Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1634/21.5T9ALM.L1-5
Relator: MARIA JOSÉ MACHADO
Descritores: CRIME DE FALSAS DECLARAÇÕES
ESCRITURA DE JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: As declarações falsas prestadas pelo outorgante numa escritura de justificação notarial, das quais resultem efeitos jurídicos, designadamente os de, através delas, se obter o direito de propriedade de um prédio por usucapião, integram hoje o crime de falsas declarações previsto no artigo 348.º-A do Código Penal, ainda que as declarações se reportem a factos que não foram vividos pelo declarante.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I–Relatório


1.–No processo comum, com intervenção do tribunal singular, supra referido, em que é arguida A, melhor identificada nos autos, foi proferida sentença, a 11/11/2022, mediante a qual o tribunal decidiu condenar a arguida pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsas declarações, p. e p. pelo artigo 348.°-A, n.º 2 do Código Penal, na pena de 110 (cento e dez) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz o montante total de € 660,00 (seiscentos e sessenta Euros) e a absolveu do pedido de indemnização civil contra ela formulado nos autos, pela assistente/demandante.

2.–A arguida interpôs recurso da decisão, pugnando pela sua absolvição, tendo extraído da sua motivação as seguintes conclusões: (transcrição)
I.-Não existe fundamento, nem fáctico nem jurídico, para a condenação da Arguida nos termos em que o foi, havendo, outrossim, fundamento para a sua absolvição.
II.-Os pais da Arguida mantiveram a posse do imóvel em discussão nos autos por mais de vinte anos, de forma contínua, ininterrupta, pública, de boa-fé e sem qualquer oposição.
III.-Até à propositura da ação judicial que, com o número de processo 643/18.6T8ELV, correu os respetivos termos pelo Juiz 2 do Juízo Local Cível de Elvas (Comarca de Portalegre), não obtivera a Arguida – ou, antes desta, os seus progenitores – qualquer notícia, informação ou sequer indício de manifestação de vontade em discutir a propriedade do dito bem imóvel.
IV.-A existência de negociações e a existência de outros herdeiros em nada muda o facto de que, por mais de vinte anos foi mantida, de forma contínua, ininterrupta, pública, de boa-fé e sem qualquer oposição a posse do imóvel.
V.-O facto relevante para a aquisição da propriedade por efeito de usucapião é a posse mantida por certo lapso de tempo, conforme dispõe o artigo 1287.º do Código Civil e que tal posse seja de boa-fé, pública e pacífica.
VI.-Não existe nenhum elemento probatório junto aos autos que comprove a frequência da casa por parte da demandante.
VII.-A Arguida fez prova bastante dos factos que alegou, designadamente e em especial da posse e respetivo lapso temporal da mesma.
VIII.-Caracterizou o Tribunal a quo o papel que o imóvel em apreço nos autos desempenhava na família da Arguida e ora Recorrente: o de segunda habitação utilizada maioritariamente no período de férias e épocas festivas, mas não o fez relativamente ao papel que supostamente desempenharia para os restantes herdeiros dos avós da Arguida, o que era essencial para sustentar a tese da acusação e da demandante.
IX.-A demandante revelou total desconhecimento sobre a casa objeto dos autos e não conseguiu identificar cabalmente os restantes membros da família com quem afirmara ter convivido desde a infância.
X.-Em face dos factos, não poderia o Tribunal a quo ter concluído “que se tratava de uma habitação usada pelos vários herdeiros”.
XI.-A Arguida, em nenhum momento, tentou enganar a Notária.
XII.-Ademais, o que releva para a tipicidade criminal do ilícito in casu é o da falsidade ou não da afirmação e não o conhecimento subjetivo que o declarante tem ou não dessa afirmação.
XIII.-Sendo a afirmação verdadeira, como é, não existe a prática de qualquer crime.
XIV.-Na estatuição da sua norma, o artigo 348.º-A não considera como típicas as declarações sobre factos ou acontecimentos mesmo que tenham sido vividas pela declarante – in casu a Recorrente – como o modo de aquisição da posse de um imóvel.
XV.-O modo de aquisição de posse de um imóvel, in casu, a usucapião, não pode ser tipificada na estatuição da norma que configura a tipicidade do crime p. e p. pelo artigo 348.º - A do C.P., i.e., de falsas declarações.
XVI.-A declaração constante na escritura de justificação é uma declaração de direito. Logo, não se subsume a um facto declarado para efeitos processuais penais.
XVII.-A Arguida não tinha a obrigação de conhecer os pressupostos de aquisição originária do direito de propriedade por esta forma, por se tratar de matéria eminentemente técnica e jurídica, a qual não faz parte da sua área de formação.
3.–O Ministério Público respondeu ao recurso defendendo a sua improcedência.
4.Neste tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se, também, no sentido do não provimento do recurso e da manutenção da sentença recorrida.
5.Cumprido o disposto no art.º 417º, n º2 do Código de Processo Penal (doravante designado C.P.P.), veio a recorrente responder àquele parecer reiterando os fundamentos do seu recurso.
6.Após exame preliminar foram os autos aos vistos legais e, de seguida, à conferência a fim de o recurso aí ser julgado, cumprindo agora decidir.

II–Fundamentação

1.Questões a decidir

Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, nas quais sintetiza as razões do pedido (art.º 412º, nº1 do C.P.P.).

Nas conclusões formuladas pela recorrente, que condensam as razões da sua impugnação, é suscitada apenas a ausência de fundamento de facto e de direito para a condenação. Não obstante, importa também conhecer dos vícios do n.º2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, apenas invocados pela recorrente na motivação (corpo).

2. Elementos relevantes

2.1.-O tribunal recorrido considerou provados e não provados os seguintes factos: (transcrição)

Factos Provados

1.No dia 25 de Janeiro de 2017 foi lavrada a escritura de justificação, no Cartório Notarial de ..., sito ..., em que intervieram a arguida A como primeiro outorgante, e B, C e D, como segundos outorgantes.
2.Nessa escritura, a arguida A declarou:sob a sua inteira responsabilidade exercer o cargo de cabeça de casal nas heranças abertas por óbito de seus pais, E e F. ” (...)
Que os falecidos E e F eram donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, dos seguintes bens:
-Prédio urbano sito na Rua ..., composto de prédio de rés-do-chão, para habitação, com quatro casas e um quintal, com área total de cento e setenta e dois metros quadradas e a área coberta de sessenta e três metros quadrados, que confronta ... , inscrito na respectiva matriz ... sob o artigo 429 (que proveio do artigo 385 da extinta freguesia de Barbacena), [...]
com o valor encargos e pagando as respectivas contribuições, e agindo, com a convicção de serem proprietários exclusivos daqueles imóveis e como tal sempre por todos foi reputado.
Que, em consequência de tal posse exercida sobre os mencionados prédios, com as indicadas composições, ostensivamente, à vista de toda a gente, de boa fé, sem oposição de quem quer que seja, em paz, continuadamente e de forma ininterrupta, há mais de vinte anos, os referidos E e F adquiririam por USUCAPIÃO, prédios estes que passam a integrar o património hereditário das identificadas heranças de E e de F.
Que a justificante, na qualidade de única herdeira de E e de F, invoca esta forma originária de aquisição, para todos os efeitos legais, suprindo, desta forma, a inexistência de título para efeitos de registo e obtendo assim o título adequado para proceder ao registo dos prédios na competente Conservatória do Registo Predial, por forma a que a realidade material já existente há mais de vinte anos seja reflectida e publicitada, após o cumprimento das demais formalidades”.
3.Por seu turno, B, C e D, na qualidade de testemunhas, declararam “que, por serem verdadeiras, confirmam inteiramente as declarações prestadas pela ora justificante.”
4.Ao declarar, nos termos supra referidos, a existência da posse por parte de E e de F, do prédio identificado na escritura notarial, estado que bem sabia que não correspondia à verdade, a arguida fez crer ao Notário, em exercício de funções no Cartório Notarial, que as declarações que prestou eram verdadeiras logrando, assim, que a escritura fosse lavrada.
5.A arguida actuou voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que não podia ter declarado, contrariamente à verdade, a existência da posse, há mais de vinte anos, por parte dos seus progenitores, E e de F, relativamente ao prédio identificado na escritura.
6.Fê-lo com o propósito concretizado de levar o Notário a fazer constar da dita escritura factos não verdadeiros, juridicamente relevantes, o que quis.
7.Sabia que aquelas declarações não correspondiam à verdade e abalavam a confiança e credibilidade na autenticidade e genuinidade do documento autêntico e atentavam contra a fé pública que merecem as escrituras públicas.
8.Mais sabia qua a sua conduta era proibida e punida por lei, não obstante não se coibiu de a praticar.
9.Numa primeira fase, a arguida mostrou-se interessada em partilhar os bens objecto da escritura acima referida, tendo inclusive, em data não concretamente apurada no ano de 2012, ocorrido uma reunião, no qual ofereceu € 12.000,00 pela aquisição dos referidos bens.
10.As negociações foram malogradas, tendo os bens permanecido na herança indivisa.
11.Com a conduta supra descrita, a arguida teve como intenção retirar do acervo hereditário a partilhar com a demandante bens imóveis, sobre os quais tinha direito de herdar.
12.A escritura de justificação acima referida veio a ser declarada ineficaz por sentença proferida no âmbito do processo n.° 643/18.6T8ELV do Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre - Juízo Local Cível de Elvas - Juiz 2.
13.A arguida procedeu à venda do prédio rústico sito em ... .
14.A referida venda foi feita pelo montante total de € 2.500,00.
15.O montante pago pela compradora do terreno à arguida foi recebido exclusivamente por esta, fazendo seu o montante que pertencia aos herdeiros, caso estes estivessem de acordo com a venda, o que não aconteceu.
16.A arguida trabalhava como engenheira electrotécnica e, actualmente, encontra-se reformada.
17.Aufere a título de reforma a quantia de € 750,00 líquidos.
18.Reside em casa própria, suportando a quantia de € 312,00, a título de amortização do empréstimo.
19.Tem dois filhos autónomos de 32 e 24 anos.
20.Suporta a quantia de € 100,00 mensal para amortização de crédito pessoal.
21.É licenciada pré-Bolonha em engenharia electrotécnica.
22.A arguida não tem quaisquer antecedentes criminais averbados no seu certificado do registo criminal.

Factos não provados

A.-A arguida e a demandante eram beneficiárias da herança deixada por óbito de E e de F.
B.-A conduta da arguida fez com que a demandante ficasse deprimida, entristecida e até amargurada, isolando-se e deixando de conviver em sociedade, deixando de apresentar força de viver a que tinha habituado os seus parentes e amigos, na medida em que considera ter sido muito prejudicada para a vida.
C.-A arguida vendeu o imóvel rústico por menos de metade do preço, na zona onde se localiza o imóvel, o preço mínimo a que é vendido o (ha) = 10.000 (dez mil metros quadrados), é de € 5.500.
D.-Os pais da Arguida mantiveram a posse do imóvel em causa por mais de vinte anos, de forma contínua, ininterrupta, pública, de boa-fé e sem qualquer oposição.
E.-Nunca houve qualquer contacto entre a arguida e potenciais herdeiros que se interessassem pela herança, uma vez que a arguida sempre foi a única pessoa que se preocupou com os bens, na sua manutenção e conservação.
F.-A arguida suportou custos, encargos, despesas e prejuízos relacionados com os bens supra descritos no montante global de € 1.599,84.

2.2.O Tribunal recorrido fundamentou a sua convicção quanto à matéria de facto da seguinte forma: (transcrição)
«O Tribunal formou a sua convicção sobre a matéria de facto, com base na apreciação de forma livre, crítica e conjugada, de todos os meios de prova disponíveis, tendo presentes as regras da experiência comum, o princípio da livre apreciação da prova e a livre convicção do julgador (cfr. artigo 127.° do CPP).

Assim, por mais relevante e decisivo, é de destacar o seguinte:
- a arguida quis prestar declarações sobre os factos e outrossim sobre as suas condições pessoais e económico-financeiras;
- prestou declarações a demandante: ... (de 52 anos, assistente operacional);
- foram inquiridas as seguintes testemunhas: (i) ... (de 62 anos, reformado, director comercial, cônjuge da demandante); (ii) ... (de 32 anos, formadora na área de ciências, filha da arguida); (iii) ... (de 43 anos, notária); (iv) ... (de 42 anos, técnico administrativo de cartório);
- encontra-se junto aos autos a seguinte prova documental: (i) certidão de escritura de justificação notarial de fls. 8-16 e 242-251; (ii) certidão da sentença proferida no processo n.° 643/18.6T8ELV; (iii) certidões permanentes do registo predial de fls. 47-48, 49-50, 51-52 e 53-54; (iv) certidão de habilitação de fls. 55-58; (v) revogação e testamento de fls. 60-62; (vi) escritura pública de compra e venda de fls. 252-256; (vii) fotografias de fls. 305, 309, 310, 312-316, 348-351 e 420; (viii) manuscritos e emails de fls. 306-308, 311, 317-318, 378; (ix) facturas e comprovativos pagamentos de fls. 319, 332-341, 346-347, 365-377; (x) CRC de fls. 396.
Foi, assim, da conjugação dos meios de prova supra referidos que o Tribunal formou a sua convicção, tendo a prova produzida sido suficiente para dar como provados os factos supra descritos.

Vejamos

Conforme supra mencionado, a arguida quis prestar declarações sobre a factualidade. A esse respeito, explicou que o prédio urbano descrito na acusação era da sua avó materna ... que veio a falecer em Agosto de 1984. A sua avó materna, para além da sua progenitora, tinha mais 3 filhos. Tratava-se de um prédio urbano usado como casa de 2.a habitação, sendo que chegou a viver nessa casa, o seu tio-avó ... (irmã da sua avó), com autorização desta.
Mais contou que, desde o seu nascimento, sempre frequentou a referida habitação. Era onde passava férias e onde continuou a passar férias depois com os seus filhos. Mais referiu que eram os seus pais - E e F - que cuidavam daquela habitação, assim como cuidaram da sua avó materna que, devido a problemas de saúde, ficou incapacitada. Contou ainda que também o seu tio ... Parra (que era solteiro) frequentava a referida casa, ocupando-se da mesma como os seus pais. Contou que nem a sua tia ..., casada com o tio ..., nem o seu tio ... cuidavam da referida casa e/ou contribuíam para a sua manutenção e conservação.
Mais disse que, após o falecimento dos seus progenitores - o seu pai no ano de 2002 e a sua mãe no ano de 2010 -, assumiu a responsabilidade de manter a casa, continuou a cuidar dela, a fazer obras de manutenção e a tratar da limpeza dos terrenos, tal como os seus pais vinham fazendo, pagando também os impostos. Continuou a ir passar férias a esta habitação, deslocando-se duas a três vezes por ano à mesma. Os seus filhos também aí passavam férias. Entretanto, a habitação foi-se degradando e carecia de obras, motivo pelo qual procurou regularizar a sua situação, mas não conseguiu estando a herança indivisa.
Confirmou que, no ano de 2012, tentou falar com os demais herdeiros, através de um advogado, com escritório na Amadora, onde foi realizada uma reunião. Disse que a sua tia ... participou na referida reunião, juntamente com a demandante, assim como o seu tio ... e o tio Manuel e a sua esposa. O tio ... já havia falecido em 2005. Contou que perguntou aos demais herdeiros se queriam comprar, vender, participar na gestão, dividir os imóveis da herança, nomeadamente a casa a que se reporta a acusação. Seriam 4 herdeiros, tendo sido apresentada proposta pelo valor patrimonial dos bens, de € 12.000,00. Referiam que os demais herdeiros informaram que iam pensar, mas não demonstraram mais interesse. Nunca deram nenhuma resposta e não demonstraram qualquer boa vontade em resolver a situação dos bens. Pelo que achou que, não havendo feedback, as pessoas não estavam interessadas. Motivo pelo qual considerou que era a única herdeira que, ao actuar, estava a fazê-lo com legitimidade. Não percebe de leis, não sabe se lhe foi falado de processo de inventário ou partilha. Foi a diversos serviços para regularizar a situação. A habitação precisava obras e era necessário obter licença, o que só era possível com a regularização da situação. Além disso, contou que ouviu falar num banco de terras e teve receio que se os imóveis não tivessem cadastrados, acabasse por os perder.
Foi ao cartório de Almada por recomendação, confirmando a outorga da escritura. Diz que explicou tudo à notária e entregou toda a documentação pedida e não recebeu nenhum alerta. Levou como testemunhas dois amigos de longa data e a terceira testemunha - C - não a conhecia. Confiou na notária e viu esta solução como a única saída. Diz que não sabe o que podia fazer mais, porque os demais herdeiros não demonstraram qualquer interesse.
Disse não ter qualquer relação com a demandante que é sobrinha neta do seu tio ... casado com a tia .... Ficou surpresa com o interesse demonstrado pela demandante em relação aos bens, pois não tem conhecimento que esta alguma vez tivesse tratado da sua avó ou da referida casa.
Explicou que, na acção cível, não foi apresentada contestação atempada pelo seu advogado, apesar de lhe ter entregue toda a documentação necessária para o efeito, motivo pelo qual a acção acabou por ser julgada à sua revelia, obtendo procedência.
Por sua vez, a demandante ... esclareceu ser sobrinha neta de ... e de ..., que a criaram desde que nasceu. Contou que costumava frequentar a casa que pertencia a ... (avó da arguida) com os seus tios, onde se deslocavam todos os anos nas férias e nos períodos festivos, fê-lo na sua infância, adolescência e até casar, sendo que a sua tia ... continuou sempre a frequentar a casa, segundo o que lhe contava. Tratava-se de uma casa de férias. Na casa, vivia ainda um casal que eram familiares da Dona Senhorinha. Conhecia os pais da arguida. Disse que a casa era frequentada também pelos outros filhos da Dona Senhorinha, incluindo os pais da arguida e a arguida que chegou a lá encontrar.
Contou que a sua tia ... recebeu uma carta para reunir com a arguida da parte do advogado desta última. Acompanhou a tia na referida reunião. Estavam presentes a arguida, o seu advogado, o tio ... e outro irmão. Disse que a arguida propôs comprar a parte dos demais herdeiros nesses bens, pelo valor de € 12.000,00, correspondente ao valor patrimonial. A sua tia não concordou com os valores propostos, achando que o preço proposto era baixo. Disse que a sua tia não apresentou qualquer contra-proposta. Depois dessa reunião disse que não houve mais contactos.
Contou que o seu tio pagava o IMI da casa e, depois do seu falecimento, passou a fazê-lo a sua tia. Ficou surpreendida quando soube da escritura de justificação. Tratava-se de uma casa de família que era frequentada por todos. Não era de uso exclusivo dos pais da arguida nem da arguida. Disse querer justiça pela memória da sua tia que faleceu em 20.10.2017.
A testemunha ... confirmou que a sua esposa ... era sobrinha-neta de ... e .... Sabia da existência de uma herança indivisa sobre a qual os beneficiários não se entendiam. Confirmou que levou a sua esposa a uma reunião que teve lugar na Amadora, nos anos de 2011/2012, sobre a herança, mas foi-lhe transmitido que não tinham chegado a acordo. Foi proposto o valor de € 12.000,00, correspondente ao valor patrimonial, que não foi aceite. A sua esposa é a única herdeira e universal da tia ... por testamento. O tio da esposa, ..., era o cabeça de casal da herança indivisa, tendo depois a tia ... ocupado esse cargo. A tia ... pagava o IMI dos imóveis. Contou que a esposa ficou afectada e abalada com esta situação, por ter descoberto que tinham sido subtraídos estes bens da herança da tia. Disse que levava a tia ... lá a casa enquanto ela foi viva. A testemunha ... disse ter memória de frequentar a casa em apreço desde criança com a sua mãe, irmão e avós maternos, onde passavam férias (Verão, Páscoa, Natal e Carnaval). Reconheceu as fotografias de fls. 309, 310 e 310v, identificando os lugares e as pessoas. Os avós moravam e trabalhavam em Lisboa. A casa de primeira habitação era em Lisboa. Quando frequentava a casa, contou que não havia outras pessoas, com excepção do tio .... Mas disse que foi sempre a sua avó que tomou conta da habitação. Após falecimento da avó, a casa precisava de obras. Precisavam de obter licença para as obras, mas a casa estava omissa na Conservatória. Deslocou-se com a arguida a vários serviços desde registos, conservatórias, notários e solicitadores. Soube da existência de uma reunião, convocada pela arguida, com os irmãos da avó que seriam herdeiros. Porém, disse que eram herdeiros só no papel, porque não tinham qualquer interesse na casa. Não esteve presente na reunião, só veio a dela tomar conhecimento depois pela sua mãe. Sabe que o cabeça de casal da herança era ..., irmão da avó. Disse que era a sua avó quem pagava o IMI da casa e que tinha a chave, não tem conhecimento que outras pessoas tivessem a chave. Nunca viu a tia ... e a demandante ... na casa. Teve conhecimento da acção de impugnação da escritura de justificação. Falaram com o advogado, entregaram-lhe toda a documentação, mas não apresentou contestação tempestiva.
Esclareceu que acompanhou a sua mãe aos vários serviços. Foram a um solicitador que lhes disse que não fazia este tipo de serviço e outro disse que não estava por dentro destes assuntos. Foi-lhes depois recomendado este cartório em Almada. Não foi discutido uma acção de partilhas porque não foi manifestado interesse pelos demais herdeiros. Esteve presente no Cartório no dia da escritura de justificação, mas não participou porque era filha da justificante, tendo sido substituída pela testemunha C, indicada pela Notária.
A testemunha ... confirmou que fez a escritura de justificação notarial. Disse ter tido uma primeira reunião com a arguida que lhe transmitiu que os bens imóveis vinham da herança dos pais, que era a única herdeira, e não tinha título para os registar e que pretendia uma escritura de justificação notarial. Os prédios estavam omissos na Conservatória, tendo sido pedida certidão negativa e habilitação de herdeiros dos pais. Explicou que eram precisas 3 testemunhas. Pensa que a arguida teve dificuldades em arranjar a terceira testemunha e ficou C que é colaboradora de outro cartório. Não se recorda se a filha da arguida esteve presente na escritura de justificação, mas, por força da relação de parentesco, não podia ser testemunha. Disse que, quando não se sente segura do acto, não o faz. Só fez 5 escrituras de justificação notarial desde que abriu o cartório. Na reunião prévia com a arguida disse não ter ideia desta lhe ter referido outros herdeiros. Nesses casos, disse recomendar que se façam partilhas ou processo de inventário.
A testemunha ... disse que não assistiu à realização da escritura. Recebeu a documentação por email, imprimiu e juntou ao processo. Disse que a escritura foi desmarcada duas vezes por falta de uma testemunha. Foi ele quem pediu a C para ser testemunha e esta aceitou.
Posto isto, da conjugação de toda a prova documental e testemunhal, com as declarações da arguida, e sobretudo o teor da escritura de justificação notarial de fls. 8-16 e 242-251, ficou plenamente demonstrado que a arguida outorgou a escritura de justificação notarial descrita na acusação, nos termos aí mencionados, e que se mostram conformes ao teor da certidão junta aos autos, tendo essa factualidade sido assumida pela arguida que não a pôs em causa, assim, se dando como assentes os factos descritos nos pontos 1), 2) e 3) da matéria provada.
No que respeita à factualidade dada como provada nos pontos 4) a 8), a mesma resultou provada da conjugação das declarações prestadas pela arguida e demandante com os depoimentos das testemunhas ... e ... e prova documental constante dos autos, nomeadamente a escritura de justificação notarial de fls. 8-16 e 242251, a certidão da sentença de fls. 37-43, a certidão de habilitação de fls. 55-58 e testamento de fls. 60-62.
Destarte, repare-se no seguinte: da prova mencionada resultou que o prédio urbano descrito na acusação era pertença de ..., avó materna da arguida. A avó materna da arguida teve 4 filhos, F (mãe da arguida e casada com E), ... (casado com a tia avó da demandante ...), ... e .... Veio a falecer no ano de 1984, sucedendo-lhe os 4 filhos. O pai da arguida faleceu em 04.08.2002 e a mãe da arguida faleceu em 21.10.2009, tendo-lhes sucedido a arguida como única herdeira. Por sua vez, ... GP... faleceu no dia 20.10.2017, no estado de viúva de ..., deixando testamento, no qual instituiu como sua única e universal herdeira a demandante.
Mais ficou demonstrado nos autos que o imóvel em apreço era o que denomina de uma 2.a habitação, sendo usado sobretudo no período de férias e épocas festivas. Contrariamente, ao que a arguida e sua filha fizeram crer parecer ao Tribunal, das declarações da demandante e do seu marido ..., resultou que esta habitação era frequentada por todos os filhos de ..., inclusivamente, após a sua morte, porquanto a própria demandante a frequentou, onde passava férias, na infância, adolescência e até casar, sempre acompanhada da sua tia .... Quando frequentava a habitação, chegou a fazê-lo na presença da arguida, o que foi relatado pela demandante, e não tem o Tribunal motivos para duvidar das palavras da demandante suportadas pelo depoimento do seu marido que pareceram francas, objectivas e isentas, não procurando esta iludir o Tribunal ou fazer crer numa realidade que lhe fosse mais vantajosa, pois poderia tê-lo feito, dizendo, inclusivamente, que continuou a frequentar a casa ainda por mais anos, e não o fez. Diferentemente, o depoimento de ..., filha da arguida, foi manifestamente parcial e comprometido, denotando-se a forma fugaz e esquiva como respondeu às questões que lhe foram sendo colocadas pelo Tribunal, pelo Digno Magistrado do Ministério Público e Ilustre Mandatário da Demandante, por contraposição à forma como respondeu às perguntas do Ilustre Mandatário da arguida.
Por conseguinte, ficou o Tribunal efectivamente convencido de que se tratava de uma habitação usada pelos vários herdeiros. Não se pondo em causa que os pais da arguida pudessem efectivamente ter um papel mais activo na manutenção e conservação da mesma, conforme decorre aliás da documentação de suporte junta aos autos pela arguida. Todavia, não ignorava a arguida que se tratava de uma habitação inserida numa herança indivisa, à qual concorriam os seus progenitores e a arguida, no lugar destes, após a sua morte, e os demais herdeiros, irmãos dos seus progenitores. Tanto era assim que a própria arguida reconheceu ter convocado a reunião, ocorrida em 2012, no escritório do seu advogado a fim de resolverem a situação pendente dos bens, entre os quais, se incluía a habitação em apreço.
Ora, a própria arguida, ao convocar a referida reunião, onde estiveram presentes todos os herdeiros de ... Rosado ainda vivos (incluindo a demandante que acompanhou a sua tia ... Parra) reconheceu que sabia que os bens em apreço pertenciam a uma herança indivisa, ainda não partilhada. Por sua vez, foi a própria arguida que relatou em Tribunal que, nessa reunião, foram apresentadas por si várias soluções quanto ao destino dos bens, a saber: a compra por si, a compra pelos demais herdeiros, a participação na gestão ou a sua divisão. Disse, porém, a arguida que não obteve qualquer resposta. Explicou a demandante que a sua tia ... não concordou com o preço proposto pela arguida para a compra dos bens, por ser um montante correspondente ao valor patrimonial que considerou baixo.
Ora, não tendo tido sucesso, nessa reunião, cinco anos depois vem a arguida a outorgar a escritura de justificação notarial sobre os bens cujo destino havia sido discutido nessa reunião. Nessa escritura de justificação notarial, declara, entre outros, que os seus falecidos pais “eram donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem” dos referidos bens”, “que vieram à posse dos referidos E e F no ano de 1986, em dia e mês que não pode precisar, mas sempre há mais de vinte anos, por partilha verbal feita com os restantes co-herdeiros da herança aberta por óbito da avó da ora justificante, ..., viúva, (...) cabendo-lhes em sorte, não tendo sido, porém, reduzida a escritura pública aquela partilha. Que, desde aquela data, em que se operou a tradição material dos prédios, os referidos E e F entraram na posse dos identificados prédios, posse que foi exercida por estes até à data do seu óbito e depois pela justificante [...] agindo com a convicção de serem proprietários exclusivos.
Ora, confrontado tais declarações com o acima exposto, facilmente se conclui que não correspondem à realidade, o que era sabido pela arguida que, ainda no ano de 2012, reuniu com os herdeiros da herança aberta por óbito da sua avó, ..., para discutir o destino dos bens, onde uma das opções que disse ter apresentado, era precisamente a compra dos bens por si ou até a sua divisão.
Não ignorava, pois, a arguida que os bens integravam a herança indivisa aberta por óbito da sua avó e que a ele concorriam mais herdeiros, não sendo verdade o, por si, declarado na escritura de justificação notarial.
A escritura de justificação notarial foi, na verdade, uma solução encontrada pela arguida, para ultrapassar a situação dos bens que estavam omissos na descrição predial e inseridos numa herança indivisa.
Note-se, ademais, que a arguida é licenciada em engenharia electrotécnica e, por mais que tenha tentando transmitir em audiência o seu desconhecimento quanto às leis e ao direito, é uma pessoa que tem estudos, formada e está plenamente inserida na sociedade. É do conhecimento geral que os herdeiros não podem tornar-se proprietários de bens de heranças indivisas sem tais bens serem previamente partilhados.
As justificações apresentadas pela arguida, do desinteresse dos restantes herdeiros e da necessidade de regularizar a situação dos bens, nomeadamente o receio transmitido com o banco de terras, não justifica a actuação da arguida que prestou afirmações que não correspondem à verdade na escritura de justificação, como era do seu pleno conhecimento. Pelo que tal matéria veio a ser dada como provada, nos termos supra explanados, sendo que, dos actos objectivos praticados pela arguida, a conclusão não pode ser outra.
Por conseguinte, os factos respeitantes ao conhecimento da arguida, à consciência da ilicitude e à vontade de praticar os factos por parte desta descritos nos pontos 5) a 8) e 11), não sendo passíveis de demonstração directa, resultam de conclusões lógicas formuladas com base na globalidade da factualidade e nos actos objectivamente praticados pela arguida dados como provados, em conjugação com as regras da normalidade da vida e da experiência comum. Destarte, o modo de actuação demonstra o carácter desejado da conduta, pois só quem quer praticar o ilícito em questão age como a arguida agiu, retirando- se a intenção com facilidade dos elementos objectivos apurados respeitantes aos actos praticados. O vertido nos pontos 9) e 10) resultou, nos termos já reproduzidos, das declarações da arguida, conjugadas com as declarações da demandante e da testemunha .... De referir que, nesta matéria, não se vislumbra qualquer violação do sigilo profissional, invocada em sede de contestação pela arguida, porquanto tal factualidade não foi revelada pelo advogado constituído da arguida à data, tendo sido trazida à audiência de julgamento pela própria arguida que acerca dela falou abertamente, assim como a demandante.
O referido no ponto 12) resulta plenamente provado em face da certidão da sentença extraída do referido processo que se mostra junta aos autos a fls. 37-43.
O constante dos pontos 13) a 15) está suportado na prova documental, nomeadamente escritura de fls. 252-256, tendo sido admitido pela arguida.
Quanto à situação pessoal e socioeconómica da arguida - pontos 16) a 21) - atendeu o Tribunal às declarações da arguida que, nesta parte, se mostraram credíveis e mereceram acolhimento, não se mostrando infirmadas por qualquer outra prova.
Por último, o facto respeitante à ausência de antecedentes criminais, teve por base o teor do certificado do registo criminal actualizado da arguida que se encontra junto aos autos.

No que à factualidade dada como não provada respeita, cumpre referir o seguinte:
O vertido em A) foi dado como não provado, porquanto, conforme se alcança da documentação junta aos autos, nomeadamente certidão de habilitação legal de fls. 55-58 e testamento de fls. 60-62, a demandante é beneficiária da herança aberta por morte de ... Parra, ao passo que a arguida é beneficiária da herança aberta por morte dos seus progenitores. Nestas heranças, incluem-se os bens em discussão nos autos, por integraram o património da herança aberta por óbito de ... Rosado, nos termos já explanados. Pelo que o aqui descrito não corresponde à verdade, tendo sido dado como não provado. Quanto ao referido na alínea B), foi assim considerado por insuficiência de prova. Sobre esta matéria depuseram apenas a demandante e a testemunha .... Todavia, a demandante apenas disse sentir-se injustiçada com esta situação, pretendendo preservar a boa memória da sua falecida tia .... A testemunha ... limitou-se a descrever, genericamente e sem qualquer concretização, que a sua esposa andou abalada e ficou afectada quando descobriu a outorga da escritura. Nem um nem outro concretizaram actos que materializassem esse abalo ou afectação. Ora, não se ignora que tudo esta situação, na sua globalidade, tenha causado transtornos e incómodos à demandante, todavia, carecia o Tribunal que fossem concretizada em factualidade esse estado emocional e afectivo da demandante, o que não se logrou da prova produzida em audiência. Da prova não resultou, nomeadamente, que a demandante se tenha sentido nervosa, deixado de dormir, alterado um ou outro aspecto concreto da sua vida usual e de todos os dias, tomado medicação, chorado compulsivamente, etc. Ninguém o suportou e não foi produzia outra prova, pelo que mais não restou ao Tribunal do que dar tal factualidade como não provada, atentas as declarações e depoimento marcadamente genéricos e vagos a tal respeito.
O mencionado na alínea C) foi dado como não provado por total ausência de prova.
Quanto ao descrito nas alíneas D) e E) foi dado como não provado, por se ter apurado factualidade diversa, nos termos já expostos e explanados anteriormente e que permitiram provar a versão da acusação, em detrimento da versão da contestação, para os quais se remete e que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
O vertido na alínea F) foi dado como não provado, por insuficiência de prova. Foram juntos aos autos uma série de facturas e recibos, porém, os mesmos só por si e desacompanhados de outra prova, não permitem ao Tribunal concluir que se tratam de custos, encargos, despesas e prejuízos suportados pela arguida respeitantes aos referidos bens, sendo que, mais nenhuma prova, foi produzida a esse respeito, pelo que ficou por demonstrar tal factualidade.»

3.Apreciação

3.1.Dos vícios do artigo 410.º, n.º2 do Código de Processo Penal

Os poderes de cognição dos tribunais da relação abrangem a matéria de facto e a matéria de direito (artigo 428.º do Código de Processo Penal), podendo os recursos, sempre que a lei não restrinja a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida (n.º 1 do artigo 410.º do mesmo diploma).
Na sua motivação (corpo) o recorrente invoca, por esta ordem, o erro notório na apreciação da prova previsto na alínea c) do artigo 410.º, n.º2 do Código de Processo Penal, quanto ao facto provado sob o ponto 4, a insuficiência da matéria de facto provada nos termos da alínea a) do mesmo preceito e a contradição insanável entre a fundamentação e a decisão por referência à alínea b) do mesmo artigo.
Não transpôs, porém, para as suas conclusões a alegação desses vícios, limitando aquelas à sua discordância quanto às conclusões alcançadas pelo tribunal recorrido relativamente ao uso que era dado pelos vários herdeiros à habitação em causa na escritura notarial e a não ter tido a arguida a intenção de enganar a notária e, por outro lado, à defesa de que não existe a prática de qualquer crime.
Ainda assim, por se tratar de matéria que, consensualmente, é de conhecimento oficioso, passamos a conhecer da existência ou não dos alegados vícios.
Importa ter presente que os vícios da sentença enunciados no nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, são vícios da decisão sobre a matéria de facto e não de julgamento, não confundíveis nem com o erro na aplicação do direito aos factos, nem com a errada apreciação e valoração das provas ou a insuficiência destas para a decisão de facto proferida, que têm a ver com a perfeição formal da decisão da matéria de facto, isto é da sentença enquanto peça autónoma, que têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, como expressamente se estabelece na parte final do referido n.º2.
O objecto de apreciação é, assim, apenas, o texto da sentença recorrida, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos externos para indagar da existência dos vícios, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento, nem às provas nele produzidas (cf. Germano Marques da Silva Direito Processo Penal Português, Do Procedimento (Marcha do Processo Vol. 3, p.324).
Uma vez demonstrada a existência dos vícios e a impossibilidade de se decidir a causa, o tribunal de recurso deve determinar o reenvio do processo para um novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo, ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio, nos termos do art.º 426º, nº1 do C.P.P.
Para que se verifique o vício previsto na alínea a) do n.º 2 do art.º 410.º do CPP - insuficiência para a decisão da matéria de facto provada - é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão de direito que foi proferida, «porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes para a decisão da causa, alegados pela acusação ou pela defesa, ou que resultaram da audiência ou nela deviam ter sido apurados por força da referida relevância para a decisão» (Acórdão do STJ de 3/07/2002, Proc. 1748/02-5ª, acessível em www.dgsi.pt).
Este vício é aferido face à matéria de facto que o tribunal dá como provada e não face aos factos que no entender do recorrente o tribunal deveria ter dado como provados, para alcançar uma outra solução de direito.
O vício previsto na alínea b) – descrito como contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão - respeita, antes de mais, à fundamentação da matéria de facto, mas pode respeitar também à contradição na própria matéria de facto. Assim, pode existir contradição entre a matéria de facto provada, mas também entre os factos provados e os não provados, como entre a fundamentação probatória da matéria de facto ou ainda entre a fundamentação e a decisão (Germano Marques da Silva in ob. citada, p. 325).
O vício do erro notório na apreciação da prova, a que se reporta a alínea c) do mesmo preceito, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se apercebe de que o tribunal, na análise da prova, violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, verificando-se igualmente este vício quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das leges artis.
O requisito da notoriedade afere-se, pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, ao homem médio, ou mesmo «ao juiz “normal”, dotado da cultura e experiência que são supostas existir em quem exerce a função de julgar», devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (Cons. Sousa Brito, na declaração de voto no Acórdão do TC n.º 322/93 in  www.tribunalconstitucional.pt.).
Quanto ao vício da alínea a), a recorrente alega que a matéria de facto provada é insuficiente para sustentar a decisão porque o tribunal ignorou o papel que o imóvel em questão desempenhava para os restantes herdeiros dos avós da arguida, que revelaram nem sequer conhecer a casa ou os restantes membros da família, não podendo por isso concluir, como concluiu, que se tratava de uma habitação usada pelos vários herdeiros. Para ilustrar este vício transcreve parte do sumário de um acórdão da Relação de Coimbra proferido em 3/06/2015 no processo n.º248/09.2JALRA.C1.
Em primeiro lugar importa dizer que o acórdão citado pela recorrente nada tem que ver com este vício, mas, tão só, com a fundamentação da convicção do tribunal.
O tribunal, bem ou mal, deu como provados os factos da acusação, com base nos quais concluiu quanto à consumação do crime pelo qual condenou a arguida.
Em sede deste vício, não está em causa saber se esses factos foram ou não bem julgados, mas apenas saber se eles são ou não suficientes para a decisão que foi proferida pelo tribunal, quer quanto à culpabilidade, quer quanto à sanção aplicada e ainda quanto ao pedido cível.
Essa aferição é feita apenas face ao texto da decisão recorrida e, portanto, face aos factos que o tribunal deu como provados, e não face a factos que o tribunal não deu como provados, nem face às conclusões que o tribunal exprimiu em sede de motivação de facto e que a recorrente considera incorrectas.
Percorrido o texto da sentença recorrida, e sem cuidar de saber se a conduta do outorgante em escritura de justificação notarial que preste ou confirme declarações falsas se subsume ao crime previsto no artigo 348.º-A do Código Penal, matéria de direito que a final se apreciará, dele não resulta qualquer insuficiência da matéria de facto provada relativamente à decisão de direito que foi proferida, nas suas diversas vertentes.
Quanto ao vício da alínea b), a recorrente, partindo de parte do facto provado sob o ponto 4 (a arguida fez crer ao Notário, em exercício de funções no Cartório Notarial, que as declarações que prestou eram verdadeiras logrando, assim, que a escritura fosse lavrada) diz que o tribunal «aceitou como boa e verídica a afirmação da testemunha ... Bispo de que “Foi ele quem pediu a C para ser testemunha” e que daí decorre, necessariamente, que a Notária e sua equipa é que decidiram que o ato notarial fosse levado a cabo da forma que foi, sendo as afirmações nele tecidas verdadeiras, porém, por pessoas que não poderiam saber se o eram ou não», para concluir que a sentença recorrida confunde falsidade de declarações com desconhecimento dos concretos factos sobre os quais tais declarações versam.
Provavelmente por incompreensão nossa, não vemos onde esteja aqui alegada uma contradição entre factos provados e não provados, entre factos provados e a sua fundamentação de facto ou mesmo uma contradição da própria fundamentação de facto onde o tribunal exprimiu as razões da sua convicção quanto aos factos provados e aos não provados.
O que está em causa no facto provado que a recorrente invoca, que não pode ser segmentado do que antes se dá como provado no mesmo ponto e que é “Ao declarar, nos termos supra referidos, a existência da posse por parte de E e de F, do prédio identificado na escritura notarial, estado que bem sabia que não correspondia à verdade”, é que a escritura só pôde ser outorgada nos termos em que o foi, isto é, com o conteúdo que resulta desse ponto e do ponto 2, por causa das declarações prestadas pela arguida.
Ora, em que é que isso está em contradição com o que se diz em sede de fundamentação de facto quanto ao que resultou do depoimento da aludida testemunha? Ou que contradição se vislumbra na fundamentação quando o tribunal aprecia esse e outros depoimentos?
Só mesmo na construção da recorrente, com base em factos que não são os provados, mas que são os que subjazem à sua própria convicção, é que poderá, quiçá, existir alguma contradição que, reiteramos, não se constata na decisão recorrida.
Quanto ao vício do erro notório, a recorrente afirma, no essencial, que o facto provado sob o ponto 4 foi mal julgado por considerar que apresentou elementos probatórios que atestam a sua versão dos factos quanto à relação de posse que os seus pais mantinham em relação ao imóvel em questão na escritura de justificação notarial e o tribunal ter conferido credibilidade à versão trazida pela demandante e seu marido em detrimento da versão que foi dada pela arguida que está assente em diversos documentos, o que deveria fazer com que o tribunal tivesse ficado com uma dúvida razoável e insanável e recorresse ao princípio do in dubio pro reo.

Vejamos:

O princípio do in dubio pro reo, que decorre do princípio da presunção de inocência do arguido, com assento no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República, dá resposta ao problema da dúvida sobre o facto (e não sobre a interpretação da norma) impondo por isso, ao julgador, que o non liquet da prova seja sempre resolvido a favor do arguido. Tem sempre aplicação em sede de matéria de facto e pressupõe que, produzida a prova, o tribunal, e só o tribunal, tenha ficado na incerteza quanto à verificação ou não, de factos relevantes para a decisão.
A recorrente não impugnou a matéria de facto nos termos exigidos pelo n.º3 e nº 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, caso em que o tribunal de recurso, ao reapreciar a prova concretamente indicada pelo recorrente, pode e deve fazer uso do princípio do in dubio pro reo, assim como dos demais princípios que regem a apreciação da prova.
A violação do in dubio, quando não há impugnação da matéria de facto encontra-se dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto do artigo 410.º, n.º2 do C.P.P., tendo de resultar evidenciada no texto da decisão recorrida, só por si ou conjugada com as regras da experiência comum, enquanto erro notório na apreciação da prova, tal como tem vindo a ser tratada pelo STJ, enquanto tribunal de revista, no quadro dos respectivos poderes de cognição, restritos a matéria de direito (entre outros acórdão do STJ de 17/06/2021, processo 140/19.2GBCCH.C1.S1).
Neste caso importa aferir se face ao que consta do texto da decisão, se constata uma violação do princípio do in dubio pro reo, na apreciação da prova feita pelo tribunal recorrido, sem entrar na apreciação das próprias provas em si mesmas, que o tribunal valorou.
O tribunal de 1.ª instância dá a conhecer na motivação como formou a sua convicção quanto à factualidade provada enumerando primeiro as provas produzidas e examinadas, narrando depois uma síntese do que foi dito pela arguida e pelas diversas testemunhas ouvidas e fazendo a seguir a análise crítica de todas essas provas por referência aos diversos factos provados, dando as suas razões para ter valorado as declarações da demandante, nos termos em que valorou, em detrimento do que foi declarado pela arguida e pela filha desta e para ter concluído, como concluiu, quanto ao facto de a arguida saber que a casa em questão era um bem pertencente à herança indivisa da sua avó materna, da qual a demandante também é herdeira por via de uma tia, irmã da mãe arguida, e não apenas um bem dos pais da arguida, não obstante estes poderem dar mais uso à dita casa, e quanto ao facto de a arguida, na posse desse conhecimento ter ainda assim declarado o que declarou na dita escritura de justificação notarial, por forma a vir a conseguir ser a única titular do direito de propriedade sobre esse prédio.
Não resulta dessa motivação que a Sra. Juíza, na análise crítica que fez das provas, tenha ficado com a mínima incerteza quanto aos factos que deu como provados, nem que tenha valorado contra a arguida qualquer estado de dúvida sobre a existência desses factos, do mesmo modo que também não se infere que o tribunal recorrido, que não teve dúvidas quanto aos factos provados, as devesse ter, em face do que decorre da própria decisão. Perante as provas analisadas, nos termos que constam da decisão, e que como se disse está este tribunal impedido de reapreciar por não ter sido impugnada a matéria de facto, não se vislumbra que o tribunal tenha feita uma apreciação arbitrária, ilógica ou irrazoável e que devesse ter ficado num estado de dúvida quanto aos factos.
Refira-se que, ainda que o tribunal tivesse concluído que a habitação apenas era usada pelos pais da arguida, o que não foi o caso, resultando das próprias declarações da arguida, cuja síntese consta da motivação, que o bem pertencia à herança indivisa da avó da arguida e que ela própria tentou comprar esse bem aos restantes herdeiros, nunca a alegada posse poderia ser invocada para alterar a propriedade da mesma pois não é pelo facto de uma herança permanecer indivisa que os herdeiros se podem arrogar proprietários dos bens da herança por estarem na posse dos mesmos uma vez que, só a posse enquanto exercício do direito de propriedade pode permitir a aquisição desse direito.
Ora, sendo a arguida conhecedora desses factos, como resulta das suas declarações, não poderia o tribunal ter deixado de concluir como concluiu quanto ao facto de a arguida saber que aquilo que declarou não correspondia à verdade e que não fora o facto de ela ter prestado essas declarações nunca a referida escritura poderia ter sido outorgada.
Donde se conclui pela inexistência de qualquer violação do in dubio pro reo enquanto vício da alínea c) do n.º2 do artigo 410º.
Termos em que improcede o segmento do recurso quanto aos vícios.

3.2.Da existência ou não do crime de falsas declarações

O tribunal recorrido, depois de uma breve excursão sobre o surgimento deste tipo legal de crime no Código Penal e de analisar os seus elementos típicos constitutivos concluiu que a conduta provada da arguida, consubstanciada nas declarações falsas que a mesma prestou perante notário, na escritura de justificação notarial, que foi outorgada no dia 25.01.2017, de forma livre e consciente, bem sabendo que tal conduta lhe era proibida, a fizeram incorrer na prática de um crime de falsas declarações p. e p. pelo artigo 348.º-A, nºs 1 e 2 do Código Penal.
A recorrente alega que a declaração sobre factos ou acontecimentos, como o modo de aquisição de um imóvel através da posse – usucapião - não pode ser tipificada na estatuição da norma que pune o crime de falsas declarações p. e p. pelo artigo 348.º- A, do Código Penal, louvando-se para tanto, em sede de motivação, na opinião expressa por Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal, 3ª edição actualizada, p. 1109.

Vejamos:

Este tipo legal de crime foi aditado pela Lei n.º 19/2013, de 21/02 (que introduziu alterações ao Código Penal), na sequência de um parecer da Procuradoria Geral da República sobre «a tutela de falsas declarações e eventuais lacunas carecidas de intervenção legislativa em matéria de falsas declarações perante autoridade pública», elaborado por Paulo Dá Mesquita[1] com vista a suprir as lacunas punitivas carecidas de intervenção legislativa em matéria de falsas declarações perante autoridade pública, tais como os artigos 45.º, n.º3 e 253.º, n.º2 do Código de Registo Civil, o artigo 153.º do Código de Registo Predial, o artigo 97.º do Código de Notariado, declarado inconstitucional pelo acórdão do TC n.º 379/2012, o artigo 47.º do Decreto-Lei n.º83/2000, o artigo 2.º-A da Lei n.º7/2001, na redacção dada pela Lei n.º23/2000 e o artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, que por sua vez resultou da revogação dos artigos 22.º a 24 do Decreto-Lei n.º33725 de 21 de Junho de 1944, operada pela Lei n.º33/99 e da constatação da existência em legislação penal extravagante de exemplos de normas penais completas que tipificam e punem situações específicas de falsas declarações fora de quaisquer processos judiciários, tais como o artigo 17.º, n.º1 da Lei n.º104//2009, de 14 de Setembro (que regula o regime de concessão de indemnização às vítimas de crimes violentos e de violência doméstica), do artigo 43.º, n.º1, alínea b) da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro (Lei da Protecção de Dados Pessoais) e do artigo 39.º, n.º2 da Lei n.º 2/99, de 13 de Janeiro (Lei de Imprensa), entre outras.
Nesse parecer realçou-se que a “ausência de tutela penal das falsas declarações perante autoridade pública afecta a autonomia intencional do Estado, nomeadamente nas áreas dos registos, notariado, concursos públicos e múltiplos procedimentos sancionatórios”.

Na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 75/XII/1, apresentada na sequência desse parecer, e também para introduzir outras alteração ao Código Penal, escreve-se como justificação para a nova disposição (artigo 348.º-A), que se manteve com a mesma redação que foi proposta e com a que hoje está formulada, o seguinte:
«Aproveita-se para clarificar o tipo do crime de falsas declarações, que deixa de se confinar às declarações recebidas como meio de prova em processo judiciário, ou equivalente, passando a constituir ilícito criminal igualmente as falsas declarações que sejam prestadas perante autoridade pública ou funcionário público no exercício das suas funções e se destinem a produzir efeitos jurídicos. Protege-se desta forma a autonomia intencional do Estado e dá-se conteúdo normativo às múltiplas remissões feitas na legislação avulsa para este tipo de crime».

O legislador quis, assim, colmatar a ausência de um crime geral de falsas declarações perante entidades públicas, que desse conteúdo material às diversas normas da legislação extravagante que remetem a punição das condutas nelas referidas para um tipo abstratamente designado de falsas declarações.[2]
Sendo essa, em termos muito sintéticos, a história do preceito[3] e tendo o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 96/2015, sem entrar na apreciação sobre se a conduta do outorgante em escritura de justificação notarial que preste ou confirme declarações falsas se subsume ao crime previsto no artigo 348.º-A do Código Penal, vindo a proclamar com força obrigatória geral, o artigo 97.º do Código de Notariado[4], desta vez com fundamento na sua inconstitucionalidade orgânica, importa averiguar se, em concreto, a conduta da arguida pode ser subsumida ou não na previsão do tipo objectivo deste tipo legal de crime.

Estabelece o n.º 1 deste artigo, sob a epígrafe de “Falsas declarações”:
1- Quem declarar ou atestar falsamente à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.
2- Se as declarações se destinarem a ser exaradas em documento autêntico o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa.

Como se referiu, o bem jurídico protegido com a incriminação é a autonomia intencional da autoridade pública ou do funcionário no exercício das suas funções, que pode ser posta em causa quando o funcionário ou a autoridade pública não conhece a pessoa que se lhe dirige.
Trata-se de um crime de “perigo abstrato, quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido” e de “mera atividade quanto à forma de consumação do ataque ao objeto da ação” (Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal, 3ª versão atualizada, p. 1215).

Ao nível do tipo objectivo exige-se:
- a declaração ou atestação falsa à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções;
- que essa declaração ou atestação seja sobre «identidade», «estado» ou «outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos», próprios ou alheios.

No n.º 2 acrescenta-se um outro elemento, que tem como consequência uma punição mais grave, que é o de a declaração ou atestação se destinar a ser exarada em documentos autênticos.
A falsidade da declaração ocorre quando o conteúdo do declarado não corresponde à realidade fáctica que o mesmo descreve ou exara relevando, portanto, a falsidade ideológica.
O conteúdo relevante da falsa declaração ou atestação tem de respeitar à «identidade», «estado» ou «outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos», próprios ou alheios, sem que se precise o concreto âmbito de cada um destes elementos, o que gera algumas dificuldades, em especial quanto ao que é abrangido por «outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos».
Segundo Paulo Albuquerque (ob. Citada, p. 1216), a «identidade» inclui a identidade do declarante ou de terceiro”; o «estado» inclui o estado civil do declarante ou de terceiro e «a outra qualidade a que a lei atribui efeitos jurídicos» inclui a filiação, a naturalidade, a nacionalidade, a data de nascimento, a profissão, a residência e o local de trabalho, do declarante ou de terceiros.
Adianta o mesmo autor, por contraste com a expressão «factos» que é usada no artigo 359.º do Código Penal (que pune o crime de falsidade de depoimento ou declaração num processo), que “não podem ser consideradas como típicas as declarações sobre factos ou acontecimentos mesmo que tenham sido vividos pelo declarante, como o modo de aquisição da posse de um imóvel ou o modo de condução de um veículo automóvel”.
Já Miguez Garcia e Castela Rio (in Código Penal – Parte Geral e Especial, p. 1358) entendem que: «A expressão “a que a lei atribua efeitos jurídicos” destina-se a pôr em evidência um facto juridicamente relevante. A idoneidade probatória, idoneidade para provar facto juridicamente relevante, avalia-se segundo critérios objetivos. Para tanto, basta a aptidão para formar uma convicção de fatores codeterminantes. Comete este crime o indivíduo apanhado a viajar sem bilhete no metropolitano que se identifica com o seu nome, mas dá como morada a de um terceiro que sabe estar de momento desocupada. Também comete este crime o indivíduo que declara falsamente a notário, depois de advertido, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios, para serem exaradas em documento autêntico.».
Por reporte ao que consta da Lei n.º 33/99 de 18/05 (que regulamenta a identificação civil) ou do que é estabelecido no artigo 4.º do Código de Registo Civil sobre o que integra a identificação civil, na noção de «identidade» deve incluir-se o nome, a filiação, a naturalidade, a data de nascimento, o sexo e a residência.
O estado civil do declarante ou de terceiro, não incluindo o conceito civil de identidade ou de identificação, é o que deve ser considerado para preencher o conceito de «estado» que se refere no  preceito.
Já o que se entenda por «outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios», sendo algo mais relativamente aos conceitos de «identidade» e «estado», tem de ser preenchido em função do caso concreto e de ser ou não um facto juridicamente relevante, como defendem Miguez Garcia e Castelo Ria, tendo em conta o que esteve subjacente à pretensão do legislador quando introduziu este tipo de crime, em termos de tutela do bem jurídico que pretendeu proteger.
O legislador, como evidencia a história do preceito e é referido no dito parecer pretendeu punir as falsas declarações prestadas perante funcionário ou autoridade pública, protegendo a autonomia intencional do Estado, nomeadamente nas áreas dos registos e do notariado.
No acórdão da Relação de Évora de 16/06/2015, processo n.º 2119/13.9TAPTM.E1 (acessível em www.dgsi.pt) decidiu-se que integra este elemento a conduta dos arguidos que “produziram afirmações falsas acerca de uma qualidade – a de condutor da viatura, à qual a lei atribui efeitos jurídicos, nomeadamente quanto à necessidade de habilitação legal para o exercício da condução, à obrigação de sujeição a fiscalização da condução sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas e eventual responsabilidade criminal pela prática de crimes no exercício da condução – atribuindo-a a um deles, quando sabiam perfeitamente que não era esse, mas sim um outro, o condutor da viatura, com o claro propósito de levar aquele militar a elaborar o auto de notícia e a participação de acidente com dados falsos sobre a identidade da pessoa, não da pessoa que ali ficou a constar como sendo o condutor da viatura, mas sim acerca de quem exercia realmente a condução.

Diz-se nesse acórdão que « Ao declarar ou atestar falsamente identidade, estado ou outra qualidade própria ou de terceiro, o agente induz a autoridade ou funcionário a quem se dirige a praticar ato objectivamente viciado nos seus pressupostos, pondo em causa a própria administração e a sua imprescindibilidade para a realização ou satisfação de finalidades fundamentais, indispensáveis em qualquer sociedade organizada».

Pela mesma ordem de razões, no caso de o agente que numa escritura de justificação notarial declara falsamente a qualidade de possuidor de outrem de um imóvel, com vista a conseguir obter o registo de propriedade com base na usucapião, deve ser considerado como sendo uma declaração falsa de uma qualidade a que lei atribui efeitos jurídicos para efeito de integração da conduta no crime de falsas declarações previsto no artigo 348.º-A do Código Penal pois tal declaração atinge a autoridade pública na sua autonomia intencional que é imprescindível para a realização de um Estado de Direito, de modo a justificar a sua punição. Foi, aliás, para colmatar, também, a lacuna resultante da declaração de inconstitucionalidade material do artigo 97.º do Código de Notariado, proclamada pelo acórdão do TC n.º379/2012, que punia as falsas declarações em escritura de justificação notarial, remetendo para uma norma então inexistente no Código Penal, que o actual artigo 348.º-A do Código Penal foi introduzido.

É certo que, já na vigência do atual crime de falsas declarações, esse artigo 97.º foi declarado inconstitucional com força obrigatória geral, com fundamento  em inconstitucionalidade orgânica, deixando assim de poder ter-se em conta a advertência que consta desse artigo - de o Notário advertir os outorgantes de que incorrem na pena aplicável para o crime de falsas declarações se prestarem ou confirmarem declarações falsas. Porém, independentemente dessa advertência, hoje inexistente[5], não pode deixar de se considerar que as declarações falsas prestadas pelo outorgante numa escritura de justificação notarial, das quais resultam efeitos jurídicos, como é no caso de através delas se obter a propriedade de um prédio por usucapião, integram hoje o crime de falsas declarações previsto no artigo 348.º-A do Código Pena, mesmo que as declarações se reportem a factos que não foram vividos pelo declarante, assim se discordando da posição que é defendida por Paulo de Albuquerque.

Face ao exposto e tendo em conta os factos provados nos autos, entendemos que a qualidade de possuidor do prédio pelos pais da arguida, nos termos por esta falsamente declarados perante a notária, na escritura de justificação notarial que a mesma outorgou, preenchem o elemento constitutivo objectivo do crime de falsas declarações do artigo 348.º-A do Código Penal, por constituírem uma declaração sobre uma qualidade de terceiro a que a lei atribui efeitos jurídicos, designadamente a de poderem justificarem a propriedade do prédio em causa por usucapião, que, em conformidade com aquela que foi a intenção do legislador quando introduziu a punição das falsas declarações perante a autoridade pública, ofendem a autonomia intencional do funcionário, no caso Notário, perante o qual foram essas declarações prestadas.

Porque se trata de um crime doloso e igualmente ficou provado o dolo da arguida, bem como a consciência por parte desta da natureza proibida da conduta, não pode deixar de se confirmar a condenação da arguida pela prática do crime de falsas declarações p. e p. pelo artigo 348.º-A do Código Penal, nos termos decididos pelo tribunal recorrido.

Face ao exposto há que concluir pela improcedência do recurso apresentado e, consequentemente, pela condenação em custas da recorrente, nos termos do artigo 513.º, n.º1 do Código de Processo Penal.

III–Decisão

Pelo exposto, acordam, os Juízes na 5ª Secção deste Tribunal da Relação, em negar provimento ao recurso interposto pela arguida e em confirmar a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente, fixando-se em 3UC a taxa de justiça.



Lisboa, 28 de Março de 2023


(processado e revisto pela relatora – art.º 94.º, n. º 2 do C.P.P.)



(Maria José Costa Machado - relatora)
(Carlos Espírito Santo - 1.º adjunto)
(Paulo Duarte Barreto Ferreira - 2.º adjunto)


[1]Publicado na Revista do Ministério Público, nº134, págs. 79-116 e acessível na anotação ao artigo 348.º-A em https://www.pgdlisboa.pt.
[2]Maria de Fátima dos Anjos Colaço, Breve Comentário ao “Novo” Crime de Falsas Declarações “, Dissertação de Mestrado  em Ciência Jurídico- Criminais , Universidade de Coimbra, acessível em  
https://estudogeral.uc.pt/handle/10316/43317?locale=en
[3]Cujos antecedentes se podem ler com mais pormenor no referido parecer.
[4]Este artigo, sob a epígrafe “advertência”, está incrido na Subsecção II referente às Justificações Notariais e prescreve:« Os outorgantes são advertidos de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações perante oficial público se, dolosamente e em prejuízo de outrem, prestarem ou confirmarem declarações falsas, devendo a advertência constar da escritura.»
[5]Que, como assinala a Conselheira Fátima Mata Mouros, na sua declaração de voto de vencido daquele acórdão, pode suscitar problemas ao nível da falta de consciência da ilicitude e do erro sobre os elementos objetivos do crime previsto no art.º 348º-A, do Código Penal, se, por exemplo, o notário deixar de advertir os declarantes para a punição das falsas declarações, ou a pessoa que prestou as falsas declarações perante o notário afirmar em Tribunal que estava convencida que o disposto no art.º 97º, do Código do Notariado não estava em vigor por força desta decisão de inconstitucionalidade formal.