimir os direitos de preferência atribuídos nas leis em vigor, salvo preceito expresso em contrário, na sequência da Proposta de Lei n.º 140/IX apresentada em 27.9.2004; situação que não foi colhida no NRAU; bem como a apresentação em abril de 2018, na Assembleia pelo Bloco de Esquerda de um Projeto de Lei (n.º 848/XIII/3.ª) de alteração do artigo 1091.º do Código Civil para aprimoramento do exercício do direito de preferência pelos arrendatários, tendo esta iniciativa sido motivada pela anunciada intenção de alienação de património imobiliário arrendado, por parte de várias entidades financeiras, tornou evidente esta potencial inacessibilidade ao direito de preferência, por parte de centenas de inquilinos que foram confrontados com a venda das casas onde residem, está sobejamente explicada no Acórdão do STJ de 14/09/2023, a que fizemos referência). Na verdade, o que ocorre é que o legislador não teve até hoje qualquer reação concreta e lapidar sobre tal questão, tendo sobrevivido a previsão do n.º 9 do art.º 1091º do CC, como instrumento de proteção ao arrendatário de parte de um imóvel não constituído em propriedade horizontal, o qual, pode suscitar a interrogação sobre se qualquer um dos arrendatários pode adquirir a totalidade do prédio, face ao desinteresse dos demais, ou mesmo quando ele é o único arrendatário de uma parte do prédio (Formulando esta interrogação, Maria Olinda Garcia, in Direito de Preferência do Arrendatário de Fração Autónoma, “Propriedade Horizontal. Jornadas”, Gestlegal, 2022, p. 217, e Agostinho Cardoso Guedes, Direito de preferência do inquilino urbano na venda ou dação em cumprimento do imóvel arrendado. As alterações legislativas produzidas pela Lei n.º 64/2018 de 29 de Outubro, cit. p. 68-69. ) Aliás, tal questão, mesmo antes da declaração de inconstitucionalidade do n.º 8, do artigo 1091.º, do Código Civil, já era invocada face à redação do referido n.º 9, do mesmo artigo, quando diz que podem os arrendatários do mesmo, que assim o pretendam, exercer os seus direitos de preferência em conjunto, sobre a compra da totalidade do prédio, o que aparenta que esse exercício não tem que ser desencadeado por todos os arrendatários, podendo preferir apenas alguns deles ou, no limite, só um deles, o que abriria a porta a que também o único arrendatário parcial de um imóvel pudesse preferir na compra da totalidade do prédio. É certo que perante tal ambiguidade, a doutrina e a jurisprudência optaram por considerar que nessas situações o direito de preferência que a lei reconhecia ao arrendatário era apenas o previsto no n.º 8, do artigo 1091.º - direito à compra da quota-parte do prédio correspondente à permilagem do locado pelo valor proporcional dessa quota-parte face ao valor total da transmissão – permitindo o n.º 9 apenas que, existindo uma pluralidade de arrendatários, estes adquirissem em conjunto as suas quotas partes, as quais, somadas, abrangeriam a totalidade do direito de propriedade sobre o prédio. A faculdade admitida pelo n.º 9 não funcionava, pois, como uma alternativa ao direito reconhecido no n.º 8, sendo apenas uma vertente desse direito, aplicável apenas nas situações em que, existindo uma pluralidade de arrendatários de partes de um imóvel que somadas correspondiam à sua totalidade, todos eles pretendessem preferir na sua compra. Nessas situações, a preferência de cada arrendatário continuava a incidir sobre a quota-parte do prédio correspondente à permilagem de cada um dos locados, nos termos previstos no n.º 8, apenas se diferenciando, na medida em que a soma das quotas partes do prédio objeto de preferência perfaziam a totalidade do imóvel. (ver por todos Menezes Leitão, in ob. cit. p. 281 e 284, e ainda “Arrendamento Urbano”, 9.ª ed., Almedina, 2019, p. 87 e 89). Assim, é na construção doutrinal e jurisprudencial que assenta a interpretação da expressão utilizada no n.º 9 - “que assim o pretendam” -, no sentido que apenas traduzia a não obrigatoriedade deste exercício conjunto dos diversos direitos de preferência, podendo cada arrendatário se o preferir exercer isoladamente o seu direito de aquisição da quota-parte do imóvel correspondente à permilagem do seu locado, ao abrigo do disposto no n.º 8, sendo elucidativa a menção nesse n.º 9, que a aquisição se dava apenas “na proporção”, pelo que, em caso algum, um arrendatário poderá adquirir no direito de propriedade em jogo mais do que nele corresponde ao objeto do arrendamento. E no mesmo entendimento, após a declaração de inconstitucionalidade do n.º 8, do artigo 1091.º, do Código Civil, para quem entenda que tal não afectou a aplicabilidade do disposto no n.º 9, do mesmo artigo, o disposto neste último preceito não se alterou, não ganhando uma dimensão que até aí não dispunha. A preferência reconhecida a uma pluralidade de arrendatários do mesmo imóvel não sujeito ao regime da propriedade horizontal, pelo n.º 9, do artigo 1091.º, do Código Civil, continua a reportar-se a uma aquisição, por cada um dos arrendatários, de uma quota do direito de propriedade na proporção da permilagem do locado no valor total da transmissão, pelo que, ao abrigo deste artigo, nenhum arrendatário de parte do imóvel poderá preferir na aquisição da totalidade do direito de propriedade e com a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma contida no n.º 8, do mesmo artigo, ficou irremediavelmente afastada a possibilidade do direito de preferência poder ser exercido apenas por alguns dos arrendatários parciais do prédio. Todavia, haverá que reiterar que tal advém da interpretação da doutrina e jurisprudência, ainda que esta aparentemente unânime, mas sem que tal signifique que é a Lei objectivamente e de forma clara que impede tal direito de preferência concedido pelos promitentes vendedores à inquilina de parte do prédio. Logo, não nos parece que seja de aplicar o brocado no sentido de o “desconhecimento da lei não aproveita a ninguém” aplicado aos RR. e contida na previsão do art.º 6º do CC, dado que o aludido resulta da orientação doutrinal e jurisprudencial sobre a questão. Tal entendimento terá repercussão sobre o que se entende por “não cumprimento do contrato imputável” aos promitentes vendedores, que permitem ao Autor lançar mão do regime do sinal e exigir daqueles o dobro do valor que prestou- cf. art.º 442º nº 2 do CC. Vejamos os factos. Importa ter presente que nos termos da cláusula quinta do contrato promessa celebrado entre as partes e em causa nos autos estabeleceu-se que: “UM- Os promitentes-vendedores obrigam-se a, se o Promitente-Comprador o desejar, notificar o presente contrato promessa de compra e venda a todas as entidades que sejam titulares de direito de preferência na venda prometida. Dois- Caso alguma dessas entidades venha a exercer o direito de preferência que lhe assiste, o presente contrato ficará imediatamente sem qualquer efeito, devendo os Promitentes-Vendedores restituir ao Promitente-Comprador a parte do preço que dele recebeu em singelo e sem quaisquer juros, nos 15 (quinze) dias seguintes àquele em que venham a tomar conhecimento desse exercício.” No mesmo contrato promessa de compra e venda ficou também estipulado que a escritura publica seria marcada pelo Promitente Comprador, e que este deveria avisar os Promitentes Vendedores: “…da data, hora e Cartório Notarial onde a mesma seria lavrada por carta registada com aviso de recepção, com a antecedência mínima de 60 (sessenta) dias, reportados à data marcada para a celebração da escritura”. Logo, dando cumprimento ao aí estipulado, a 22 de Julho de 2022, o A., por intermédio da sua mandatária, enviou aos Réus, cartas registadas com aviso de recepção, notificando-os de que: “…pela presente sou a notificá-lo, para comparecer, na sua qualidade de vendedor, no Cartório Notarial (…), pelas 10h, do dia 30 de Setembro de 2022, a fim de outorgar a escritura de compra e venda, do prédio (…), conforme contrato promessa de compra e venda de compra e venda celebrado com o meu constituinte(…). Perante tal marcação, os RR. entenderam notificar a inquilina de uma parte do prédio (do r/c – cf. ponto 20. e 21.) para que, em prazo, viesse informar se pretendia preferir na compra programada. Resulta que, a 6 de Setembro de 2022, o A. recebeu uma carta, remetida pelo advogado dos Réus, informando-o que: “ Exmº Senhor, “…Faço referencia ao contrato promessa de compra e venda de 12 de Novembro de 2020 aditado em 1 de Outubro de 2021 e respeitante à totalidade do prédio sito na Rua …2, freguesia da …, concelho de … para lhe comunicar que a arrendatária MT... exerceu o direito de preferência que a lei lhe concede, nos termos da comunicação e respectivos cheques bancários cujas cópias remeto em anexo. Neste contexto, e em cumprimento do sobredito contrato, solicito que me informe do IBAN para onde pretende que os meus Constituintes transfiram a quantia que entregou a título de sinal, no montante € 110.000,00 (cento e dez mil euros)”. Importa ter presente que os RR. comunicaram ao Autor tal exercício do direito, juntando ainda a carta da inquilina da qual resulta que a notificação pelos RR. foi feita a 3/08/2022, ou seja, após a marcação da escritura pelo Autor nos termos sobreditos, e que a informação da preferente foi feita no mesmo dia em que ocorreu a comunicação ao Autor. O Autor perante tal notificação nada objectou, sendo certo que, quer os RR., quer o Autor, vinham praticando os actos relativos ao contrato celebrado através de mandatário. Acresce que perante a carta aludida, o A. limitou-se a forneceu o IBAN solicitado pelos Promitentes Vendedores, e com data de 19 e 20 de setembro de 2022, recebeu o valor de € 110.000,00 (cento e dez mil euros), resultado de duas transferências no valor de € 55.000,00 cada uma, enviadas pelo Primeiro e Terceiro Réus. Manifestamente o A. nem sequer aguardou que os RR. concretizassem a venda a favor da inquilina/preferente, recebendo o valor entregue a título de sinal em data anterior ao que o Tribunal a quo classifica como incumprimento, ou seja, a venda a terceiro, com impossibilidade de cumprimento perante o promitente comprador. Na verdade, já seria ao abrigo da cláusula 5ª que a devolução em singelo ocorreria por banda dos RR. ao Autor, o que desde logo determinaria a ausência de incumprimento, exigível para a aplicação do regime do sinal, sem necessidade de aferir da revogação tácita do contrato. Ora, é certo que tornando-se a prestação impossível por causa imputável aos RR., como foi o caso com a venda do prédio, se presume a culpa dos mesmos – cf. art.º 801º e 799º do CC – mas mesmo que se considere que não tendo os RR. sido diligentes na aferição jurisprudencial e doutrinal acerca do direito de preferência da inquilina, e, logo, se conclua pelo incumprimento culposo dos mesmos, entendemos não sufragar o entendimento do Tribunal recorrido ao afastar o abuso do direito do Autor. O Tribunal a quo na argumentação para a decisão tomada e no sentido de afastar tal instituto expõe que: “(…) tendo em conta o contexto dos autos em que estaria em causa o exercício de um direito de preferência, que, como sabemos, constitui um direito potestativo do preferente a que fica sujeito o obrigado à preferência, apenas podemos dizer que o Autor, numa primeira fase, se conformou com essa realidade, tal como lhe foi exposta pelos Réus. Só posteriormente à realização da escritura veio por em causa que a mesma tenha sido celebrada numa situação de exercício de direito de preferência pelo arrendatário. (…) Já concluímos igualmente que os Réus, ao vender a terceiro o prédio objecto de tal contrato, sem que esteja em causa o exercício de um direito de preferência que os obrigaria a tal venda, incumpriram definitivamente o contrato celebrado com o Autor, uma vez que a prestação a que se obrigaram perante este se tornou impossível por facto que lhes é imputável. Com efeito, só a sua menor diligência na averiguação das circunstâncias, levou a que se tenham convencido estar obrigados a celebrar o contrato com a arrendatária. Assim, podemos dizer que o direito do Autor existe e pode ser declarado, excepto se alguma circunstância nos indicar que, nesse exercício, aquele excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico do direito.(…) No caso em apreciação, apontam os Réus ao Autor o facto de este não se ter oposto à celebração da escritura com terceiro, tendo-lhe sido comunicada a data e local da sua realização, aceitando a devolução do sinal em singelo para em seguida vir exigir o dobro do sinal por violação pelos Réus dos seus deveres contratuais. Do enquadramento factual resulta que o Autor foi avisado por carta remetida pelo Ilustre Mandatário dos Réus de que a arrendatária iria exercer o direito de preferência, comunicando-lhe a hora e local da realização da escritura. Não decorre dos factos que o Autor soubesse ou estivesse obrigado a averiguar se o exercício do direito de preferência pela arrendatária era ou não legítimo, ao contrário dos Réus que para dar preferência à arrendatária punham em causa o cumprimento do contrato com o Autor. Assim, não podemos dizer que o Autor agiu conscientemente, no sentido de querer deixar consumar a celebração da escritura com terceiro para depois vir exigir o dobro do sinal ou que violou uma qualquer norma jurídica ao não se opor à celebração da escritura. A simples aceitação do sinal em singelo não se reconduz a um comportamento com o significado que os Réus lhe conferem, nomeadamente, de renúncia do Autor ao direito a uma indemnização pela violação contratual. O Autor limitou-se a aceitar o que os Réus se dispuseram a devolver. A celebração do contrato com terceiro não foi um investimento na confiança que o Autor eventualmente terá criado na mente dos Réus de aceitar a celebração do contrato com terceiro sem mais nada exigir mas, antes, o facto dos Réus se terem convencido erradamente de que estariam obrigados a dar preferência à arrendatária, facto para o qual o Autor em nada participou. Apesar da questão do direito de preferência da arrendatária ser uma questão jurídica a que apenas os especialistas têm acesso, não sendo fácil para um leigo seguir a evolução legislativa e jurisprudencial que se tem verificado quanto a esta questão, o certo é que os Réus estavam obrigados a diligenciar por saber se a intenção de exercer o direito de preferência por parte da arrendatária, tinha suporte legal. Porém, não se pondo em causa a existência de boa fé de ambas as partes, por pensarem erradamente que estavam perante uma situação de exercício legítimo de um direito de preferência, podemos afirmar que os Réus não agiram com o cuidado e precauções usuais no tráfico jurídico, dando causa ao dano causado ao Autor, cujo direito advinha de contrato promessa de compra e venda.” Na verdade, ao contrário do defendido na sentença recorrida, entendemos que a factualidade que resultou provada permite concluir que o Autor (promitente-comprador) actuou em abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, porquanto a par da cláusula que o contrato promessa previa – a referida cláusula 5ª - tinha o Autor conhecimento da existência de inquilinos no prédio, pois assumiu tal posição em determinado momento. Além disso, encontrava-se acompanhado por mandatária na marcação da escritura e demais actos. Acresce que aceitou, em data anterior à escritura, a devolução em singelo do valor do sinal, e nunca perante os Réus (nem antes, nem após a escritura) pôs em causa a interpretação levada a cabo pelos mesmos quanto ao exercício do direito de preferência da inquilina relativamente ao objecto da prometida venda – a totalidade do prédio. O princípio da boa-fé exprime a relevância que a ordem jurídica confere às considerações éticas e directrizes morais presentes numa sociedade, sendo transversal a todas as áreas do Direito, revela-se essencialmente no âmbito dos contratos. Actuar violando os ditames da boa fé caracteriza-se por uma actuação em abuso de direito. Tendo por base os ensinamentos do prof. Menezes Cordeiro (in “Tratado de Direito Civil Português”, Parte Geral, Tomo I, págs. 249-269) podem ser sintetizados seis tipologias as situações em que tem sido colocada a ocorrência do abuso do direito, sendo que estas tipologias nos permitem, igualmente, enquadrar parâmetros de actuação aptos a concretizar os conceitos jurídicos indeterminados em que está ancorado o instituto do abuso do direito. A saber: a exceptio doli, o venire contra factum proprium, as inalegabilidades formais, a supressio e a surrectio, o tu quoque e o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas. A exceptio doli traduz-se numa actuação dolosa do titular na formação da sua situação jurídica ou no momento da própria discussão da causa. No venire contra factum proprium está em causa uma actuação do titular contraditória com um comportamento passado. Trata-se, em suma, de tutelar a confiança gerada numa das partes pelo comportamento anterior da outra. Em terceiro lugar, verifica-se uma inalegabilidade formal quando alguém alega de forma desconforme com a boa-fé, designadamente por lhe ter dado causa, a nulidade formal de um negócio. A supressio e a surrectio que são figuras baseadas nos mesmos fenómenos – decurso do tempo, boa-fé e tutela da confiança – mas de sentido inverso. No primeiro caso, o decurso de um longo período de tempo sem o exercício de um direito faz com que o seu titular perca a faculdade do seu exercício. No segundo caso, a manutenção de uma situação durante um longo período de tempo faz surgir numa pessoa uma faculdade jurídica que de outro modo não teria. O tu quoque traduz-se na inadmissibilidade do titular do direito aproveitar-se de uma violação de uma norma jurídica exigindo a outrem que actue em consonância com as consequências resultantes dessa violação. Por fim, temos o desequilíbrio, ou seja, o exercício de um direito que devido a circunstâncias extraordinárias dá origem a resultados totalmente estranhos ao que é admissível pelo sistema, quer por contrariar a confiança ou aquilo que o outro podia razoavelmente esperar, quer por dar origem a uma desproporção manifesta e objectiva entre os benefícios recolhidos pelo titular ao exercer o direito e os sacrifícios impostos à outra parte resultantes desse exercício (aqui se incluem o exercício danoso inútil, a exigência injustificada de coisa que de imediato se tem de restituir e o puro desequilíbrio objectivo). Temos presente que todas estas situações não são mais do que tipologias de comportamento em que historicamente se tem ancorado o raciocínio do abuso do direito, sendo que nem todas têm actual justificação e muitas delas se reconduzem, no fim de contas, a outras figuras, designadamente ao venire contra factum proprium, mas de qualquer forma permitem deixar mais claros os parâmetros em que se move o instituto em análise. Na verdade, tendo por referência o disposto no art.º 334º do C.Civil, «o abuso do direito pressupõe um excesso ou desrespeito dos respectivos limites axiológico-materiais, traduzido na violação qualificada do princípio da confiança, sendo que, para que tal aconteça, não se torna necessário que o agente tenha consciência do carácter abusivo do seu procedimento, bastando que este o seja na realidade». (Galvão Telles in “Obrigações”, pág. 6). Nesta linha de entendimento, sublinha Baptista Machado (in “Tutela de Confiança”, RLJ, Anos 117º e 118º, a págs. 322 e 323 e 171 e 172, respectivamente), que, para se concluir por tal actuação dita abusiva torna-se necessária a verificação cumulativa de três pressupostos: uma situação objectiva de confiança digna de tutela jurídica e tipicamente consubstanciada numa conduta anterior que, objectivamente considerada, seja de molde a despertar noutrem a convicção de que o agente no futuro se comportará coerentemente de determinada maneira; que, face à situação de confiança criada, a outra parte aja ou deixe de agir, advindo-lhe danos, se a sua confiança legítima vier a ser frustrada; ou seja, frustrada a boa-fé da parte que confiou. O Supremo Tribunal de Justiça já se pronunciou diversas vezes sobre os pressupostos do abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, designadamente no acórdão de 29/10/2020 (proc. n.º 26150/16.3T8LSB.L1.S1), referindo-se neste aresto que «quer a doutrina, quer a jurisprudência aceitam serem pressupostos do abuso de direito, na invocada modalidade do venire contra factum proprium: i) a existência de um comportamento anterior do agente (o factum proprium) que seja susceptível de fundar uma situação objectiva de confiança; ii) que, quer a conduta anterior (factum proprium), quer a actual (em contradição com aquela) sejam imputáveis ao agente; iii) que a pessoa atingida com o comportamento contraditório esteja de boa fé, ou seja, que tenha confiado na situação criada pelo acto anterior, ignorando sem culpa a eventual intenção contrária do agente; iv) que haja um “investimento de confiança”, traduzido no facto de o confiante ter desenvolvido uma actividade com base no factum proprium, de modo tal que a destruição dessa actividade pela conduta posterior, contraditória, do agente (o venire) traduzam uma injustiça clara, evidente; v) que o referido “investimento de confiança” seja causado por uma confiança subjectiva objectivamente fundada; terá que existir, por conseguinte, causalidade entre, por um lado, a situação objectiva de confiança e a confiança da contraparte, e, por outro, entre esta e a “disposição” ou “investimento” levado a cabo que deu origem ao dano.» Tendo por base tais premissas sublinha-se no mesmo aresto a necessidade de todos estes pressupostos serem «globalmente ponderados, em concreto, para se averiguar se existe efectivamente uma “necessidade ético-jurídica” de impedir a conduta contraditória, designadamente, por não se poder evitar ou remover de outra forma o prejuízo do confiante, e por a situação conflituar com as exigências de conduta de uma contraparte leal, correcta e honesta – com os ditames da boa fé em sentido objectivo». Ora, no caso sub judice, na indagação se a conduta do Autor integra ou não uma situação de abuso do direito, haverá que ser ponderada pela imagem global dos factos provados, bem como as características do contrato celebrado entre as partes e a todo o contexto jurídico e sócio económico subjacente à sua celebração. Sendo que tudo ponderado, antecipando, afigura-se-nos que merece acolhimento a posição assumida pelos Réus, recorrentes nesta acção, ou seja, a actuação pelo Autor em abuso de direito. Com efeito, a situação objectiva de incumprimento, a venda do prédio prometido comprar e vender à preferente, e da qual o recorrido se socorreu nesta acção para despoletar o regime indemnizatório do sinal e, logo, da obtenção do dobro do valor entregue, até ocorre num momento em que o valor do sinal entregue pelo Autor lhe havia sido devolvido. E essa devolução, ainda que tivesse tido como causa uma pretensa situação de permissão de um exercício ilegítimo pela preferente, em momento algum é anunciada como tal pelo Autor, nomeadamente por forma a alertar os RR. para a situação, o que bastaria, para o efeito, não ter aceite a devolução e convocar a possibilidade de se considerar o incumprimento do contrato promessa por banda dos promitentes vendedores, com todas as repercussões inerentes. Ao invés, notificado do exercício do direito de preferência obstaculizante da celebração do contrato definitivo com o próprio, o comportamento do Autor foi no sentido de se conformar com tal situação, e ainda que faltassem alguns dias para o dia aprazado para a escritura, limitou-se a fornecer o IBAN e aceitar a devolução do valor em singelo do sinal entregue aquando da celebração do contrato promessa e seu aditamento. Com efeito, os RR, através do mandatário dos mesmos, não se limitaram a informar o Autor do exercício do direito de preferência da inquilina, o que ocorreu a 6 de Setembro de 2022, comunicado nessa mesma data ao Autor, juntaram igualmente a carta da inquilina e os cheques no valor correspondente ao montante entregue a título de sinal- cf. ponto 6. Que actuação assume o Autor perante tal comunicação? O Autor não solicita ou suscita, nem em resposta, nem em data anterior ao dia designado para a escritura, alguma dúvida ou objeção sobre a qualidade da inquilina e/ou preferente, ou sequer sobre o eventual direito de preferência nos moldes exigidos pela mesma. Na verdade, o que resulta é que o Autor em resposta à carta dos RR., de 6/09/2022, enviou ao mandatário dos réus o seguinte email: “Caros Srs., Acuso a recepção da v/ carta de 6 de Set. em que me informaram que a Sr.ª MT... exerceu o direito de preferência na compra do prédio sito na R. … pelo que solicito a devolução do dinheiro que entreguei como sinal (110.000,00 euro) para a conta abaixo indicada. (…)”. Tal Pagamento exigido aos Réus é feito pelos mesmos ao Autor a 19 e 20 de Setembro, pelo que dez dias antes da celebração da escritura. Importa ainda ter presente que não era desconhecido do Autor que aquando do contrato celebrado com os RR. que alguns dos andares do prédio objecto dos autos se encontravam ocupados, mediante contratos de arrendamentos, devendo ainda considerar-se o estipulado pelas parte no contrato promessa, quanto a um eventual direito de preferência existente, com a consequente devolução do sinal em singelo. Resulta ainda que o Autor foi notificado de todos os actos que determinariam a venda à preferente, porém, optou o Autor por não compareceu na escritura pública de compra e venda outorgada entre os Réus e a referida MT..., a 30/09/2022, nem questionou que esta, enquanto arrendatária de um prédio em propriedade total, pudesse exercer o direito de preferência na aquisição da totalidade do prédio. Acresce que só a 6 de Outubro de 2022, o A. através da sua mandatária, questionou os Réus sobre a veracidade e credibilidade, da reivindicada qualidade de arrendatária, da compradora, MT..., necessária a que esta tivesse legitimidade, para exercer o direito de preferência sobre a compra e venda prometida. E em 10 de Outubro de 2022, o A. enviou duas cartas registadas com aviso de recepção, dirigidas ao Primeiro e Terceiro Réus solicitando “… cópia do contrato de arrendamento celebrado com MT..., com comprovativo da comunicação do mesmo à Autoridade Tributária, para efeitos de Imposto de Selo….”. Em resposta, o único documento enviado ao A., foi um contrato, celebrado entre I…, como senhoria e AS… como inquilino. Sendo certo que o contrato de arrendamento correspondente ao único documento enviado ao A. diz respeito somente ao rés do chão do prédio, e o imóvel em causa é constituído por r/c e mais dois andares (1º e 2º), e duas garagens. O Autor foi ainda notificado que se manteria a data da escritura pelo mesmo indicada – 30 de Setembro de 2022- bem como a alteração quanto ao local, comunicações que foram feitas através da sua mandatária. O Autor não desconhecia a configuração do imóvel, a ausência de constituição do mesmo no regime da propriedade horizontal, nem ignorava que a inquilina em causa apenas ocupava uma parte do imóvel, dado que ocupou como inquilino, em 2018, a cave esquerda do prédio. Outrossim, no momento da comunicação levada a cabo pelos RR., a 6/09/2022, não indagou ou interpelou os mesmos da forma como o veio a fazer a 6/10/2022, já após a celebração da escritura, frise-se, ocorrida a 30/09/2022. Interpelação essa, porém, que apenas visava o conhecimento da qualidade de inquilina da preferente e não que veio indicar nesta acção. Donde, é em nosso entender clara a actuação do Autor no sentido de criar nos RR. a convicção que o exercício do direito de preferência, nos moldes sem que foi admitido pelos mesmos, não determinaria qualquer incumprimento do contrato promessa celebrado com o Autor, nem consequentemente, determinaria a possibilidade e o Autor em exigir dos RR. o pagamento do dobro do sinal. Encontram-se deste modo preenchidos os requisitos exigidos para o funcionamento do instituto do abuso de direito, pois foi o comportamento anterior do Autor (o factum proprium) que determinou igualmente a existência de uma situação objectiva de confiança dos RR. na concessão do direito de preferência à inquilina e à inexistência de incumprimento do contrato; sendo tal conduta, bem como a que decorre destes autos imputáveis ao Autor; não foi alegado ou resulta provada qualquer actuação dos RR. contraditória ou violadora da boa fé, ou seja, que tenha confiado na situação criada pelo acto anterior, ignorando sem culpa a eventual intenção contrária do agente. Por outro lado, da actuação do Autor verifica-se existir um “investimento de confiança”, traduzido no facto de os confiantes (ora Réus) terem desenvolvido uma actividade com base no factum proprium, ou seja, a celebração da escritura nos moldes em que o foi sendo que a invocação do incumprimento pelo Autor (o venire) traduz uma injustiça clara, evidente. Sendo que o “investimento de confiança” foi causado por todas as circunstancias aludidas, quer as que advém do contrato, o conhecimento pelo Autor do prédio e suas vicissitudes, e, por fim, a actuação do Autor antes de ter ocorrido o “incumprimento” que ora assaca aos réus e fundamenta o direito de que se arroga, actuando como se esse incumprimento não existisse, fomentado a actuação dos RR. e fazendo-se valer da mesma para assegurar um direito que em momento algum afirmou que pretendia exercer. Logo, o comportamento do Autor é no seu todo, contraditório com o comportamento anteriormente adoptado pelo mesmo, ao arrepio de todo o investimento de confiança feito aos promitentes-vendedores em face da conduta anterior do recorrido, de tudo resultando que esse venire é juridicamente intolerável. Destarte, também com este fundamento, entendemos que ao Autor não assiste o direito à pretendida restituição do dobro do sinal, mas apenas ao seu valor em singelo já entregue pelos RR. em data anterior à escritura definitiva celebrada e que tinha por objecto o prédio objecto do contrato promessa. Por tudo o exposto, procede a apelação, revogando-se a sentença e absolvendo os Réus do pedido formulado nos autos pelo Autos. O recorrido será ainda responsável pelas custas a que deu causa – art.º 527º do Código de Processo Civil. * IV. Decisão: Por todo o exposto, Acorda-se em julgar procedente o recurso de apelação interposto pelos Réus e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida e absolve-se os Réus do pedido formulado pelo Autor. Custas pelo apelado. Registe e notifique. Lisboa, 6 de Fevereiro de 2025 Gabriela de Fátima Marques Adeodato Brotas Cláudia Barata |