Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8042/20.3T8LRS.L1-6
Relator: JORGE ALMEIDA ESTEVES
Descritores: SERVIDÃO ADMINISTRATIVA
ÁGUAS PÚBLICAS
OBRAS
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
ÓNUS E ENCARGOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I- O não conhecimento do pedido reconvencional que, por natureza, é incompatível com o pedido principal, não constitui fundamento de nulidade da sentença por omissão de pronúncia, sendo até imposto pelo art.º 608º/2 do CPC.
II- A Lei nº 54/2005, de 15.11, estabelece que, no caso de águas públicas não navegáveis e não flutuáveis localizadas em prédios particulares, o respetivo leito e margem são particulares, nos termos do artigo 1387.º do Código Civil, estando sujeitos a servidões administrativas (art.º 12º/2), não sendo permitida a execução de quaisquer obras permanentes ou temporárias sem autorização da entidade a quem couber a jurisdição sobre a utilização das águas públicas correspondentes (art.º 21º/2).
III- Os lotes prometidos vender estão sujeitos a essa servidão administrativa por, nas respetivas extremas, passar uma linha de água que está seca, pelo que a mesma resulta da natureza específica do terreno, sendo algo de inultrapassável.
IV- O regime relativo a estes cursos de água, mesmo quando estejam secos, visa acima de tudo acautelar a segurança de pessoas e bens, pois os sulcos agora secos e por onde antes passaram cursos de água, podem voltar à situação anterior, nomeadamente em casos de chuvas intensas e de enxurradas, sendo necessário acautelar uma margem de segurança entre o leito e a construção que se pretende efetuar.
V- Resultando a servidão da mera natureza do terreno, visando acautelar o interesse público, e decorrendo ela de forma automática da aplicação da lei, não está incluída na cláusula do contrato-promessa pela qual os réus prometeram vender os lotes de terreno livres de ónus e encargos, tratando-se de uma situação de força maior, que se impõe às partes, sem possibilidade de ser afastada.
VI- Ainda que fosse de equacionar a existência de facto ilícito por parte dos réus promitentes vendedores por via da existência da referida servidão - que não se provou que conhecessem à data da celebração do contrato-promessa - a presunção de culpa estaria afastada por se tratar de uma situação de força maior.  
VII- Tendo os autores, promitentes-compradores, recusado a celebração do contrato prometido e não tendo logrado provar que caso tivessem conhecimento da referida linha de água não teriam celebrado o contrato-promessa, estamos perante uma violação ilícita, culposa e definitiva desse mesmo contrato, a qual concede aos réus o direito de fazerem sua a quantia entregue a título de sinal.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes Desembargadores que compõem este Coletivo da 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Autores recorridos: BS e TS
Réus recorrentes: JS e MS
Os autores instauraram ação de condenação sob a forma comum de declaração, formulando o seguinte pedido:
A) Em face do incumprimento definitivo por parte dos RR e da perda do interesse pela prestação por parte dos AA, assiste-lhes o direito à resolução do contrato e erro sobre o objecto negocial, reclamando o pagamento em dobro do sinal, no valor global de €60.000,00 (sessenta mil euros), acrescido de juros à taxa legal, desde 23 de Outubro de 2019 até efectivo pagamento.
B) Assim não se entendendo – o que apenas por hipótese académica se admite – pede-se a resolução do contrato e erro sobre o objecto negocial, e em consequência, a obrigação dos RR de restituírem as quantias pagas pelos AA, no valor de €30.000,00, acrescida de uma indemnização por danos não patrimoniais, no valor não inferior a €10.000,00, o que perfaz a quantia de €40.000,00 (quarenta mil euros), e respectivos juros de mora, vencidos desde 23 de outubro de 2019 até integral pagamento.
Para fundamentar o pedido alegaram que celebraram com os réus um contrato-promessa de compra e venda de três prédios urbanos, com vista à edificação de moradias. Ficou estipulado que a venda seria efetuada sem ónus e encargos que incidissem sobre tais prédios. No entanto, verificou-se que os prédios estavam onerados por uma servidão administrativa, por serem contíguos a uma linha de água, que geralmente está seca, e cuja existência desconheciam e não era percetível. Os réus ocultaram intencionalmente a existência desta servidão e agendaram a escritura definitiva, a que os autores compareceram, mas recusaram-se a celebrá-la, com fundamento na existência da referida servidão. Esse ónus, que é insuscetível de ser removido, condiciona a implementação do projeto de construção que os autores tinham em vista, pelo que, caso soubessem da respetiva existência não teriam celebrado o contrato-promessa. Tendo os autores efetuado a entrega de um sinal no montante de 30 mil euros, pretendem a sua devolução em dobro, uma vez que entendem que o incumprimento é imputável aos réus.
Os réus contestaram, impugnando os factos alegados pelos autores, referindo que não tiveram qualquer intervenção no processo de loteamento destes prédios, desconhecendo a existência da linha de água. Os lotes foram adquiridos, conjuntamente com outros comproprietários, por permuta realizada com o Município de Odivelas, que lhos transmitiu livres de ónus e encargos. Posteriormente foi feita divisão de coisa comum, cabendo aos réus os lotes prometidos vender. Os autores conheciam bem os lotes, tendo começado diligências junto da Câmara Municipal ainda antes da celebração do contrato-promessa. Os réus celebraram o contrato-promessa convencidos de que não existia qualquer servidão, pois a mesma não se encontra registada. Acresce que não se trata de uma servidão administrativa, mas apenas a sujeição do titular do direito real às condicionantes impostas pelo município ou por outras entidades.
Com base nisso, deduziram reconvenção, pedindo que se reconheça que o incumprimento é imputável aos autores e que os réus têm direito a fazer seu o sinal entregue.
Foi proferido despacho saneador que julgou tabelarmente verificados os pressupostos processuais e admitiu o pedido reconvencional.
Foram enunciados o objeto do litígio e os temas da prova.
Realizou-se a audiência final, tendo sido proferida sentença que terminou com o seguinte segmento decisório:
Pelo exposto, julgo a ação parcialmente procedente e a reconvenção totalmente improcedente e, consequentemente:
i)
Condeno os réus no pagamento aos autores da quantia de 60.000,00€ (sessenta mil euros), correspondente ao dobro do sinal recebido, a que acrescem juros de mora, à taxa legal supletiva para os juros civis de 4%, desde a citação e até integral pagamento.
ii)
Absolvo os réus do remanescente pedido de juros.
iii)
Absolvo os autores do pedido reconvencional.
iv)
Custas por ambas as partes, na proporção do respetivo decaimento”.
*
Inconformados com o decidido, apelaram os réus, tendo apresentado alegações e as seguintes conclusões:
A. Sem desprimor, diga-se que a sentença proferida é injusta e desproporcional em relação aos RR., ora recorrentes (rtes.).
B. Os rtes. limitaram-se a prometer vender lotes de terreno para construção aos recorridos (rdos.) nas mesmíssimas condições em que os adquiriram, conforme resulta dos pontos 13 a 16 da matéria fáctica, ou seja, livre de quaisquer ónus ou encargos. E não os compraram a uma pessoa ou entidade qualquer; adquiriram-nos ao Município de Odivelas, por permuta.
C. O alvará de loteamento foi aprovado pelo município no ano de 1998, sem qualquer interferência ou envolvimento dos rtes., e na ocasião o procedimento ter-se-á submetido aos pareceres exigíveis.
D. Ao prometer vender aos rdos. os lotes adquiridos, estavam imbuídos da boa fé que derivava dessa aquisição a uma entidade pública idónea e de bem, como é o município.
E. Entendeu a Mma. Juíza “a quo” que a existência de uma servidão legal - apesar de no caso apenas impor restrições mas não impedimentos absolutos, e que não eram do conhecimento dos rtes., como se apurou nos autos – deveria ser do conhecimento dos rtes., enquanto promitentes vendedores, imputando-lhes a partir daí o incumprimento parcial do contrato promessa.
F. Ora, sabe-se que por força do art.º 6.º do CC a ignorância da lei não justifica a falta do seu cumprimento. Mas esse princípio de ignorantia juris non excusat é válido erga omnes, aplicando-se por igual aos promitentes vendedores e aos promitentes compradores.
G. O que é injusto e desproporcional é reconhecer a validade desse princípio em relação a uma só das partes e desencadear sobre a mesma parte todas as consequências de um pretenso incumprimento, quando no limite se está perante uma impossibilidade objectiva pré-existente à data da celebração do contrato promessa.
H. Tal como se narra no ponto III das alegações e que aqui se dá por integralmente reproduzido, designadamente as transcrições, o ponto 6 da matéria de facto e a alínea d) dos factos não provados, devem ser alterados nos termos ali propugnados e que se reiteram.
I. O doc. 6 junto pelos próprios AA., ora rdos., com a sua p.i., demonstra que os contactos com a Câmara de Odivelas tiveram início em 14/03/2019 (vide canto superior direito de tal documento).
J. E nesse documento obtido pelos rdos. está assinalada, a azul, a linha de água.
K. Do ponto 6 consta erradamente que apenas em agosto de 2019 incumbiram um gabinete de preparar projetos para uma moradia unifamiliar e que só em setembro de 2019 descobriram a existência de uma linha de água.
L. Por outro lado, a sentença deu como não provado “... Que os autores conheciam o local dos lotes e já ali se tinham deslocado, e iniciado diligências junto do Município de Odivelas para obter informações muito tempo antes de outorgarem o contrato promessa de compra e venda...”.
A. Ora, que os rdos. conheciam o local e que tinham a família toda a viver ali perto é afirmado pela testemunha e sócio dos mesmos, HC, no seu depoimento supra transcrito e que aqui por economia processual se dá por reproduzido.
B. Nos termos do art.º 662º/1 do CPC, o Tribunal da Relação deve alterar a decisão sobre a matéria de facto quando a prova produzida impuser uma solução diversa. Em nossa modesta opinião é esse o caso.
C. Atendendo ao que se detalha em todo o ponto III supra das alegações e que aqui se dá por reproduzido, a resposta à matéria de facto deveria, em conformidade, conter as alterações a seguir assinaladas:
Deve alterar-se o ponto 6. para ficar a constar o seguinte:
Em junho de 2019 os autores incumbiram uma empresa de preparar projetos com vista ao futuro licenciamento de uma moradia unifamiliar no lote 1, tendo, em meados de março de 2019, verificado que existia uma linha de água contígua à extrema dos lotes que pretendiam comprar.
D. Concomitantemente, deve o teor da alínea d) dos factos não provados passar a figurar no rol dos factos provados.
E. Como se aduz no ponto IV supra das alegações e aqui se dá por reproduzido, brevitatis causa, o tribunal “a quo” omitiu qualquer apreciação relativamente à matéria da reconvenção deduzida pelos réus, ora, rtes., e não impugnada pelos AA., ora rdos., contaminando de nulidade a sentença, o que se argui, à luz do disposto no art.º 615º/1, d) do CPC
F. Os rdos. não marcaram a escritura como lhes competia e no prazo devido, e nada comunicaram aos promitentes vendedores a justificar a omissão, apesar de já saberem das restrições administrativas assinaladas pela APA.
G. Os ora rdos. deixaram decorrer o prazo de marcação a que estavam adstritos, receberam a carta convocatória da escritura da iniciativa dos réus e nada disseram até ao dia designado; não pediram qualquer adiamento; não formularam qualquer proposta; limitaram-se a invocar a existência de uma servidão legal, ou seja, algo que estavam obrigados a conhecer desde data anterior à celebração da promessa.
H. É que se os promitentes vendedores não podiam ignorar esse ónus, os promitentes compradores também não.
I. Quando o contrato promessa elaborado pela mediadora imobiliária assevera a inexistência de ónus, está naturalmente a referir-se a ónus ocultos, a ónus susceptíveis de serem afastados pelas partes, como é o caso das hipotecas e das penhoras, por exemplo – não a ónus “ope legis” em que inexiste poder de remoção dependente da capacidade, da vontade ou do interesse de qualquer contratante.
J. O prévio incumprimento por parte dos ora rdos. e a situação de mora em que se achavam não mereceram qualquer apreciação do tribunal recorrido.
K. De harmonia com o art.º 608.º, n. 2 do CPC, o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação.
L. Por sua vez, o tribunal da mesma forma ignorou a existência das 3 certidões camarárias, uma por cada lote, apresentada pelos réus, ora rtes., através do seu requerimento de 22.03.2023 (ref.ª citius 35452677), por via das quais é atestado que, àquela data (06.03.2023), mantinha-se inalterada a aptidão construtiva de cada lote.
M. E tal apreciação era importante já que relevaria para aquilatar a validade dos argumentos dos AA., segundo os quais e mercê das invocadas restrições, ficariam com uma área de construção diminuída – o que não é verdade.
N. Essa omissão tinge igualmente de nulidade a sentença, o que se argui, à luz do disposto no art.º 615º/1, d) do CPC.
O. Conforme se escreve no ponto IV, n. 3 das alegações e que aqui se dá por reproduzido, ocorre uma contradição entre os fundamentos e a decisão quando o tribunal recorrido dá por não provado o que consta sob a alínea b) ao mesmo tempo que declara o incumprimento por parte dos promitentes vendedores por impossibilidade parcial do contrato a eles imputável. Sob essa alínea b) foi dado como não provado “Que os autores nunca teriam celebrado o contrato-promessa de compra e venda nem entregue aos réus o sinal de 30.000,00€ (trinta mil euros) se tivessem prévio conhecimento da existência de uma linha de água no limite dos lotes”.
P. Como escreve a própria magistrada “a quo”, “... quanto à alínea b), a prova feita não foi convincente, não tendo ficado claro se os autores se precipitaram ao recusar a outorga do contrato prometido e se não estariam dispostos a fazer a compra se soubessem que conseguiam construir nos moldes em que a pessoa que acabou por adquirir os lotes, ali fez e está a fazer...” E finaliza: “... Face a tudo isto, é forçoso concluir que o depoimento da testemunha MC infirma o depoimento de PM, uma vez que já edificou noutros lotes contíguos à linha de água, sem perda de capacidade edificativa e está a edificar nos lotes em questão, visando a sua venda. As dificuldades perspetivadas pelos autores não se verificaram com este construtor, pelo que a opção por não celebrar o contrato definitivo com esse fundamento terá resultado de alguma precipitação ou de qualquer outra razão que se desconhece...”
Q. Aliás, o próprio autor BS declarou em audiência que mantinha interesse nos lotes, mas por outro valor de venda, de onde se pode concluir que o interesse em adquirir existiria mesmo sabendo ab initio da linha de água.
R. Mas além do próprio declarante, existem outras evidências documentais e testemunhais a confirmar que os AA., ora rdos., desvalorizaram as restrições decorrentes da existência da linha de água.
S. Desde logo a matéria dada como provada sob os pontos 11. e 12.
T. O que decorre do ponto 11 é que, mesmo depois de terem recusado fazer a escritura no dia 22.10.2019, poucos dias depois, a 28.10.2019, os AA. dirigem um mail à Administração Hidrográfica do Tejo e Oeste, cujo assunto é “Reunião com Técnico – Viabilidade Construção”. Isto é, os AA. não abandonaram a ideia de construir nos lotes, mesmo depois da recusa da escritura.
U. E verificando que as restrições comunicadas não eram impeditivas da construção, como não foram, abandonaram-se a uma longa letargia ao longo de um ano sem qualquer interpelação dos réus, e sem apresentar qualquer contraproposta. O problema não foi outro senão a falta de capacidade financeira para promover a construção.
V. Depois, a prova testemunhal supra transcrita e que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.
W. Ora perante esta prova da manutenção do interesse dos AA. na compra dos lotes, manifestada ainda em julgamento e reconhecida pelo próprio tribunal “a quo”, mesmo depois de estarem cientes das restrições existentes, não pode a decisão contraditoriamente dar por verificada uma impossibilidade parcial da prestação e entender que não se está perante uma restrição de escassa importância.
X. Salvo melhor opinião, a sentença padece outrossim da nulidade prevista no 615º/1, c) do CPC, o que expressamente se argui e sempre integraria um erro de julgamento.
Y. O tribunal além de incorrer em erro de julgamento, incorre em violação de lei.
Z. Entendeu o tribunal recorrido ser aplicável à situação vertente o disposto no art.º 802.º, n. 1, do CC, por considerar que a situação é qualificável como de impossibilidade parcial culposa, como se exara no ponto V, ponto 1 e que aqui se dá por reproduzido.
AA. Essa disposição conjuga-se com o disposto no art.º 801.º do CC, que pressupõe uma atuação culposa, e com o disposto no art.º 808.ºdo CC, que pressupõe uma avaliação objetiva da perda de interesse no negócio.
BB. Diga-se antes de mais, que a prestação não se tornou, total ou parcialmente impossível, pela simples razão de que a servidão referida pelo tribunal era pré-existente ao contrato promessa, sendo por isso inaplicável ao caso.
CC. A impossibilidade descortinada pelo tribunal “a quo”, sendo anterior ao contrato-promessa e originária da prestação, inscrever-se-ia no âmbito da previsão do art.º 401.º do CC, originando uma nulidade do negócio jurídico que, todavia, não foi invocada.
DD. Na economia da sentença, estamos perante uma servidão legal, não oculta, e, portanto, cujo desconhecimento não pode ser invocado, como o prescreve o art.º 6.º do CC. E aliás não sendo oculta e não estando na disponibilidade dos promitentes vendedores a sua remoção, exclui-se do âmbito dos ónus previstos no contrato promessa – porque aí apenas cabem os que se inscrevem na esfera da disponibilidade e da vontade dos promitentes vendedores.
EE. Porém, a Mma. Juíza “a quo” estabelece um inédito princípio da culpa exclusiva dos promitentes vendedores, concentrando neles a obrigação de se informar e conhecer a existência do ónus de servidão – deixando de fora dessa obrigação os promitentes compradores, introduzindo nessa avaliação uma violação do princípio constitucional da igualdade perante a lei.
FF. Daí que o art.º 6.º do CC deva ser julgado inconstitucional quando interpretado com o sentido, alcance e termos feitos pelo tribunal “a quo” e com os resultados práticos verificados, imputando exclusivamente aos promitentes vendedores a obrigação de conhecer a lei, assim incorrendo, designadamente na violação dos arts. 2.º, 3.º, 13.º, 20.º e 202.º/2 da CRepP, na medida em que ofende a tutela efectiva dos direitos dos rtes., a proporcionalidade e a protecção da confiança.
GG. Sucede que os AA. adquiriram um lote para construção urbana, sem projeto de construção, cientes de que teriam de se sujeitar às regras e condicionantes impostas pelo município e por quaisquer outras entidades que decidissem sobre a matéria.
HH. E estavam obrigados a conhecer todas as condicionantes.
II. No contrato nada se clausulou quanto a áreas de construção; a materiais a utilizar; a distanciamentos; a cérceas; a vedações e à natureza dos materiais, nem quanto a nada que pudesse depender de condicionantes regulamentares fixadas pelas entidades competentes em matéria de urbanismo e de ambiente.
JJ. Nada disso dependia dos RR., ora rtes..
KK. E a verdade é que outras construções se ergueram e continuam a erguer no local, nada fazendo suspeitar acerca da existência de uma servidão.
LL. Na qualificação feita na sentença recorrida cabe a imputação da culpa e da má fé aos rtes.
MM. Contudo, os promitentes vendedores outorgaram o contrato de boa fé e fundados na declaração do próprio município na escritura de permuta, conforme resulta dos pontos 13 a 16 da matéria fáctica que aqui se dão por reproduzidos.
NN. À data da permuta, e em plena vigência da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, o Município de Odivelas outorgou a escritura declarando que a transmissão dos lotes era feita sem ónus ou encargos.
OO. E foi nesse convencimento que os RR., confiando na presumida probidade do município, prometeram vender os lotes, ignorando a existência de qualquer servidão.
PP. Os RR. não violaram qualquer cláusula constante do contrato promessa e por isso não o incumpriram.
QQ. Os AA. sim, incumpriram o contrato, não celebrando nem sequer marcando a escritura pública no prazo previsto, e recusando outorgá-la mesmo depois de interpelados admonitoriamente para tanto e sob o risco de perda do sinal.
RR. No contexto do negócio jurídico vertente, e não sendo de aplicar o regime do art.º 401.º do CC, a subsunção deveria incidir sobre o art.º 793.º do CC, na medida em que supõe a inexistência de culpa de parte a parte.
SS. Sucede que os AA. teriam de demonstrar justificadamente o desinteresse no cumprimento parcial da obrigação para poderem resolver o negócio.
TT. E o que resulta dos depoimentos acima transcritos e da fundamentação da matéria provada e não provada, também acima transcrita, é que os promitentes compradores não perderam interesse no negócio e mesmo na audiência de julgamento isso foi reafirmado.
UU. Donde resulta que não lhes assiste nem assistia o direito a resolver o negócio.
VV. Em suma, em nossa modesta opinião é inaplicável à situação em causa nestes autos o disposto no art.º 802.º do CC, primeiro porque a servidão era anterior ao contrato promessa pelo que não se pode asseverar que a prestação se tornou parcialmente impossível.
WW. Também é inaplicável porque não existe qualquer culpa dos rtes., apenas foi ficcionada.
XX. Finalmente, e por força do n. 2 do art.º 802.º do CC, se acaso se tratasse de um incumprimento parcial, os AA. não podiam resolver o negócio, dado o seu interesse e a escassa importância do pretenso incumprimento.
YY. É que, reitera-se, os AA. declararam ao tribunal, e as testemunhas confirmaramno, como supra se transcreveu, que mantinham o seu interesse no negócio, apesar de terem resolvido o negócio.
ZZ. Quer porque não invocaram qualquer nulidade, quer porque não justificaram minimamente qualquer desinteresse no negócio, antes pelo contrário, não assiste aos rdos. O direito a qualquer indemnização ou à restituição do sinal constituído.
AAA. Por seu turno, estando os AA. em mora, jamais poderiam resolver o negócio e pelos fundamentos com que o fizeram, conforme estatui o disposto no art.º 438.º do CC
BBB. Diversamente, foram os AA. que se constituíram em mora e incumpriram definitivamente o contrato, pelo que recai sobre si o ónus da perda de sinal, tal como requerido.
*
Os autores contra-alegaram, pugnando pela manutenção do decidido, concluindo da seguinte forma:
A. Delimitaram os Recorrentes o objeto do recurso em “erro de julgamento e por violação de lei. Além disso, e s.m.o., a sentença padece de vícios previstos no art.º 615º, n. 1, do CPC, sendo por isso nula.”
B. Sustentam o mesmo:
a. Factos incorretamente julgados:
i. Facto 6, dos factos provados
ii. Alínea d) dos factos não provados
b. Nulidade de sentença, à luz da alínea c) e d) n.º 1 do artigo 615.º CPC.
c. Violação da Lei
C. Começando pelos factos incorretamente julgados, sustentam os Recorrentes que, o ponto 6 do factos provados, foi mal julgado, pelo Tribunal a quo, na redação por este dada: alegando para o efeito, que o facto 6, do elenco dos provados, devia ter a redação seguinte: “Em junho de 2019 os autores incumbiram uma empresa de preparar projetos com vista ao futuro licenciamento de uma moradia unifamiliar no lote 1, tendo, em meados de março de 2019, verificado que existia uma linha de água contígua à extrema dos lotes que pretendiam comprar.”
D. Ou seja, com a modificabilidade das datas do facto 6 dado como provado, os Recorrentes pretendem, pois, que o Tribunal a quo, considerasse como provado, que os Recorridos, já tinham conhecimento do ónus existente nos lotes, antes da celebração do contrato de compra e venda, algo que não corresponde à verdade, conforme, já afirmado, nas alegações supra.
E. Acresce que, dos meios probatórios elencados pelos Recorrentes nada de novo se extrai que se consiga concluir que, os autores tinham conhecimentos da linha de água antes da celebração do contrato de compra e venda, conforme já tiveram os Recorridos oportunidade de clarificar.
F. E mais, conforme fundamenta, e bem, o Tribunal a quo “Os réus não lograram provar que os autores tivessem conhecimento desta servidão antes da celebração do contrato-promessa, caso em que se poderia discutir se os autores já podiam contar com esse ónus, apesar de não estar expressamente ressalvado no texto da cláusula primeira do contrato-promessa”.
G. Como tal, razão não assiste aos Recorrentes, nem os concretos meios probatórios por estes especificados se mostram suficientes para que se procede à modificabilidade do facto 6 dos factos provados, facto que deverá improceder o alegado pelos Recorrentes.
H. Igualmente se aplica quanto à modificabilidade do facto d) dos factos não provados, conforme requerido pelos Recorrentes.
I. Ora, de acordo com o Recorrentes, tal facto deveria ser considerado como provado, e em consequência considerar-se como provado que: i) os autores conheciam os lotes e já ali se tinham deslocado e que ii) tinham iniciado diligências junto do Município de Odivelas para obter informações muito tempo antes de outorgarem o contrato promessa de compra e venda.
J. E para corroborar tal argumento, os Recorrentes, recorrem ao depoimento da Testemunha HC, em concreto quando afirma que “Era uma zona que ele gostava, é muito próximo de onde morava, tem a família toda muito perto”.
K. Ora, conforme acima já tiveram os Recorridos oportunidade de esmiuçar, tal não pode ser aceite, não só porque do depoimento não se depreende de forma clara e inequívoca que o autor conhecia os lotes, e muito menos, obviamente, que tinham iniciado diligências junto do município.
L. Sem contar que, nunca poderemos deixar de ter em conta, conforme se extrai do Acórdão Tribunal da Relação de Coimbra, processo 321/2002.C1 que “Considerada a enorme variedade de causas que podem dar lugar a que a testemunha não possa ou não queria dizer a verdade, deve usar-se de grande cautela em relação a esta prova e só a sua valoração sob o signo estrito da oralidade e da imediação permite estabelecer, adequadamente, o efeito persuasivo que, em cada caso, lhe deve ser assinalado. De resto, aquele princípio e este seu corolário são comprovadamente adequados a extirpar um dos maiores males da prova testemunhal: a mentira. Como já se reparou, o resultado da actividade de julgamento da matéria de facto pode exprimir-se numa afirmação susceptível de ser considerada verdadeira ou falsa. Contudo, essa verdade não é uma verdade absoluta ou ontológica, sendo antes uma verdade judicial, jurídico-prática. No julgamento da matéria de facto não se visa o conhecimento ou apreensão absoluta de um acontecimento, tanto mais que intervêm, irremediavelmente, inúmeras fontes possíveis de erro, quer porque se trata de conhecimento de factos situados no passado, quer porque assenta, as mais das vezes, em meios de prova que, pela sua natureza, se revelam particularmente falíveis. Está nestas condições, notoriamente, a prova testemunhal.”
M. Assim, concretizando, requerem, os Recorrentes, a modificabilidade de um facto não provado, para provado, elencando a sua fundamentação num meio probatório como é a prova testemunhal, e em particular, o depoimento desta testemunha, apenas demonstra que na falta de fundamentos cabais e concretos, os Recorrentes, lançaram mão, a todos, os possíveis, meios para atacar a sentença do Tribunal a quo.
N. Posto isto, não podem os Recorridos senão considerar sem fundamento qualquer modificabilidade alegada pelos Recorrentes, quanto aos factos dados como provados e não provados pelo Tribunal a quo, devendo os mesmos, manterem-se inalterados, de acordo com a Sentença proferida.
O. Vêm, depois, o Recorrentes imputar à sentença o vicio da nulidade, assacando-lhe: a contradição e a omissão de pronúncia (artigo 615.º n.º 1 c) e d) do CPC).
P. Porquanto, segundo estes, está ferida de nulidade à luz da alínea d) do acima referido artigo a sentença, por: i) o Tribunal a quo não se ter prenunciado quanto ao pedido reconvencional aduzido pelos réus e ii) por ter ignorado a existência de 3 certidões camarárias juntas pelos réus.
Q. Por seu lado, está ferida de nulidade à luz da alínea c) do acima referido artigo a sentença, pois entendem os Recorrentes, que ““ocorre uma contradição entre os fundamentos e a decisão quando o tribunal recorrido dá por não provado o que consta sob a alínea b) ao mesmo tempo que declara o incumprimento por parte dos promitentes vendedores por impossibilidade parcial do contrato a eles imputável.”
Alínea d) n.º 1 do artigo 615.º CPC – Falta de Prenuncia do Pedido Reconvencional.
R. Posto isto, e em sede de conclusões, cabe aos Recorridos, clarificar “O tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas, claro, aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras [2]. O tribunal deve, por isso, examinar toda a matéria de facto alegada e todos os pedidos formulados pelas partes, com exceção apenas das matérias ou pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se tenha tornado inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta dada a outras questões.” Vide Acórdão Tribunal da Relação de Coimbra, processo 321/2002.C1.
S. O que se verifica in casu, pois, “A reconvenção configura uma ação cruzada contra o autor, em que o réu dirige contra o último um novo e distinto pedido, com fundamento numa causa de pedir contida ou que é desenvolvimento da causa de pedir invocada pelo autor na ação, passado a existir, dentro do mesmo processo, duas ações cruzadas, mas autónomas. Daí que a improcedência da ação ou a absolvição do réu da instância não obsta à apreciação do pedido reconvencional, exceto quanto este seja dependente do formulado pelo autor, como é o caso em que o réu-reconvinte pretende que lhe seja reconhecido um crédito a que se arroga titular em relação ao autor-reconvindo e pretende obter a compensação desse crédito com o crédito invocado pelo autor na ação contra aquele“ vide Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, Processo 1766/20./T8VCT-H.G1.
T. O que significa que, não se pode imputar à Sentença o vício da falta de pronúncia, porquanto o Tribunal a quo, se pronunciou, não necessitando, in casu, de se pronunciar, ponto a ponto, considerando como provado ou não provado, os factos elencados pelo Réu no pedido reconvencional, bastando, como fez, apresentar a fundamentação, como fez: “E face ao que acima se expôs, é evidente a improcedência do pedido reconvencional deduzido pelos réus, baseado na imputação do incumprimento aos autores por se terem recusado a celebrar a escritura, e na desconsideração da servidão administrativa como um ónus. Os autores não eram obrigados a celebrar o contrato definitivo, estando os prédios onerados com uma servidão administrativa, pelo que a essa recusa se sobrepõe a impossibilidade parcial culposa imputável aos réus acima referida.”
U. Relativamente, às tais certidões juntas com requerimento de 22.03.2023 (ref.ª citius 35452677) junto pelo Réu, os Recorrentes alegam que o Tribunal a quo, as ignorou, não delas se pronunciando e que tais certidões, eram pois importantes, pois atestavam as aptidões construtivas dos Lotes, o que não corresponde à verdade.
V. Não só porque, o que se encontra junto, nos doc. 1,2 e 3, do tal requerimento não são 3 certidões camarárias, mas sim 3 mapas interativos e nesses mapas interativos, não constam, conforme se prova, bastando consulta aos documentos, qualquer referência a áreas, sendo apenas mapas de demonstrativos da localização dos lotes.
W. Ora, conclui-se que improcede obviamente o alegado pelos Recorrentes, quanto a este ponto, pois o Tribunal nunca se poderia pronunciar sobre um documento que não foi junto pelas partes.
X. Face ao acima referido, improcede na totalidade, os vícios apontados, pelos Recorrentes, que padecia a Sentença do Tribunal a quo.
Y. Por fim, os Recorrentes, vêm alegar “Violação da Lei”, referindo que:
“1. Entendeu o tribunal recorrido ser aplicável à situação vertente o disposto no art.º 802.º, n. 1, do CC, por considerar que a situação é qualificável como de impossibilidade parcial culposa.
24. Em suma, em nossa modesta opinião é inaplicável à situação em causa nestes autos o disposto no art.º 802.º do CC, primeiro porque a servidão era anterior ao contrato promessa pelo que não se pode asseverar que a prestação se tornou parcialmente impossível.
25. Também é inaplicável porque não existe qualquer culpa dos rtes., apenas foi ficcionada.
26. Finalmente, e por força do n. 2 do art.º 802.º do CC, se acaso se tratasse de um incumprimento parcial, os AA. não podiam resolver o negócio, dado o seu interesse e a escassa importância do pretenso incumprimento.
27. É que, reitera-se, os AA. declararam ao tribunal, e as testemunhas confirmaram no, como supra se transcreveu, que mantinham o seu interesse no negócio, apesar de terem resolvido o negócio.
28. Quer porque não invocaram qualquer nulidade, quer porque não justificaram minimamente qualquer desinteresse no negócio, antes pelo contrário, não assiste aos rdos. o direito a qualquer indemnização ou à restituição do sinal constituído.
29. Por seu turno, estando os AA. em mora, jamais poderiam resolver o negócio e pelos fundamentos com que o fizeram, conforme estatui o disposto no art.º 438.º do CC.
30. Diversamente, foram os AA. que se constituíram em mora e incumpriram definitivamente o contrato, pelo que recai sobre si o ónus da perda de sinal, tal como requerido.”
Z. Ou seja, de acordo com os Recorrentes, o Tribunal a quo, mal andou e a Sentença “Violou a Lei” na aplicação ao caso em concreto do artigo 802.º do CC, porquanto, tal não se aplicaria, uma vez que:
a. servidão era anterior ao contrato promessa pelo que não se pode asseverar que a prestação se tornou parcialmente impossível.
b. que não existe qualquer culpa dos rtes., apenas foi ficcionada.
c. os AA. não podiam resolver o negócio, dado o seu interesse e a escassa importância do pretenso incumprimento.
d. (…) os AA. declararam ao tribunal, e as testemunhas confirmaram no, como supra se transcreveu, que mantinham o seu interesse no negócio, apesar de terem resolvido o negócio.
e. (…) estando os AA. em mora, jamais poderiam resolver o negócio e pelos fundamentos com que o fizeram, conforme estatui o disposto no art.º 438.º do CC
f. (…) foram os AA. que se constituíram em mora e incumpriram definitivamente o contrato, pelo que recai sobre si o ónus da perda de sinal, tal como requerido.
AA. Em sede de conclusões cabe aos Recorridos sintetizarem o quanto os Recorrentes se desviam da realidade jurídica e do paradigma da temática em causa.
BB. Esmiuçando os pontos concretos que sustentam a posição dos Recorrentes para tentar atingir a sentença de “Violação da Lei”, concretizemos:
CC. “Servidão era anterior ao contrato promessa pelo que não se pode asseverar que a prestação se tornou parcialmente impossível.”
DD. Na fundamentação de direito relativamente à aplicação de tal norma jurídica ao caso concreto, o Tribunal a quo refere “Assim sendo, é forçoso concluir que a situação é qualificável como de impossibilidade parcial culposa da prestação, imputável aos devedores (cfr. o artigo 802º do Código Civil), ora réus, na medida em que, sendo-lhes possível cumprir parcialmente o prometido, celebrando contrato definitivo de venda dos três prédios, de que eram proprietários então, era-lhes impossível cumprir totalmente o prometido, uma vez que teriam de vender os prédios onerados com uma servidão administrativa, que os réus não podem eliminar ou afastar, contrariando aquilo a que expressamente se haviam vinculado no contrato-promessa. E a impossibilidade é culposa, imputável aos autores, na medida em que, sendo eles os proprietários, impunha-se-lhes conhecer os prédios de que eram proprietários e a servidão que sobre os mesmos impendia.”
EE. E bem, pois o releva é a impossibilidade do cumprimento da prestação na totalidade e não se o ónus/servidão era anterior à celebração do contrato de promessa.
FF. “Que não existe qualquer culpa dos rtes., apenas foi ficcionada.”
GG. Às tantas, em sede de Recurso, referem os Recorrentes que “a Mma. Juiza “a quo” estabelece um inédito princípio da culpa exclusiva dos promitentes vendedores” contudo, o que os Recorrentes, querem fazer ver ao Tribunal ad quem, é o inédito princípio da transferência total da culpa para os Recorridos, no qual, é sobre eles, que recaia a total responsabilidade do ónus existente nos Lotes.
HH. É que de acordo com os Recorrentes, “agora” a servidão, a linha de água” é uma servidão legal, não oculta, e, portanto, cujo desconhecimento não pode ser invocado, como o prescreve o art.º 6.º do CC”.
II. Ou seja, o ónus, ao longo da causa, foi sendo interpretado pelos Recorrentes de acordo com os seus interesses, assim como o seu conhecimento ou desconhecimento.
JJ. O que releva na verdade, é que a fundamentação do Tribunal a quo, se prende com o entendimento jurídico constante, sendo pois que “a impossibilidade é culposa, imputável aos autores, na medida em que, sendo eles os proprietários, impunha-se-lhes conhecer os prédios de que eram proprietários e a servidão que sobre os mesmos impendia. Embora se trate de servidão que resulta diretamente da Lei, não sendo registada, não se trata de um ónus oculto, estando a linha de água representada na cartografia oficial do Município de Loures que foi junta aos autos. Era aos réus que se impunha, enquanto proprietários, saber se impendia algum ónus ou encargo sobre os prédios, antes de se comprometerem a vendê-los aos autores nessas condições.”
KK. Pois sim, não é agora, virem alegar e imputar responsabilidade, como fizeram, aos Promitentes Compradores, adquirentes de boa-fé, que não sendo a linha de água, um ónus oculto, caberia a eles, saber e diligenciar, no sentido de tomarem conhecimento do que estavam a adquirir antes de adquirir.
LL. Isto sim, é uma inovação em termos responsabilidade contratual, ser o adquirente responsável e penalizado por não ter diligenciado em saber os ónus e encargos do bem que prometera adquirir.
MM. Por aqui se vê, que falta aos Recorrentes matéria de facto que sustente o Recurso e como tal, recorreram com base em tudo menos em meios probatórios verdadeiros, concretos e objetivos.
NN. Para terminar, referem ainda que “os AA. não podiam resolver o negócio, dado o seu interesse e a escassa importância do pretenso incumprimento. (…) os AA. declararam ao tribunal, e as testemunhas confirmaram no, como supra se transcreveu, que mantinham o seu interesse no negócio, apesar de terem resolvido o negócio. (…) estando os AA. em mora, jamais poderiam resolver o negócio e pelos fundamentos com que o fizeram, conforme estatui o disposto no art.º 438.º do CC, (…) foram os AA. Que se constituíram em mora e incumpriram definitivamente o contrato, pelo que recai sobre si o ónus da perda de sinal, tal como requerido.”
OO. Ora parece que para os Recorrentes, uma servidão administrativa, ou seja, “um encargo imposto por lei sobre um prédio, em proveito da utilidade pública duma coisa, que pode ser um prédio ou qualquer outro bem,” cfr. Marcello Caetano, in “Manual de Direito Administrativo”, Vol. II, pág.” se classifica como “a escassa importância do pretenso incumprimento.”
PP. Por outro lado, “estando os AA. em mora, jamais poderiam resolver o negócio e pelos fundamentos com que o fizeram, conforme estatui o disposto no art.º 438.º do CC , (…) foram os AA. que se constituíram em mora e incumpriram definitivamente o contrato, pelo que recai sobre si o ónus da perda de sinal, tal como requerido.”
QQ. Importa esclarecer, conforme supra que “Há mora do devedor quando, por acto ilícito e culposo deste se verifique um cumprimento retardado (art.º 804 nº 2 do Código Civil). A mora é, portanto, o atraso ilícito e culposo no cumprimento da obrigação: existe mora do devedor, quando, continuando a prestação a ser possível, este não a realiza no tempo devido. Para se concluir que há mora do devedor, não basta, portanto, dizer que, no momento do cumprimento, aquele não efectuou a prestação devida; é ainda necessário que sobre ele recaia um juízo de censura ou de reprovação. Exige-se, portanto, a ilicitude e a culpa do devedor, embora, tratando-se de responsabilidade obrigacional, qualquer retardamento na efectivação da prestação seja, por presunção, atribuído a ilícito cometido com culpa pelo devedor (art.º 799 nº 1 do Código Civil).” Vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, Processo 321/2002.C1 (sublinhado nosso).
RR. O que não se verificou, porquanto, os Recorridos, não se encontravam culposamente em mora, aliás, nunca esconderam, mesmo antes, da data agendada para a celebração da escritura, o porquê de não terem, conforme se encontravam contratualmente obrigados, agendado a escritura.
SS. Portanto, é falso o que os Recorrentes, querem fazer crer ao Tribunal ad quem, mostrando que o Tribunal a quo, mal andou, na sua decisão, de legitimar os Autores, na sua recusa de outorgar a escritura de compra e venda, aliás conforme melhor desenvolvido no ponto 67 da fundamentação.
TT. Em Suma, não assiste razão aos Recorrentes ao impugnar a norma acima referida, referido a Sentença Viola a Lei, na aplicação da mesma, ao caso concreto, devendo o presente Tribunal reconfirmar a decisão do Tribunal a quo, considerando-a devidamente fundamentada e aplicada ao caso em concreto.
***
FUNDAMENTAÇÃO

Colhidos os vistos cumpre decidir.

Objeto do Recurso

O objeto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (art.º 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (artºs 635º nº 4, 639º nº 1 e 640º do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.
Em face das conclusões apresentadas pelos recorrentes, as questões a apreciar são as seguintes:
- nulidade da sentença por não ter apreciado do pedido reconvencional e por contradição entre a decisão e os fundamentos;
- impugnação da matéria de facto (alteração do ponto 6 dos factos provados e considerar provado o que consta da al. d) dos factos não provados);
- apurar se existiu violação do contrato-promessa e, tendo existido, se tal ocorreu pela conduta dos réus (como decidido na sentença) ou pelos autores (como pretendem os réus por via deste recurso).

***

Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1)
No dia 5 de abril de 2019, por contrato promessa de compra e venda vertido em documento escrito, os réus prometeram vender e os autores prometeram comprar, pelo preço total de 195.000,00€, três lotes de terreno para construção:
a) Pelo preço de 75.000,00€, o prédio urbano correspondente ao Lote de terreno para construção, situado em…, lote 1, com área total/coberta de 214 m2, com as seguintes confrontações…, descrito na Conservatória do Registo Predial de …, freguesia de …, sob o n.º, inscrito na matriz urbana da freguesia de…, sob o nº…, com o valor patrimonial de 59 952,29€.
b) Pelo preço de 60.000,00€, o prédio urbano correspondente ao Lote de terreno para construção, situado em …, lote 2, com área total/coberta de 184 m2, com as seguintes confrontações: …, descrito na Conservatória do Registo Predial de…, freguesia de … sob o nº …, inscrito na matriz urbana da freguesia de Odivelas sob o nº …, com o valor patrimonial de 58.734,45€.
c) Pelo preço de 60.000,00€, o prédio urbano correspondente ao Lote de terreno para construção, situado em …, Lote 3, com área total/coberta de 184 m2, com as seguintes confrontações: …; descrito n Conservatória do Registo Predial de …, freguesia de …, sob o número …, inscrito na matriz urbana da freguesia de …, sob o número …, com o valor patrimonial de 58 734,45€ - cláusulas 1º e 2ª.
2)
A título de sinal e princípio de pagamento, os autores entregaram aos réus 30.000,00€ - cláusula 2ª.
3)
Ficou convencionado na cláusula 2ª, 1.b) que o remanescente do preço, no valor de 165.000,00€ seria pago pelos autores no ato da outorga da escritura definitiva do contrato de compra e venda, através de cheque bancário.
4)
Ficou convencionado na cláusula 3ª, pontos 1 e 2, que a escritura pública deveria ser celebrada no prazo de 180 dias a contar da data da assinatura do contrato promessa, de cuja marcação ficaram incumbidos os promitentes-compradores, ora autores, os quais deveriam indicar aos promitentes vendedores, ora réus, o dia, hora e local com uma antecedência mínima de 10 dias úteis sobre a data fixada.
5)
Ficou convencionado na cláusula 1ª do contrato outorgado que os réus prometem vender aos autores os imóveis identificados, livres de quaisquer ónus ou encargos, dívidas ou responsabilidades emergentes da propriedade, quer de natureza real, quer obrigacional, e devoluta de pessoas e bens.
6)
Em meados de agosto de 2019 os autores incumbiram uma empresa de preparar projetos com vista ao futuro licenciamento de uma moradia unifamiliar no lote 1 tendo, em setembro de 2019, descoberto que existia uma linha de água contígua à extrema dos lotes que haviam prometido comprar.
7)
No dia 4 de outubro de 2019, a empresa contratada pelos autores enviou um email à Administração Regional Hidrográfica do Tejo e Oeste, informando que estava em causa um projeto de licenciamento da construção de uma habitação unifamiliar e identificando o local da sua implantação, pedindo a marcação de uma reunião “para que possamos ajustar o projeto de arquitetura antes de o terminar.
8)
No dia 7 de outubro de 2019, os réus notificaram os autores por carta registada com aviso de receção, para comparecerem no Cartório Notarial do Dr. …, no dia 22 de outubro de 2019, pelas dez horas e trinta minutos, para outorgarem o contrato definitivo de compra e venda dos aludidos lotes de terreno para construção.
9)
No dia 22 de outubro de 2019, os autores compareceram no local, dia e hora designado pelos réus para a outorga da escritura publica de compra e venda dos referidos lotes de terreno.
10)
Porém, os autores recusaram-se a outorgar a escritura publica de compra e venda “uma vez que têm conhecimento da existência de uma servidão administrativa sobre os lotes atrás identificados, constituída pela Agência Portuguesa do Ambiente”.
11)
Em 28 de outubro de 2019, pelas 18:31, o técnico da empresa contratada pelos autores enviou um email para a Administração Regional Hidrográfica do Tejo e Oeste, com o assunto “Reunião com Técnico – Viabilidade Construção”, colocando as seguintes questões:
“(…) 2. “Em continuação da reunião e na qualidade de preponentes compradores dos lotes 1, 2 e 3, situados na …, para o qual foi emitido o alvará de loteamento n.º …, pela C.M. de Odivelas. Vimos pelo presente questionar:
i. Os lotes em questão tem algum ónus, derivado da proximidade à linha de água?
ii. Caso exista ónus, o que implica esse ónus em relação à viabilidade de construção. É possível edificar? É possível fazer alterações de morfologia do terreno?”.
12)
Em 26 de novembro de 2019, a Divisão de Recursos Hídricos Interiores da Administração Regional Hidrográfica do Tejo e Oeste, por intermédio do seu Técnico Justino LAP, respondeu por email nos termos que se seguem:
“Exmo. Senhor PM,
Em resposta ao vosso pedido de esclarecimento e tendo presente os elementos disponibilizados, informa-se:
1- “Todas as parcelas privadas de leitos e margens de águas públicas estão abrangidas por servidão administrativa devido ao domínio hídrico, nos termos do artigo 21º da Lei nº 54/2005, de 15 de novembro, na sua redacção atual:
2- Tratando-se de um curso água não navegável nem flutuável, a faixa de servidão correspondente a margem, tem a largura de 10 metros a partir da aresta ou crista superior do talude marginal da linha de água, nos termos do artigo 11º do mesmo diploma;
3- Nessa faixa de terreno não é permitida a execução de quaisquer obras permanentes ou temporárias sem autorização da A.P.A., I.P., sendo proibida a existência de construções verticais fixas e permanentes na faixa 5 metros contados a partir aresta ou crista superior do talude marginal da linha de água;
4 -Para delimitação da propriedade admite-se o recurso a vedação em material amovível (painéis ou solução similar) ou sebe viva, colocada a uma distância mínima de 1,50 metros da crista superior do talude da linha de água, sendo que nas estremas do lote as vedações deverão ser no mesmo material até ao limite da servidão administrativa.”
13)
O alvará de loteamento a que respeitam os lotes de terrenos prometidos vender foi aprovado no ano de 1998 (alvará nº …).
14)
Em 6 de março de 2007, os réus e os outros comproprietários celebraram com o Município de Odivelas um contrato de permuta, por via do qual aqueles transmitiram ao Município uma parcela de terreno com a área de 8520 m2, sita em …, freguesia e concelho de …, inscrita na respetiva matriz predial rústica sob parte do artigo …, Secção …, e descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.º … e, em troca, o Município lhes transmitiu o conjunto de lotes identificados no alvará de licença de loteamento n.º …, emitido pelo Departamento de Administração Urbanística da Câmara Municipal de Loures, em 6 de Maio de 1998.
15)
Ficou exarado nessa escritura que o “… Município de Odivelas, em execução da deliberação tomada na 1.ª Reunião Ordinária da Câmara Municipal de Odivelas, …., cede aos segundos (os réus), terceiro, quartos, quintos, sextos, sétimos, oitavos, nono, décima, décimos-primeiros, décimos-segundos e décimos-terceiros outorgantes, livre de quaisquer ónus ou encargos, os lotes a seguir identificados…”
16)
Posteriormente foi efetuada uma divisão de coisa comum, cabendo aos ora réus os lotes 1, 2 e 3, que foi levada a registo, onde consta a aquisição a favor dos ora réus dos prédios descritos na Conservatória do Registo Predial de …, freguesia de …, sob os números … (respetivamente, lotes 1, 2 e 3) pela apresentação n.º … de 21.05.2007, tendo como causa a divisão de coisa comum e sujeitos passivos os demais comproprietários inscritos.
17)
Em 2017 os réus decidiram vender o lote de terreno identificado como lote 1 e para tanto contactaram uma mediadora imobiliária do universo …, a MMI, Lda., identificada na cláusula 11.ª do contrato promessa.
18)
Essa mediadora iniciou a promoção da venda, apenas desse lote 1, mas como lhe surgiram os agora autores interessados em mais lotes, solicitou aos réus que autorizassem a venda dos outros dois lotes (o 2 e o 3), ao que os réus anuíram.
19)
Os réus não negociaram diretamente com os autores e só conheceram os autores na data marcada (dia 05.04.2019) para a assinatura do contrato-promessa, nos escritórios da Mediadora na ….
20)
Depois dessa data nunca mais tiveram notícias dos autores e, não tendo sido agendada pelos autores a escritura, os réus tomaram a iniciativa de o fazer e dirigiram uma interpelação para cada um dos autores, informando da data, hora e local da escritura, sob pena de incorrerem em incumprimento do contrato, com perda de sinal.
21)
Não existe qualquer servidão registada (no registo predial) sobre os prédios objeto do contrato promessa.
22)
Os réus não tiveram qualquer intervenção relativamente ao alvará de loteamento n.º ….
*
Foram considerados não provados os seguintes factos:
a)
Que a existência de uma linha de água contígua ao limite dos lotes era há muito do conhecimento dos réus, tendo a sua existência sido conscientemente ocultada aos autores por aqueles.
b)
Que os autores nunca teriam celebrado o contrato-promessa de compra e venda nem entregue aos réus o sinal de 30.000,00€ (trinta mil euros) se tivessem prévio conhecimento da existência de uma linha de água no limite dos lotes.
c)
Que a situação gerada pela conduta dos réus tenha provocado prejuízos patrimoniais e enorme sofrimento e angústia nos autores, pois o valor entregue era o resultado de anos de poupanças, impedindo-os de reinvestir tal quantia.
d)
Que os autores conheciam o local dos lotes e já ali se tinham deslocado, e iniciado diligências junto do Município de Odivelas para obter informações muito tempo antes de outorgarem o contrato promessa de compra e venda.

Fundamentação jurídica
A primeira questão a apreciar é a da nulidade da sentença, pois os vícios desta podem implicar a anulação da mesma e a baixa do processo para ser proferida nova sentença, impedindo por isso a apreciação das questões relativas ao mérito.
O fundamento da nulidade radica no art.º 615º/1, al. d) do CPC, entendendo os recorrentes que o tribunal não apreciou, como devia, o pedido reconvencional. Efetivamente este pedido não foi apreciado, tendo-se referido na sentença que “e face ao que acima se expôs, é evidente a improcedência do pedido reconvencional deduzido pelos réus, baseado na imputação do incumprimento aos autores por se terem recusado a celebrar a escritura, e na desconsideração da servidão administrativa como um ónus”.
Nos termos do art.º 608º/2 do CPC, o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. O tribunal a quo, ao não apreciar do pedido reconvencional, limitou-se a aplicar o disposto neste preceito. O pedido reconvencional, cujo fundamento era a violação do contrato-promessa pelos autores, era incompatível com a procedência do pedido principal, na medida em que este fundamentava-se na violação do mesmo contrato-promessa pelos réus. Daqui resulta que, procedendo o pedido principal, o pedido reconvencional era necessariamente improcedente pois o respetivo fundamento era incompatível com o fundamento da procedência do primeiro pedido. Há casos em que a apreciação do pedido reconvencional está dependente da procedência do pedido principal, como por exemplo nas ações de reivindicação em que o réu deduz pedido de condenação do autor no pagamento do valor das benfeitorias realizadas. Mas nos casos como este, em que os fundamentos de um pedido necessariamente excluem os fundamentos do outro, a situação é a inversa, ou seja, procedendo o pedido principal, a apreciação do pedido reconvencional fica prejudicada e nem sequer deve ser efetuada, nos termos do mencionado art.º 608º/2 do CPC.
Os recorrentes imputam outro vício à sentença nos seguintes termos:
W. Ora perante esta prova da manutenção do interesse dos AA. na compra dos lotes, manifestada ainda em julgamento e reconhecida pelo próprio tribunal “a quo”, mesmo depois de estarem cientes das restrições existentes, não pode a decisão contraditoriamente dar por verificada uma impossibilidade parcial da prestação e entender que não se está perante uma restrição de escassa importância.
X. Salvo melhor opinião, a sentença padece outrossim da nulidade prevista no 615º/1, c) do CPC, o que expressamente se argui e sempre integraria um erro de julgamento”.
É óbvio que esta nulidade não se verifica, nem se podia verificar. É que a aludida contradição não resulta da sentença, mas antes da realidade fáctica que os recorrentes pretendem, nesta sede, seja considerada provada e que é o conhecimento pelos autores, anterior à celebração do contrato-promessa, da questão relativa à linha de água, que na sentença se considerou não provada.
Não se verificam, portanto, as nulidades invocadas.
*
Quanto à pretendida alteração da matéria de facto, a mesma respeita ao ponto 6 dos factos provados – pretendendo os recorrentes que seja dado como provado que os autores-recorridos tiveram conhecimento da existência da linha de água em março de 2019 (antes, portanto, da celebração do contrato promessa) – e quanto à prova do facto constante da al. d) dos factos não provados - os autores conheciam o local dos lotes e já ali se tinham deslocado, e iniciado diligências junto do Município de Odivelas para obter informações muito tempo antes de outorgarem o contrato promessa de compra e venda.
Quanto ao ponto 6 dos factos provados, os recorrentes entendem que a alteração pretendida decorre necessariamente do documento junto pelos autores com a p. i. com o nº 6, que é um mapa interativo emitido pelo município de Odivelas, dizendo que desse documento, emitido em 14.03.2019, resulta evidente a existência da linha de água, que está assinalada a azul. Compulsado tal documento verifica-se que, efetivamente, dele constam até duas linhas azuis. Da legenda que permite interpretar esse mapa há um retângulo azul com a indicação “limite administrativo”. Não existe qualquer indicação relativa a linhas de água ou outra indicação semelhante que indicie a existência de tal linha. Assim, temos apenas de concluir, ao contrário do entendimento dos recorrentes, que da leitura e interpretação desse documento não se pode extrair a existência da linha de água. Parece que os recorrentes retiram a sua conclusão da circunstância de a linha ser azul, cor que, em termos de estética pictórica, geralmente se associa à água. Entendemos, porém, que tal associação não é admissível num âmbito formal/documental e, como se mencionou, na legenda do documento a cor azul está referida ao limite administrativo.
Quanto ao facto que os recorrentes entendem que deve passar a constar dos factos provados, consideramos o mesmo irrelevante. O que importaria para o caso era o conhecimento efetivo da existência da linha de água. O simples facto de os autores conhecerem o local é irrelevante. Aliás, na sentença considerou-se não provado que os próprios réus sabiam da existência da linha de água. Sendo eles os proprietários dos terrenos prometidos vender, certamente que conheciam a zona, mas dessa circunstância não decorre o conhecimento da existência de tal linha de água (que não era percetível porque estava seca). O que vale para os réus vale também para os autores, pelo que do facto em apreço nada de relevante adviria para a apreciação do mérito da causa.
*
Vejamos agora o mérito do recurso.
Na sentença recorrida, depois de a mesma discorrer sobre as servidões administrativas, em especial as que decorrem do regime constante da Lei nº 54/2005, de 15.11, que estabelece a titularidade dos recursos hídricos, disse-se o seguinte para concluir pela existência de incumprimento culposo do contrato-promessa por parte dos réus e, em consequência, pela procedência do pedido principal:
Face a isto, importa agora questionar se, uma vez que os lotes prometidos vender estão efetivamente onerados com esta servidão administrativa, se o fundamento invocado pelos autores legitima a sua recusa e se quem incumpriu o contrato foram os réus.
A resposta tem de ser positiva.
Os réus vincularam-se de forma expressa a “vender aos autores os imóveis identificados, livres de quaisquer ónus ou encargos, dívidas ou responsabilidades emergentes da propriedade, quer de natureza real, quer obrigacional, e devoluta de pessoas e bens.” (alínea 5)).
A servidão administrativa sobre os prédios prometidos vender é, inegavelmente, um ónus que sobre os mesmos impende, afetando-os com restrições superiores às dos prédios “livres”.
A questão do conhecimento da servidão é uma questão distinta.
Os réus não lograram provar que os autores tivessem conhecimento desta servidão antes da celebração do contrato-promessa, caso em que se poderia discutir se os autores já podiam contar com esse ónus, apesar de não estar expressamente ressalvado no texto da cláusula primeira do contrato-promessa.
A circunstância de os autores terem dela tomado conhecimento após a celebração do contrato-promessa é irrelevante, não se podendo censurar aos autores o facto de terem feito diligências com vista a apurar quais as consequências práticas dessa servidão nos projetos que perspetivavam implantar.
Irreleva igualmente para a decisão do litígio a circunstância de o Município de Loures ter transmitido a propriedade dos lotes aos réus, declarando fazê-lo sem ónus e encargos, porquanto isso respeita unicamente às relações entre os réus e aquela entidade. A circunstância de tal ter sido declarado no contrato de permuta apesar de existir a linha de água e a servidão correspondente não só não elimina a servidão, que resulta expressamente da Lei, como não lhe retira o caráter de um ónus sobre os imóveis em questão.
Assim sendo, é forçoso concluir que a situação é qualificável como de impossibilidade parcial culposa da prestação, imputável aos devedores (cfr. o artigo 802º do Código Civil), ora réus, na medida em que, sendo-lhes possível cumprir parcialmente o prometido, celebrando contrato definitivo de venda dos três prédios, de que eram proprietários então, era-lhes impossível cumprir totalmente o prometido, uma vez que teriam de vender os prédios onerados com uma servidão administrativa, que os réus não podem eliminar ou afastar, contrariando aquilo a que expressamente se haviam vinculado no contrato-promessa.
E a impossibilidade é culposa, imputável aos autores, na medida em que, sendo eles os proprietários, impunha-se-lhes conhecer os prédios de que eram proprietários e a servidão que sobre os mesmos impendia. Embora se trate de servidão que resulta diretamente da Lei, não sendo registada, não se trata de um ónus oculto, estando a linha de água representada na cartografia oficial do Município de Loures que foi junta aos autos. Era aos réus que se impunha, enquanto proprietários, saber se impendia algum ónus ou encargo sobre os prédios, antes de se comprometerem a vendê-los aos autores nessas condições.
Esta falta de cumprimento imputável aos réus confere aos credores, no caso os autores, o direito a resolver o contrato (cfr. o artigo 802º, n.º 1 do Código Civil), não sendo possível qualificar como de escassa importância o ónus que incide sobre os prédios”.
Portanto, o tribunal a quo considerou, em resumo, que, incidindo sobre as parcelas de terreno prometidas vender uma servidão administrativa que decorre da existência de uma linha de água (não navegável nem flutuável), ocorria uma impossibilidade de cumprimento da obrigação de celebração do contrato prometido livre de ónus e encargos, a qual é culposa e imputável aos réus.
A Lei nº 54/2005, de 15.11, estabelece, no art.º 1º, que os recursos hídricos a que se aplica compreendem as águas, abrangendo ainda os respetivos leitos e margens, zonas adjacentes, zonas de infiltração máxima e zonas protegidas. Depois de estabelecer que o domínio público hídrico compreende o domínio público marítimo, o domínio público lacustre e fluvial e o domínio público das restantes águas, os quais podem pertencer ao Estado, às regiões autónomas e aos municípios e freguesias (art.º 2º/1 e 2), estatuiu-se que no caso de águas públicas não navegáveis e não flutuáveis localizadas em prédios particulares, o respetivo leito e margem são particulares, nos termos do artigo 1387.º do Código Civil, sujeitos a servidões administrativas (art.º 12º/2). A margem das águas não navegáveis nem flutuáveis, nomeadamente torrentes, barrancos e córregos de caudal descontínuo, tem a largura de 10 m (art.º 11º/4). Nas parcelas privadas de leitos ou margens de águas públicas, bem como no respetivo subsolo ou no espaço aéreo correspondente, não é permitida a execução de quaisquer obras permanentes ou temporárias sem autorização da entidade a quem couber a jurisdição sobre a utilização das águas públicas correspondentes (art.º 21º/2).
Como se verifica, a servidão administrativa resulta única e simplesmente da natureza das coisas, quais sejam da existência de uma linha de água, que está seca, à qual a lei, por via do diploma acima referido, atribui determinados efeitos limitativos, em especial quanto à execução de obras. De referir que o regime relativo a estes cursos de água, mesmo quando estejam secos, visam acima de tudo acautelar a segurança de pessoas e bens. Os sulcos agora secos e por onde antes passaram cursos de água, podem voltar à situação anterior, nomeadamente em casos de chuvas intensas e de enxurradas, que em alguns casos provocam tragédias, afetando a vida e os bens das pessoas que aí se encontram, como se tem visto em vários locais, quer em Portugal, como por exemplo na Madeira, e no estrangeiro, como recentemente aconteceu no Estado de Porto Alegre no Brasil. Estes são bons exemplos dos perigos de efetuar construções em zonas por onde antes corriam as águas. Por essas razões é necessário acautelar uma margem de segurança entre o leito e a construção que se pretende efetuar, a qual, como se referiu, visa a segurança pública de pessoas e bens e não qualquer interesse patrimonial do Estado ou de outros entes públicos.
Resultando a servidão da mera natureza do terreno, visando acautelar o interesse público, e decorrendo ela de forma automática da aplicação da lei, obviamente que tal servidão não está incluída na cláusula do contrato-promessa pela qual os réus prometeram vender os lotes de terreno livres de ónus e encargos. Estes reportam-se aqueles que são dependentes da vontade e que, por isso mesmo, podem ser também removidos, bastando para tal a mera vontade dos contraentes. Quando resultam da natureza das coisas, estamos perante um caso de força maior, que se impõe às partes, sem possibilidade de ser afastado.
Assim, nem sequer há que discutir se há culpa ou não dos réus no caso em apreço, uma vez que a culpa teria sempre que ter por base um facto ilícito, no caso uma violação do contrato. Não sendo a questão derivada da existência da linha de água e consequente servidão administrativa, sequer consagrada no contrato, não houve, ao contrário do que se disse na sentença, qualquer violação do contrato-promessa por parte dos réus.
E não tendo eles conhecimento da existência da linha de água e, por isso, também não podiam ter conhecimento da existência dos efeitos legais de tal facto, nem sequer se pode dizer que agiram de má-fé ao não comunicarem aos autores essa circunstância.
Em todo o caso, ainda que se estivesse perante uma situação em que se pudesse configurar a análise da culpa dos réus, temos que do art.º 799º/1 do CCivil decorre que “Compete ao devedor ilidir a presunção de culpa que sobre si impende no incumprimento contratual, ficando tal presunção ilidida se conseguir provar que actuou com a diligência devida (numa perspectiva de actuação diligente que a boa fé sempre supõe), sem necessidade de alegação de factos, por banda do credor, que demonstrem a culpa do devedor” (cf. Supremo Tribunal de Justiça, acórdão de 13-09-2012, proc. n.º 4339/07.6TVLSB.L1.S2 in www.dgsi.pt). Como é doutrina e jurisprudência assente, não existe culpa caso se prove que não pode ser pessoalmente censurável ao devedor o facto de não ter adotado o comportamento devido, o que sucederá sempre que esse não cumprimento seja devido a facto do credor, de terceiro, a caso fortuito ou de força maior (acórdão da Relação de Coimbra de 13.11.2019, proc. nº 30628/18.6YIPRT.C1, in www.dgsi.pt). Ora, decorrendo a servidão administrativa da mera aplicação da lei às características do terreno, sendo por isso irremovível por natureza, estamos perante um caso de inexistência de culpa (caso se configure a existência de facto ilícito, o que entendemos nem sequer existir) por verificação de uma situação de força maior.
Assim, temos de concluir que houve efetivamente violação de lei na decisão recorrida, sendo inaplicável o disposto no art.º 801º/1 do CCivil à conduta dos réus.
Esse preceito aplica-se, no entanto, à conduta dos autores.
Concordamos na íntegra com o que consta das conclusões GG) a JJ) das alegações dos recorrentes, nas quais se afirma que:
GG. Sucede que os AA. adquiriram um lote para construção urbana, sem projeto de construção, cientes de que teriam de se sujeitar às regras e condicionantes impostas pelo município e por quaisquer outras entidades que decidissem sobre a matéria.
HH. E estavam obrigados a conhecer todas as condicionantes.
II. No contrato nada se clausulou quanto a áreas de construção; a materiais a utilizar; a distanciamentos; a cérceas; a vedações e à natureza dos materiais, nem quanto a nada que pudesse depender de condicionantes regulamentares fixadas pelas entidades competentes em matéria de urbanismo e de ambiente.
JJ. Nada disso dependia dos RR., ora rtes.”.
As limitações decorrentes da servidão respeitavam à construção que os autores pretendiam levar a efeito. Qualquer construção está dependente de limitações administrativas impostas pelas entidades públicas. Sendo eles os interessados na compra para construir, cabia-lhe apurar que limitações existiam, em concreto, para tal finalidade.
Podia acontecer que, tendo os autores tido conhecimento da linha de água em questão e da consequente existência da servidão, que, conforme alegaram, tal implicasse perda de interesse no negócio. Aconteceu, porém, que esse facto não se provou, constando expressamente dos factos não provados que “os autores nunca teriam celebrado o contrato-promessa de compra e venda nem entregue aos réus o sinal de 30.000,00€ (trinta mil euros) se tivessem prévio conhecimento da existência de uma linha de água no limite dos lotes”.
Ao não provarem este facto, não ilidiram a presunção de culpa que decorre da circunstância de se terem recusado a celebrar o contrato-promessa, nos termos que constam dos factos provados. Tal recusa foi ilícita por ser infundada e foi culposa. E da conduta que assumiram resulta um incumprimento definitivo, pois “quem resolve infundadamente um contrato-promessa revela uma vontade séria, definitiva e consciente de não o querer cumprir e de se sujeitar às consequências desse incumprimento, pelo que a declaração resolutiva sem fundamento constitui o seu autor numa situação de incumprimento definitivo, tornando dispensável ao outro contraente a fixação de prazo admonitório” (acórdão da Relação de Lisboa de 26.01.2023, procº nº 547/20.2T8ALM.L1-8, in www.dgsi.pt).
Deste modo, nos termos do art.º 801º/1 do CCivil, ocorreu efetivamente a violação definitiva e culposa do contrato-promessa, a qual é imputável aos autores. A consequência dessa conduta é, conforme resulta do art.º 442º/2 do CCivil, os réus terem direito a fazer seu o sinal de 30.000€ que lhes foi entregue pelos autores, tal como peticionaram em reconvenção, que, por isso, tem de ser considerada procedente.
O recurso, tem, portanto, de ser considerado totalmente procedente.

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DECISÃO
Face ao exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem este coletivo da 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar o recurso procedente, revogando a decisão recorrida, e, em consequência, julgam-se improcedentes os pedidos formulados pelos autores, absolvendo os réus do pedido quanto aos mesmos, e julga-se procedente o pedido reconvencional, declarando que os réus têm direito a fazer seu o sinal de 30.000€ que lhes foi entregue pelos autores em cumprimento do contrato-promessa em causa nos autos.
Custas pelos autores-recorridos em ambas as instâncias (art.º 527º/1 e 2 do CPC).

Lisboa, 04jul2024
Jorge Almeida Esteves
Anabela Calafate
Adeodato Brotas