Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | MICAELA SOUSA | ||
Descritores: | REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA FILIAÇÃO SOCIOAFECTIVA MULTIPARENTALIDADE TERMO DE RECONHECIMENTO ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL DO ESTADO PORTUGUÊS | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 09/14/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | 1–A ordem pública internacional do Estado Português corresponde aos valores essenciais do Estado Português; só quando os nossos interesses superiores são postos em causa é que não é possível tolerar a declaração do direito efectuada por um sistema jurídico estrangeiro, daí que, se o resultado de sentença estrangeira chocar flagrantemente os interesses de primeira linha protegidos pelo nosso sistema jurídico, não deverá aquela ser reconhecida. 2–A Constituição brasileira de 1988 iniciou o reconhecimento legal da socioafectividade como fundamento bastante para o estabelecimento do vínculo parental, abandonando a concepção clássica de família ligada à ideia de legitimidade associada ao matrimónio e laços biológicos e registais, evoluindo para o reconhecimento de uma entidade familiar consubstanciada pela afectividade. 3–O direito brasileiro admite o reconhecimento da multiparentalidade pela via extrajudicial, com inclusão de um ascendente socioafectivo ao lado de um ascendente biológico preexistente, o que constitui concretização do princípio da dignidade da pessoa humana e assegura o respeito pelo princípio da afectividade. 4– Reconhecida a dupla parentalidade, o filho socioafectivo terá todos os direitos inerentes à filiação, incluindo o direito a alimentos e os direitos sucessórios, dado que a existência de dois pais registais, um socioafectivo e outro biológico, visa ampliar e não restringir direitos. 5–A Constituição da República Portuguesa consagra vários princípios que confluem com o princípio da dignidade da pessoa humana consagrado no seu artigo 1.º, como o princípio da protecção da família (biológica e adoptiva) pelo Estado, estatuindo no artigo 26º, n.º 1, que a todos é reconhecido, entre outros, os direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, sendo que o primeiro pressupõe e visa em primeira linha satisfazer os interesses próprios da pessoa que pretende conhecer a identidade dos seus progenitores e constituir o respectivo vínculo de filiação correspondente à verdade biológica, enquanto ponto fundamental da sua historicidade pessoal. 6–Ainda que a verdade biológica não seja um princípio dotado de valor absoluto - posto que o direito ao conhecimento da paternidade biológica e ao estabelecimento do respectivo vínculo jurídico pode ser confrontado com valores e interesses conflituantes também merecedores de tutela -, não deixa de ser estruturante de todo o sistema legal português da filiação, de modo que a jurisprudência portuguesa tem sustentado que o superior interesse do filho é o de que a sua filiação, em regra, seja estabelecida em conformidade com a verdade biológica, sendo este um interesse de ordem pública, enquanto elemento catalisador da organização jurídico-social vigente na sociedade portuguesa. 7–O direito português não reconhece a filiação socioafectiva nem a multiparentalidade, que colocam em crise o princípio da verdade biológica, pelo que colidem com o princípio fundamental do Estado Português que é o direito à identidade pessoal, sob a vertente do conhecimento da genética própria. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam as Juízas na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I–RELATÓRIO A, titular do Cartão de Cidadão n.º ......., residente na Rua Ptª. de A..., n.º .., ...º A, - C... C... deduz contra B e C, ambos residentes na C... N... ..., We ..., n.º ..., CEP ..-...-... B... Coqueiro-Ananindeua – P..., Brasil o presente processo especial para revisão e confirmação de termo de reconhecimento de filiação socioafectiva relativamente à menor D emitido no âmbito de procedimento administrativo, com data de 25 de Outubro de 2018, no Cartório do 1º Ofício do Registro Civil das Pessoas Naturais, B..., Estado do P..., Brasil, mediante o qual a requerente afirmou relativamente à menor a existência como verdadeira de filiação socioafectiva, não existindo vínculo de parentesco biológico na linha de ascendente ou de irmãos com a reconhecida, que passará a ter todos os direitos legais de filha, inclusive os direitos sucessórios, em igualdade com os filhos biológicos ou adoptados, sem distinção, visando que tal reconhecimento produza todos os seus efeitos em Portugal (cf. Ref. Elect. 517240). Em 18 de Março de 2021 foi proferido despacho que ordenou a notificação da requerente para proceder à junção da decisão revidenda e de documento comprovativo da transcrição do nascimento da menor na competente Conservatória do Registo Civil português (cf. Ref. Elect. 16707186). Em 17 de Maio de 2021 foi junta a certidão extraída do procedimento administrativo de reconhecimento de filiação socioafectiva (cf. Ref. Elect. 526406). Em 20 de Junho de 2021 a requerente juntou aos autos declaração subscrita pelos requeridos mediante a qual, na qualidade de progenitores da menor D, confessam o alegado na petição inicial da presente acção (cf. Ref. Elect. 530769). Cumprido o disposto no 982º, n.º 1 do Código de Processo Civil[1], a Exma. Procuradora-Geral Adjunta junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de nada obstar a que se atenda à pretensão da requerente (cf. Ref. Elect. 532376). A requerente veio apenas indicar, por requerimento de 3 de Julho de 2021, nada mais ter a acrescentar ao alegado na petição inicial (cf. Ref. Elect. 532825). * O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia. Não existem vícios que anulem todo o processo. As partes, dotadas de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade. Não se verificam outras excepções dilatórias ou nulidades de que cumpra conhecer. * QUESTÃO A DECIDIR A única questão a decidir consiste em verificar se estão demonstrados os requisitos legais de que depende a revisão e confirmação da decisão estrangeira apresentada. * II–FACTUALIDADE PROVADA Encontra-se documentalmente provado nos autos que: 1.-D nasceu no dia 8 de Janeiro de 2004, em B..., Estado do P..., República Federativa do Brasil e é filha biológica de B e C (cf. documento n.º 1 junto com o requerimento de 8 de Março de 2021, com a Ref. Elect. 517989). 2.-No Cartório do 1º Ofício de Registro Civil das Pessoas Naturais de B.../PA encontra-se arquivado o procedimento administrativo de reconhecimento de filiação socioafectiva da registada menor D, que contém o Termo de Reconhecimento de Filiação Socioafectiva de acordo com o Provimento de n.º 63 do CNJ, com data de 25 de Outubro de 2018, com o seguinte conteúdo: “Eu, A, de Nacionalidade Brasileira, estado civil: divorciada, Profissão: Advogada, natural de B..., RG n.º ......., CPF n.º .......-.., Filha de Izabel .... e Manoel ...., com domicílio na rua D... R... C..., N.º ..., Apto. 3..., B...; Umarizal, vêm respeitosamente à presença de Vossa Senhoria ingressar o pedido de Reconhecimento de Filiação Voluntária da Maternidade Socioafetiva em face de D, de sexo feminino, Nacionalidade Brasileira, Estado Civil: Solteira, Profissão: Estudante, com CPF n.º ...-....-....-..01, RG: ......., Pc-Pa, natural de B...-Pará, nascida em 08/01/2004, Idade: 14 anos, registrada no Cartório de Registro do 1º Ofício G... de O..., sob Matrícula de n.º ...... - ... - ..-.... -. -.....- ... ....... - .., Tendo como mãe: B, Estado Civil: Solteira, Profissão: Servidora Pública, Natural de C...-Pa, RG n.º .......-Pc-Pa, CPF n.º ...-....-....-.., nascida em 15/10/1967, E-mail: .....@.....mp.br com domicílio na C... N... 4, WE ..., N.º .... – B...: C...-A....-Pa, filha de Maria ... e Dorival ...... E como Pai: C, de Nacionalidade Brasileira, Estado Civil: Divorciado, Profissão: Autónomo, natural de M... T... – Ce, RG n.º ...... SSp-DF, CPF n.º ...-.-...-...-.., nascido em 27/07/1962, E-mail: ......@....com.br, domiciliado na C... N... 8, WE ..., AI, E... M..., n.º 27, Bairro: C...-A...-Pa, filho de Cosma ..... e Raimundo ...... Solicito também, que o sobrenome da reconhecida filha seja alterado, para D. 5 – Declaro para devidos fins de direito, sob as penas da lei, que: 5.1.- A filiação Socioafetiva ora afirmada é verdadeira e que Reconheço, nos termos do Provimento n.º 63 de 14/11/2017, do Conselho Nacional de Justiça, minha filha Socioafetiva D, acima identificada; 5.2.- O reconhecimento da filiação socioafetiva ou adopção não foi pleiteado em juízo; 5.3.- Não há vínculo de parentesco biológico na linha de ascendente ou de irmãos com a reconhecida; 5.4.- Possuo diferença de idade em, no mínimo, de 16 anos, com a filha reconhecida; 5.5.- Tenho conhecimento que D, reconhecida passará a ter todos os direitos legais de filha, inclusive os direitos sucessórios, em igualdade com os filhos biológicos ou adotados, sem distinção; 5.6.- Tenho ciência de que o reconhecimento é irrevogável nos termos do art. 1.610 do vigente Código Civil. Por ser expressão da verdade, firmo o presente termo.” (cf. documento junto com o requerimento de 17 de Maio de 2021, com a Ref. Elect. 526406). 3.–O termo de reconhecimento referido em 2. contém, a final, a aposição das assinaturas manuscritas de A, B, C e D e, bem assim, a rubrica do oficial e carimbo do cartório. 4.–O procedimento administrativo referido em 2., após o preenchimento dos requisitos, foi concluído com o acto de averbação, no dia 21 de Novembro de 2018, à margem direita no assento de nascimento de D, arquivado no Cartório do 1º Ofício de Registro Civil das Pessoas Naturais de B.../PA, no Livro ...-A de Registros de Nascimentos às folhas ..., termo 1....3, do reconhecimento materno socioafectivo, com base no Provimento n.º 63 do Conselho Nacional de Justiça, para acrescentar a mãe socioafectiva A e o nome dos avós maternos socioafectivos Manoel ..... e Izabel ....., passando a registada a usar o nome de D ......., reconhecimento voluntário socioafectivo feito por instrumento particular recebido no Cartório Trigueiro, Comarca de Ananindeua/PA (cf. documento n.º 2 junto com o requerimento de 8 de Março de 2021, com a Ref. Elect. 517989 e documento junto com o requerimento de 17 de Maio de 2021, com a Ref. Elect. 526406). * III–FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO O sistema português de revisão de sentenças estrangeiras assenta no sistema de delibação, isto é, de revisão meramente formal, o que significa que o Tribunal, em princípio, se limita a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma, não conhecendo do fundo ou mérito da causa. Desde que o Tribunal nacional se certifique de que tem perante si uma verdadeira sentença estrangeira, deve reconhecer-lhe os efeitos típicos das decisões judiciais – cf. José Alberto dos Reis, Processos Especiais, volume II – Reimpressão, 1982, pág. 141; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-07-2011, relator Paulo Sá, processo n.º 987/10.5YRLSB.S1[2]. Trata-se de um processo especial de simples apreciação. Nos termos do art. 980º do CPC, para que a sentença seja confirmada é necessário: a)- Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão; b)- Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida; c)- Que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses; d)- Que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal português, excepto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição; e)- Que o réu tenha sido regularmente citado para acção nos termos da lei do país do tribunal de origem e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes; f)- Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado português. Dispõe o art. 983º, nº 1 do mesmo diploma legal que “O pedido só poder ser impugnado com fundamento na falta de qualquer dos requisitos mencionados no artigo 980º, ou por se verificar algum dos casos de revisão especificados nas alíneas a), c) e g), do artigo 696º.” Por sua vez, o art.º 984º do CPC determina que “O tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 980º; e também nega oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito.” O requerente está dispensado de fazer prova directa e positiva dos requisitos previstos nas alíneas b) a e) do art. 980º do CPC. Se, pelo exame do processo, ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, o tribunal não apurar a sua falta, presume-se que existem, não podendo o tribunal negar a confirmação quando, por falta de elementos, lhe seja impossível concluir se os requisitos dessas alíneas se verificam ou não. A prova de que não se verificam os requisitos das alíneas b) a e) do artigo 980º do CPC compete ao requerido, devendo, em caso de dúvida, considerarem-se preenchidos – cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21-02-2006, relator Oliveira Barros, processo n.º 05B4168 e de 30-11-2010, relator Manuel Capelo, processo n.º 50/10.9YRCBR – “[…] como decorre da 2ª parte do art. 1101º, era sobre o requerido que recaía o ónus da prova da não verificação dos requisitos da confirmação estabelecidos nas alíneas b) a e) do art. 1096º, que a lei presume que existem, sendo ao requerido que incumbia provar a inexistência de trânsito em julgado segundo a lei do país em que a sentença revidenda foi proferida - al. b), a incompetência do tribunal sentenciador, nos termos indicados na al. c), a litispendência arguida - al. d), e a inobservância do princípio do contraditório e da igualdade das partes no processo que levou à decisão em causa - al. e), tendo-se esses requisitos por verificados em caso de dúvida a esse respeito.” No que diz respeito à legitimidade passiva no contexto deste processo especial, tem sido entendido não ser imprescindível a existência de demandados. Conforme se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 4-10-2011, relator Rijo Ferreira, processo n.º 529/11.5YRLSB-1: “Sendo uma sentença um acto pelo qual se definem direitos, a atribuição de eficácia a uma sentença estrangeira coloca aquele a quem ela atribui direitos numa posição de, no território nacional, a fazer impor a quem aquela sentença constitui na obrigação de reconhecer aqueles direitos. Daí que o pedido de revisão dessa sentença deva ser formulado no confronto com quem possa ser directamente atingido pelo deferimento de tal pedido (daí que o pedido deva ser formulado contra quem se pretenda fazer valer a acção – e não necessariamente o vencido na mesma – no tribunal da área da sua residência para a ela ser chamado por meio de citação). Mas nem sempre a atribuição de eficácia à sentença estrangeira visa a possibilidade de a fazer impor a outrem; de a fazer valer contra outrem. Com efeito, situações há em que com atribuição de eficácia à sentença estrangeira apenas se pretende tornar efectivas no território nacional as situações definidas na sentença estrangeira em favor do próprio peticionante, sem que haja qualquer confronto com terceiro. Ora nesses casos a acção de revisão não se estabelece numa relação processual antagónica, em termos de autor/réu, requerente/requerido, mas numa simples demanda ao Estado de atribuição de eficácia à sentença estrangeira; ao reconhecimento da situação por ela definida. Pelo que a mesma não terá qualquer sujeito a ocupar o lado passivo da relação processual (abstraindo aqui do papel do MP enquanto defensor da legalidade e dos princípios de ordem pública). O caso paradigmático dessa situação é o pedido de revisão de sentença estrangeira de divórcio formulado por ambos os ex-cônjuges.” Relativamente ao requisito da alínea f) - ordem pública internacional do Estado Português -, os princípios da ordem pública internacional do Estado Português são princípios enformadores e orientadores, fundantes da própria ordem jurídica portuguesa, que de tão decisivos que são, jamais podem ceder. Por outro lado, tem-se em vista o resultado concreto da decisão, ou seja, o dispositivo da sentença e não os seus fundamentos – cf. neste sentido, Ferrer Correia, Lições de Direito Internacional Privado, I, Almedina, 2000, pág. 483 apud acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-05-2015, relator Gabriel Catarino, processo n.º 657/13.2YRLSB.S1 – “[…] não é, portanto, a decisão propriamente que conta, mas o resultado a que conduziria o seu reconhecimento. A decisão pode apoiar-se numa norma que, considerada em abstracto, se diria contrária à ordem pública internacional do Estado português, mas cuja aplicação concreta o não seja. Ao invés, pode a lei em que se apoiou a decisão não ofender, considerada abstractamente, a ordem pública, mas a sua aplicação concreta assentar em motivos inaceitáveis.” A ordem pública internacional do Estado Português não se confunde com a sua ordem pública interna: enquanto esta se reporta ao conjunto de normas imperativas do nosso sistema jurídico, constituindo um limite à autonomia privada e à liberdade contratual, a ordem pública internacional restringe-se aos valores essenciais do Estado português. Só quando os nossos interesses superiores são postos em causa pelo reconhecimento duma sentença estrangeira, considerando o seu resultado, é que não é possível tolerar a declaração do direito efectuada por um sistema jurídico estrangeiro. De modo que só quando o resultado dessa sentença choque flagrantemente os interesses de primeira linha protegidos pelo nosso sistema jurídico é que não se deverá reconhecer a sentença estrangeira – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18-11-2008, relatora Sílvia Pires, processo 03/08 em www.colectaneadejurisprudencia.com; acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21-02-2006, relator Oliveira Barros, acima referido; de 26-06-2009, relator Paulo Sá e de 23-10-2014, processo n.º 1036/124YRLSB.S1, relator Granja da Fonseca. Como se discorre no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2008, relator Paulo Sá, processo n.º 07A4790: “O conceito de ordem pública internacional difere do de ordem pública interna […]. Esta restringe a liberdade individual. Aquela limita a aplicabilidade das leis estrangeiras. Por isso, a ordem pública internacional é uma excepção ou limite à aplicação de uma norma de direito estrangeiro, fundada no interesse do Estado local (lex fori). “Uma lei de ordem pública interna deve sempre ser aplicada pelo juiz do Estado local, ao passo que uma lei de ordem pública internacional tem a sua aplicação dependente de uma regra de conflitos local lhe atribuir ou não competência, podendo, portanto, ser aplicada ela ou uma lei estrangeira. Assim, nos Estados que admitem o princípio locus regit actum, a lei reguladora da forma externa dos actos é uma lei de ordem interna, devendo ser aplicada pelo juiz a lei do seu país ou uma lei estrangeira, segundo o lugar onde o acto tenha sido praticado; e nos Estados que proíbem a poligamia, a lei que impede um segundo casamento sem que o primeiro tenha sido dissolvido, é uma lei de ordem pública internacional que o juiz deve aplicar sempre, quer se trate de um súbdito do Estado local, quer se trate de súbditos de um Estado que admita a poligamia.” (v. MACHADO VILLELA, op. cit., p. 568.) «O conteúdo da noção de ordem pública internacional é forçosamente impreciso e vago. Ordem pública internacional é um conceito indeterminado, um conceito que não pode ser definido pelo seu conteúdo, mas só pela sua função: como expediente que permite evitar que situações jurídicas dependentes de um direito estrangeiro e incompatíveis com os postulados basilares de um direito nacional venham inserir-se na ordem sociojurídica do Estado do foro e fiquem a poluí-la.»” Não existindo uma fórmula exacta para delimitação do conceito de ordem pública internacional, o juiz deve seguir uma linha de orientação com vista a aferir se a lex fori deve ou não ser considerada de ordem pública internacional, de tal forma que serão de ordem pública internacional as leis relativas à existência do Estado e essencialmente divergentes (divergência profunda) da lei estrangeira normalmente competente para regular a respectiva relação jurídica, as quais devem ser leis rigorosamente imperativas e que consagram interesses superiores do Estado. Os interesses a atender são os princípios fundamentais da ordem jurídica portuguesa. No entanto, estes princípios devem também ser observados pelas leis de ordem pública interna, sendo que nem todas as normas de ordem pública interna são normas de ordem pública internacional. Logo, para que a excepção de ordem pública internacional deva intervir é necessário que as disposições da lex fori essencialmente divergentes da lei estrangeira normalmente aplicável sejam fundadas em razões de ordem económica, ético-religiosa ou política. Atente-se no que se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2008 já acima mencionado: “Assim, por exemplo, são leis de ordem pública internacional a expropriação sem indemnização (confisco), as leis que proíbem a poligamia e que impedem um segundo casamento sem que o primeiro tenha sido dissolvido (e ditada por razões morais), e também teria de intervir a reserva de ordem pública internacional se a aplicação do direito estrangeiro atropelasse grosseiramente a concepção de justiça material como o Estado do foro a entende, abalando os próprios fundamentos da ordem jurídica interna, pondo em causa interesses da maior transcendência e dignidade, que choquem a consciência, como seria o caso de lei estrangeira que admitisse a morte civil ou a escravidão, ou a norma estrangeira que estabelecesse como impedimento à celebração do casamento a diversidade de raça ou de religião, ou a aceitação do repúdio por um marido muçulmano de uma esposa portuguesa, sem que esta tenha prestado o seu consentimento. Mas já não é uma lei de ordem pública internacional, mas de ordem pública interna, a lei que exige a forma escrita para o contrato de arrendamento urbano que, de acordo com o princípio locus regit actum admitido pelo nosso direito, só interessa aos arrendamentos celebrados em Portugal, e cujo fim a que obedeceu a dita norma em nada é comprometido ou atraiçoado pelo facto de em Portugal ser reconhecido como válido um arrendamento urbano celebrado verbalmente. Estão fora do âmbito da ordem pública internacional as leis políticas, as leis penais, as leis de polícia e de segurança, e todas as leis de direito público, visto que as leis de ordem pública internacional que interessam ao direito internacional privado, não podem deixar de ser o direito privado (civil ou comercial) do país do tribunal onde a questão se coloca, porque o recurso ao conceito de ordem pública internacional significa precisamente que se está em presença de um caso de competência normal da lei estrangeira designada pelo DIP da lex fori.”. Têm sido referidas como características da ordem pública internacional, para além da sua natureza nacional (as exigências da ordem pública internacional variam de Estado para Estado, segundo os conceitos dominantes em cada um deles), a excepcionalidade, a imprecisão e actualidade (ou mobilidade, o que revela que as leis de ordem pública internacional têm um cunho nacional, são função das concepções no tempo e no espaço do País onde a questão se põe, hão-de vigorar na ocasião do julgamento, e podem deixar de o ser e vice-versa, visto que podem variar de acordo com a modificação das exigências do interesse geral) – cf. Ferrer Correia, apud acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2008, já referido. Em reforço do assim explanado adita-se a seguinte passagem, por esclarecedora, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-09-2017, relator Alexandre Reis, processo n.º 1008/14.4YRLSB.L1.S1: “A ordem pública internacional de qualquer estado inclui: (i) os princípios fundamentais, relativos à justiça ou moral, que o Estado deseja proteger mesmo quando ele não está directamente em causa (ii) regras concebidas para servir os interesses políticos, sociais ou económicos essenciais do Estado, sendo estas conhecidas como “lois de police” ou “regras de ordem pública” […] Em termos muito genéricos, o conceito da ordem pública internacional caracteriza-se pela sua […] imprecisão, pelo cariz nacional das suas exigências […] pela excepcionalidade […] pela flutuação e pela actualidade […] e pela relatividade – intervém em função das circunstâncias do caso concreto e, particularmente, da intensidade dos laços entre a relação jurídica em causa e o Estado português. […] é latamente consensual a ideia de que o conteúdo dessa cláusula é enformado pelos princípios estruturantes da ordem jurídica, como são, desde logo, os que pela sua relevância, integrem a constituição em sentido material, pois são as normas e princípios constitucionais, sobretudo, os que tutelam direitos fundamentais, que não só informam mas também conformam a ordem pública internacional: a Constituição reflecte os valores mais importantes que conformam o plano estrutural ou a ordem jurídica fundamental de uma comunidade nacional, pelo que é nas normas de hierarquia constitucional que repousa a ordem pública internacional do Estado […] O mesmo sucede, entre nós, com os princípios fundamentais de Direito da União Europeia. E são, ainda, referenciados como integrando a ordem pública internacional de cada Estado, princípios fundamentais como os da boa-fé, dos bons costumes, da proibição do abuso de direito, da proporcionalidade, da proibição de medidas discriminatórias ou espoliadoras, da proibição de indemnizações punitivas em matéria cível e os princípios e regras basilares do direito da concorrência, tanto de fonte comunitária quanto de fonte nacional.” Em primeiro lugar, há que ter presente que no que respeita ao requisito da alínea a) do art. 980º do CPC, o Tribunal português tem de adquirir, documentalmente, a certeza do acto jurídico vertido na decisão revidenda, mesmo que não plasmada em sentença na acepção pátria do conceito, devendo aceitar a prova documental estrangeira que suporte aquela decisão, ainda que formalmente não seja um decalque daquilo que na lei interna nacional preenche o conceito de sentença – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-03-2011, relator Fonseca Ramos, processo n.º 214/09.8YRERVR.S1. É conhecida a divergência jurisprudencial relativamente ao alcance do termo decisão relevante para efeitos do art. 978.º do CPC, questão apreciada, designadamente, pelos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Maio de 2013, no processo n.º 687/12.1YRLSB.S1, e de 25 de Junho de 2013, no processo n.º 623/12.5YRLSB.S1, concluindo-se em cada um deles que abrange casos de “emissão formal da vontade da entidade administrativa responsável pelo acto, ainda que de carácter meramente homologatório”, e casos em que não há exactamente uma emissão formal de vontade - em que há, tão-só, “um acto caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido”. Por sua vez, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-01-2019, relator Alexandre Reis, processo n.º 896/18.0YRLSB.S1, a propósito da escritura pública declaratória de união estável, no Brasil, foi afirmado o seguinte: “Uma vez emitida pela autoridade administrativa […] legalmente competente para o efeito, uma tal escritura pública tem, no ordenamento jurídico daquele país, força igual à de uma sentença que reconheça uma «união estável homoafetiva» e, assim, deve ser considerada como uma decisão sobre direitos privados abrangida pela previsão do art. 978º, nº 1, do CPC, carecendo de revisão para produzir efeitos em Portugal. Na verdade, «[o] critério a ter em conta para a sujeição ao processo de revisão assenta na natureza da decisão – importando avaliar se a “decisão” estrangeira produz efeitos idênticos ou equivalentes a uma decisão judicial propriamente dita –, mostrando-se não relevante o órgão de que emana, dado que cada Estado é livre em definir as matérias que cabem na competência dos tribunais, não se mostrando o respectivo critério uniforme em todos os Estados». Como imediatamente se constata pela leitura dos respectivos requisitos enunciados no art. 980º do CPC, a revisão do conteúdo da dita “decisão” (escritura) estrangeira, com vista a operar efeitos jurisdicionais na ordem jurídica nacional, envolve, tão só, a verificação da sua regularidade formal ou extrínseca, não pressupondo, por isso, a apreciação dos fundamentos de facto e de direito da mesma. Ora, relativamente à escritura em apreço, verifica-se que concorrem as condições indicadas sob as alíneas a) e f) do citado artigo, porque não se suscitam dúvidas sobre a autenticidade do documento onde a mesma consta nem sobre a sua inteligência e, ainda, porque o seu conteúdo (união de facto de pessoas do mesmo sexo), em si, não é incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português. E também se não apura, através dos meios previstos no art. 984º do mesmo código, a falta de observância de qualquer um dos requisitos indicados sob as demais alíneas daquela outra norma (980º), designadamente a d).” Este entendimento, com adução de outros argumentos, obteve reflexo nos acórdãos desta Relação de 24 de Outubro e de 21 de Novembro de 2019, relator Pedro Martins, processos n.ºs 2403/19.8YRLSB.L1-2 e 1429/19.6YRLSB-2, onde, em síntese, se considera que a expressão “decisões” usada pelo art. 978º, n.º 1 do CPC vem sendo entendida como “acto caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido” e tem sido com esse entendimento amplo da expressão que vêm sendo sistematicamente admitidas em Portugal as escrituras notariais de divórcio consensual, realçando, quanto a estas, que não há qualquer intervenção do notário/tabelião, para além da elaboração da escritura, e que ele nada homologa, servindo a escritura de divórcio para o registo civil do acto como se fosse uma sentença. Constitui entendimento, crê-se, uniforme nos tribunais portugueses que uma decisão de uma entidade administrativa estrangeira, competente no país onde foi proferida a decisão a rever, ainda que não assuma a natureza de entidade jurisdicional, mesmo não sendo qualificável como “sentença”, é, apesar disso, passível de revisão e confirmação pelo Tribunal da Relação no âmbito de um processo desta natureza. Exemplo típico disso é o caso das escrituras públicas de divórcio consensual, admitidas à luz do ordenamento jurídico brasileiro, e que são comummente revistas e confirmadas em Portugal, sem suscitar qualquer objecção, e em que não existe igualmente uma verdadeira e própria decisão (jurisdicional ou administrativa) decretando os efeitos de dissolução do vínculo matrimonial entre os outorgantes. Tendo presente a admissibilidade que vem sendo assumida quanto à possibilidade de reconhecimento de decisões emitidas por entidade administrativa, há que aceitar que a decisão final proferida no procedimento administrativo de reconhecimento da maternidade socioafectiva, emitida pela entidade brasileira competente para o efeito, com o respectivo ingresso no registo civil, se apresenta como decisão susceptível de revisão no contexto do processo especial de revisão de sentença estrangeira, pelo que se impõe, agora, atentar no regime jurídico brasileiro atinente à filiação socioafectiva. No Título VIII, intitulado Da Ordem Social, Capítulo VII sob a epígrafe Da Família, da Criança, do Adolescente, do Jovem e do Idoso, estatuem os artigos da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: “Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 1º O casamento é civil e gratuita a celebração. § 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. § 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. § 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. § 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos. § 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio. § 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. § 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. Artigo 227º É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. […] § 5º A adoção será assistida pelo poder público, na forma da lei, que estabelecerá casos e condições de sua efetivação por parte de estrangeiros. § 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. […]” Com esta redacção da norma constitucional brasileira, designadamente da constante do seu artigo 227º, relativizou-se o papel fundamental da origem biológica no estabelecimento da filiação que até aí vigorava, desde logo pela aceitação de que todos os filhos são dotados de iguais direitos e deveres. Como referem Norberto Luiz Nardi, Marília Possenatto Nardi e Vinicius Possenatto Nardi, in Da Evolução da Família: Suas Perspectivas e Crises de Paradigmas. Da Diversidade Familiar Alicerçando a Família Contemporânea, Aberta, Plural e Afetiva, pág. 16[3]: “A Constituição Federal de 1988 revolucionou e expandiu o conceito de família, alargando os modelos de entidade familiar. No entanto, a família contemporânea ao consagrar a diversidade e pluralidade familiar, ampliou os núcleos familiares, desconstruiu os paradigmas alicerçados no conservadorismo, valorizando as relações das pessoas, consagrando o afeto e a felicidade dos envolvidos. Assim, além da família matrimonial, da informal e da monoparental, novos liames restaram consagrados, protegendo a família anaparental, a reconstituída, a paralela, a ampliada e plural, atribuindo efeitos jurídicos a todas formas e, finalmente, reconhecendo a família homoafetiva. O novo modelo familiar vem pautado nos princípios da dignidade humana, da solidariedade familiar, da igualdade e da liberdade, da afetividade e da autonomia de vontade, consagrando a igualdade da filiação, do jovem, do idoso e da pessoa com deficiência. Nessa perspectiva, a família atual se insere na prevalência da busca da felicidade, da promoção dos novos valores, na construção dos relacionamentos e amor, molas propulsoras da concepção familiar.” Assim, a Constituição Brasileira de 1988 consagra a protecção à família quer seja baseada no casamento, na união de facto, quer seja a família natural, quer a família adoptiva, aceitando o estado de filiação biológico e não biológico e o direito de personalidade sob a perspectiva da origem genética. Como tal, se todos os filhos são dotados de iguais direitos e deveres, deixando de relevar a sua origem, perdeu sentido a premência da verdade biológica enquanto razão de ser da filiação. Por sua vez o Código Civil Brasileiro estatui: Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem. […] CAPÍTULO II – Da Filiação Art. 1.596. Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I – nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; II – nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; III – havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV – havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido. […] Art. 1.604. Ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro. Art. 1.605. Na falta, ou defeito, do termo de nascimento, poderá provar-se a filiação por qualquer modo admissível em direito: I – quando houver começo de prova por escrito, proveniente dos pais, conjunta ou separadamente; II – quando existirem veementes presunções resultantes de fatos já certos CAPÍTULO III – Do Reconhecimento dos Filhos Art. 1.609. O reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento é irrevogável e será feito: I – no registro do nascimento; II – por escritura pública ou escrito particular, a ser arquivado em cartório; II – por testamento, ainda que incidentalmente manifestado; IV – por manifestação direta e expressa perante o juiz, ainda que o reconhecimento não haja sido o objeto único e principal do ato que o contém. Parágrafo único. O reconhecimento pode preceder o nascimento do filho ou ser posterior ao seu falecimento, se ele deixar descendentes. Art. 1.610. O reconhecimento não pode ser revogado, nem mesmo quando feito em testamento.” A filiação é a relação de parentesco que se estabelece entre duas pessoas, em que uma é considerada filha da outra, sendo que o direito brasileiro, em conformidade com os normativos constitucionais e legais supra transcritos, atende à filiação que decorre da lei nas seguintes situações: i.-Filiação biológica, atinente a ambos os pais, resultante de relação de casamento ou união estável ou relativa a único pai ou mãe biológicos, na família monoparental; ii.- Filiação não biológica, relativa a ambos os pais, advinda de adopção regular ou relativa a pai ou mãe que adoptou exclusivamente o filho; e iii.- Filiação não biológica face ao pai que autorizou a inseminação artificial heteróloga. Em todas estas situações, a convivência familiar e a afectividade são presumidas ainda que, na realidade, não se verifiquem. Acresce que quando alguém assume o papel de pai ou mãe perante outrem que como seu filho se comporta, constitui-se a posse do estado de filiação, existam ou não vínculos biológicos entre eles, ou seja, ocorre posse de estado através da exteriorização da convivência familiar e da afectividade, o que no direito brasileiro se encontra na adopção de facto em que se converte a guarda dos filhos de criação (designada de “adopção à brasileira”, isto é, a declaração falsa e consciente de paternidade e maternidade de criança nascida de outra mulher, casada ou não, sem observância das exigências legais para adopção). Por força do normativo constitucional brasileiro do art.º 227º supra transcrito, ainda que o registo assim lavrado seja falso, compete ao Estado, à sociedade e à família assegurar à criança o direito à convivência familiar, que deverá prevalecer sobre a verdade do registo civil, isto é, a invalidade do registo assim alcançado não pode ser considerada se atingir o estado de filiação estabelecido por longos anos de convivência familiar. Assim, em consonância com a Convenção sobre os Direitos da Criança adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989, cujo artigo 3º, n.º 1 estabelece que todas as acções relativas aos menores devem considerar, primordialmente o interesse superior da criança, o direito brasileiro coloca o interesse do menor no centro do conflito entre a filiação biológica e a não biológica ou socioafectiva, resultante de posse de estado de filiação, de modo que será de acordo com esse critério que se decidirá, em cada caso concreto, se a realização pessoal da criança estará melhor assegurada entre os pais biológicos ou entre os pais não biológicos. De todo o modo, o direito brasileiro, reconhecendo o estado de filiação oriundo da estabilidade dos laços afectivos construídos no dia-a-dia de pai e filho, enquanto fundamento da atribuição de paternidade ou maternidade, não afasta o direito de cada pessoa ao conhecimento da sua origem genética, referindo que se trata de duas situações distintas: a primeira tem natureza de direito da família e a segunda, de direito de personalidade. Assim, cada pessoa tem o direito fundamental, enquanto direito de personalidade, de conhecer a sua origem biológica para, nomeadamente, poder adoptar as medidas preventivas de preservação da saúde e da vida, o que constitui direito pessoalíssimo, mas que não necessita de estar inserido numa relação de família para ser protegido. Uma coisa é investigar a origem genética e outra é a investigação de paternidade, sendo que esta deriva do estado de filiação, que pode ou não ter origem biológica. Como refere Paulo Luiz Netto Lôbo, in Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção necessária, pág. 13[4]: “A origem biológica presume o estado de filiação, ainda não constituído, independentemente de comprovação de convivência familiar. Neste sentido, a investigação da origem biológica exerce papel fundamental para atribuição da paternidade ou maternidade e, a fortiori, do estado de filiação, quando ainda não constituído. Todavia, na hipótese de estado de filiação não biológica já constituído na convivência familiar duradoura, comprovado no caso concreto, a origem biológica não prevalecerá. Em outras palavras, a origem biológica não se poderá contrapor ao estado de filiação já constituído por outras causas e consolidado na convivência familiar (Constituição, art. 227).” A filiação socioafectiva consiste no reconhecimento de um indivíduo como filho, com base num vínculo de afecto socialmente notório, provado através da posse de estado de filho, ou seja, a filiação socioafectiva decorre da convivência familiar, independentemente da origem do filho. Contudo, há que realçar que não é o simples afecto que se impõe como fonte de direito da família. A afectividade tem de encontrar expressão na realidade social aferível. Assim, refere Atalá Correia, in Insuficiência da Afetividade como critério de determinação da Paternidade, Revista de Direito Civil Contemporâneo 2018 -RDCC 14, pág. 344[5]: “Não se pode dizer que a afetividade é a fonte da família, mas apenas que há uma relação frequente, mas não necessária, entre uma coisa e outra. Nem toda família advém do afeto e, por outro lado, há afeto onde não há família. O que parece certo, portanto, é que o amor, por vezes, leva certas pessoas a adotarem um comportamento socialmente típico de família. Elas estão – na linguagem jurídica – na posse do estado familiar. Na fórmula da socioafetividade deve haver equilíbrio entre comportamento típico, representado pelo prefixo socio da expressão em questão, e a afetividade propriamente dita. Assim, aquilo que entre nós era usualmente tratado por posse no estado familiar passou mais recentemente a ser designado por socioafetividade ou simplesmente por afetividade. A escolha das expressões pela doutrina talvez esconda, conscientemente ou não, algum romantismo. Ao colocar o afeto no centro das relações familiares, somos lembrados de que o amor deveria pautar a conduta humana nesse campo social, mas a ciência deve ser cética e é seu papel lembrar que o comum nem sempre é necessário. Com todas essas considerações, é possível perceber que o afeto não dá substrato fático à existência de situações jurídicas de direito de família. De nada vale se não for expresso. Não é a vontade ou o afeto, mas sua declaração que vincula. Na ausência de manifestações expressas, o comportamento social típico dá embasamento à família.” Aquilo que se pretende com o reconhecimento da filiação socioafectiva – filiação que se constitui na convivência familiar, independentemente da origem do filho – é transitar do campo meramente social ou de facto (o tratar outrem como filho) para o mundo do direito, onde esse tratamento se transmuta em facto jurídico e autoriza o estabelecimento de uma relação jurídica de filiação, sendo que inicialmente seria necessária uma acção para reconhecimento dessa filiação, que, uma vez reconhecida, importa efeitos jurídicos pessoais e patrimoniais, como a responsabilidade parental, o direito ao nome, reconhecimento da historicidade vivida e o direito sucessório. Os efeitos da filiação socioafectiva serão os mesmos da filiação biológica, ou seja, o filho socioafectivo sai da responsabilidade jurídica parental dos progenitores e fica sob a responsabilidade jurídica parental dos pais socioafectivos; no registo de nascimento passam a figurar os nomes dos pais socioafectivos e pode ter o sobrenome alterado; passará a ter relações de parentesco com toda a família dos pais socioafectivos fazendo surgir o direito recíproco de sucessão nos bens em caso de morte. Simultaneamente, o filho socioafectivo também passa a ter obrigações legais para com os seus pais afectivos, como a obrigação de alimentos e prestação de cuidados. Como refere Elisete Sileny Jacinto de Almeida, in Parentesco Socioafetivo - Possíveis contributos do Direito brasileiro para um novo paradigma no Direito português[6]: “[…] com o reconhecimento judicial da filiação socioafetiva, surgirão efeitos pessoais, como o aparecimento dos vínculos de parentesco entre pais e filhos socioafetivos e entre filhos e parentes dos pais socioafetivos, tanto na linha reta, como na linha colateral. Tal efeito se reproduzirá quanto aos impedimentos matrimoniais até à 4ª linha colateral de parentesco socioafetivo. Em termos de registo, serão anotados os nomes dos pais e dos avós socioafetivos, excluindo-se totalmente qualquer menção aos genitores no extrato da certidão, inclusive, o filho socioafetivo poderá adotar os sobrenomes dos pais socioafetivos, permanecendo apenas as informações biológicas, quando existam, no assento do registo civil. Também surgirá a responsabilidade parental, caso esta já não exista decorrente de um ato neste sentido, como é o caso do pedido de guarda. Esta responsabilidade parental terá duas etapas: uma inicial, em que os responsáveis se ocuparão pelo cuidado na educação, alimentação, nutrição e património do filho até atingir a maioridade, ou não cessará, caso o filho seja incapaz. E uma segunda etapa, em que caberá ao filho cuidar para que os pais tenham uma boa velhice, zelando pelo seu bem-estar, saúde e, se necessário, na administração do património, sendo-lhe, inclusive, se for caso disso, possibilitada a nomeação judicial como curador.” Como se disse, a Constituição brasileira de 1988 iniciou o reconhecimento legal da afectividade e, posteriormente, coube aos tribunais um papel decisivo na construção desse conceito e na aceitação da socioafectividade como fundamento bastante para o estabelecimento do vínculo parental, de modo que a afectividade constitui hoje, no direito brasileiro, “o grande vetor dos relacionamentos familiares, constituindo-se no novo paradigma, sendo, no cenário brasileiro, princípio contemporâneo do direito de família” – cf. Ricardo Calderón, Princípio da Afetividade no Direito de Família, pág. 141[7]. Enquanto a concepção clássica de família estava intrinsecamente ligada à ideia de legitimidade associada ao matrimónio e por via dos laços biológicos e registais, a promoção da afectividade a ponto nevrálgico das relações familiares, originando uma entidade familiar consubstanciada pela afectividade, estabilidade e ostentabilidade, em que a família actual está centrada na viabilização da realização da afectividade de cada um dos seus elementos, conduziu à necessidade de solucionar litígios complexos no âmbito do direito da família e que não se encontravam regulados, tal como sucedeu com as uniões estáveis (homo e heteroafectivas), com os parentescos socioafectivos, os casos de multiparentalidade, inseminações artificiais, famílias simultâneas, entre outras. Seja como for, o reconhecimento da relevância jurídica da afectividade exige a identificação de factos concretos que revelem, em termos factuais, uma afectividade jurídica objectiva, isto é, a presença de situações representativas de uma expressão de afectividade reveladas por factos sociais que a indiquem e o apuramento de uma dimensão subjectiva atinente ao sentimento em si, que, por regra, se presumirá a partir da dimensão objectiva. Nesta senda, o Superior Tribunal de Justiça do Brasil, na decisão proferida em 23-05-2017, RESP 1.613.641/MG, 3ª Turma, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, confirmou a manutenção da paternidade com base no vínculo socioafectivo, num caso em que estava demonstrada a inexistência de descendência biológica entre pai e filho, o que fez considerando o registo da filiação associado a uma convivência socioafectiva de catorze anos, ou seja, a situação fáctica revelava a posse de estado de filho, de modo que a manutenção da filiação socioafectiva, mesmo com a prova da ausência de vínculo biológico, está em conformidade com o sentido civil-constitucional de filiação apurado pelo direito de família brasileiro actual, que reconhece que a paternidade não decorre apenas da descendência genética. De igual modo, já em 2016, o Supremo Tribunal Federal, a propósito da afectividade, aceitou a tese da multiparentalidade (cf. Repercussão Geral 622, que teve como base o REXT 898060/SC, Rel. Min. Luiz Fux[8], tendo o pleno do STF aprovado a tese com o seguinte teor: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com todas as suas consequências patrimoniais e extrapatrimoniais”). Daqui deriva para o Direito Brasileiro a aceitação da possibilidade de cumulação de uma paternidade socioafectiva simultânea com uma paternidade biológica, mantendo-se ambas em determinado caso concreto, admitindo, com isso, a possibilidade da existência jurídica de dois pais, ou seja, o Supremo Tribunal Federal reconhece a multiparentalidade no direito de família brasileiro. Na sequência destas decisões e do avanço do direito de família brasileiro, o Conselho Nacional de Justiça[9] emitiu dois provimentos, com os números 63, de 14 de Novembro de 2017 e 83, de 14 de Agosto de 2019, que passaram a regular a possibilidade de reconhecimento extrajudicial da filiação socioafectiva, isto é, directamente no cartório do registo civil, sem necessidade de acção judicial, desde que verificados certos requisitos, o que evidencia o papel da afectividade no direito brasileiro. Desde Novembro de 2017, com a publicação do Provimento n.º 63, de 14 de novembro de 2017, pelo CNJ, é possível efectuar, no Brasil, o reconhecimento voluntário da paternidade ou maternidade socioafectiva directamente nos Cartórios de Registo Civil. Posteriormente, relativamente à paternidade socioafectiva, o Provimento n.º 83, de 14 de Agosto de 2019, alterou a secção II, do Provimento n.º 63, de 14 de Novembro de 2017, dispondo na secção II, o artigo 10.º-A, o seguinte: Art. 10-A. A paternidade ou a maternidade socioafetiva deve ser estável e deve estar exteriorizada socialmente. § 1º O registrador deverá atestar a existência do vínculo afetivo da paternidade ou maternidade socioafetiva mediante apuração objetiva por intermédio da verificação de elementos concretos. § 2º O requerente demonstrará a afetividade por todos os meios em direito admitidos, bem como por documentos, tais como: apontamento escolar como responsável ou representante do aluno; inscrição do pretenso filho em plano de saúde ou em órgão de previdência; registro oficial de que residem na mesma unidade domiciliar; vínculo de conjugalidade - casamento ou união estável - com o ascendente biológico; inscrição como dependente do requerente em entidades associativas; fotografias em celebrações relevantes; declaração de testemunhas com firma reconhecida. § 3º A ausência destes documentos não impede o registro, desde que justificada a impossibilidade, no entanto, o registrador deverá atestar como apurou o vínculo socioafetivo. § 4º Os documentos colhidos na apuração do vínculo socioafetivo deverão ser arquivados pelo registrador (originais ou cópias) juntamente com o requerimento. III - o § 4º do art. 11 passa a ter a seguinte redação: § 4º Se o filho for menor de 18 anos, o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva exigirá o seu consentimento. Autorizou-se, deste modo, o reconhecimento voluntário da paternidade ou maternidade socioafectiva de pessoas com mais de 12 anos (cf. art. 10º com a redacção introduzida pelo provimento n.º 83, sendo que anteriormente a norma reportava-se a pessoa de qualquer idade). De acordo com o artigo 10.º-A, § 1.º, o registador tem de “atestar a existência do vínculo afetivo da paternidade ou maternidade socioafetiva mediante apuração objetiva por intermédio da verificação de elementos concretos”, sendo que o requerente demonstrará tal afectividade através de todos os meios em direito admitidos, tais como os expressos no artigo 10.º, § 2.º. A impossibilidade, devidamente justificada, da demonstração daqueles documentos, não impedirá o registo, no entanto o registador civil deverá demonstrar como apurou o vínculo socioafectivo (artigo 10.º, §§ 3.º e 4.º). Outra alteração teve lugar no que diz respeito à idade com que o filho pode dar o seu consentimento para o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafectiva, dado que de acordo com o disposto na secção II do Provimento em referência, artigo 11.º, § 4.º, se a pessoa a ser reconhecida tiver menos de 18 anos tal reconhecimento exige o seu consentimento. Face às alterações introduzidas na secção II do Provimento n.º 63, pelo Provimento n.º 83, de 14 de Agosto de 2019, as crianças com menos de 12 anos poderão formalizar os laços socioafectivos apenas pela via judicial (cf. art. 10º), sendo que anteriormente, no Provimento n.º 63, de 14 de novembro de 2017, esse reconhecimento estava autorizado a pessoas de qualquer idade. Para que o reconhecimento da filiação socioafectiva seja deferido extrajudicialmente há um procedimento a seguir: – Os interessados devem recorrer a um Cartório de Registo Civil; – O requerente tem de estar munido com o documento oficial de identificação com foto e com a certidão de nascimento da pessoa a ser reconhecida (artigo 11.º); – O registador irá proceder à minuciosa verificação da identidade do requerente, bem como de todos os documentos pessoais e, mediante colecta, em termo próprio, por escrito particular, à sua qualificação e assinatura (artigo 11.º, §§ 1.º e 2.º); – O registador civil deverá informar às partes que o acto é irrevogável (artigo 10.º, § 1.º); – Aferir se o requerente é maior de 18 anos (artigo 10.º, § 2.º); – Certificar que os envolvidos não são irmãos ou ascendentes (artigo 10.º, § 3.º); – Verificar se o pretenso pai (ou mãe) é 16 anos mais velho(a) que o filho a ser reconhecido; – Aferir a comprovação da posse de estado de filho (artigo 12.º); e – Conferir se não há um pedido de adoção (artigo 13.º); – Deve ainda realizar a colecta da anuência, pessoalmente, dos pais biológicos da pessoa a ser reconhecida, se a mesma tiver menos de 18 anos (artigo 11.º, §§ 3.º e 5.º); – Realizar a colecta do consentimento, igualmente pessoalmente, da pessoa a ser reconhecida, maior de 12 anos (artigo 11.º, §§ 4.º e 5.º). Na impossibilidade de manifestação válida dos envolvidos, o caso será apresentado ao juiz competente nos termos da legislação local (artigo 11.º, § 6.º). Além disso, existe ainda a possibilidade do reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafectiva “post mortem”, desde que se comprove a vontade do interessado em ser reconhecido como filho da pessoa falecida e que durante a convivência familiar em vida, o pai socioafectivo possuía a “inequívoca manifestação de vontade” (artigo 42.º, n.º 6 do Estatuto da Criança e Adolescente aprovado pela Lei n.º 8.069, de 13 de Julho de 1990.). Como referem Ricardo Calderón e Gabriele Bortolan Toazza, in Filiação Socioafetiva: Repercussões a Partir do Provimento 63 do CNJ, pág. 6[10]: “A filiação socioafetiva é reconhecida pelo direito brasileiro há mais de três décadas, tendo como precursor o artigo chamado “Desbiologização da Paternidade”, de João Baptista Villela, de 1979. Desde então doutrina e jurisprudência avançaram e densificaram o que se denomina como vínculo “socioafetivo” da filiação. Sinteticamente, é possível afirmar que a paternidade socioafetiva é a relação entre pai e filho que se constrói pela afetividade, cuidado, carinho e atenção ao longo da convivência familiar (comportamento social típico, convivência familiar duradoura e relação de afetividade familiar). Pelo relacionamento paterno-filial serão formadas responsabilidades e referenciais que corresponderão a elementos fundamentais na formação, construção e definição da identidade do indivíduo. Dessa forma, a relação entre pai e filho socioafetivo vai sendo reconhecida entre o grupo familiar e terceiros, na realidade concreta. Assim, esse vínculo socioafetivo deve estar demonstrado na realidade fática por tempo suficiente para permitir a consagração destas relações, ou seja, o seu registro é sempre a posteriori, após já restar devidamente configurado no mundo dos fatos. Atualmente, tais critérios se estendem, da mesma maneira, para as denominadas “maternidades socioafetivas””. Como se disse acima, a filiação socioafectiva acarreta direitos e deveres para todos os envolvidos a partir do momento em que é reconhecida e o filho reconhecido detém todos os direitos legais, em igualdade, com os demais filhos, não havendo, por isso, qualquer diferenciação entre filhos, independentemente da sua origem (cf. artigo 227.º, § 6.º, da Constituição de 1988). De acordo com o artigo 14.º do Provimento n.º 63, de 14 de novembro de 2017, na sua redacção originária, o reconhecimento da multiparentalidade extrajudicial exigia o registo limite de dois pais e de duas mães no campo da filiação no assento de nascimento, mas com as alterações introduzidas pelo Provimento n.º 83, de 14 de Agosto de 2019, relativas à secção II, o referido artigo 14.º autoriza expressamente pela via extrajudicial a inclusão de apenas um ascendente socioafectivo, seja do lado materno ou paterno. A inclusão de um segundo ascendente socioafetivo, seja do lado paterno ou materno, deverá, necessariamente, ser tramitada através da via judicial. Assim, a admissão da multiparentalidade pela via extrajudicial consiste, apenas, na inclusão de um ascendente socioafectivo ao lado de um ascendente biológico preexistente, podendo, v.g., ser dois pais (um biológico e um socioafectivo) e uma mãe (biológica). Esta opção do CNJ de limitar o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafectiva somente a um ascendente socioafectivo visará evitar eventuais “adoções à brasileira”, aumentando a segurança jurídica – cf. no sentido da admissibilidade da multiparentalidade, o artigo 14º do Provimento n.º 63, de 14 de Novembro de 2017; Ricardo Calderón e Gabriele Bortolan Toazza, op. cit., pág. 12 – “O art. 14 do Provimento dispõe que “o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva somente poderá ser realizado de forma unilateral e não implicará o registro de mais de dois pais e de duas mães no campo filiação no assento de nascimento”. Fica evidente pelo teor do seu art. 14, corroborado pelos “considerandos” iniciais do regramento, a possibilidade jurídica da multiparentalidade pelo referido procedimento. Assim, é inequívoco que este dispositivo torna possível o reconhecimento extrajudicial de relações multiparentais.”[11] O reconhecimento da multiparentalidade surge como concretização do princípio da dignidade da pessoa humana e assegura o respeito pelo princípio da afectividade, constituindo reflexo da opção da Constituição Federal Brasileira pela família socioafectiva no confronto com o laço biológico. Reconhecida a dupla parentalidade, o filho terá todos os direitos inerentes à filiação, incluindo os direitos sucessórios. Com efeito, se se pretende ter dois pais registais, um socioafectivo e outro biológico, o reconhecimento não visa usurpar, mas sim ampliar direitos. Apesar da discussão em redor desta questão e ausência de legislação, os tribunais brasileiros já tiveram oportunidade de decidir sobre o direito de alimentos, sucessão, entre outros direitos para os filhos socioafectivos. Norberto Luiz Nardi, Marília Possenatto Nardi e Vinicius Possenatto Nardi, in op. cit., pp. 305-310 esclarecem: “A partir do momento em que é reconhecida a afetividade como critério balizador do parentesco, o parentesco socioafetivo se incorpora no ambiente legal como um direito inerente a todos que preencham os requisitos, inclusive quanto aos direitos sucessórios, deixando de lado todo e qualquer liame de preconceito e primazia de relações biológicas de parentesco, podendo haver até a guarda de menor sendo conferida a parentes socioafetivos, desde que analisado o caso concreto (FARIAS, ROSENVALD, 2012). Atualmente podemos observar inclusive a preponderância da filiação socioafetiva em relação a verdade biológica, em respeito aos princípios constitucionais e do direito de família, sobretudo o da dignidade da pessoa humana, ou seja, da preponderância do afeto sobre a consanguinidade. Importante salientar que uma vez que o filho foi reconhecido sem vício pelo indivíduo, fazendo nascer o vínculo civil ou socioafetivo, haverá o direito aos alimentos, tanto do pai para com o filho, como deste para com o pai (GONÇALVES, 2011). [… os genitores socioafetivos, mesmo em relação de multiparentalidade, estariam atrelados tanto às sanções, quanto ao exercício do poder familiar, caso haja violação, omissão etc. […] Desse modo, se a pessoa optou por estar presente no cotidiano da criança, assumindo a figura paterna ou materna, deverá agir com responsabilidade e atuar de forma a coibir qualquer tipo de ameaça ao bom desenvolvimento do menor. […] Desse modo, se existe o reconhecimento do filho socioafetivo diante da criança e da sociedade, nos parece totalmente natural que sejam herdeiros uns dos outros. A partir da filiação socioafetiva surge a responsabilidade com o menor, como se filho biológico fosse, e portanto, devem haver direitos de herdar e de receber alimentos uns dos outros. Assim, na família recomposta, formada por filiações socioafetivas, há uma estrutura familiar e como tal deve ser respeitada. Ainda nesse sentido, surge a dúvida do caso do filho socioafetivo não reconhecido no registro civil, e se nesse caso haveria necessidade de testamento para suceder. Nessa seara, a lei civil, em seu artigo 1.788, os herdeiros legítimos são aqueles oriundos da descendência, ascendência ou casamento. Assim, se a filiação socioafetiva for reconhecida, o herdeiro deverá ser considerado legítimo, dispensando a necessidade de testamentos e atos de última vontade.” Não obstante o reconhecimento legal da filiação socioafectiva no direito brasileiro, não se pode deixar de atentar nas vozes cautelosas que alertam para a necessidade de não conceder total primazia à filiação socioafectiva, alertando para a circunstância de a particularidade das situações em referência, sobremaneira da multiparentalidade, exigir que qualquer reconhecimento de uma situação de filiação socioafectiva dependa necessariamente da vontade das partes envolvidas por se estar no campo da autonomia privada, do livre exercício da autodeterminação e da privacidade, e não no campo da afectividade, desde logo porque o afecto não pode, por si só, ser vinculante, sobremaneira quando não é acompanhado da vontade ou esta se mostra viciada. Neste sentido, conclui Atalá Correia, Insuficiência da afetividade…, pág. 363: “[…] em conclusão, temos que: (i) o afeto não pode ser tomado em sentido subjetivo para fins jurídicos; (ii) não há uma norma a indicar que onde há afeto ali também deve haver direitos e obrigações, pois nem todas as relações de afeto têm conformidade familiar, a exemplo do namoro; (iii) a socioafetividade está vinculada ao reconhecimento de uma situação de fato da qual se pode inferir a vontade de constituição de uma relação familiar, sendo esta a vontade, expressa ou presumida – desde que unívoca e clara –, o fator constitutivo das situações jurídicas de direito de família; (iv) não há um princípio da afetividade em qualquer acepção do termo; (v) a filiação estabelece-se ora por critérios biológicos, ora por critérios socioafetivos, mas, neste último caso, trata-se de mera constatação fática que permite presumir a vontade de formar vínculo paterno-filial; e (vi) a autonomia privada permanece como regra central para entender os arranjos de filiação.” Caracterizado assim o reconhecimento da maternidade ou paternidade socioafectiva tal como consagrado no direito brasileiro e estando em causa o reconhecimento de uma decisão de reconhecimento da maternidade socioafectiva por parte da requerente relativamente à menor Maria Fernanda Aquino Freitas Scarcela, haverá que determinar se o reconhecimento dessa decisão conduzirá ou não a um resultado incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português. Em matéria de família, casamento e filiação, a Constituição da República Portuguesa[12] consagra vários princípios que confluem com o princípio da dignidade pessoa humana consagrado no seu artigo 1.º[13] e no artigo 1.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, como o direito a constituir família (art.º 36.º, n.º 1, primeira parte), o direito à celebração do casamento (art.º 36.º, n.º 1, segunda parte), o princípio da igualdade dos cônjuges quanto à sua capacidade civil e à manutenção e educação dos filhos (art.º 36.º, n.º 3), o princípio da atribuição aos pais do poder/dever de educação dos filhos e inseparabilidade dos filhos dos seus progenitores (art.º 36.º, n.ºs 5 e 6) e o princípio da não discriminação entre filhos nascidos na constância do casamento e fora do casamento (art.º 36.º, n.º 4). Além destes, contempla ainda o princípio da protecção da família (biológica e adoptiva) pelo Estado (cf. art.ºs 67.º e 36º, n.º 7 da CRP), o princípio da paternidade e da maternidade (art.º 68.º) e o princípio da protecção da infância (art.ºs 36.º, 67.º e 69.º), a que se associa o princípio do superior interesse da criança, expressamente mencionado no art.º 3º, n.º 1 da Convenção sobre os Direitos da Criança, e entendido, enquanto conceito vago e genérico, como forma de, com discricionariedade e bom senso, salvaguardar o exercício efectivo dos direitos da criança, ou seja, o direito da criança ao se desenvolvimento são e normal no plano físico, intelectual, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade. A CRP, no seu art.º 26º, n.º 1, estatui que a todos é reconhecido, entre outros, os direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, constituindo este normativo expressão directa do postulado básico da dignidade humana vertido no seu art.º 1º, sendo que a identidade pessoal é “aquilo que caracteriza cada pessoa enquanto unidade individualizada que se diferencia de todas as outras pessoas por uma determinada vivência pessoal”, sendo uma das suas componentes essenciais a identidade genética própria, onde se incluem os vínculos de filiação, no contexto dos quais se afirma o direito fundamental ao conhecimento e reconhecimento da paternidade e da maternidade – cf. Rui Medeiros e António Cortês, Constituição da República Anotada, Volume I, Jorge Miranda e Rui Medeiros, pág. 444. No contexto deste direito fundamental de conhecimento da paternidade e maternidade, refere-se no acórdão n.º 309/2016 do Tribunal Constitucional, de 18-05-2016, publicado no DR II Série de 8-09-2016, que apreciou a conformidade constitucional (aferindo-a positivamente) da norma do art.º 1 842.º, n.º 1, alínea c), do Código Civil, na redacção dada pela Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, no segmento que estabelece que a acção da impugnação da paternidade pode ser intentada pelo filho, no prazo de três anos contados desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe: “No âmbito normativo do direito à identidade pessoal reconhecido pela Constituição, além do direito natural à diferença de cada ser humano, decorrente do caráter único, indivisível e irrepetível de cada pessoa humana concreta, que tem expressão mais relevante no direito ao nome, inclui-se o direito à "historicidade pessoal", expresso na relação de cada pessoa com aquelas que lhe deram origem. Nesta dimensão relacional, em que a pessoa humana também se define em função de uma "memória" familiar conferida pelos antepassados, extrai-se o direito ao conhecimento da progenitura, de que resulta, além do mais, o direito à investigação da paternidade ou da maternidade (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª ed. pág. 462). Realmente, a atribuição do direito à identidade pessoal pressupõe e visa em primeira linha satisfazer os interesses próprios da pessoa que pretende conhecer a identidade dos seus progenitores e constituir o respetivo vínculo de filiação correspondente à verdade biológica. Como se considerou no Acórdão n.º 401/11, «a ascendência assume especial importância no itinerário biográfico, uma vez que ela revela a identidade daqueles que contribuíram biologicamente para a formação do novo ser. O conhecimento dos progenitores é um dado importante no processo de autodefinição individual, pois essa informação permite ao indivíduo encontrar pontos de referência seguros de natureza genética, somática, afetiva ou fisiológica, revelando-lhe as origens do seu ser. É um dado importantíssimo na sua historicidade pessoal. Como expressivamente salienta Guilherme de Oliveira, «saber quem sou exige saber de onde venho» (em "Caducidade das ações de investigação", ob. cit., pág. 51), podendo, por isso dizer-se que essa informação é um fator conformador da identidade própria, nuclearmente constitutivo da personalidade singular de cada indivíduo». O direito à identidade pessoal também pode ser titulado pelas pessoas que pretendem destruir o vínculo jurídico de filiação formado por presunção legal, com base num juízo de probabilidade, mas que não é correspondente à verdade biológica. É o que se verifica com a pretensão do marido da mãe em impugnar a paternidade presumida: «deve admitir-se que o direito à identidade pessoal engloba também, na sua esfera de proteção, o interesse em não manter um vínculo não correspondente à verdade biológica. Ele não atua só em sentido positivo, como direito de cada um a conhecer e a ver juridicamente reconhecido aquilo que é, mas também em sentido negativo, como direito de cada indivíduo de excluir, como fator conformador da identidade própria, aquilo que não é. Nessa medida, o marido da mãe também pode invocar, em abono da sua pretensão negatória da paternidade, o direito à identidade pessoal - no sentido de que tanto o direito à identidade pessoal com o direito ao livre desenvolvimento da personalidade podem ser invocados para "impugnar os laços jurídicos que sejam contrários à verdade biológica"» (Acórdão n.º 446/2010). O mesmo se diga em relação à pretensão da mãe um impugnar a paternidade presumida do marido: «o direito da mãe a ver juridicamente (e também socialmente) reconhecido que não é pai do filho, nascido e concebido na constância do matrimónio, quem a lei presume (artigo 1826.º, n.º 1, do CC) integra-se no âmbito de proteção do direito fundamental à identidade pessoal que o artigo 26.º, n.º 1, da CRP a todos reconhece. Este direito abrange um direito à historicidade pessoal, um direito ao conhecimento e ao reconhecimento da identidade dos progenitores, mas compreende também um «direito à verdade pessoal», no sentido de que «da pessoa não se afirme o que não seja verdade, mesmo que honroso» (Acórdão n.º 441/2013). Ao direito à identidade pessoal, nas dimensões referidas, pode associar-se o direito a constituir família, ou com ele também conflituar o direito à proteção da família constituída. O primeiro, consagrado no artigo 36.º, n.º 1 da Constituição, abrange, ao lado da família conjugal, a família natural, resultante do facto biológica da geração, o qual compreende o direito a estabelecer as correspondentes relações de paternidade e maternidade. O direito a constituir família reclama assim a disponibilização de meios jurídicos que permitam estabelecer o vínculo de filiação - ação de investigação de paternidade -, e recusa a existência de impedimentos desrazoáveis que impossibilitem ao filho biológico aceder ao estatuto jurídico correspondente. O segundo, garantido no 67.º, n.º 1 da Constituição, assegura a estabilidade das relações sociais e familiares e o sentimento de confiança que deve basear-se a relação parental, especialmente quando se trate de filhos nascidos na vigência do matrimónio. 11 - Não obstante a natureza jusfundamental de tais direitos, eles não são direitos absolutos, nem direitos que projetem sempre o mesmo grau de intensidade valorativa no confronto com outros valores e interesses também dignos de tutela constitucional. O direito ao conhecimento da paternidade biológica e ao estabelecimento do respetivo vínculo jurídico pode ser confrontado com valores e interesses conflituantes que também podem ser merecedores de tutela. Como tem sido salientado pela jurisprudência constitucional, a verdade biológica, que estrutura todo o sistema legal da filiação, não é um princípio dotado de valor absoluto, que o leve a sobrepor-se a todos os demais. Além de não se lhe atribuir autónoma dignidade constitucional, suscetível de fundamentar, por si só, um juízo de inconstitucionalidade (Acórdãos n.ºs 589/2007, 446/2010, 441/2013), pode ser contrariado para satisfazer outros interesses dignos de tutela, como o interesse do concreto filho, o interesse de não perturbar a "paz das famílias" ou a estabilidade sócio-afetiva de uma relação jurídica que não tenha fundamento em vínculos biológicos. É o que acontece quando o Código estabelece a paternidade do marido por presunção legal (artigo 1826.º) ou sujeita as ações de investigação de paternidade e de impugnação de paternidade a prazos de caducidade (artigos 1917.º e 1842.º), situações em que a "verdade jurídica" pode não ser coincidente com a "verdade biológica". Ora, não se estando perante direitos absolutos que não possam ser confrontados com valores e interesses conflituantes, a intervenção legislativa exige uma tarefa de harmonização dos interesses em oposição, ou mesmo a sua restrição. Assim, ao consagrar, em abstrato, prazos de caducidade do direito de investigar ou impugnar a paternidade, o legislador mais não faz do que procurar conciliar adequadamente o direito à identidade pessoal do filho, da mãe ou do marido da mãe, conforme for caso, com outros valores e interesses dignos de tutela constitucional, como o da proteção da família constituída ou da estabilidade da relação jurídica de parentesco.” Afere-se, na verdade, quer por força da protecção constitucional do direito à identidade pessoal e do direito à protecção da família, quer em virtude dos regimes da filiação (a filiação, relativamente à mãe, resulta do facto do nascimento e, quanto ao pai, presume-se em relação ao marido da mãe, e, nos casos de filiação fora do casamento, pelo reconhecimento – cf. art. 1796º, n.º 1 do Código Civil) e do estabelecimento da maternidade e paternidade (com previsão de averiguação oficiosa, interposição de acções de investigação ou de impugnação da maternidade e paternidade estabelecidas – cf. art.ºs 1807º, 1808º, 1814º e seguintes, 1826º, 1839º e seguintes, 1847º, 1869º e seguintes do Código Civil), a existência de um interesse estruturante do ordenamento jurídico português ao fazer coincidir a verdade jurídica com a verdade biológica, ainda que esta não revista a natureza de valor absoluto (efectivamente, o legislador ordinário afasta o princípio da verdade biológica em diversas situações, como por exemplo, com o impedimento do estabelecimento da filiação depois de decretada a adopção plena, cf. art.º 1987.º do Código Civil; a impossibilidade de impugnar a paternidade pelo cônjuge que consentiu na inseminação artificial, cf. art.º 1839.º; a sujeição a prazos de caducidade das acções de investigação de paternidade, bem como de impugnação de paternidade, cf. art.ºs 1817.º, 1842.º 1873.º do Código Civil; ou a exigência do consentimento para a perfilhação de filho maior emancipado, cf. art.º 1857.º). Importa, contudo, realçar que, em Portugal, por força do princípio da verdade biológica, as acções de investigação e de impugnação da paternidade ou de maternidade têm como fim a atribuição jurídica da paternidade ou maternidade do filho aos progenitores biológicos (por exemplo, no âmbito de uma acção de investigação de paternidade, enquanto acção fundada na posse de estado de filho consagrada na alínea a) do n.º 1 do artigo 1871.º do Código Civil, a respectiva posse de estado de filho serve como presunção do vínculo biológico), ainda que esse reconhecimento possa vir a não ter lugar face à existência de prazos de caducidade para a interposição das acções (sendo que relativamente à fixação destes prazos a jurisprudência portuguesa não tem sido uniforme quanto à consideração de que não ofendem o núcleo essencial dos direitos fundamentais mencionados, desde que se mostrem proporcionais ou razoáveis, à luz do princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 18.º, n.º 2, da CRP). Aliás, disso mesmo se dá conta no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 309/2016 acima mencionado, onde se realça um interesse de ordem pública no reconhecimento dos progenitores biológicos, enquanto relevante princípio de organização jurídico-social, tal como declarado no acórdão n.º 401/2011 desse mesmo tribunal: “O grau de importância e de intensidade valorativa que o Acórdão n.º 401/2011 deu à segurança jurídica, no processo de ponderação dos interesses concorrentes com o direito à identidade pessoal, assentou na seguinte fundamentação: «Mas, já num plano geral, não é possível ignorar que a constituição e a determinação integral do vínculo de filiação, abrangendo ambos os progenitores, corresponde a um interesse de ordem pública, a um relevante princípio de organização jurídico-social. O dar eficácia jurídica ao vínculo genético da filiação, propiciando a localização perfeita do sujeito na zona mais nuclear do sistema das relações de parentesco, não se repercute apenas na relação pai-filho, tendo projeções externas a essa relação (v.g. em tema de impedimentos matrimoniais). É do interesse da ordem jurídica que o estado pessoal de alguém não esteja amputado desse dado essencial. Daí, além do mais, a consagração da averiguação oficiosa de paternidade (artigos 1864.º e seguintes). E importa que esse objetivo seja alcançado o mais rápido possível, numa fase ainda precoce da vida do filho, evitando-se um prolongamento injustificado de uma situação de indefinição na constituição jurídica da relação de filiação. É do interesse público que se estabeleça o mais breve que seja possível a correspondência entre a paternidade biológica e a paternidade jurídica, fazendo funcionar o estatuto jurídico da filiação com todos os seus efeitos, duma forma estável e que acompanhe durante o maior tempo possível a vida dos seus sujeitos. Este interesse também tem projeção na dimensão subjetiva, como segurança para o investigado e sua família. Não deixa de relevar que alguém a quem é imputada uma possível paternidade - vínculo de efeitos não só pessoais, como também patrimoniais - tem interesse em não ficar ilimitadamente sujeito à "ameaça", que sobre ele pesa, de instauração da ação de investigação. Note-se que este interesse do suposto pai não é autotutelável, uma vez que nas situações de dúvida a realização de testes científicos exige a colaboração do suposto filho, além de que nas situações de completo desconhecimento, apesar de não se registar uma vivência de incerteza, a propositura da ação de investigação potencialmente instaurada largos anos volvidos após a procriação é de molde a "apanhar de surpresa" o investigado e a sua família, com as inerentes perturbações e afetações sérias do direito à reserva da vida privada.” Vigorando ao nível constitucional o direito fundamental à identidade pessoal, que abriga a identidade genética própria, não obstante, a lei ordinária acaba por aceitar situações em que a protecção da vida familiar demanda que se afaste essa procura da verdade biológica, como se retira da seguinte passagem do acórdão do Tribunal Constitucional a que se vem aludindo: “A atribuição da paternidade com base na regra geral de que o pai é o marido da mãe, baseada em juízos de normalidade e probabilidade, leva à constituição de uma relação de filiação que tem relevo no plano constitucional. Como referimos, a Constituição reconhece relevância específica à família, não apenas na dimensão individual-subjetiva dos direitos fundamentais dos membros que a integram, mas também como instituição que deve ser protegida, enquanto elemento estruturante da vida em sociedade. Assim, nesta dimensão institucional, também a família constituída entre pais e filhos, resultante do funcionamento da regra pater is est quod nuptias demonstrant, constitui um "elemento fundamental da sociedade" e um espaço de desenvolvimento da personalidade dos seus membros que deve ser protegido pelo Estado e pela sociedade. Ora, essa relação familiar, que pode ter uma duração e uma densidade afetiva e social consideráveis, seria posta em crise se a ação de impugnação da paternidade, que visa a destruição do vínculo formado por presunção legal, pudesse ser intentada a qualquer momento. Nessa eventualidade, comprometer-se-ia a vivência da comunidade familiar, os laços afetivos que ela cria, o sentimento de confiança que a cimenta, e a estabilidade das relações familiares e sociais. Por isso, a família enquanto unidade, incluindo naturalmente a vivência familiar, social e afetiva, não pode ficar numa situação de permanente precariedade, dependente da vontade futura e incerta de um dos seus membros. Não obstante a densidade do direito a conhecer as origens biológicas e o direito a viver em conformidade com aquilo que identitariamente se é, no outro polo da questão surge a necessidade de proteção da família constituída, a qual ficaria em risco se colocada numa situação de permanente incerteza, por sujeita a extinguir-se por ação, exercitável a todo o tempo, do filho presumido.” De todo o modo, não se pode deixar de relevar que a jurisprudência portuguesa continua a sustentar, no âmbito de tais acções judiciais, em observância do princípio da verdade biológica, que o superior interesse do filho é o de que a sua filiação, em regra, seja estabelecida em conformidade com a verdade biológica, correspondendo o estabelecimento desta, tal como reconhecido pelo Tribunal Constitucional, ao cumprimento de um interesse de ordem pública, enquanto elemento catalisador da organização jurídico-social vigente na sociedade portuguesa. É assim que, não obstante o possível reconhecimento da relevância da ligação socioafectiva em sede de estabelecimento da maternidade ou paternidade no direito português[14], seguro é que, em Portugal, as formas de reconhecimento de filiação são a filiação genética e a filiação adoptiva, não sendo reconhecida a filiação socioafectiva, nomeadamente, a posse de estado de filho, como fundamento do estabelecimento da paternidade ou maternidade, pelo que não deixa de se impor, enquanto direito fundamental constitucionalmente protegido, o direito à identidade pessoal, sob a vertente do conhecimento da genética própria, com reflexo em todo o sistema português de filiação, de modo que o reconhecimento de uma maternidade socioafectiva colidirá com este princípio fundamental do Estado Português. Neste sentido, atente-se no que refere Guilherme de Oliveira, Critérios Jurídicos da Parentalidade, in Textos de Direito da Família para Francisco Pereira Coelho, 2016, pp. 303-306[15]: “[…] as últimas décadas conduziram-nos aos avanços da genética que não permitem conservar as leis a que nos habituámos. Num curto período de tempo, algumas certezas e imposições legais assentes na imitação da natureza desmoronaram-se: a multiparentalidade é o caso. E deixando assim os legisladores a braços com as maiores perplexidades, só restará o caminho para a retirada e para deixar a livre escolha aos indivíduos e à sua regulação do caso concreto, ampliando a expressiva frase “a lei é a ausência de lei”. Talvez este caminho seja inevitável; e, seguramente, as sociedades hão de saber lidar com esses novos fenómenos, como sempre aconteceu. Mas pode ser temerário abandonar tão radicalmente, e em tão pouco tempo, as referências biológicas mais simples e consistentes que se conhecem – as noções biológicas de pai e de mãe. V.- O direito português contém os ingredientes típicos para a evolução. Não pode ignorar-se que o direito português, como a generalidade dos países próximos, contém os ingredientes típicos de onde partiu a evolução que outros países encetaram. Para sublinhar os mais importantes, pode dizer-se que, em Portugal, foi sempre relativamente tolerada a “perfilhação de complacência”, apesar das amplas (e até insólitas) possibilidades de impugnação que a lei sempre previu; é generalizado o instituto da adoção, que tem sido alvo de uma promoção considerável por parte do legislador; e também se tornou comum estabelecer a paternidade do marido da mulher que recorreu a inseminação com dador. Isto é, as hipóteses de constituição da paternidade com fundamento na vontade e na assunção das responsabilidades pelo cuidado são conhecidas há muito no direito português. Depois disto, os progressos da medicina da reprodução, aliados ao reconhecimento das uniões de facto e casamentos entre pessoas do mesmo sexo que o nosso Direito consagra, ampliam definitivamente as oportunidades para se vir a pretender a construção de uma parentalidade cada vez mais desligada do ancestral vínculo biológico, e a construção de uma multiparentalidade. VI.- Tal como está, o sistema português ainda não reconhece a “verdade sócio-afetiva” (a posse de estado de filho) como fundamento normal e suficiente para estabelecer a paternidade ou a maternidade; a tradicional posse de estado só serve como presunção do vínculo biológico, em ações de investigação de filiação (arts. 1816.º e 1871.º CCiv). O sistema português também não admite a dupla maternidade, que se tem apresentado, como vimos atrás, como a pretensão de duas mulheres levarem o seu nome ao registo civil, sendo uma a mãe biológica e a outra a sua cônjuge ou companheira em união de facto. E também não acolhe a multiparentalidade, que se tem apresentado no estrangeiro como o desejo de acrescentar um pai às duas mães; ou quando um progenitor se quer acrescentar ao pai (sócio-afetivo) que consta já do registo, e à mãe. A verdade é que, no que respeita à constituição do estado de filho, o direito português ainda segue a máxima antiga de que o interesse do filho “é pertencer ao pai cujo é”, com os desvios já mencionados. Também tem parecido dominante a ideia de que o interesse do filho reclama a inscrição no registo civil de um pai e uma mãe. Assim, a pretensão de constituir um vínculo baseado na vontade e numa relação afetiva, ou na promessa dela, ou a pretensão de constituir mais do que dois vínculos de maternidade ou de paternidade, ou ainda a pretensão de levar três nomes “parentais” ao registo civil, não têm tido suporte no direito português. A satisfação do “interesse superior da criança” – que tem sido alegada para justificar a evolução referida em vários sistemas jurídicos – ainda só pode ser obtida, em Portugal, através da atribuição das responsabilidades parentais – através da confiança a terceira pessoa (art. 1907.º CCiv), da instauração da tutela (art. 1921.º CCiv), do apadrinhamento civil (DL 103/2009, de 11 de setembro), ou da confiança em vista de adoção, ressalvada sempre a verificação dos requisitos legais próprios de cada instituto;” Como resulta do acima expendido, reconhecer uma sentença estrangeira equivale a conceder-lhe no Estado do foro, no todo ou em parte, os mesmos efeitos que lhe são atribuídos no Estado onde foi proferida, ou seja, os efeitos que dela decorrem segundo a lei do Estado onde foi proferida. Como se disse, o art. 984º do CPC impõe que o Tribunal averigúe oficiosamente a verificação da condição prevista na alínea f) do artº 980º do referido diploma legal, ou seja, um dos impedimentos que obsta a que se reconheça uma decisão estrangeira é a constatação de que o resultado desse reconhecimento produzirá uma violação dos princípios de ordem pública internacional do Estado português. A excepção de ordem pública é apreciada em relação ao momento em que se julga o litígio e a sua aplicação é, por regra, também ela excepcional, dado que permite ao julgador afastar o direito estrangeiro normalmente competente, de modo a evitar que, naquele caso concreto, se produza na ordem jurídica do foro um efeito que esteja com ela numa contradição insuportável. Como se afirmou também, compete ao juiz densificar esse conceito indeterminado aquando da sua aplicação, para aferir quais os princípios que integram a ordem pública internacional do Estado do foro naquele momento e que devem ser aferidos em função das concepções que vigoram no país. Como explica, o Prof. Dr. Luís de Lima Pinheiro a este propósito, a violação dos direitos fundamentais desencadeia necessariamente a actuação da ordem pública internacional contanto que se verifique uma conexão suficiente com Portugal, sendo que a sentença estrangeira é encarada como um acto jurisdicional, que pode ou não ser reconhecido; a confirmação tem por função conferir à sentença estrangeira um título de eficácia na ordem jurídica interna – cf. Regime Interno de Reconhecimento de Decisões Judiciais Estrangeiras, pp. 617-624[16]. Baptista Machado, Lições de Direito Internacional Privado, pág. 256, refere: “o juiz precisa de ter à sua disposição um meio que lhe permita precludir a aplicação de uma norma de direito estrangeiro, quando dessa aplicação resulte uma intolerável ofensa da harmonia jurídico-material interna ou uma contradição flagrante com os princípios fundamentais que informam a sua ordem jurídica. Esse meio ou expediente é a exceção de ordem pública internacional ou reserva da ordem pública” – apud acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 9-07-2020, relatora Teresa Sandiães, processo n.º 2818/19.1YRLSB-8. No caso em apreço, estão em causa normas de interesse e ordem pública que dispõem directamente sobre o estabelecimento e os efeitos da filiação. A decisão revidenda foi proferida no contexto de um procedimento administrativo de reconhecimento de filiação socioafectiva quanto à menor D, relativamente a quem estão estabelecidas a maternidade e a paternidade biológica, tendo sido reconhecida, além dos progenitores biológicos, a maternidade socioafectiva concernente à requerente, sendo adicionados ao registo civil os nomes dos avós socioafectivos. Em conformidade com o supra expendido, tem de se reconhecer que a verdade biológica é um dos princípios estruturantes de ordem pública do direito da filiação do Estado Português (ainda que sem expressa consagração constitucional), princípio prevalente, ainda que não absoluto, de modo que o nosso ordenamento jurídico tende para a correspondência da atribuição jurídica da filiação biológica com a filiação biológica efetivamente existente, isto é, pretende-se que o pai e a mãe juridicamente reconhecidos sejam, realmente, os progenitores, os pais biológicos do filho. Não obstante a existência de compressões a esse princípio já acima referidas, este não deixa de prevalecer, sobremaneira no que diz respeito ao estabelecimento da maternidade, que se estabelece pela prova da filiação biológica (o estabelecimento da paternidade obedece ao sistema do reconhecimento, admitindo-se a sua constituição voluntária). Com efeito, a verdade biológica “é o princípio alicerçante do regime da filiação”, sendo “os direitos de identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade (onde se inclui o direito de conhecer e ver reconhecida a ascendência biológica e a marca genética de cada pessoa), reconhecidos constitucionalmente enquanto direitos fundamentais” – cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15-02-2018, relatora Graça Amaral, processo n.º 2344/15.8T8BCL.G1.S2 e de 21-09-2010, relator Sebastião Póvoas, processo n.º 495/04 – 3TBOR.C.1.S.1. Reconhecer, ao lado da filiação biológica, uma filiação socioafectiva significa arredar do ordenamento jurídico português a preponderância da verdade biológica, enquanto vertente do direito fundamental à identidade pessoal e aceitar a relevância dos laços socioafectivos para o estabelecimento da filiação, em manifesta contradição com o princípio estruturante do direito de filiação português. Mais do que isso, o direito português não reconhece ou acolhe a possibilidade de acrescentar um pai ou uma mãe aos progenitores que já figuram no registo civil, ou seja, a multiparentalidade que resultaria da eficácia da decisão revidenda no nosso ordenamento jurídico confrontaria manifestamente com o princípio, também ele estruturante do direito registal português, de que se inscreve relativamente ao filho apenas um pai e uma mãe. Acresce que os efeitos do estabelecimento da filiação socioafectiva que o direito brasileiro contempla, designadamente em sede de direito a alimentos e, sobretudo, no contexto sucessório, não deixam também de, a serem reconhecidos no nosso ordenamento, contenderem com princípios estruturantes do Estado Português. Na verdade, o fundamento do direito sucessório está ligado à propriedade individual, dado que os indivíduos podem ser proprietários, deterem bens e dívidas, sendo necessário assegurar a sua substituição nessas posições quando falecem, evitando uma ruptura injustificada da vida jurídica, com perturbação da ordem e frustração de legítimas expectativas; por outro lado, a sua razão de ser reside ainda na família, porquanto entre os elementos desta existem afectos e deveres, há um vínculo de solidariedade e a família perpetua-se através das gerações. Assim, no silêncio do proprietário, justifica-se que os bens sejam atribuídos por morte dele à família: cônjuge, parentes directos ou colaterais – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-01-2015, relator Orlando Afonso, processo n.º 317/11.9YRLSB.S1. Nem todas as normas do direito português sobre as relações sucessórias integram a ordem pública internacional do Estado Português. Certo é, porém, que a ordem jurídica portuguesa sempre protegeu a posição sucessória dos filhos, preservando a respectiva legítima através de limitações impostas aos actos de disposição, a título gratuito, dos respectivos progenitores, o que se encontra assegurado, designadamente, pelas disposições dos art.ºs 2157º, 2159°, 2168° e 2169° do Código Civil. Ora, aceitar a colocação da menor D em posição de igualdade com eventuais filhos biológicos da requerente para efeitos de sucessão corresponderia a afectar necessariamente a legítima destes em manifesta violação, também aqui, da ordem pública internacional do Estado Português. Em síntese, conclui-se que a confirmação do reconhecimento da maternidade socioafectiva da requerente em relação à menor Maria Fernanda alcançado em procedimento administrativo instaurado no Cartório do 1º Ofício de Registro Civil das Pessoas Naturais de B.../PA conduziria a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do nosso Estado acima mencionados, o que impede a confirmação da decisão revidenda, nos termos dos art.ºs 980º, f) e 984º do CPC. * IV–DECISÃO Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa em julgar improcedente a pretensão da requerente e, em consequência, recusar a revisão e confirmação da decisão revidenda. Valor da causa - € 30 000,01. A responsabilidade pelas custas (na vertente de taxa de justiça) ficaria a cargo da requerente, embora face ao estatuído no art. 14º-A, n.º 1, c) do Regulamento das Custas Processuais, não haja, neste caso, lugar ao pagamento da segunda prestação da taxa de justiça. * Lisboa, 14 de Setembro de 2021 Micaela Marisa da Silva Sousa Cristina Silva Maximiano Amélia Alves Ribeiro [1]Adiante designado pela sigla CPC. [2]Acessível na Base de Dados Jurídico-documentais do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P. em www.dgsi.pt, onde se encontram disponíveis todos os arestos adiante mencionados sem indicação de origem. [3]Integrado na publicação Direito Acontecendo na União Estável, Volume IX, São Paulo 2017, acessível https://www.academia.edu/34824911/OS_DESAFIOS_DA_SUCESS%C3%83O_NA_MULTIPARENTALIDADE, consultado em Julho de 2021. [4] Acessível em https://ibdfam.org.br/artigos/126/Direito+ao+estado+de+filia%C3%A7%C3%A3o+e+direito+%C3%A0+origem+gen%C3%A9tica:+uma+distin%C3%A7%C3%A3o+necess%C3%A1ria, consultado em Março de 2021. [5] Acessível em https://www.academia.edu/37341065/INSUFICI%C3%8ANCIA_DA_AFETIVIDADE_COMO_CRIT%C3%89RIO_DE_DETERMINA%C3%87%C3%83O_DA_PATERNIDADE_Atal%C3%A1_Correia, consultado em Março de 2021. [6]Tese de Doutoramento em Direito, no ramo Direito Civil, orientada pelo Professor Doutor João Paulo Fernandes Remédio Marques, apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Agosto/2017 acessível em https://eg.uc.pt/bitstream/10316/87408/1/Parentesco%20Socioafetivo.pdf, consultada em Março de 2021. [7] Acessível, em https://www.academia.edu/15821790/Princ%C3%ADpio_da_Afetividade_no_Direito_de_Fam%C3%ADlia, consultado em Março de 2021. [8] Texto acessível em https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE898060.pdf, consultado em Agosto de 2021. [9]Adiante designado pela sigla CNJ. [10] Acessível em https://www.migalhas.com.br/arquivos/2019/4/art20190426-07.pdf, consultado em Agosto de 2021. [11]E prosseguem os mesmos autores, op. cit., pág. 13: “A multiparentalidade é a situação existencial na qual uma pessoa possui vínculo de filiação com dois pais, ou com duas mães, concomitantemente. O Provimento trata da relação multiparental envolvendo um ascendente socioafetivo e outro biológico e/ou registral. Nestes casos, haverá uma igualdade entre as parentalidades biológica e socioafetiva, pois entre elas não há hierarquia. Pela decisão do STF, é possível a manutenção de ambas as filiações de forma concomitante. A permissão do registro extrajudicial de relações pluriparentais é, certamente, uma das grandes inovações do Provimento. Esta regra determina que o reconhecimento seja sempre unilateral, o que significa que deverá se dar ou do lado paterno ou do lado materno (nunca de ambos). Ou seja, o reconhecimento extrajudicial não permite o registro de uma paternidade e de uma maternidade socioafetiva ao mesmo tempo. Assim, a chamada multiparentalidade bilateral (dois pais e duas mães em um mesmo registro, totalizando quatro ascendentes de primeiro grau) resta vedada em cartórios, visto que não foi permitida pelo Provimento. Portanto, quando acionada, esta via extrajudicial permite o registro unilateral de apenas mais um ascendente em multiparentalidade (ou dois pais ou duas mães).” E a pág. 23: “Para ficar claro: só é possível ocorrer o reconhecimento da filiação multiparental de forma unilateral, ou seja, o reconhecimento pode ser somente do lado paterno ou do lado materno. Se os envolvidos quiserem o reconhecimento da multiparentalidade tanto do lado paterno como do lado materno, os cartórios devem informar a impossibilidade de reconhecimento extrajudicial e remeter os autos ao juízo competente. Esta questão, como anteriormente exposto, restou esclarecida por uma manifestação do próprio CNJ em julho de 2018, na qual houve indicação expressa de que o Provimento não deve permitir que se registrem extrajudicialmente multiparentalidades “bilaterais”. [12]Adiante designada pela sigla CRP. [13]Jorge Miranda e António Cortês, in Constituição Portuguesa Anotada, Volume I, Jorge Miranda e Rui Medeiros referem que “A dignidade da pessoa é a dignidade da pessoa concreta, na sua vida real e quotidiana; não é de um ser ideal abstracto. É o homem ou a mulher, tal como existe, que a ordem jurídica considera irredutível, insubstituível e irrepetível e cujos direitos fundamentais a Constituição enuncia e protege.” [14]Cf. Catarina Isabel da Costa Pina, in Os Afetos como Critério de Vinculação Familiar no Direito da Família Português - Relatório de Estágio Curricular realizado no Juízo de Família e Menores do Barreiro – Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Dissertação com vista à obtenção do grau de Mestre em Direito Forense e Arbitragem, Setembro 2020 acessível em https://run.unl.pt/bitstream/10362/111461/1/Pina_2020.pdf, consultado em Setembro de 2021, pág. 83: “Não obstante o regime jurídico português da filiação desde sempre ser considerado um regime biologista, nem toda a paternidade ou maternidade resulta dos vínculos genéticos, uma vez que é possível identificar, no nosso ordenamento, vários exemplos de manifestação de afetos como critério de vinculação familiar, entre as várias exceções à verdade biológica: v.g. o instituto da adoção, a união de facto e, ainda, em razão do avanço da medicina, as relações jurídicas provenientes de técnicas de PMA. Pudemos observar que, independentemente da existência de vínculos biológicos ou não, o afeto é o critério de vinculação familiar determinante nas supracitadas relações jurídicas (adoção, união de facto e nas relações jurídicas provenientes de técnicas de PMA) e, na maioria das vezes, no que respeita à adoção e nas relações jurídicas provenientes de técnicas de PMA, os vínculos afetivos são decorrentes da vontade e do desejo de criar uma criança.” [15] Acessível em http://www.guilhermedeoliveira.pt/resources/Criterios-juridicos-de-parentalidade.pdf, consultado em 23-03-2021. [16] Acessível em https://portal.oa.pt/upl/%7B7bd770a8-e20e-43d9-918d-7a981c5ae1a6%7D.pdf. |