Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | GABRIELA DE FÁTIMA MARQUES | ||
Descritores: | UNIÃO DE CONTRATOS PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS ALUGUER MOTORISTA DIREITO DE RETENÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 11/21/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | I. No caso da união de contratos, estes mantêm-se diferenciados, conservando cada um a sua individualidade, sendo esta extrínseca, o único factor de ligação reside na circunstância de se celebrarem na mesma ocasião, na união com dependência, há entre os contratos um vínculo traduzido no facto de a validade e vigência de um contrato depender da validade e vigência do outro. Na união alternativa, são celebrados dois contratos, em termos tais que, conforme ocorra ou não certo evento, assim se considerará celebrado apenas um deles. II. No caso dos autos apenas poderá estar em causa a união extrínseca dos dois contratos celebrados: a prestação de serviços de motorista e o contrato de aluguer de veículo. Pois, ainda que a prestação do serviço do Autor seja feita com o veículo objecto do contrato de aluguer, em momento algum dos contratos foi estabelecida tal correlação absoluta, ou a mesma foi invocada por alguma das partes na acção. III. Não pode o Autor convocar o direito de retenção do veículo, com fundamento na falta de pagamento da prestação de serviços a cargo da ré, quando ocorre simultaneamente a denuncia do contrato de aluguer do veículo, dado que não existe sinalagma de ambas as prestações devidas, nem se verifica nenhuma das situações nos termos previstos no art.º 754º e 755º do Código Civil. (Sumário elaborado pela relatora) | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa: I. Relatório: A… divorciado, portador do cartão de cidadão com o número … e do NIF …, residente na Rua …, intentou a presente ação declarativa de condenação, que corre termos sob a forma de processo comum, contra M… S.A, sociedade com o NIPC …, com sede na Rua …, através da qual peticiona que a ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de €14.387,62, acrescida de juros vencidos e vincendos, à taxa legal, até integral e efectivo pagamento, pedido que discrimina da seguinte forma: 1) €31,86, correspondentes à diferença de valores faturados pelos serviços prestados na plataforma UBER; 2) valores devidos pela prestação de serviço nas plataformas BOLT e UBER e não pagos no montante de: €317,17 - quinta semana, de 24/02 a 01/03; 251,35 - sexta semana, €02/03 a 08/03; €255,60 – sétima semana, 09/03 a 15/03; €65,84 - oitava semana, 16/03 a 22/03; no total de €889,96; 3) assistência financeira paga pela UBER aos motoristas e não transferida/paga ao Autor, no valor de €760,80; 4) €1440,00, até o presente momento, acrescido de juros à taxa legal pelo arrendamento pago pelo Autor e devido ao arrumo do veículo da empresa ré até a data da devolução do mesmo; 5) devolução da caução prestada pelo Autor no valor de €225; 6) A indemnização por danos morais no total de €10.000,00; 7) Cláusula Penal no valor de €1.000,00; O autor peticiona também que seja declarado válido e legítimo o exercício do direito de retenção sobre o veículo automóvel ligeiro com matrícula ... A ré citada, apresentou contestação e reconvenção, peticionado nesta que o autor seja condenado a: i) Restituir-lhe o veículo automóvel de matrícula ... ii) Pagar-lhe uma indemnização pela detenção ilícita do veículo, calculada ao valor semanal de € 225,00 e diário de € 32,14, desde 18.3.2020 até à entrega do veículo; iii) Pagar-lhe a quantia de € 150,00 a título de indemnização por deslocações realizadas tendo em vista a localização/recuperação do veículo; iv) Pagar-lhe a quantia de € 7.500,00 a título de danos não patrimoniais. O autor apresentou réplica. Foi dispensada a realização da audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador onde foi identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova. Realizou-se audiência final, tendo sido proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência: A) Condenou o autor A… a restituir à ré o veículo automóvel de marca Fiat, modelo Tipo, de matrícula ... B) Condenou o autor A… a pagar à ré M… S.A. a quantia de € 36.506,62 (trinta e seis mil quinhentos e seis euros e sessenta e dois cêntimos), acrescida da quantia semanal € 225,00 (duzentos e vinte e cinco euros), até à efetiva entrega do veículo automóvel identificado em A); C) Absolveu as partes do demais peticionado; Inconformado veio o Autor/reconvindo recorrer apresentado as seguintes conclusões: «A) Ficou dado por provado que o autor prestou os serviços contratados, durante as semanas de 24/02 a 01/03; 02/03 a 08/03; 09/03 a 15/03 e 16/03 a 18/03 de 2020, mas a ré não procedeu ao pagamento na data acordada porque i) as plataformas TVDE/ TVDE UBER não procederam ao pagamento atempado dos valores devidos e ii) porque o autor não procedeu à entrega da fatura. B) A ré admitiu dever ao autor, os serviços prestados nas semanas de 24/02 a 01/03; 02/03 a 08/03; 09/03 a 15/03 e 16/03 a 18/03 de 2020 no montante de € 889,96, bem como a quantia de € 760,80, a título de ajuda financeira concedida aos motoristas pela UBER, num total de € 1.650,76 e sobre esta quantia acrescem juros moratórios contabilizados desde a data da citação (26.1.2022), à taxa legal em vigor e que, na presente data ascendem a € 92,62. C) Essas faturas incluíam o gasóleo, a renda do aluguer da viatura e a via verde que o A. pagava para puder proceder ao atendimento dos clientes e puder circular com o veículo cumprindo o contrato de prestação de serviço para com a Ré. Pelo que não subsistem duvidas de que o recorrente é credor da recorrida pelo montante de 1.743,38 relativo a despesas. D) O "direito de retenção" pertence à categoria dos direitos de garantia, encontrando-se enunciado no artigo 754º do Código Civil, onde se lê que "O devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados". E) Ficou demonstrado nos presentes autos que o A. prestou os serviços à Ré nos termos contratados e o contrato só foi suspenso em resultado da pandemia Covid-19 e por efeito do pedido expresso da Ré. Com efeito foi dado por provado que Autor e ré celebraram um acordo, em 27.1.2020, através do qual aquele se comprometeu a prestar serviços de motorista para a ré (Transporte de Passageiros em Viaturas Descaracterizadas). 2) A ré dedica-se à prestação de serviços de transportes aos utilizadores das plataformas electrónicas UBER, BOLT e semelhantes. 3) A ré comprometeu-se a pagar ao autor o valor faturado na aplicação UBER e posteriormente BOLT, semanalmente, na semana seguinte à prestação de serviços de motorista, contra a apresentação de fatura pelo autor, descontados os seguintes custos: • valor de €225 (duzentos e vinte e cinco euros), pelo limite máximo de 7.500km; • consumo do gasóleo gasto no cartão de combustível fornecido pela ré; • valor de portagens e de outros gastos que venham a ser pagos por meio do serviço Via Verde. 4) O autor prestou serviços para a ré nos seguintes montantes (num total de € 889,96): • €317,17, quinta semana, de 24/02 a 01/03 • €251,35, sexta semana, 02/03 a 08/03 • €255,60, sétima semana, 09/03 a 15/03 • €65,84, oitava semana, 16/03 a 18/03. 5) Através de e-mail datado de 31.3.2020, a ré comunicou ao autor, designadamente, o seguinte: “Bom dia Sr A… Acho que na verdade o senhor não percebeu o procedimento da empresa pois se tivesse percebido toda esta conversa não será necessário estar a ocorrer (...) 8. O valor que o senhor tens a receber 889,96 mais 0,99 = 890,95 euros (...)” (sic). 6) Em 8.4.2020, o autor emitiu a fatura n.º 1000000, no montante de € 889,96, identificando a ré como adquirente do serviço. 7) Em 18.3.2020, a prestação de serviços a que se alude em 1) foi suspensa, a pedido da ré, em razão da pandemia por COVID-19. 8) A empresa UBER transferiu para a ré o montante de € 760,80, a título de ajuda financeira concedida aos motoristas, em face da pandemia por COVID-19 ou pelo dever de quarentena. F) Do exposto resulta que o A. prestou os serviços a que se obrigou perante a Ré e cumpriu a prestação a que se encontrava obrigado. G) Também resulta dos autos que foi o autor que forneceu e pagou na totalidade o gasóleo, da renda do aluguer da viatura e a via verde para puder proceder ao atendimento dos clientes e puder circular com o veículo cumprindo o contrato de prestação de serviço para com a Ré. H) Do acabado de expor, terá que se reconhecer que o autor beneficia do direito de retenção sobre a viatura em causa, até que a Ré lhe pague o preço dos serviços e as despesas. I) O Código Civil admite, no artigo 754.º, o direito de retenção com carácter genérico quando o crédito do detentor da coisa resulte de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados, sem especificação da causa. E admitiu-o, ainda, especificamente, no artigo seguinte, em relação ao transportador, ao albergueiro, ao mandatário, ao gestor de negócios e ao depositário ou comodatário. J) Atendendo à factualidade apurada, terá que se concluir que é aplicável o disposto no artigo 754.º do Código Civil, ao caso do A. porquanto está em causa crédito que o autor tem sobre a ré relativo a despesas feitas por causa do veículo, nomeadamente, em combustível, o gasóleo era pago pelo A.. L) Também a situação do A. se enquadra no disposto no artigo 755º, n.º 1, alínea e), do Código Civil, desde logo por estar previsto para o depositário do veículo e duvidas não há que o A. era depositário do veículo. M) Assim, sendo um direito real de garantia de obrigações e incidente sobre uma coisa em concreto verificam-se os requisitos da existência do direito de retenção e a sua válida invocação pelo A.: o A. titular do direito de retenção detêm licitamente o veículo; a reciprocidade de créditos entre o detentor da coisa e aquele a quem está obrigado a entregá-la (a pessoa com direito à restituição ou a pessoa que a pode exigir), isto é, que seja, simultaneamente credor daquele a quem deve a restituição da coisa e a existência de conexão entre a coisa retida e o crédito de quem exerce o direito (artigo 754º do Código Civil). N) Nenhuma dúvida se oferece que o A. detém licitamente o veículo, até porque este lhe foi entregue para ser por si utilizado no âmbito de um contrato, pela Ré que o utilizava legalmente no âmbito do contrato de aluguer de longa duração celebrado com a respectiva proprietária. O) O mesmo sucede, com o facto de o crédito invocado pelo A. detentor do veículo estar com ele relacionado, o que legitima o exercício do direito de retenção, de forma inequívoca, pelo menos, em relação ao valor dos combustíveis, via verde e alugueres pagos pelo autor quando em serviço com o veículo. Pelo que se verifica a reciprocidade de créditos entre quem invoca o direito de retenção – o A. - e o titular do veículo, a Ré que o artigo 754º do Código Civil exige como pressuposto da existência do direito de retenção. P) Pelo que o Tribunal recorrido ao não considerar válido o direito de retenção invocado pelo A., e ao condenar o A. a restituir à ré o veículo à Ré e a condenar o autor a pagar à ré a quantia de € 36.506,62, acrescida da quantia semanal € 225,00 até à efetiva entrega do veículo automóvel violou o disposto no artigo 754º do Código Civil. Q) É a ponderação dos interesses em causa entre as partes do processo, a exigirem do Juiz, que este se oriente por padrões de razoabilidade, em que a formulação de um juízo de valor por parte do tribunal assente no princípio da proporcionalidade entre a resposta jurisdicional e os interesses concretamente afectados e em conflito. R) O que aqui está em causa na ponderação do abuso de direito não é só a conduta da Ré – que, naturalmente, tem direito a lhe ser restituída a viatura, mas também a conduta do A. a ver-se ressarcido das quantias de que é credor relativas a gasóleo, via verde, alugueres da viatura por si pagos e em dívida pela Ré. Pelo que não existe qualquer conduta abusiva por parte do A. ao fazer exercer um direito que legalmente lhe assiste. S) Pelo que a decisão recorrida ao considerar que o exercício do direito de retenção do A. configuraria uma situação de abuso de direito, violou o disposto no artigo 334º do Código Civil. T) Como referiu a testemunha T… era o A. a pessoa que adiantava o dinheiro para o consumo do gasóleo gasto no cartão de combustível fornecido no veículo da ré, o valor de portagens e de outros gastos que venham a ser pagos por meio do serviço Via Verde. U) Assim a resposta ao ponto 3 deverá passar a ter a seguinte redação: 3) A ré obrigou-se a pagar ao autor o valor faturado na aplicação UBER e posteriormente BOLT, semanalmente, na semana seguinte à prestação de serviços de motorista, descontados dos custos: valor de €225 pelo limite máximo de 7.500km (relativo ao aluguer da viatura), o consumo do gasóleo gasto no cartão de combustível fornecido pela ré mas pago pelo A., o valor de portagens e de outros gastos pagos por meio do serviço Via Verde pelo A. que adiantava o pagamento dessas despesas, valores esses que eram pagos ao A. após a indicação da Ré da aceitação dos valores de despesas e trabalho indicados pelo A. para o A. proceder à emissão da fatura pelo valor indicado pela Ré. V) Como também referiu a testemunha a fatura no montante de € 889,96 só foi emitida pelo A. em 8.4.2020 porque havia divergências entre A. e Ré sobre o valor a faturar. X) Assim a resposta ao ponto 6 deverá passar a ter a seguinte redação: 6) O autor emitiu a fatura nº 1000000 em 08.04.2020 no montante de € 889,96, identificando a ré como adquirente do serviço, apenas nessa data porque existia divergência entre o A. e a Ré sobre o montante a ser faturado, só tendo chegada a consenso nessa data. Z) Deverão ser alteradas as respostas dadas à matéria dos pontos 3 e 6, as quais deverão ser dadas como provadas de acordo com a redação indicada. W) A ponderação dos elementos probatórios pertinentes à averiguação da matéria de facto questionada, e tendo em consideração a prova documental junta aos autos da conjugação de todos estes elementos probatórios, a conclusão a que se tem chegar é justamente diferente aquela a que chegou o Tribunal de Primeira Instância quanto aos pontos 3) e 6) dos factos provados. Deverá ser dado provimento ao recurso, e, em consequência, revogada a sentença recorrida, que deverá ser substituída por outra que altere a redação dos pontos 3) e 6) dos factos provados, condenando a Ré no pagamento da quantia de 1.743,38 ao A. e a reconhecer ao A. o exercício do direito de retenção sobre o veículo automóvel ligeiro com matrícula ..., absolvendo o A. dos pedidos reconvencionais deduzidos pela Ré». Não se encontram juntas contra-alegações. Admitido o recurso neste tribunal e colhidos os vistos, cumpre decidir. * Questões a decidir: O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida. Importa assim, saber se, no caso concreto: - Face à prova produzida é de alterar a resposta contida nos factos 3. e 6. - Haverá que considerar o direito de retenção do Autor sobre o veículo e consequentemente absolver o mesmo dos pedidos reconvencionais deduzidos pela ré. * II. Fundamentação: No Tribunal recorrido foram considerados provados os seguintes Factos: 1) Autor e ré celebraram um acordo, em 27.1.2020, através do qual aquele se comprometeu a prestar serviços de motorista para a ré (Transporte de Passageiros em Viaturas Descaracterizadas). 2) A ré dedica-se à prestação de serviços de transportes aos utilizadores das plataformas electrónicas UBER, BOLT e semelhantes. 3) A ré comprometeu-se a pagar ao autor o valor faturado na aplicação UBER e posteriormente BOLT, semanalmente, na semana seguinte à prestação de serviços de motorista, contra a apresentação de fatura pelo autor, descontados os seguintes custos: • valor de €225 (duzentos e vinte e cinco euros), pelo limite máximo de 7.500km; • consumo do gasóleo gasto no cartão de combustível fornecido pela ré; • valor de portagens e de outros gastos que venham a ser pagos por meio do serviço Via Verde. 4) O autor prestou serviços para a ré nos seguintes montantes (num total de € 889,96): • €317,17, quinta semana, de 24/02 a 01/03 • €251,35, sexta semana, 02/03 a 08/03 • €255,60, sétima semana, 09/03 a 15/03 • €65,84, oitava semana, 16/03 a 18/03. 5) Através de e-mail datado de 31.3.2020, a ré comunicou ao autor, designadamente, o seguinte: “Bom dia Sr. A… Acho que na verdade o senhor não percebeu o procedimento da empresa pois se tivesse percebido toda esta conversa não será necessário estar a ocorrer (...) 8. O valor que o senhor tens a receber 889,96 mais 0,99 = 890,95 euros (...)” (sic). 6) Em 8.4.2020, o autor emitiu a fatura n.º 1000000, no montante de € 889,96, identificando a ré como adquirente do serviço. 7) Em 18.3.2020, a prestação de serviços a que se alude em 1) foi suspensa, a pedido da ré, em razão da pandemia por COVID-19. 8) A empresa UBER transferiu para a ré o montante de € 760,80, a título de ajuda financeira concedida aos motoristas, em face da pandemia por COVID-19 ou pelo dever de quarentena. 9) No âmbito do acordo referido em 1), foi convencionado entre autor e ré, designadamente, que: 11) Na mesma data em que foi celebrado o acordo referido em 1), atinente à prestação de serviços - 27.1.2020-, autor e ré celebraram um acordo, através do qual esta declarou proporcionar ao autor o gozo temporário do veículo automóvel de marca FIAT, modelo Tipo, com a matrícula …, que veio a ser substituído por outro, em 16.3.2020, da mesma marca e modelo, com a matrícula ... 12) No âmbito do acordo referido em 11), o autor comprometeu-se a pagar à ré a quantia semanal de € 225,00. 13) Autor e ré acordaram que as quantias a receber pelo autor no âmbito do acordo referido em 1) (prestação de serviços), seriam liquidadas após dedução do valor correspondente ao aluguer do veículo automóvel e demais encargos (conforme explanado em 3)). 14) Autor e ré convencionaram que o 1.º entregaria à 2.ª uma caução para garantia da restituição do veículo no estado de conservação em que foi recebido, que fixaram em € 225,00, e que a ré poderia fazer sua a caução, caso o autor entregasse o veículo com danos. 15) Através de e-mail datado de 30.4.2020, remetido pelo autor à ré, aquele informou, designadamente, que não iria proceder à entrega do veículo de matrícula ... até que fossem liquidados os valores atinentes à prestação de serviços de motorista. 16) Através de e-mail datado de 5.5.2020, remetido pela ré ao autor, aquela, entre o mais, solicitou a restituição do veículo automóvel de matrícula ... 17) Em 6.5.2020, a ré apresentou queixa-crime junto da PSP do Funchal, em virtude da não entrega do veículo automóvel de matrícula ... por parte do autor. 18) Em 10.12.2019, a ré celebrou com a sociedade Rely on Talent um acordo através do qual esta declarou proporcionar à ré o gozo temporário do veículo automóvel de marca FIAT, modelo Tipo, matrícula ..., com data de início em 10.12.2019 e término previsto para 5.10.2020, mediante o pagamento da quantia diária de € 14,22764, acrescida de IVA. 19) A ré, por intermédio dos seus funcionários, deslocou-se a C..., em número de vezes não concretamente apurado, tendo em vista a localização/recuperação do veículo automóvel de matrícula ..., tendo contactado o autor para esse efeito em número de vezes não concretamente apurado, ao que este não acedeu. * O Tribunal recorrido deu como não provados os seguintes factos: a) O autor prestou serviços para a ré entre os dias 19.3.2020 e 22.3.2020. b) O autor prestou serviços para a ré no montante de €31,86, que corresponde à diferença de valores faturados pela UBER. c) Em virtude da falta de pagamento dos serviços identificados em 4), o autor deixou de conseguir efectuar, a partir do mês de março de 2020, pagamentos à Autoridade Tributária e Aduaneira no âmbito de um plano de pagamento em prestações. d) Em virtude da falta de pagamento dos serviços identificados em 4), o autor viu-se obrigado a vender a sua casa com urgência e teve um prejuízo no montante de € 13.963,13, tendo de arrendar um quarto pelo montante de € 150,00. e) Em virtude da falta de pagamento dos serviços identificados em 4), o autor teve de reduzir o valor da pensão de alimentos devida aos seus filhos maiores, em fase de estudos (antes pagava €1800 e no último ano pagou somente €700). f) O autor, desde março de 2020, passou a ter despesas com o arrendamento de uma garagem, que, em C..., está na média de €80 (oitenta euros) mensais. g) Relativamente às quantias faturadas nas plataformas TVDE nas semanas de 24/02 a 01/03 e de 02/03 a 08/03 todas do ano de 2020, a ré recebeu das plataformas o pagamento em 02/03 e 09/03, respectivamente. h) Nas semanas de 09/03 a 15/03 e de 16/03 a 22/03, a plataforma TVDE UBER não efectuou o pagamento dos transportes de passageiros realizados pelos motoristas da R. nas datas previstas, ou seja, em 16/03 e 23/03. i) A ré, por intermédio dos seus funcionários, deslocou-se a C... por três vezes e despendeu a quantia de € 150,00, relativa a gastos em combustível e portagens. j) O autor reportou aos demais motoristas da ré que esta não pagava porque era má pagadora. k) Os motoristas da ré entretanto prestaram serviços para outras empresas, conhecendo outros motoristas, o que fez com que a informação de incumprimento dos pagamentos da ré aos seus motoristas se tivesse espalhado, afectando de forma negativa a sua imagem comercial. l) Devido à conduta do autor, a ré não conseguiu retomar a actividade na região de C..., por não conseguir recrutar motoristas. m) Devido à conduta do autor, a ré viu-se obrigada a encerrar definitivamente a sua actividade na região de C.... * Da impugnação da decisão da matéria de facto: No âmbito da impugnação da matéria de facto estabelece o art.º 640.º do C.P.C.:«(…), deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. E nos termos do nº 2 no caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. Em caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o recorrente deve identificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, não podendo limitar-se a indicar os depoimentos prestados e a listar documentos, sem fazer a indispensável referência àqueles pontos de facto, especificando os concretos meios de prova que impunham para cada um desses pontos de facto fosse julgado provado ou não provado. A apresentação das transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art.º 640.º do C.P.C. (Cfr. Acs. do S.T.J. de 19.02.2015, Proc. n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1 (Tomé Gomes) e Proc. n.º 405/09.1TMCBR.C1.S1 (Maria dos Prazeres Pizarro Beleza), in www.dgsi.pt.). Salienta-se ainda que o S.T.J. «tem vindo a sedimentar como predominante o entendimento de que as conclusões não têm que reproduzir (obviamente) todos os elementos do corpo das alegações e, mais concretamente, que a especificação dos meios de prova, a indicação das passagens das gravações e mesmo as respostas pretendidas não têm de constar das conclusões, diversamente do que sucede, por razões de objectividade e de certeza, com os concretos de facto sobre que incide a impugnação.»( Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 771; cfr. ainda os Acs. do S.T.J. citados pelos Autores). Assim, se o recorrente impugna determinados pontos da matéria de facto, mas não impugna outros pontos da mesma matéria, estes não poderão ser alterados, sob pena de a decisão da Relação ficar a padecer de nulidade, nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. d), 2ª parte, do C.P.C. É, assim, dentro destes limites objectivos que o art.º 662.º do C.P.C. atribui à Relação competências vinculadas de exercício oficioso quanto aos termos em que pode ser feita a alteração da matéria de facto, o mesmo é dizer, quanto ao modus operandi de tal alteração. Acresce que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, face ao qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção firmada acerca de cada facto controvertido, tendo porém presente o princípio a observar em casos de dúvida, consagrado no artigo 414º do C.P.C., de que a «dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita». Conforme é realçado por Ana Luísa Geraldes («Impugnação», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I. C..., 2013, pág. 609 e 610), em «caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte». E mais à frente remata: «O que o controlo de facto em sede de recurso não pode fazer é, sem mais, e infundadamente, aniquilar a livre apreciação da prova do julgador construída dialecticamente na base dos referidos princípios da imediação e da oralidade.» Assim, apesar de se garantir um duplo grau de jurisdição, tal deve ser enquadrado com o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, previsto no art.º 607 nº 5 do C. P. Civil, sendo certo que decorrendo a produção de prova perante o juiz de 1ª instância, este beneficia dos princípios da oralidade e da mediação, a que o tribunal de recurso não pode já recorrer. De acordo com Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 347, “Algumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto controvertida e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final (…) estão sujeitas à livre apreciação do Tribunal (…) Esta apreciação baseia-se na prudente convicção do Tribunal sobre a prova produzida (art.º 655.º, n.º1), ou seja, as regras da ciência e do raciocínio e em máximas da experiência”. Para que a decisão da 1ª instância seja alterada haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que deu como assentes. Porém, e apesar da apreciação em primeira instância construída com recurso à imediação e oralidade, tal não impede a «Relação de formar a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação das provas, tal como a 1ª instância, sem estar de modo algum limitada pela convicção que serviu de base à decisão recorrida (…) Dito de outra forma, impõe-se à Relação que analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, de modo a apreciar a sua convicção autónoma, que deve ser devidamente fundamentada» (Luís Filipe Pires de Sousa, Prova Testemunhal, Alm. 2013, pág. 389). Por outro lado, importa ter presente que a impugnação de factos que tenham sido considerados provados ou não provados e que não sejam importantes para a decisão da causa, não deve ser apreciada, na medida em que alteração pretendida não é susceptível de interferir na mesma, atenta a inutilidade de tal acto, sendo certo que de acordo com o princípio da limitação dos actos, previsto no art.º 130.º do Código de Processo Civil não é sequer lícita a prática de actos inúteis no processo (v.d. Acórdão do STJ de 17/05/2017 (Fernanda Isabel Pereira), disponível em www.dgsi.pt e, ainda, os Acórdãos da Relação de Guimarães, de 15/12/2016 (Maria João Matos) e desta Relação de 26/09/2019 (Carlos Castelo Branco), também da citada base de dados). Feito este enquadramento, haverá que aferir quais os pontos concretos que devem ser apreciados por este tribunal. O Recorrente pretende que se alterem as respostas contidas nos pontos 3. e 6. dos factos considerados pelo Tribunal a quo, os quais são do seguinte teor: 3) A ré comprometeu-se a pagar ao autor o valor faturado na aplicação UBER e posteriormente BOLT, semanalmente, na semana seguinte à prestação de serviços de motorista, contra a apresentação de fatura pelo autor, descontados os seguintes custos: • valor de €225 (duzentos e vinte e cinco euros), pelo limite máximo de 7.500km; • consumo do gasóleo gasto no cartão de combustível fornecido pela ré; • valor de portagens e de outros gastos que venham a ser pagos por meio do serviço Via Verde. 6) Em 8.4.2020, o autor emitiu a fatura n.º 1000000, no montante de € 889,96, identificando a ré como adquirente do serviço. Sustenta nas suas conclusões T) a Z), que a testemunha T… aludiu que era o A. a pessoa que adiantava o dinheiro para o consumo do gasóleo gasto no cartão de combustível fornecido no veículo da ré, o valor de portagens e de outros gastos que venham a ser pagos por meio do serviço Via Verde. Pretendendo que o ponto 3 passe a ter a seguinte redação: 3) A ré obrigou-se a pagar ao autor o valor faturado na aplicação UBER e posteriormente BOLT, semanalmente, na semana seguinte à prestação de serviços de motorista, descontados dos custos: valor de €225 pelo limite máximo de 7.500km (relativo ao aluguer da viatura), o consumo do gasóleo gasto no cartão de combustível fornecido pela ré mas pago pelo A., o valor de portagens e de outros gastos pagos por meio do serviço Via Verde pelo A. que adiantava o pagamento dessas despesas, valores esses que eram pagos ao A. após a indicação da Ré da aceitação dos valores de despesas e trabalho indicados pelo A. para o A. proceder à emissão da fatura pelo valor indicado pela Ré. Defende que a mesma testemunha referiu que a fatura no montante de € 889,96 só foi emitida pelo A. em 8.4.2020 porque havia divergências entre A. e Ré sobre o valor a faturar. Pelo que conclui que a resposta ao ponto 6 deverá passar a ter a seguinte redação: 6) O autor emitiu a fatura nº 1000000 em 08.04.2020 no montante de € 889,96, identificando a ré como adquirente do serviço, apenas nessa data porque existia divergência entre o A. e a Ré sobre o montante a ser faturado, só tendo chegada a consenso nessa data. Assenta o recorrente a sua impugnação, no essencial, no depoimento da testemunha T…, sendo que relativamente a este o Tribunal a quo alude apenas que: “A testemunha T…, motorista que exerceu funções para a ré cerca de seis meses, até março de 2020, e que referiu conhecer o autor do âmbito do exercício dessas funções, relatou que ficou impossibilitado de trabalhar para a ré aquando da pandemia por Covid-19; ter ficado com valores por receber e ter procedido à entrega do veículo que utilizava para prestar serviços. Nada de relevante acrescentou para apuramento da factualidade em dissídio nos autos.” Quanto aos factos, começa a decisão sob escrutínio neste recurso por indicar genericamente que “(p)ara formar a sua convicção, o tribunal teve em consideração o acordo das partes (factos admitidos por acordo); procedeu à análise, global e pormenorizada, do teor dos documentos que foram juntos aos autos, bem como aos depoimentos das testemunhas inquiridas em sede de audiência final. Do elenco das provas enunciadas e da análise crítica das mesmas, no confronto das testemunhas e dos documentos juntos aos autos, concretizemos, embora de forma sucinta, em que precisos termos se formou a convicção do Tribunal relativamente aos factos submetidos a julgamento.” E especificamente “(n)o que diz respeito aos factos elencados em 1) a 3), 9) e 13), o Tribunal atendeu ao teor do documento intitulado “contrato de prestação de serviços”, datado de 27.1.2020, fls. 14 vs. a 16.(…)No que concerne ao facto 6), o Tribunal teve em consideração a fatura emitida pelo autor, em 8.4.2020, no valor de € 889,96. (…) Volvido cerca de um mês e meio da data da celebração dos referidos contratos, em 18.3.2020, o autor deixou de prestar serviços para a ré, pois esta suspendeu os seus serviços de transporte de passageiros, em virtude de ter sido decretado o estado de emergência por força da situação pandémica desencadeada pela doença Covid-19. Desde então, o autor manteve na sua posse o veículo de matrícula ... (...) No que diz respeito ao facto ínsito em 19), o Tribunal atendeu ao depoimento da testemunha A…, que exerceu funções para a ré na qualidade de gestor de frota até ao final de 2020 e que, de modo credível, isento e circunstanciado, relatou que, na sequência da suspensão de serviços por parte da ré, em consequência da situação pandémica, foram contactados todos os motoristas que exerciam funções para a mesma, com vista a agendar uma data para verificar o estado dos veículos e acertar os valores que aqueles teriam a receber. Tal acerto pressupunha que se aferisse se os veículos apresentavam danos, de modo a efetuar o desconto do valor da caução, se necessário, e proceder ao pagamento dos valores atinentes à prestação de serviços de motorista, o que pressupunha a emissão de recibo. Mais concretizou que se deslocou cerca de 3 ou quatro vezes a C..., contactou o autor para que o veículo fosse restituído, mas este nunca acedeu, “não deixava ver a viatura” e “arranjava sempre problemas”. (sic). A testemunha P…, administrativa a exercer funções para a ré desde 2019, de modo credível e circunstanciado, confirmou que, na sequência da situação pandémica por Covid-19, contactaram todos os motoristas que prestavam serviços para a ré, no sentido de estes procederem à devolução dos veículos alugados. Tendo em consideração que os veículos haviam sido alugados à ré por outra empresa (rent-a-car), aquela pretendia entregá-los. Conseguiram recuperar todos os veículos, com excepção daquele que havia sido entregue ao autor que, a partir de 18.3.2020, não pagou qualquer retribuição pelo aluguer.”. Percepcionado o depoimento da testemunha T…, motorista de plataformas electrónicas, amigo do Autor, este referiu que ambos trabalhavam no mesmo ramo, aludiu que o conhece há dois anos, e referiu que “infelizmente” trabalhou para a ré, o que releva desde logo ausência de objectividade no testemunho, tendo trabalhado cerca de seis meses para a ré, tendo terminado no período da pandemia. Referiu que existiam motoristas que não recebiam da ré e na pandemia deixaram todos de receber “o que era devido”, encontrando-se o próprio nessa situação, mas os valores não justificavam a interposição de uma acção. Com o Autor sabe que existiam dívidas, não trabalhava em C..., mas as coisas eram faladas num grupo que existia dos motoristas da ré. Aludiu que nada sabe do valor do incentivo da UBER, pois já não estava na empresa à data, apenas referiu que o A. “está a reivindicar o que lhe pertence”, nada sabe sobre a rescisão dizendo que a ré “inviabilizou o trabalho” por lhe terem sido retirados os veículos e a via verde, na data do “pico da pandemia”. Falou na sua situação de divergência sobre o que foi pago e o que entendia que estaria em dívida, mas sem aludir ao Autor, mas sim o que ocorreria relativamente ao mesmo. Afirmou que o mesmo devolveu o carro à ré, “uns meses depois”, e que a única situação que conhece que não recebeu foi o Autor, pois “foi o único que foi com as coisas para a frente”. Manifestamente nada aludiu sobre divergências do Autor com a ré sobre os eventuais valores em dívida, ou que valores estariam em causa, nada disse, ou esclareceu. Ora, manifestamente nada nos permite alterar os factos tal como foram considerados pelo Tribunal de 1ª instância. Com efeito, o teor do ponto 3 advém das cláusulas 4ª e 5ª do contrato, nem o depoimento da testemunha foi de molde a infirmar ou complementar tal facto com o ora pretendido pelo recorrente. Quanto ao ponto 6., a testemunha aludida em momento algum referiu existir divergência de valor entre o A. e ré, limitando-se a fazer menção do seu caso pessoal, e nada mais. Logo, é de declarar improcedente o recurso nesta parte, mantendo-se a decisão relativa aos factos tal como foi considerado pelo Tribunal a quo. * III. O Direito: Improcedente que foi a alteração factual nos termos pretendidos, haverá que considerar o recurso quanto ao mais, o qual incide apenas sobre a condenação do Autor no pedido reconvencional deduzido pela ré, no essencial do que advém da circunstância de se ter concluído que ao Autor não assistiria direito de retenção sobre o veículo e, logo, deveria o mesmo ser condenado nos prejuízos que a falta de entrega do veículo à Autora adveio para a mesma. No entanto, para aferir do eventual direito de retenção, sempre estará subjacente o crédito do Autor em relação à ré, mas quanto a este crédito está arredado do recurso a sua discussão, ou valor. Logo, da factualidade apurada, podemos afirmar que a relação contratual estabelecida entre as partes tem por base um contrato de prestação de serviços e um contrato de aluguer de veículo automóvel, ambos celebrados em 27.1.2020. A condenação da ré no pagamento ao Autor advém do contrato de prestação de serviços concluindo-se que ficou demonstrado que o autor prestou os serviços contratados, durante as semanas de 24/02 a 01/03; 02/03 a 08/03; 09/03 a 15/03 e 16/03 a 18/03 de 2020. Mais resultou que os pagamentos devidos pela ré ao Autor seriam feitos mediante a emissão de factura por parte deste, pelo que tendo o Autor emitido factura no valor de € 889,96, apenas a 08/04/2020, expõe-se na decisão recorrida que: “não resultou assente que tal documento tivesse sido enviado / entregue à ré, sendo certo que, nos termos do contrato de prestação de serviços celebrado, foi convencionado que o pagamento dos serviços seria realizado na semana seguinte àquela em que os mesmos foram prestados “contra fatura” apresentada pelo autor à ré (cláusula quarta). A verdade é que, sendo os serviços aqui em apreço referentes aos meses de fevereiro de 2020 a março de 2020, o autor apenas emitiu a fatura no dia 8.4.2020 e não foi alegado nem provado que tivesse apresentado esse documento contabilístico à autora. Todavia, em sede de contestação, a ré admitiu dever essa quantia ao autor, bem como a quantia de € 760,80, a título de ajuda financeira concedida aos motoristas pela UBER, num total de € 1.650,76. Sobre esta quantia acrescem juros moratórios contabilizados desde a data da citação (26.1.2022), à taxa legal em vigor e que, na presente data ascendem a € 92,62 (noventa e dois euros e sessenta e dois cêntimos).”. Da matéria de facto considerada nos autos, resulta somente que o autor prestou serviços para a ré nos seguintes montantes (num total de € 889,96): • €317,17, quinta semana, de 24/02 a 01/03; • €251,35, sexta semana, 02/03 a 08/03; • €255,60, sétima semana, 09/03 a 15/03;• €65,84, oitava semana, 16/03 a 18/03. Resulta igualmente que em 8.4.2020, o autor emitiu a fatura n.º 1000000, no montante de € 889,96, identificando a ré como adquirente do serviço. Não resulta de tais factos, ao contrário do aludido neste recurso, que os valores em causa dissessem respeito a custos específicos com o veículo, nomeadamente combustível e portagens, sendo o valor apenas relativo e correlacionado com a prestação de serviços, o mesmo ocorrendo com o transferido pela empresa UBER, no montante de € 760,80, pois este é atinente a ajuda financeira concedida aos motoristas, em face da pandemia por COVID-19 ou pelo dever de quarentena. Daqui resulta que o crédito detido pelo Autor em relação à ré é tão somente relativo ao contrato de prestação de serviços qua tale, sem cuidar de eventuais despesas com o veículo, este objecto do contrato de aluguer. Acresce que do contrato celebrado resulta, por um lado, que o consumo do gasóleo seria feito através de um cartão de combustível fornecido pela ré, e o valor das portagens e de outros gastos através da via verde, desconhecendo-se quem figura como titular, se o Autor ou a ré. Ficou assim, consolidado nos autos o crédito que o Autor detém sobre a ré nos termos sobreditos, pelo que, o dizer sobre o eventual direito de retenção do mesmo sobre o veículo, objecto do contrato do contrato de aluguer e igualmente utilizado na prestação de serviços? Na sustentação da procedência do recurso pelo Autor apelante e relativo à sua condenação no pedido reconvencional formulado, entende o mesmo que cumpriu o contrato de prestação de serviço para com a Ré, pelo que entende que “beneficia do direito de retenção sobre a viatura em causa, até que a Ré lhe pague o preço dos serviços e as despesas”, concluindo ainda que “está em causa crédito que o autor tem sobre a ré relativo a despesas feitas por causa do veículo, nomeadamente, em combustível, o gasóleo era pago pelo A.”, pelo que entende que se encontra preenchida a previsão do art.º 754º e do 755º, n.º 1, alínea e), do Código Civil, desde logo por estar previsto para o depositário do veiculo, alegando que duvidas não há que o A. era depositário do veiculo. Discorre ainda que detêm licitamente o veículo, até porque este lhe foi entregue pela ré para ser por si utilizado no âmbito de um contrato, que o utilizava legalmente no âmbito do contrato de aluguer de longa duração celebrado com a respectiva proprietária. Reiterando que o crédito invocado pelo A., detentor do veículo, estava com ele relacionado, o que legitima o exercício do direito de retenção, pelo menos, em relação ao valor dos combustíveis, via verde e alugueres pagos pelo autor quando em serviço com o veículo. Conclui que se verifica a reciprocidade de créditos entre quem invoca o direito de retenção – o A. - e o titular do veículo, a Ré que o artigo 754º do Código Civil exige como pressuposto da existência do direito de retenção. Em suma, entende que o Tribunal recorrido ao não considerar válido o direito de retenção invocado pelo A., e ao condenar o A. a restituir à ré o veículo, e a condenar o autor a pagar à ré a quantia de € 36.506,62, acrescida da quantia semanal € 225,00 até à efectiva entrega do veículo automóvel violou o disposto no artigo 754º do Código Civil. Acaba ainda por enunciar que não estará em causa o abuso de direito, dizendo que à ré assiste o direito a ser restituída da viatura, mas ao A. assiste o direito a ser “ressarcido das quantias de que é credor relativas a gasóleo, via verde, alugueres da viatura por si pagos e em dívida pela Ré”. Pelo que defende que não existe qualquer conduta abusiva por parte do A. ao fazer exercer um direito que legalmente lhe assiste. Na decisão recorrida acaba por se considerar a “suspensão” dos serviços do réu, a 18/03/2020, em razão da situação pandémica ocorrida em 2020, mas reportado ao contrato de prestação de serviços, mas nada se diz quanto ao contrato de aluguer. Porém, resulta igualmente dos factos que relativamente ao aluguer do veículo era devido pelo Autor à ré o valor de 225€ semanais. Acresce que, ao contrário do que resulta quanto ao contrato de prestação de serviços (descrito em 1.), apenas consta dos factos que, por email de 5/5/2020, a ré solicitou ao Autor a restituição do veículo. Porém, o Autor, com data de 30/04/2020, já havia informado a ré que não iria proceder à entrega do veículo, até que lhe fossem liquidados os valores atinentes à prestação de serviços de motorista. Resultado ainda que após, 18/03/2020 (data da cessação da prestação de serviços), o Autor manteve o veículo na sua posse. É certo que a factura tem data de 8/04/2020, mas como bem se evidencia na sentença não resulta que o A. tenha apresentado a mesma à ré, mas, frise-se, esta era apenas relativa à prestação dos serviços, cujo contrato havia sido “suspendido” a 18/03/2020. Aqui chegados, importa ter presente que o recurso não incide sobre a subsunção dos factos atinentes ao pedido da ré em concreto, pois o recorrente pretende sim que se considere o seu direito de retenção sobre o veículo, quando olvida que relativamente a este existia com a ré um contrato de aluguer. Ora, o Tribunal a quo, por aplicação das normas da locação (art.º 1043º, 1045º do Código Civil), e concluindo pela denuncia do contrato, discorre da seguinte forma. “No caso concreto, verifica-se que a ré, no dia 5 de maio de 2020, comunicou ao réu que deveria proceder à restituição do veículo automóvel, em face da cessação do contato de prestação de serviços. Resultou da prova produzida que o autor foi também interpelado por parte de funcionário da ré para proceder à devolução do veículo, ao que nunca acedeu. A análise das comunicações remetidas pela ré ao autor permite concluir que lhe foi comunicada a intenção de terminar o contrato de aluguer de veículo, o que o autor compreendeu, tendo, nessa sequência, invocado o direito de retenção sobre o veículo. Ora, em face do término da relação contratual, cumpre declarar procedentes os dois primeiros pedidos formulados pela ré em reconvenção e, em consequência, condenar o autor a restituir à ré o veículo automóvel de matrícula ... Em face do explanado supra, cumpre também condenar o autor a pagar à ré o valor semanal de € 225,00, desde 18.3.2020, até à efectiva entrega do veículo, valor que nesta data, decorridas 170 semanas, se computa em € 38.250,00 (trinta e oito mil duzentos e cinquenta euros)”. O contrato de locação entre as partes poderia justificar a posse do veículo, porém, não há que olvidar que perante este e na sua manutenção o réu estaria obrigado a pagar o valor do aluguer e foi com base neste que o autor foi condenado. Sendo certo que o recorrente acaba por não pôr em causa neste recurso os factos que fundamentam tal condenação, saliente-se, a denúncia do contrato de aluguer com a obrigação de restituição, e não sendo esta feita pelo Autor, o pagamento a título indemnizatório do valor do aluguer devido. Com efeito, a posse do veículo pelo Autor não advém directamente do contrato de prestação de serviços, mas sim do contrato de aluguer celebrado no mesmo dia, e plasmado nos pontos 11. a 13 dos factos provados. Haverá assim que considerar que natureza jurídica assumem tais contratos, contratos esses unidos? mas que acabam por serem destintos quanto ás prestações assumidas por cada um deles, ou contratos mistos? Com efeito, será com base nesta discussão que podemos apreciar o eventual direito de retenção do A./reconvindo, pois não fundamentando o recorrente o seu recurso na ausência de denúncia do contrato de aluguer, ou sequer na inexistência de obrigação pelo mesmo do pagamento dos alugueres a que se obrigou, não se vislumbra, desde logo, como pode sustentar a existência de direito de retenção sobre o veículo como sendo motivo de paralisar o direito de indemnização da ré, pela ausência de restituição do veículo após a denúncia do contrato de aluguer. Tal poderá, todavia, ser equacionado perante ou a figura dos designados contratos mistos, ou pela figura da união de contratos. De acordo com o ensinamento do Professor Inocência Galvão Telles (in Manual dos Contratos em Geral, Refundido e Actualizado, Coimbra Editora, página 469), os contratos mistos têm carácter unitário, resultando da fusão de dois ou mais contratos ou de partes de contratos distintos, ou da participação num contrato de aspectos próprios de outro ou outros. Tal como se afirma no Acórdão do TRC de 8/2/2011(proc. nº 2022/08.4TBFIG.C1, in www.dgsi.pt/jtrc) “Em tal fusão, os elementos correspondentes a vários tipos contratuais agremiam-se em ordem à realização de função social unitária, por uma das seguintes vias: i) ou forma-se um acordo pela conjugação de parte dos elementos de diversos contratos típicos; ii) ou em certa espécie contratual insinuam-se ou incrustam-se elementos estranhos. Em qualquer das situações descritas, ocorre a fusão e não o simples cúmulo, sendo o contrato misto é um contrato, composto por diversos tipos contratuais. (…) Para que os diversos elementos contratuais distintos façam parte de um único contrato, é necessário que se integrem num processo unitário e autónomo de composição de interesses, o que deverá ser aferido com base em dois critérios essenciais: um centrado na unidade ou pluralidade da contraprestação, outro alicerçado na unidade ou pluralidade do esquema económico subjacente à contratação. De acordo com os critérios enunciados, se às diversas prestações a cargo de uma das partes corresponde uma prestação única da contraparte, torna-se incontornável a presunção de que quiseram celebrar um só contrato. O mesmo ocorre quando na base das prestações a que se encontram adstritas uma e outra parte, haja um esquema unitário, um acerto de interesses, de tal modo que a parte obrigada a realizar várias prestações, as não queira negociar separadamente mas apenas em conjunto.”. Ora, perante os dois contratos celebrados não cremos que estejamos perante um contrato dito misto, pois as prestações são distintas em ambos, sendo o único elo de ligação em termos prestacionais, a circunstância de ter ficado provado que Autor e ré acordaram que as quantias a receber pelo autor no âmbito do contrato de prestação de serviços, seriam liquidadas pela ré após dedução do valor correspondente ao aluguer do veículo automóvel e demais encargos, este devido pelo Autor à ré. Afastada tal figura, importa aferir se estamos perante uma união de contratos, pois revisitando o Professor Inocência Galvão Telles (in ob. cit. pág. 476), dos contratos mistos, deve distinguir-se a união de contratos, também chamada coligação de contratos. No caso da união de contratos, estes mantêm-se diferenciados, conservando cada um a sua individualidade. Na expressão do autor citado, os contratos cumulam-se, não se fundem. E nesta distinguem-se três espécies de união de contratos: união extrínseca; união alternativa; e união com dependência Na união extrínseca, o único factor de ligação reside na circunstância de se celebrarem na mesma ocasião, constando por exemplo do mesmo escrito. Na união com dependência, há entre os contratos um vínculo traduzido no facto de a validade e vigência de um contrato depender da validade e vigência do outro, sendo disso exemplo o caso do arrendamento dependente do contrato de trabalho – a entidade empregadora cede habitação ao trabalhador, enquanto este mantiver o vínculo laboral. O que no caso não ocorre, pois ainda que a prestação do serviço do Autor seja feita com o veículo objecto do contrato de aluguer, em momento algum dos contratos foi estabelecida tal correlação absoluta, ou a mesma foi invocada por alguma das partes na acção, aliás, mesmo não existindo o contrato de aluguer, poderia o Autor prestar o seu serviço de motorista, através de um veículo fornecido pela ré, sem que o Autor tivesse assumido qualquer vinculo contratual que tivesse como objecto a viatura utilizada em tal actividade. Na união alternativa, são celebrados dois contratos, em termos tais que, conforme ocorra ou não certo evento, assim se considerará celebrado apenas um deles. Na situação sub judice, estamos perante dois contratos distintos, verificando-se a união extrínseca, na medida em que foram celebrados entre as mesmas partes, na mesma ocasião, ainda que em escritos distintos. Porém, haverá ainda algum elemento de dependência, pois na cláusula sexta do contrato de prestação de serviços prevêm-se normas relativas ao contrato que intitulam “adicional”, e nesta estabelecem-se acordos específicos quanto ao veículo, da seguinte forma: No entanto, nem o recorrente convoca tal estipulação contratual por forma a considerarmos a eventual dependência dos dois contratos, nem esta se verifica em concreto quanto ás prestações em causa nos autos, a saber, o pagamento dos serviços prestados pelo Autor à ré e a restituição do veículo por parte do Autor à ré, na sequência da denuncia do contrato de aluguer, sendo a indemnização fixada face à ausência dessa restituição. Na verdade, inexiste sinalagma de ambas as prestações devidas, dada a existência dos dois contratos nos termos sobreditos, pois, se por um lado a ré assumiu a obrigação do pagamento dos serviços ao Autor, vinculação que decorre do contrato de prestação de serviços, por outro lado, a posse do veículo pelo Autor decorre do contrato de aluguer celebrado com a ré, e a obrigação de restituição decorre da denúncia deste. Havendo ainda que ter em consideração que no âmbito do aluguer o A. se obrigou perante a ré a pagar o valor do aluguer devido. Logo, como locador não pode o Autor pretender que a posse legítima do veículo decorre de um qualquer direito de retenção sobre o mesmo, pois no contrato de aluguer a obrigação da ré é de conferir ao locador o uso e gozo da coisa, e em contrapartida, a obrigação do Autor é de pagamento do aluguer devido. Ao invés, no contrato de prestação de serviços a obrigação do Autor seria de efectuar o serviço para o qual foi contratado, competindo à ré efectuar tal pagamento. A obrigação que o Autor imputa à ré como incumprida ocorre neste último contrato e não naquele outro. Não obstante o referido, o que determinaria desde logo a improcedência do recurso, mesmo a entender-se a existência de uma união de contratos, com dependência, sempre haverá que considerar que não está consubstanciado o direito de retenção do Autor em relação ao veículo, sem necessidade sequer da eventual invocação do abuso de direito. Senão vejamos. Dispõe o art.º 754º do Código Civil que “o devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados”. Como escrevem Pires de Lima e Antunes Varela, no Código Civil Anotado, Vol. I, 2ª ed. rev. e act., pág. 697, “Para que exista direito de retenção, nos termos do artigo 754º, é necessário, em primeiro lugar que o respectivo titular detenha (licitamente: cfr. art.º 756º, alín. a)) uma coisa que deva entregar a outrem; em segundo lugar, que, simultaneamente, seja credor daquele a quem deve a restituição; por último, que entre os dois créditos haja uma relação de conexão (debitum cum re junctum), nas condições definidas naquele artigo – despesas feitas por causa da coisa ou danos por ela causados)”. O direito de retenção é um direito real de garantia (cfr. arts. 604º, nº 2, 758º e 759º do Código Civil), beneficiando, nessa qualidade da característica da sequela enquanto manifestação dinâmica da inerência do direito a uma coisa móvel ou imóvel. Ora, no caso concreto o direito de crédito do Autor não assenta na coisa cuja restituição estava obrigado a realizar, pois a ré apenas deveria proceder ao pagamento ao Autor do valor da prestação do serviço, inexistindo nesse valor qualquer quantia que dissesse respeito a despesas com o veículo. Acresce que, na data em que o Autor invoca tal direito perante a ré, nem sequer possuía um direito de crédito sobre a mesma, dado ainda não ter apresentado a factura que permitiria ser ressarcida pelo valor dos serviços prestados. Por outro lado, e nos termos constantes na decisão, no segmento argumentário e decisório que não é posto em causa pelas partes e se consolidou nos autos, o contrato de aluguer do veículo que titulava a posse do Autor, já havia sido “denunciado” a 18/03/2020, pelo que na data em que o Autor pretende fazer valer o seu eventual direito de retenção, a 30/04/2020, já a retenção seria ilícita. Pois, como bem se sumariou no Ac. do STJ de 4/05/2010 ( proc. nº 780/04.1TVLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt): “I - O direito de retenção é um direito real de garantia que confere ao devedor que se encontra adstrito a entregar uma certa coisa e que disponha de um crédito sobre o seu credor, de não efectuar a prestação, mantendo a coisa que deveria entregar em seu poder – cf. art.º 754.º do CÓDIGO CIVIL. II - São requisitos do direito de retenção: a) a detenção lícita de uma coisa que deve ser entregue a outrem; b) que o detentor seja, por sua vez, credor da pessoa com direito à restituição; c) que entre os dois créditos exista um nexo: tratar-se de despesas feitas por causa dessa coisa ou de danos por ela causados.”. Deste modo, não se encontra consubstanciado o direito de retenção do Autor em relação ao veículo, cuja obrigação de restituição já existia em data anterior à invocação de tal direito, e ainda porque inexiste entre o crédito do Autor e a coisa qualquer nexo, pois o crédito é alheio ao objecto da alegada retenção. Afastado o art.º 754º do Código Civil, claramente os factos não nos permitem igualmente integrar o direito de retenção com base no disposto no art.º 755º do Código Civil. Com efeito, nos termos do artigo 755.º do referido diploma legal, sob a epígrafe “Casos especiais”, é determinado que: “1 - Gozam ainda do direito de retenção: a) O transportador, sobre as coisas transportadas, pelo crédito resultante do transporte; b) O albergueiro, sobre as coisas que as pessoas albergadas hajam trazido para a pousada ou acessórios dela, pelo crédito da hospedagem; c) O mandatário, sobre as coisas que lhe tiverem sido entregues para execução do mandato, pelo crédito resultante da sua atividade; d) O gestor de negócios, sobre as coisas que tenha em seu poder para execução da gestão, pelo crédito proveniente desta; e) O depositário e o comodatário, sobre as coisas que lhes tiverem sido entregues em consequência dos respetivos contratos, pelos créditos deles resultantes; f) O beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos temos do artigo 442.º 2 - Quando haja transportes sucessivos, mas todos os transportadores se tenham obrigado em comum, entende-se que o último detém as coisas em nome próprio e em nome dos outros.” Como vimos, o direito de retenção, como direito real de garantia, consiste na faculdade que tem o detentor de uma coisa de não proceder à sua entrega a quem lha possa exigir, enquanto este não cumprir uma obrigação a que está adstrito para com aquele. Como bem se alude na decisão sob recurso “O novo Código não seguiu, quanto a esta questão, um carácter uniforme. Admitiu, neste artigo 754.º, o direito de retenção com carácter genérico quando o crédito do detentor da coisa resulte de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados, sem especificação da causa (…); admitiu-o, excepcionalmente, no artigo seguinte, em relação ao transportador, ao albergueiro, ao mandatário, ao gestor de negócios e ao depositário ou comodatário, mas não chega a formular nenhum princípio geral relativo aos créditos provenientes da mesma fonte. Dada, embora, a generalidade deste artigo 754.º, não é legal a sua aplicação por analogia a casos nele não compreendidos, porque a disposição tem sempre, quanto aos direitos que confere ao detentor, carácter excepcional” - LIMA, Pires de; VARELA, Antunes, Código Civil Anotado, Volume I, 2.ª edição, C... Editora, p. 697. Entendemos que daqui se deve concluir que, dada a excepcionalidade deste regime, o mesmo não dever aplicável a outros casos além dos expressamente previstos.”. No âmbito da acção o Autor convocou o regime do mandato, tal como se encontra previsto no art.º 1156.º do Código Civil, e por força deste preceito o direito de retenção a que alude o artigo 755.º, alínea c), do mesmo diploma legal, ou seja, dizendo que goza do direito de retenção “o mandatário, sobre as coisas que lhe tiverem sido entregues para execução do mandato, pelo crédito resultante da sua actividade”. Na abordagem de tal questão e no sentido de afastamento de tal previsão no caso concreto, o Tribunal a quo de forma acertada conclui “entendemos que o disposto no artigo 755.º, n.º 1, alínea c), do Código Civil não é aplicável ao caso dos autos, desde logo por estar previsto para o mandato e não admitir interpretação extensiva, em face dos considerandos explanados, pelo que cumpre declarar improcedente pedido formulado pelo autor de reconhecimento do direito de retenção relativamente ao veículo automóvel aqui em apreço.”. Neste recurso, ao invés, o recorrente entende que a situação se enquadra no disposto no artigo 755º, n.º 1, alínea e), do Código Civil, dizendo que, desde logo, por estar previsto para o depositário do veículo e dúvidas não há que o A. era depositário do veículo. Ora, tal como ocorre com a invocação da alínea c) relativamente ao mandato, também a situação de depositário ou comodatário não comportam interpretação extensiva, nem o Autor assume perante o veículo qualquer posição de depositário, mas sim e apenas de locatário, com as obrigações inerentes a tal posição jurídica, mormente o pagamento dos alugueres. Logo, mesmo que se conclua pela licitude da posse do veículo, esta decorre do contrato de aluguer e não do direito de garantia que o recorrente pretende que se considere. Logo, o contrato de aluguer prevê a contrapartida do pagamento pelo uso e fruição da coisa locada, pelo que inerente a tal posse está o pagamento do aluguer, e foi com base nesta que se condenou o A. reconvinde no pagamento à ré reconvinte. Do exposto, inexiste fundamento que legitime o Autor a reter o veículo, por forma a considerar que não é devido o pagamento à ré nos termos decididos nesta acção. Todavia, mesmo que não se considere tal direito, o que determinaria por si só que o recurso soçobrasse, anuímos ainda ao exposto quanto ao abuso de direito por parte do Autor, tendo por base o disposto no art.º 334º do Código Civil, ao aludir que “Dentro do instituto do abuso de direito, a nossa doutrina e jurisprudência definem o desequilíbrio no exercício, na modalidade de “desproporção entre a vantagem do titular e o sacrifício por ele imposto a outrem” - CORDEIRO, António Menezes, Tratado de Direito Civil V, 2.ª edição, Almedina, 2015, p. 372. “(…) o desequilíbrio no exercício é hoje usado para corrigir situações de Direito estrito que se apresentam injustas para os intervenientes. Designadamente: permitindo uma grande vantagem para um deles, à custa do outro e isso sem que se apresente uma especial justificação para tanto” – ob. cit., p. 379. Dessarte, ocorre uma situação típica de abuso do direito quando alguém, detentor de um determinado direito, consagrado e tutelado pela ordem jurídica, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência e ostensivamente contra o sentimento jurídico dominante – acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 09-01-2017, processo n.º 102/11.8TBALD.C2. Em face dos considerandos explanados, vejamos os contornos do caso concreto: i) Autor e ré celebraram um contrato de prestação de serviços e, no âmbito do mesmo, aquele prestou serviços para esta durante cerca de um mês e meio; ii) Em virtude dos serviços prestados durante as semanas de 24/02 a 01/03, 02/03 a 08/03, 09/03 a 15/03 e 16/03 a 18/03, o autor tinha a receber da ré a quantia de € 889,96; iii) Concomitantemente ao referido em i), autor e ré celebraram um contrato de aluguer de veículo automóvel, tenho sido convencionada a retribuição semanal de € 225,00; iv) Em 18.3.2020, o autor cessou a prestação de serviços para a ré (em virtude da situação pandémica) e, pese embora tivesse sido interpelado para proceder à restituição do veículo automóvel, não o fez, alegando o direito de retenção, mantendo o veículo na sua posse até à data de hoje, sem proceder ao pagamento da retribuição semanal referida em iii). Daqui se extrai que o autor prestou serviços para a autora durante um hiato temporal reduzido, sendo manifestamente desproporcional a vantagem que o autor pretendia obter (pagamento do montante de € 889,96) e o sacrifício imposto à ré que, não sendo sequer proprietária do veículo, tendo-o alugado a outra empesa, também não o pôde restituir. Note-se também que o pagamento da quantia de € 889,96 estava dependente da emissão da fatura por parte do autor, o que apenas veio a ocorrer em 8.4.2020, sendo certo que o autor não fez prova de que alguma vez tivesse enviado tal documento à ré. Outrossim, quando o autor invocou o direito de retenção perante a ré – através de e-mail de 30.4.2020, fls. 63 – nem sequer tinha emitido a fatura supra referida, sendo certo que foi expressamente convencionado no contrato de prestação de serviços que o pagamento ficaria dependente da apresentação de fatura.”. Assim, face a tudo o aludido, ponderados todos os factos e argumentos jurídicos, é manifesta a improcedência da apelação. * IV. Decisão: Por todo o exposto, Acorda-se em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo Autor e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida nos seus precisos termos. Custas do recurso pelo apelante. Registe e notifique. Lisboa, 21 de Novembro de 2024 Gabriela de Fátima Marques António Santos João Brasão |