Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
68/23.1PALSB-A.L1-3
Relator: CRISTINA ALMEIDA E SOUSA
Descritores: DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
CONSTITUIÇÃO DE ARGUIDO
RECUSA A DEPOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Quando as declarações para memória futura sejam tomadas a testemunhas que tenham com o agente do crime em investigação alguma das relações pessoais previstas no art.º 134/1/als a) e b), terão sempre de ser antecedidas da informação acerca do direito de se recusarem a depor, nos termos impostos pelo art.º 134/2 do CPP, mesmo que ainda ninguém haja constituído arguido.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, as Juízas, na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
Por despachos proferidos em diligência de declarações para memória futura realizada em 5 de Dezembro de 2023, no âmbito do inquérito nº 68/23.1PALSB do Tribunal Central Instrução Criminal, Juiz 1, com vista à inquirição das testemunhas AA e BB, respectivamente, enteada e cônjuge do suspeito CC, o Mmo. Juiz de Instrução Criminal, decidiu «(...) que não iria fazer a advertência prevista no artigo 134° do Código de Processo Penal, pois entende que o Sr. CC não é arguido constituído, pelo que tal advertência à testemunha não deverá ser realizada».
O Mº. Pº. interpôs recurso destas decisões, tendo, para o efeito, formulado as seguintes conclusões
- No presente inquérito investigam-se factos susceptíveis de integrarem a prática do crime de violência doméstica, sendo vítima BB, cônjuge do denunciado/suspeito CC e do crime de abuso sexual de crianças agravado, sendo vítima AA, nascida a 10 de Junho de 2013, enteada do mesmo.
- Em cumprimento do disposto no artigo 33º, n.º 1 da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro e no artigo 271º do Código de Processo Penal, o Ministério Público promoveu a tomada de declarações às vítimas BB e AA e fê-lo sem que, previamente, o denunciado/suspeito CC tenha sido constituído arguido (por razões de discricionariedade táctica na investigação). Por essa razão, mais requereu o Ministério Público a nomeação de defensor ao denunciado/suspeito e a sua notificação para estar presente no acto, nos termos do disposto no artigo 64º, n.º 1, alínea f) do Código de Processo Penal, com vista ao cabal exercício do direito ao contraditório.
O Ministério Público fê-lo, ainda, tendo em vista a recolha de prova suficiente que sustente a constituição como arguido do denunciado/suspeito CC, até para ponderar da necessidade e oportunidade de emissão de mandados de detenção fora de flagrante delito, com vista à aplicação de medida de coacção diferente do termo de identidade e residência.
O Mmo. Juiz de Instrução, a quo, deferiu a tomada de declarações para memória futura das vítimas promovidas, em momento anterior à constituição como arguido do denunciado/suspeito CC e determinou a nomeação de defensor a este, para estar presente nas diligências agendadas.
Todavia, no início da tomada de declarações para memória futura das vítimas, encontrando-se presente o Ministério Público e o defensor do denunciado/suspeito CC, embora se verificassem as qualidades previstas no artigo 134º, nº 1 do Código de Processo Penal, não procedeu à advertência do nº 2 do mesmo dispositivo legal, com o fundamento da lei prever que tal obrigação apenas deve ser cumprida quando exista arguido e não denunciado/suspeito, como acontece no caso concreto.
- Salvo o devido respeito, que é muito, o Ministério Público não entende, desde logo, porque motivo o Mmo. Juiz de Instrução a quo, procedeu (e bem) à nomeação de defensor ao denunciado/suspeito, embora a lei preveja “arguido” e no que respeita à advertência nos termos do artigo 134º nº 2 do Código de Processo Penal não o fez, com o argumento de não haver arguido constituído, mas apenas denunciado/suspeito.
- Por outro lado, a realização das diligências em causa, com a omissão voluntária da advertência nos termos do disposto no artigo 134.e, n.º 2 do Código de Processo Penal, tem a consequência das declarações prestadas nestes moldes não poderem ser utilizadas como prova, mostrando-se inevitável, pelo menos, que as vítimas sejam novamente chamadas em sede de audiência de julgamento, a fim de colmatar tal falta, o que com as declarações para memória futura promovidas, de todo, se pretendeu evitar.
- Note-se que, mesmo no decurso do inquérito, e desde o seu início, que mesmo os órgãos de polícia criminal, por delegação de competências para a investigação, dão cumprimento ao disposto no artigo 134º nº 2 do Código de Processo Penal, desde logo, para evitar a prática de actos inúteis, um dos princípios basilares do processo penal.
- Em nosso entendimento, o Mmo. Juiz de Instrução ao não dar cumprimento à advertência prevista no artigo 134º, nº 2 do Código de Processo Penal, com o fundamento de não existir arguido constituído, muito embora, previamente, tenha procedido à nomeação de defensor ao denunciado/suspeito, que se encontrava presente no acto, fê-lo em violação do disposto nos artigos 32° n° 8, segunda parte da Constituição da República Portuguesa e 126º, nº 3 do Código de Processo Penal.
- A possibilidade de um familiar próximo vir a ser constrangido a testemunhar contra outro perturba a confiança, fundada no afecto ou nas projecções sociais sobre o afecto devido, que é cimento da coesão desse elemento básico da sociedade.
- A falta de advertência, nos termos do disposto no artigo 134.e, n.º 2 do Código de Processo Penal, como se verifica na situação em crise, consubstancia uma verdadeira proibição de prova e não uma mera nulidade processual respeitante a uma prova admissível relativamente à qual se verificou o mero incumprimento de formalidades legais, porquanto a obrigação de esclarecimento da ex-cônjuge e da enteada, do denunciado/suspeito (ainda não constituído arguido), quanto à possibilidade de se recusar a depor constitui uma formalidade cuja inobservância redunda numa intromissão ilegal na vida privada, não podendo, em consequência, o depoimento obtido em violação dessa norma processual ser utilizado.
- Razão pela qual os despachos ora em crise, devem ser substituídos por outros, onde se determine a advertência das vítimas, nos termos do disposto no artigo 134º, nº 2 do Código de Processo Penal, no início da tomada de declarações para memória futura.
Destarte, em conformidade com o supra exposto, entendemos que deverá concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão proferida, e em consequência, que seja designada data para a realização da diligência de tomada de declarações para memória futura requerida, às vítimas BB e AA, dando-se cumprimento à advertência prevista no artigo 134º nº 2 do Código de Processo Penal.
Remetido o processo a este Tribunal, na vista a que se refere o art.º 416º do CPP, o Exmo. Sr. Procurador Geral da República Adjunto, emitiu parecer no sentido de que:
Será de proceder o recurso em análise, revogando-se a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que designe data para tomada de declarações para memórias futura às vítimas/testemunhas AA e BB – respetivamente, enteada e cônjuge do denunciado – dando-se cumprimento à advertência prevista no Art.º 134º n.º 2 do C.P. Penal.
Cumprido o disposto no art.º 417º nº 2 do CPP, não houve resposta.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, nos termos e para os efeitos previstos nos arts. 418º e 419º nº 3 al. c) do CPP, cumpre, então, decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E IDENTIFICAÇÃO DAS QUESTÕES A DECIDIR:
De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem o recorrente, nos termos dos arts. 379º nº 2 e 410º nº 3 do CPP e dos vícios previstos no art.º 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995 e o AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005).
Umas e outras definem, pois, o objecto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061).
Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º por remissão do art.º 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art.º 412º do CPP, a que se seguem os vícios enumerados no art.º 410º nº 2 do mesmo diploma;
Finalmente, as questões relativas à matéria de Direito.
Seguindo esta ordem lógica, face às conclusões do recurso, a única questão a decidir é saber se o Mmo. JIC deveria ter feito a advertência prevista no arts. 134º nº 1 als. a) e b) do CPP, às duas testemunhas cuja inquirição em declarações para memória futura foi iniciada em 5 de Dezembro de 2023, ou, se como decidiu, não tinha de a fazer, em virtude de ainda não haver arguido constituído como tal.
2.2. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos a considerar, com relevo para a apreciação do recurso, são os seguintes:
No dia 22 de Janeiro de 2022, BB denunciou CC à PSP, 1ª Divisão Policial de Lisboa, por factos ocorridos na residência de ambos, sita ...
Foi então elaborada a correspondente participação policial pelos seguintes factos (transcrição parcial):
Nas circunstâncias de tempo e lugar acima mencionados, quando me encontrava de Graduado de Serviço neste RIAV denominado Espaço Júlia, compareceu a vítima a denunciar, que tinha sido vítima de Violência Doméstica, por parte do seu cônjuge.
A Vítima informou que, mantém uma relação com o suspeito há cerca de sete anos, tendo sempre coabitado com o mesmo, resultando da mesma relação um filho menor, dependendo economicamente do suspeito.
A vítima relata que, no passado dia 13/01/2023 por volta das 23:31, estaria na sua atual residência (associado em item próprio), em que sem nada fizesse prever, recebera mensagens do suspeito em que o mesmo alega que a vítima o trai, sentindo-se esta incomodada com a situação. Contudo até ao dia de hoje, o suspeito atormenta a vida da vítima com várias mensagens, mesmo estando a residir em residências diferentes.
A vítima informa que já sofrerá agressões físicas por parte do suspeito, onde o primeiro episódio acontecera no ano de 2016. No entanto a vítima não acabara por fazer queixa nesta Polícia.
De referir que a vítima não aguentando mais este tipo de comportamentos por parte do suspeito, a vítima acabou por fazer queixa nesta Polícia, no ano de 2021, NUIPC 1172/21.6... PFLRS, todavia, acabara por voltar para o suspeito devido ao filho menor, não resultando nada acerca do processo!
Informa que o suspeito no início do mês de Janeiro, mais propriamente no dia 1/01/2023 já tentara atos de natureza sexual com a filha da vítima, em que a vitima confrontando o suspeito com á situação, este negara tal acontecimento. A vítima não conformada com a situação dirigiu-se à Esquadra de Odivelas pare denunciar o suspeito, NUIPC 13/23.4... PFLRS, acabando por abandonar a residência anterior por livre e espontânea vontade.
De relatar que o suspeito também já exercera violência física contra a irmã da vítima.
De referir que foi sempre uma relação pautada por vários episódios de violência.
Relatou que durante várias discussões, o suspeito proferiu os seguintes insultos e ameaças "PUTA, TRAIDORA, VAI-TE FUDER, NÃO VALES UM MERDA, NÃO PRESTAS PARA NADA, SE DESCOBRIR QUE TU TENS ALGUÉM VOU-TE MATAR".
A vítima informa que suspeito tem problemas relacionados com o álcool, acabando este por ficar mais agressivo (excerto da participação criminal que integra fls. 2 a 11 da certidão extraída do processo para instruir o presente recurso e que integra fls. 3 a 7 verso do processo).
Na mesma participação policial foram indicadas como vítimas, além da denunciante, DD, nascido em 27 de Janeiro de 2019 e filho da denunciante BB e do denunciado CC e AA, nascida em 10 de Junho de 2013 e filha da denunciante BB e do denunciado CC (participação criminal que integra fls. 2 a 11 da certidão extraída do processo para instruir o presente recurso e que integra fls. 3 a 7 verso do processo);
No inquérito instaurado com base nesta participação criminal (decisão do Mº. Pº. com a referência 395923534), por despacho proferido em 7 de Novembro de 2023 (referência Citius 8610491), foi determinado o seguinte:
Requerimento de fls. 263 e 264:
Tendo em conta a natureza dos crimes em investigação nos presentes autos, determino, em conformidade com o promovido, que se proceda à tomada de declarações para memória futura às vítimas BB e AA, ao abrigo do disposto no art.º 271.º, n.ºs 1 e 2 Cód. Processo Penal, por referência aos arts. 14.º, n.º 1 e 33.º, n.º 1, ambos da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro.
Ambas as vítimas deverão ser assistidas neste acto por técnico especialmente habilitado, a saber, uma Técnica do GIAV.
Para tomada de declarações para memória futura à vítima AA designo o dia .../.../2023, pelas 09H30;
Para tomada de declarações para memória futura à vítima BB designo o dia .../.../2023, pelas 10H00.
Notifique, devendo a notificação da menor AA ser efectuada na pessoa da sua progenitora, BB.
(…)
Uma vez que o denunciado não foi, ainda, constituído na qualidade processual de arguido, no próprio dia da diligência o Tribunal diligenciará pela nomeação de defensor, em observância do disposto na parte final do n.º 3 do art.º 271.º do Cód. Processo Penal.
No dia 5 de Dezembro de 2023, iniciada a diligência de tomada de declarações para memória futura com a presença do Defensor Oficioso do suspeito: Dr. EE, das ofendidas AA e BB, da Técnica da GIAV: Dr.ª FF e do Ministério Público, pelo Mmo. Juiz de Instrução Criminal foi ordenado que se procedesse à gravação áudio e vídeo das declarações, uma vez que o Tribunal dispõe de meios técnicos idóneos para assegurar a sua reprodução integral, dando assim início à presente diligência:
De seguida entrou na sala a testemunha AA, que aos costumes disse ser enteada do denunciado CC.
De imediato o Mm. Juiz de Direito informou que não iria fazer a advertência prevista no artigo 134º do Código de Processo Penal, pois entende que o Sr. CC não é arguido constituído, pelo que tal advertência à testemunha não deverá ser realizada.
Dada a palavra à Digna Magistrada do Ministério Público, promoveu o seguinte:
“Entendo que revestindo a aqui testemunha uma das qualidades previstas no artigo 134º, nº 1, al. a) do Código de Processo Penal, ou seja, sendo afim até ao 2º grau porque é filha da esposa do aqui suspeito, ainda não tem a qualidade de arguido na verdade, todavia entendo que ao não ser efetuada esta advertência, nos termos do nº 2 do artigo 134º do CPP, esta depoimento fica ferido de nulidade e sendo assim, teria de ser repetido, não poderia ser tido em consideração, teria de ser feita esta advertência e sendo um dos princípios basilares do Código de Processo Penal evitar a prática de atos inúteis e uma vez que no entendimento do Mm. Juiz não será para fazer esta advertência, o Ministério Público irá intentar recurso quanto a esta questão e portanto, promove que seja dada sem efeito esta diligência e que seja designada a data após a decisão do referido recurso que se irá instaurar.”
Dada a palavra ao ilustre defensor oficioso presente o mesmo informou nada ter a opor.
Seguidamente pelo Mm.º Juiz, foi proferido o seguinte despacho:
“Como resulta do disposto no artigo 134.º do Código de Processo Penal, os destinatários da faculdade de recusar depoimento são as pessoas elencadas no nº 1, als. a) e b) do Código de Processo Penal, ligadas por um vínculo familiar ou análogo a quem é arguido e não mero suspeito, motivo pelo qual o tribunal entende que pese embora a testemunha AA seja enteada do suspeito CC, não se encontrando este investido na qualidade processual de arguido, não há que dar cumprimento ao disposto no artigo 134.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
Atenta a posição expressa pela Sr.ª Procuradora da República, titular do inquérito, que manifestou o seu propósito de intentar recurso do despacho proferido, e com vista a evitar a realização de atos inúteis, em conformidade com o promovido, dou sem efeito a inquirição de AA na qualidade de testemunha, ficando relativamente a esta testemunha dos autos a aguardar nos termos e para os efeitos promovidos”.
De seguida entrou na sala a testemunha BB que aos costumes disse ser ex esposa do denunciado.
De imediato o Mm. Juiz de Direito informou que, à semelhança do sucedido com a testemunha anterior, não iria fazer a advertência prevista no artigo 134.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, pois entende que não sendo o Sr. CC arguido constituído, mas meramente suspeito, tal advertência à testemunha não deverá ser realizada, por ser desprovida de fundamento legal.
Dada a palavra à Digna Magistrada do Ministério Público, promoveu o seguinte:
“Tendo em conta a decisão proferida pelo Mm. Juiz, e uma vez que o Ministério Público tem entendimento diferente, sendo do seu entendimento que deverá ser dado cumprimento ao disposto no artigo 134, nº 1 al. a) e nº 2 do CPP no caso patente e, entendendo que deverá ser dado cumprimento a este artigo porque, sendo certo que não existe arguido constituído efetivamente pela letra da lei, diz que se trata de arguido, a verdade é que também como bem sabemos a lei quando prevê o mais também prevê o menos, também sendo certo que não havendo arguido, encontra-se aqui presente defensor oficioso do arguido para o acautelar e portanto ele não existir. E por isso, entendemos que deverá ser dado cumprimento a esta artigo, sob pena de nulidade e sendo um dos princípios basilares do CPP evitar a prática de atos inúteis, seria isto que aconteceria caso ao recurso que iremos interpor, nos seja dada razão, pelo que o Ministério Público promove que seja dada sem efeito esta diligência e que se aguarde pela decisão do recurso que se irá instaurar.”
Dada a palavra ao ilustre defensor oficioso presente o mesmo informou nada ter a opor.
Seguidamente pelo Mm.º Juiz, foi proferido o seguinte despacho:
“Como resulta da leitura do artigo nº 134º do Código de Processo Penal, os destinatários da faculdade de recusar depoimento são as pessoas elencadas no n.º 1, alíneas a) e b), ligadas por um vínculo familiar ou análogo a quem é arguido e não mero suspeito, pelo que o tribunal entende, no caso vertente, não dever ser dado cumprimento ao disposto no artigo 134.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
Atento o teor da promoção da Digna Magistrada do Ministério Público, titular do inquérito, que antecede, no deferimento do promovido, dou sem efeito a presente diligência de tomada de declarações para memória futura, com vista a evitar a prática de atos inúteis, ficando os autos a aguardar nos exatos termos e para os efeitos promovidos.” (Auto de Declarações para Memória Futura com a referência Citius 8647000);
2.3. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
O art.º 134º do CPP prevê a possibilidade de recusar a prestação de depoimento na qualidade de testemunhas a três grupos de pessoas:
Na alínea a) do nº 1, aos descendentes, aos ascendentes, aos irmãos, aos afins até ao segundo grau, aos adoptantes, aos adoptados e ao cônjuge do arguido;
Na alínea b) do nº 1, a quem tiver sido cônjuge do arguido ou quem, sendo de outro ou do mesmo sexo, com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação.
Na alínea c) do nº 1, a membro do órgão da pessoa colectiva ou da entidade equiparada que não seja representante da mesma no processo em que ela seja arguida.
Por seu turno, o nº 2 impõe à entidade competente para receber o depoimento, que informe as pessoas referidas no número 1 als. a) a c) dessa prerrogativa de recusarem depoimento, sendo a omissão de tal advertência cominada com a sanção da nulidade.
«A prova por testemunhas vem à cabeça de todas as outras, é a prova de uso mais frequente, porque é, na maioria dos casos, a única que se pode produzir» (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. IV, reimpressão, Coimbra Editora, 1981, pág. 360).
«Dentro do quadro das provas, a prova testemunhal é a que mais utiliza e mais aproveita ao processo penal, pois o testemunho é o modo mais adequado para recordar e reconstituir os acontecimentos humanos, é a prova na qual a investigação judicial se desenvolve com maior energia» (Cruz Bucho, A Recusa de Depoimento de Familiares do Arguido: o Privilégio Familiar em Processo Penal (notas de estudo), 2015, pág. 3, nota 2, citando Eugenio Florian, https://www.trg.pt/ficheiros/estudos/recusa%20de%20depoimentotexto.pdf. No mesmo sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, 5ª ed., Lisboa, 2011, Verbo, pág. 201).
Mas é também a mais falível e uma das que convoca maiores cautelas de valoração e tratamento como fonte de formação da convicção do julgador.
A recusa a depor prevista no art.º 134º da CPP foi a concretização do propósito de «abolição de diferença estatutária entre testemunhas e declarantes» que estava consagrada no antigo art.º 216º do CPP de 1929, tal como anunciado na Lei de autorização legislativa em matéria de processo penal, a Lei nº 43/86, de 26 de Setembro (cfr. artigo 2.º, nº 2, alínea 23) e para colmatar a falta de clareza e de correcção do anterior regime jurídico que redundava na primazia da prova testemunhal sobre a prova por declarações, apenas com base no juramento (cfr. artigos 96.º§1 e 97.º, n.º1 do CPP de 1929), presumindo ou ficcionando uma espécie de «capitis deminutio» ou de estatuto de «suspeição», exclusivamente dependente da condição de «ascendentes, descendentes, irmãos e afins nos mesmos graus, marido ou mulher do ofendido, da parte acusadora e do arguido», no caso da previsão do nº 3 § 1º do citado art.º 216º, sem correspondência no direito substantivo e ignorando as reais circunstâncias aptas a determinar com segurança a credibilidade e verosimilhança dos relatos para reconstituir acontecimentos humanos, bem assim, que essas circunstâncias operam, independentemente, daqueles vínculos parentais.
«O artigo 134.º do Código de Processo Penal de 1987 surgiu na sequência da supressão da distinção entre as figuras de testemunha e de declarante, que existia no direito anterior (cf. artigo 214.º e segs. do Código de Processo Penal de 1929), e do alargamento do princípio geral de que todas as pessoas poderão depor como testemunha, com exclusão dos interditos por anomalia psíquica, nos termos do artigo 131.º, e daqueles que estão legalmente impedidos de prestar testemunho, em função do seu posicionamento processual (os arguidos, assistentes e partes cíveis) ou por estarem sujeitos ao “dever de segredo”. Insere-se num conjunto de situações típicas (cf. artigos 132.º, n.º 2, 134.º e 135.º) que, em derrogação do dever jurídico de prestar declarações que incumbe às testemunhas [cf. artigo 132.º n.º 1, alínea d); dever penalmente censurado no artigo 360º do Código Penal, em caso de falso testemunho], consagram o direito a recusar depoimento (aliás, em algumas das hipóteses a recusa é um dever profissional ou deontológico)» (Ac. do TC nº 154/2009, in http://www.tribunalconstitucional.pt).
O direito de recusa previsto neste art.º 134º do CPP corresponde a uma tomada de posição expressa do legislador no sentido de resolver um conflito de deveres, no confronto entre o poder punitivo do Estado na administração da justiça penal e o dilema ou conflito de consciência das pessoas nas condições previstas no citado art.º 134º nº 1 als. a) a c) entre responder com verdade às perguntas sobre os factos objecto do processo, assim contribuindo decisivamente para a responsabilização criminal do seu familiar ou cônjuge ou parceiro íntimo, ou a sociedade de que é sócio, ou, ao invés, mentirem, com isso praticando um crime – o crime de falsidade de testemunho - para encobrirem ou favorecerem o arguido, quebrando, ora os valores de solidariedade e confiança considerados essenciais à instituição familiar, ora entorpecendo a acção da justiça e descredibilizando-a, produzindo provas deliberadamente inverídicas, por iniciativa e com a conivência do próprio do Mº. Pº., dos OPC e dos Tribunais.
Por isso, o legislador penal entendeu fazer ceder o interesse público da descoberta da verdade, no processo penal, ao interesse da comunidade na existência de relações de confiança entre os membros da mesma família, garantindo o interesse da testemunha em não ser forçada a prestar declarações, de forma a que não sinta a sua consciência violentada por incriminar, por força do seu depoimento, pessoa que lhe é próxima em virtude das ligações de parentesco, de afinidade ou societárias.
Nos casos das als. a) e b) do art.º 134º nº 1 do CPP, «trata-se, inter alia e fundamentalmente de: prevenir formas larvadas e indirectas de auto-incriminação; preservar a integridade e a confiança nas relações de maior proximidade familiar; proteger o alargado espectro de valores individuais e supra-individuais pertinentes à área de tutela da incriminação da violação de segredo profissional ou de segredos para este efeito equivalentes, como, v. g., o segredo de ministro de religião; poupar as pessoas concretamente envolvidas às situações dilemáticas de conflito de consciência de ter de escolher entre mentir ou ter de contribuir para a condenação de familiares ou de clientes» (Costa Andrade, “Bruscamente no verão passado”, a reforma do Código de Processo Penal – Observações críticas sobre uma lei que podia e devia ter sido diferente, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 137º, n.º 3950, pág. 280. No mesmo sentido, António Henriques Gaspar, Santos Cabral, Maia Costa, Oliveira Mendes, Pereira Madeira e António Henriques Pires da Graça, in Código de Processo Penal Anotado Comentado, pág. 531).
«Com o direito de recusa evidencia-se que, (…), «não é nenhum princípio da ordenação processual que a verdade deva ser investigada a todo o preço» (…). De facto, embora a descoberta da verdade constitua finalidade essencial de todo o processo penal (…) e elemento fundamental para uma correcta administração da justiça, a qual, enquanto vector essencial à manutenção da comunidade juridicamente organizada, representa uma vertente informadora da própria ideia de Estado-de-Direito (…), a eventual perda de prova com possível relevância para a descoberta da verdade será de aceitar nos casos em que a sua aquisição se traduza na lesão de um bem mais valioso. É o que sucede com o privilégio constante do artigo 134.º, n.º 1, do CPP: a lei renuncia ao possível conhecimento probatório da testemunha, ou melhor, renuncia aos meios de constrangimento destinados a obter o depoimento, deixando nas mãos da testemunha a decisão de prestar declarações (…). E para que tal decisão seja efectivamente fruto de uma escolha livre e esclarecida a lei impõe às entidades competentes para receber o depoimento, uma vez verificado o laço familiar legalmente consignado, a obrigação de advertir a testemunha, «sob pena de nulidade, da faculdade que lhes assiste de recusar o depoimento» (artigo 134º n.º 2 do CPP) (…)». (Medina de Seiça, Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17 de Janeiro de 1996, “Prova Testemunhal. Recusa de Depoimento de Familiar de um dos Arguidos em Caso de Co-Arguição”, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 6, Fasc. 3º, pág. 492 e 493).
«Trata-se de uma forma de protecção dos escrúpulos de consciência e das vinculações sócio-afectivas respeitantes à vida familiar que encontra apoio no n.º 1 do artigo 67.º da Constituição e que outorga ao indivíduo uma faculdade que se compreende no direito (geral) ao desenvolvimento da personalidade, também consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, enquanto materialização do postulado básico da dignidade da pessoa humana (…)» (Ac. do Tribunal Constitucional nº 154/2009, in http://www.tribunalconstitucional.pt).
Assim, nas situações taxativamente previstas no citado dispositivo, a testemunha pode recusar-se válida e eficazmente a prestar depoimento, ao contrário do que sucede com as testemunhas em geral, cujos deveres incluem, nos termos do art.º 132º do CPP, o de responder e com verdade a todas as perguntas que lhes forem dirigidas, sob pena de incorrerem, na prática de um crime de desobediência, caso recusem prestar depoimento sem motivo válido, como acontecerá, quando o fizerem fora das condições previstas naquele 134º do CPP.
Porém, se a testemunha optar por depor, as suas declarações ficam simplesmente sujeitas ao princípio da livre apreciação da prova, nos termos do art.º 127º do CPP e a partir do momento em que, depois de elucidada acerca do seu próprio direito ao silêncio, a pessoa visada opte por ser inquirida e responder às perguntas sobre os factos, reassume, de pleno, todos os deveres inerentes à condição de testemunha.
No que se refere à inobservância do preceituado no art.º 134º nº 2 do CPP, este normativo sanciona-a expressamente com a nulidade.
O direito de recusar prestar depoimento, nos termos do artigo 134º nº 1 als. a) e b) do CPP, não está directamente relacionada com a intromissão na vida privada, mas antes com o facto de as pessoas ligadas ao arguido por vínculos de parentesco e/ou de afinidade não serem obrigadas a prestar um depoimento incriminatório, contra este, sujeitando-se à prestação de juramento e às consequências que lhe são inerentes.
Com efeito, se o que está em causa, com o cumprimento do dever de informação acerca da prerrogativa de se recusar a prestar depoimento, verificado o circunstancialismo do nº 1 do art.º 134º, é poupar a testemunha ao conflito entre o dever jurídico de falar com verdade e o dever ético de fidelidade a um seu familiar próximo, da omissão do dever de informação não resulta qualquer violação da vida privada da testemunha, porque não ocorre qualquer acção do Tribunal que viole esse bem jurídico. Apenas está em causa a coesão familiar e a integridade do laço existencial que une a testemunha ao autor dos factos sob investigação ou julgamento.
O que acontece é tão-só a inobservância de uma formalidade, cuja consequência é a nulidade do acto, como a própria lei expressamente indica (“sob pena de nulidade”), nulidade esta, que é sanável, porque não consta da enumeração taxativa das nulidades insanáveis do art.º 119º do CPP.
Por conseguinte, atenta a razão de ser das normas insertas no art.º 134º do CPP e o princípio da legalidade, em matéria de nulidades, consagrado no art.º 118º do CPP, a omissão do dever de advertência da faculdade de recusa a depor não envolve qualquer proibição de prova, antes constituindo uma nulidade relativa, que, de acordo com o disposto no art.º 120º nº 3 al. d) do CPP, terá de ser arguida até à conclusão do depoimento em causa, sob pena de sanação (neste sentido, Acs. do STJ de 04.07.2018, proc. 1006/15.0JABRG-D.S1 e de 21.03.2019, proc. nº 356/17.6GACSC-A.S1; Acs da Relação de Évora de 13.07.2017, proc. 1508/15.9T9BJA.E1, da Relação de Coimbra de 07.03.2018, processo 94/14.1GBPBL.C1, da Relação do Porto de 06.04.2022, proc. 2218/20.0T9VFR.P1, in http://www.dgsi.pt), competindo à testemunha visada, e apenas a ela, a legitimidade para invocar o vício da omissão de advertência contida no nº 2 do art.º 134º do CPP (Acs. do STJ de 21.10.2009, proc. 12124/04.0TDLSB–A.S1 e de 20.06.2018, processo 1014/11.0PHMTS-B.P1.S1, http://www.dgsi.pt).
«Se a entidade competente não fizer essa advertência o depoimento é nulo, ficando sujeito ao regime das disposições combinadas dos arts. 120.º e 121.º. Isto é: a nulidade daí decorrente, porque não incluída no elenco configurado pelo art.º 119.º (que arrola as nulidades insanáveis) nem consta, como tal, de qualquer outra norma da lei, assume a natureza de nulidade relativa ou sanável, por isso dependente de arguição e em momento determinado (até à conclusão do depoimento, de acordo com o estatuído na al. a) do n.º 3, do art.º 120.º)» (Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, Código de Processo Penal - Anotado, 3.ª edição, Editora Rei dos Livros, 2008, pág. 957, em anotação ao artigo 134.º do CPP).
«Este último parece ser, em nosso entender, o melhor entendimento pois que, sendo certo que inexiste uma observância de formalidade legal, da mesma não resulta qualquer violação da vida privada.
A nulidade resultante da proibição do n.º 2 do artigo 126.º tem de ser aferida em relação a uma violação directa. Referindo o n.º 2 do normativo ora em análise a nulidade do depoimento tal nulidade só pode referir-se à prevista no artigo 118.º, do Código de Processo Penal.» (Santos Cabral, Código de Processo Penal - Comentado, Almedina, 2014, pág. 533, § 6 da anotação ao artigo 134.º, do CPP. No mesmo sentido, Maia Gonçalves, Código de Processo Penal - Anotado, 17.ª edição, Almedina, 2009, pág. 369, § 5 da anotação ao mesmo artigo 134.º do CPP, Paulo Sousa Mendes, «As proibições de prova no processo penal», nas «Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais», Almedina, 2004, pp. 149/150, e em «Lições de Direito Processual Penal», Almedina, 2014, pág. 190, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. II, 4.ª edição, Verbo, 2008, pág. 168, Cruz Bucho, «A recusa de depoimento de familiares do arguido: O privilégio familiar em processo penal», (notas de estudo), 2015, pág. 163, https://www.trg.pt/info/estudos/279-a-recusa-de-depoimento-de-familiares-do-arguido-o-privilegio-familiar-em-processo-penal-notas-de-estudo.html e António Gama e Luís Lemos Triunfante, «Comentário Judiciário do Código de Processo Penal», Tomo II, Almedina, 2019, pp. 139/140).
No presente processo, as testemunhas a serem ouvidas em declarações para memória futura são, respectivamente, a cônjuge e a enteada da pessoa identificada como autora de factos praticados contra ambas e susceptíveis de integrar a prática de crimes de violência doméstica.
O Mmo. Juiz de Instrução Criminal considerou que não tinha de efectuar a advertência contida no art.º 134º nº 2 do CPP em virtude de ainda não haver arguido como tal constituído.
A esta tomada de posição parece estar subjacente o entendimento de que a constituição de arguido tem de ser necessariamente prévia à inquirição como testemunha de alguma das pessoas da sua família, ou das suas relações íntimas ou societárias, daquelas que se enquadram na previsão do art.º 134º nº 1 als. a) a c) do CPP.
Porém, a ter sido este o entendimento, o mesmo não tem correspondência, nem na letra, nem no espírito da lei, nem na unidade do sistema jurídico.
Não se ignora que o art.º 134º do CPP se refere expressamente a arguido.
Mas o que não estabelece é a sequência cronológica entre a constituição de arguido e a realização das diligências de investigação pertinentes à fase do inquérito, nisso, aliás, não se distinguindo a produção de prova testemunhal, ou por declarações dos assistentes e partes civis, das restantes provas e meios de obtenção de prova.
O CPP sanciona como nulidade insanável, nos termos do art.119º nºs 1 e 2 al. d), a falta do inquérito, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade.
Esta obrigatoriedade de realização do inquérito confunde-se com dever de investigar do Mº. Pº., cuja configuração resulta da conjugação das atribuições e competências que em matéria de investigação criminal e acção penal lhe estão estatutariamente atribuídas, nos termos dos arts. 3º nº 1 al. c); 47º; 58º e 63º da Lei 47/86, de 15.10, segundo a redacção da Lei 114/2017, de 29.12 e das regras específicas que regem a tramitação do processo penal, com especial enfoque, nos arts. 48º a 56º do CPP e nas que se referem às finalidades e razão de ser do inquérito, contidas nos arts. 262º e seguintes do mesmo código.
Consequentemente, a notícia de factos em relação aos quais não seja evidente, nem notório que são destituídos de tutela penal (seja por via da prescrição, de amnistia, da extinção do direito de queixa, de despenalização resultante da sucessão de leis penais no tempo, ou da manifesta falta de tipicidade) dará sempre lugar à instauração de inquérito e um dos actos legalmente obrigatórios no inquérito é, precisamente, o da constituição como arguido nos termos dos arts. 58º e 59º do CPP (Paulo Pinto de Albuquerque, Código de Processo Penal Anotado, 2007, pág. 313, nota 6 ao art.º 120.º; Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, 2002, Vol. II, p. 84).
Não há dúvida de que, tendo o inquérito por finalidade a prolação de uma decisão sobre a acusação (artigo 262º nº 1 do CPP) e de que, para tal efeito, é essencial averiguar da ocorrência de um crime, da identificação do seu autor ou autores e da respectiva responsabilidade, na medida em que o processo penal visa a descoberta da verdade e a realização da justiça, a necessidade de audição daquele ou daqueles contra quem o inquérito é instaurado, surge como uma das manifestações das garantias de defesa do arguido consagradas, em geral, no art.º 32º nº 1 da Constituição sob a forma do direito a ser ouvido pela autoridade judiciária antes de ser tomada qualquer decisão que pessoalmente o afecte, nos termos dos art.º 61º nº 1 al. b); 141º e 144º do CPP.
O art.º 272º do CPP, de harmonia com as referidas garantias de defesa impõe a obrigatoriedade da realização do interrogatório do arguido, se o inquérito correr contra pessoa determinada em relação à qual haja fundada suspeita da prática de crime e desde que seja possível notificá-la.
O art.º 57º 1 do CPP estabelece que «assume a qualidade de arguido todo aquele contra quem for deduzida a acusação ou requerida a instrução num processo penal».
E a previsão contida no art.º 58º do mesmo diploma prevê outras causas de constituição como arguido que podem ocorrer antes da dedução da acusação, como defluí da expressão «sem prejuízo do disposto no artigo anterior».
Entre elas, contam-se, na al. a), a existência de inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime, logo que esta prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal e, na al. d), quando foi levantado auto de notícia que dê uma pessoa como agente de um crime e aquele lhe for comunicado, salvo se a notícia for manifestamente infundada.
Por seu turno, o art.º 59º do CPP, estabelece outros casos de constituição de arguido, prevendo no nº1 a eventualidade de no decurso de uma inquirição, a pessoa inquirida ser constituída arguida, se e logo que surja «fundada suspeita de crime por ela cometido» e no nº 2, que essa constituição como arguido aconteça a pedido do próprio, desde que sobre si exista a suspeita de ter cometido um crime e «sempre que estiverem a ser efectuadas diligências, destinadas a comprovar a imputação, que pessoalmente a afectem».
Da análise conjugada das normas contidas nos arts. 57º a 59º do CPP, resulta que o legislador processual penal deu primazia a um princípio geral de pronta constituição como arguido, logo que haja notícia consistente da prática de crime que lhe seja imputável, constituição de arguido esta, a levar a cabo, preferencialmente, no primeiro acto processual em que se imponha a sua intervenção, o que bem se compreende, pois que é da aquisição do estatuto jurídico-processual de arguido que depende a possibilidade de exercício efectivo de todas as garantias de defesa em vigor no processo penal e consagradas nos arts. 20º e 32º da Constituição – do processo justo e equitativo, aos direitos ao contraditório, a produzir provas e ao recurso, entre outros (arts. 60º e 61º do CPP), como é próprio do Estado de Direito Democrático em que vivemos.
Não obstante a assunção desta aversão à perpetuação da condição de simples suspeito e à existência de investigações sem que as pessoas visadas tenham todo o conjunto de direitos e deveres inerentes ao estatuto jurídico-processual de arguido, o legislador processual penal não excluiu, porém, a possibilidade de a pessoa visada pela investigação criminal só vir a adquirir o estatuto de arguido numa fase mais tardia do processo.
Muitas vezes, tal até só acontece depois de produzida toda a prova testemunhal e recolhidos todos os outros meios de prova documental, pericial ou de outra natureza, no decurso da fase do inquérito, de resto como admitido expressamente, no art.º 57º nº 1 do CPP.
Noutras vezes, pode até nunca chegar a haver constituição de arguido e o processo terminar, por falta de condições de procedibilidade, ou de indícios suficientes da prática do crime ou acerca da identidade do seu autor, num despacho de arquivamento (até porque fruto da 15ª alteração ao Código de Processo Penal, operada pela Lei 48/2007 de 29 de Agosto, para a constituição de arguido passou a exigir-se a suspeita fundada da prática de crime e não a mera suspeita da sua prática, como se vê da redação introduzida no art.º 58º nº 1 a) do CPP).
É ao Ministério Público que incumbe a definição do objecto do inquérito, escolher as diligências de prova a realizar e determinar o momento da sua realização, orientado por critérios de legalidade, é certo, mas com total autonomia e sem ingerências de quem quer que seja, excepto no que se refere às competências do juiz de instrução nos termos previstos nos arts. 268º e 269º do CPP.
Daí que toda a actividade de recolha e produção de provas pertinente à decisão de submeter ao não o processo a julgamento possa ser desenvolvida sem arguido constituído, por razões táticas relacionadas com a estratégia da investigação, ou por imperativos de urgência, em ordem a garantir a obtenção, genuinidade e conservação de certos meios probatórios cujo sucesso se mostra incompatível com o contraditório em tempo real, postulando a necessidade de impedir interferências ou tentativas de adulteração e encobrimento dos factos, por parte da pessoa suspeita de os ter praticado e, ainda, por razões de protecção reforçada das vítimas e das testemunhas e da necessidade de obstar à sua revitimização ou à sua vitimização secundária, como sucede quando se investigam crimes sexuais, crimes de violência doméstica e outros crimes graves que atentam contra bens jurídicos eminentemente pessoais e que lesam direitos humanos das vítimas (cfr. António Miguel Veiga, «Notas sobre o âmbito e a natureza dos depoimentos (ou declarações) para memória futura de menores ou vítimas de crimes sexuais (ou da razão de ser de uma aparente "insensibilidade judicial" em sede de audiência de julgamento», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 19, 2009, p. 107, e ainda Rui do Carmo, «Declarações para memória futura - Crianças vítimas de crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual», Revista do Ministério Público, n.º 134, 2013, p. 123).
E por isso mesmo é que as declarações para memória futura, podem ser realizadas antes da constituição de arguido (cfr., nesse sentido, Acs. da Relação de Lisboa de 12.07.2022, proc. 235/22.5PALSB-A.L1 e de 25.05.2023, proc. 108/23.4PXLSB-A.L1-9, in http://www.dgsi.pt, Paulo Dá Mesquita, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo I, artigos 1.º a 123.º, António Gama et al, Coimbra: Almedina 2021, pp. 625-626, nota 10, Rui do Carmo e Júlio Barbosa e Silva, A Estratégia da Investigação, Revista do Ministério Público, 171, Julho-Setembro de 2022, págs. 208-209).
Ora, acerca das diligências probatórias que podem e em certos casos até devem ter lugar antes da constituição de arguido, para assegurar a eficácia da investigação, como sejam as escutas telefónicas e as buscas domiciliárias, ninguém duvida que a sua realização não fica inviabilizada pela circunstância de a pessoa por elas visada ainda não ter o estatuto de arguido, do mesmo modo que não oferece a menor dúvida de que terão de ser realizadas com estrita obediência a todos os requisitos de natureza substancial e formal de que depende a sua validade e eficácia como meios de obtenção de prova e de que terão de ser conservados para poderem vir a ser valorados, impugnados e contraditados, quando chegar o momento processual legalmente previsto para esse efeito.
De resto, o Tribunal Constitucional já concluiu que não implicava violação do direito ao contraditório, nem dos demais direitos de defesa do arguido a não participação deste e do seu defensor, ou do assistente, em diligências de instrução prévias ao debate instrutório, fossem estas realizadas perante o juiz por órgãos de polícia criminal, bem como a recolha de outras provas sem qualquer participação do arguido, incluindo prova por documentos e testemunhal, designadamente, por declarações para memória futura, o que vale por dizer que o direito ao contraditório tem de ser sempre assegurado, mas não tem de ser exercido em simultâneo com a recolha das provas, podendo ser efectivado em momento diferido (Acórdãos nºs 372/2000, 59/2001, 339/2005, 110/11 e, quanto às declarações para memória futura o Ac. nº 367/2014, todos in http://www.tribunalconstitucional.pt).
Mas a admissibilidade do contraditório em momento posterior àquele em que certas diligências probatórias são realizadas, sobretudo, as que são produzidas antes do momento processual natural em que vigoram a imediação, a oralidade e o contraditório – a audiência de discussão e julgamento – não se transmite à observância dos requisitos de natureza formal e substancial de que depende a sua validade e eficácia como meios de prova e/ou de obtenção de prova e a possibilidade da sua valoração para alicerçar a convicção do julgador em ordem a fixar os factos objecto do processo e da decisão final a proferir, já que estes não sofrem qualquer aligeiramento ou alteração, consoante as fases do processo, nem consoante sejam realizadas antes ou depois da constituição de arguido.
Essas formalidades legais são exactamente as mesmas e devem ser exactamente as mesmas, haja ou não haja arguido já constituído como tal, no momento em que são realizadas, porque a lei não estabelece qualquer distinção, nessa matéria, e porque em função da hipótese de vir a ser identificado o autor do crime em investigação e ser constituído arguido, ainda que só mais tarde, tem de estar já assegurado o seu valor intrínseco como provas susceptíveis de exame crítico pelo Tribunal, sob pena de toda investigação e recolha da prova redundar numa actividade inútil, logo, proibida, pelo art.º 130º do CPC (ex vi do art.º 4º do CPP), por efeito da omissão ou da violação dessas formalidades essenciais.
Tanto assim é, que as normas de procedimento que regulam as condições de validade formal e substancial da obtenção e conservação de meios de prova e de obtenção de prova, contêm várias previsões que assentam em juízos de prognose quanto à futura aquisição por alguém do estatuto jurídico-processual de arguido e previnem as garantias de exercício pleno do direito ao contraditório e demais direitos de defesa consagrados no art.º 32º da CRP, logo que tal venha a acontecer.
É o caso das regras contidas nos nºs 2 e 4 do artigo 271º, do CPP, bem como a necessidade de redução a auto das declarações prestadas, imposta pelo art.º 275º nº 1 do CPP, ou ainda das autorizações judiciais, das validações e das cominações com a sanção da nulidade para a inobservância de determinadas formalidades, a imposição da elaboração de autos e/ou transcrições com os resultados das diligências e a sua disponibilidade para posterior consulta pelo arguido contidas no art.º 174º nºs 3, 4 e 7, 176º, 177º nºs 1, 4 e 5, 178º nºs 6 a 8, 179º, 188º do CPP, só para invocar alguns exemplos.
É também de acordo com esta linha de raciocínio, em face da antecipação de que a pessoa visada pela investigação virá a ter o estatuto jurídico-processual de arguido, que as declarações para memória futura deverão ter sempre a intervenção de um Defensor, para assegurar o contraditório e as garantias de defesa, não obstando à nomeação desse Defensor e à sua intervenção, nas declarações para memória futura, como em quaisquer outras diligências de investigação, a circunstância de o denunciado ainda não se encontrar constituído arguido (Acs. da Relação do Porto de 23.11.2016, proc. 382/15.0T9MTS e da Relação de Lisboa de 04.05.2017, proc. 12/15.0JDLSB e de 23.09.2021, proc. 141/21.0SXLSB-A.L1-9 in http://www.dgsi.pt).
Ora, se esta é a solução quando estejam em causa valores tão essenciais como a garantia constitucional do acesso a um processo justo e equitativo densificada em regras como o direito à igualdade de armas e de tratamento, no processo, a proibição de todas as diferenças de tratamento arbitrárias; da indefesa e o direito ao contraditório reconhecidos ao arguido, por maioria de razão e lugar paralelo, o direito ao silêncio das testemunhas, assistentes ou partes civis, unidos a futuros potenciais arguidos por algum dos laços de parentesco, afinidade ou societários previstos nas als a) a c) do art.º 134º nº 1 do CPP deverá ser-lhes garantido, sempre, em quaisquer circunstâncias, quando intervenham, nessas qualidades, mesmo que o indigitado autor dos factos ainda só seja suspeito.
Aparte considerações de índole estritamente jurídica, em torno da questão de saber se o que está em causa é a simples omissão de uma condição de validade formal do procedimento ou um método proibido de prova por afrontar a reserva da vida privada e familiar, cumpre sublinhar que, em termos práticos, tanto num caso como no noutro, a consequência será idêntica: a impossibilidade de valoração daqueles depoimentos (a não ser que a testemunha não argua a nulidade, dentro do prazo previsto no art.º 120º nº 3 al. d) do CPP ou que consinta a posteriori na prestação do depoimento, de acordo com a possibilidade prevista no art.º 126º nº 3 do mesmo código).
Portanto, a cabal informação sobre os deveres gerais das testemunhas e a possibilidade excepcional de se negar a cumpri-los, não prestando depoimento, quando se verifique alguma das circunstâncias previstas nas als. a) a c) do art.º 134º nº 1 do CPP, terá de ser feita quer já haja arguido constituído, quer seja ainda só um suspeito, tal como acontece com as demais formalidades legalmente impostas para outros meios de prova.
Cumpre sublinhar, ainda, que a recusa a depor não é uma garantia de defesa, nem está prevista em atenção ao arguido, mas antes em benefício e para protecção exclusiva da própria testemunha, vítima, assistente, parte civil e da sua família.
É, assim, irrelevante que a pessoa identificada como autor dos factos integradores do crime em investigação, seja só suspeito ou já esteja constituído arguido.
O que releva é a autoria dos factos e a identidade do seu autor, por um lado e, por outro lado, a constatação de que o dilema entre falar com verdade como testemunha e incriminar o seu parente próximo, ou cumprir certos imperativos sócio-afectivos conaturais a certas relações de parentesco ou de intimidade conjugal ou afim, para cuja concretização é preferível recusar o depoimento, do que mentir, se verifica com os mesmos contornos e igual intensidade, quer o autor dos factos sobre os quais incidir o depoimento a prestar seja só suspeito ou já esteja formalmente constituído como arguido.
Na perspectiva da testemunha e esta é a única que releva para o art.º 134º do CPP, o constrangimento de se ver forçada a prestar um testemunho incriminatório do próprio pai, marido, parceiro íntimo, irmão, cunhado, filho, etc., não é diferente nem mais intenso, consoante, no momento de prestar o depoimento, a pessoa que seja apresentada como autor dos factos objecto do processo já seja arguida, ou ainda não tenha adquirido esse estatuto processual.
A relação pessoal/familiar entre o arguido e a testemunha que justifica o reconhecimento do direito de recusa a prestar depoimento é exactamente a mesma, antes e depois da assunção formal do estatuto de arguido, como é a mesma a necessidade e a razão de ser do direito ao silêncio reconhecido às testemunhas nas condições previstas naquele art.º 134º nº 1 als. a) a c) do CPP.
Por conseguinte, para efeitos de aplicação do disposto no art.º 134º do CPP, arguido é o autor dos factos sob investigação, já constituído ou a constituir com esse estatuto jurídico-processual, ainda que em momento posterior ao da inquirição como testemunha do seu familiar.
Assim sendo, a advertência acerca da prerrogativa de recusa a depor prevista no art.º 134º nº 2 do CPP, sendo uma condição de validade e eficácia do depoimento, é uma formalidade essencial que deverá ser sempre observada e não depende da prévia constituição de alguém como arguido, por tal advertência ser uma forma de tutela das testemunhas em atenção a determinados vínculos existenciais que as ligam aos autores dos factos sob investigação e que não se alteram em função da qualidade de arguido ou da qualidade de mero suspeito.
III – DECISÃO
Termos em que decidem:
Conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogam as decisões recorridas, as quais deverão ser substituídas por outra que designe data para tomada de declarações para memória futura às vítimas/testemunhas AA e BB – respetivamente, enteada e cônjuge do denunciado – dando-se cumprimento à advertência prevista no art.º 134º n.º 2 do C.P. Penal, mesmo que ainda não tenha havido constituição de arguido.
Sem Custas – art.º 522º do CPP.
Notifique.
*
Acórdão elaborado pela primeira signatária em processador de texto que o reviu integralmente (art.º 94º nº 2 do CPP), sendo assinado pela própria e pelas Meritíssimas Juízas Adjuntas.

Tribunal da Relação de Lisboa, 7 de Fevereiro de 2024
Cristina Almeida e Sousa - Relatora
Hermengarda do Valle-Frias - Primeira Adjunta
Adelina Barradas de Oliveira - Segunda Adjunta