Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
174/20.4PTVFX.L1-5
Relator: ANA CLÁUDIA NOGUEIRA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
DOLO EVENTUAL
CONDUÇÃO PERIGOSA DE VEÍCULO RODOVIÁRIO
OMISSÃO DE AUXÍLIO
INDEMNIZAÇÃO
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora)
I. Na ausência de um entendimento entre os condutores intervenientes em acidente de viação, recai sobre os mesmos o dever de fornecer a respetiva identificação, a do proprietário do veículo e a da seguradora, bem como o número da apólice, nos termos do nº 1 do art. 89º do Código da Estrada aprovado pelo D.L. 114/94, de 03/05; não havendo feridos ou mortos resultantes do acidente, não existe um dever legal de permanecer no local a aguardar a chegada de agente de autoridade, como decorre a contrario do nº 2 do mesmo art. 89º do mesmo preceito.
II. Em qualquer caso, não estando em causa a prática de um crime em flagrante delito que justifique uma detenção, carece de legitimidade o ato de obrigar/forçar outra pessoa a permanecer em determinado local, privando-a da sua liberdade de movimento.
III. Incorre na prática de um crime de ofensa à integridade física simples com dolo eventual, previsto pelos arts. 14º/3 e 143º/1, do Código Penal, o arguido que, depois de o ofendido se agarrar ao capô da viatura em que aquele seguia, prossegue a sua marcha nessas condições apesar de representar como possível mercê dessa sua conduta ofensa à integridade física daquele, conformando-se com esse resultado.
IV. No tipo legal de crime de condução perigosa de veículo rodoviário, o legislador instituiu sob a alínea b) do nº 1 do art. 291º do Código Penal um catálogo fechado de infrações consideradas mais gravosas por estarem frequentemente na origem de acidentes e conduzirem a resultados mais danosos; ao fazê-lo criou um tipo legal de crime de execução vinculada, não deixando margem de discricionariedade na definição das regras de circulação violadas suscetíveis de serem consideradas para efeitos de criação do perigo típico.
V. Não integram esse catálogo as regras relativas à conduta dos condutores em caso de acidentes de viação, nomeadamente a prevista sob o art. 89º/1 do Código da Estrada, acerca do fornecimento da identificação, sendo nessa medida a sua violação atípica do ponto de vista do crime de condução perigosa.
VI. O crime de omissão de auxílio é um crime de perigo concreto, pressupondo como seu elemento constitutivo a existência efetiva de perigo, enquanto risco iminente de lesão substancial (grave) dos bens jurídicos protegidos, da vida, integridade física ou liberdade.
VII. Deve entender-se por necessidade a carência, precisão, urgência no auxílio, manifestada na incapacidade de prestar assistência a si próprio, decorrente de desastre, acidente ou calamidade pública
VIII.A gravidade requerida pelo tipo «(…) subentende um elemento quantitativo, podendo traduzir-se pela existência de consideráveis sinais exteriores facilmente percecionados por qualquer pessoa, e um elemento qualitativo, que se manifesta na seriedade e premência do estado de necessidade. O que implica, portanto, a urgência da atuação, atentas as graves consequências que desse estado poderão advir para o necessitado.» - citação.
IX. Releva na aferição da verificação de grave necessidade o potencial de dano para os bens jurídicos protegidos que se mostra previsível para o omitente e a indispensabilidade da sua intervenção em ordem a afastar o perigo iminente de que esse dano se verifique e de forma substancial, não sendo, porém, irrelevante nessa aferição a pronta assistência prestada pelos bombeiros que se encontravam em parada no quartel situado defronte para o local do acidente.
X. Atento o contributo essencial do lesado na verificação do evento gerador de responsabilidade civil e da obrigação de indemnizar, ao colocar-se voluntariamente em cima do capô da viatura tripulada pelo arguido, deve aplicar-se o disposto no art. 570º/1 do Código Civil, atendendo-se então à gravidade da contribuição de cada um, arguido e ofendido, para a produção do facto danoso e às consequências que delas resultaram.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
1. Vem o presente recurso interposto pelo arguido AA da sentença proferida em processo comum por tribunal singular, pelo qual foi condenado nas seguintes penas:
1. na pena de 6 (seis) meses de prisão pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos arts. 143º/1, 145º/1, a) e 2 e 132º/2,h), do Código Penal, suspensa na execução pelo período de 12 (doze) meses, sujeita a suspensão a regime de prova;
2. na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor por um período de 7 (sete) meses nos termos do art. 69º/1, a), do Código Penal;
3. na pena única de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa à taxa diária de 6,50€, num total de 1.625€, em cúmulo jurídico das penas de:
1. 150 dias de multa pela prática de um crime de omissão de auxílio previsto e punido pelo disposto no art. 200º/1 e 2 do Código Penal;
2. 200 dias de multa pela prática de um crime de condução perigosa previsto e punido pelo art. 291º/1,b) do Código Penal.
2. O arguido recorrente peticiona a sua absolvição da prática destes crimes, formulando para tanto as seguintes conclusões [transcrição]:
«(…)
I. A sentença recorrida está eivada de erros notórios na apreciação da prova, de contradições insanáveis no seu texto e do confronto deste com a experiência comum, bem como de contradições entre os factos dados como provados e entre estes e a motivação que conduziu aos mesmos, os vícios apontados nos termos dos arts. 410.º/2 e 3 e 412.º, supra e infra especificados, implicam, pelo menos, violação do disposto naqueles artigos, bem como do disposto no art. 374.º/2, com a cominação prevista no art. 379.º/1/alínea a), todos do CPP, pelo que, a sentença recorrida é nula.
II. A decisão recorrida faz uma incorrecta aplicação do direito à situação sub judice, designadamente, quanto ao preenchimento dos elementos previstos nas normas legais para tipificar os crimes de que o arguido vinha acusado e foi condenado.
III. A Sentença condenatória sob recurso é a todos os títulos e parâmetros injusta e incorrectamente fundamentada
IV. A Sentença recorrida não faz uma verdadeira e objectiva apreciação e exame crítico das provas, designadamente, das declarações do arguido, do ofendido e das demais testemunhas oculares.
V. A Sentença recorrida afasta o depoimento das testemunhas BB e CC com recurso a figuras vagas e obscuras, de uma pretensa desculpabilização do arguido, que não permitem conhecer o itinerário cognoscitivo do Tribunal para a formação da sua convicção.
VI. O mesmo acontece com a escolha da “versão” do ofendido em total detrimento da “versão” do arguido, pois, segundo se demonstra, é a versão do arguido que é coerente, espontânea, credível, verdadeira e corroborada pela restante prova, ao passo que a “versão” do ofendido em enviesada, fantasiosa, egocêntrica e sem aderência á realidade e à prova produzida.
VII. Impugna-se a decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos dos n.os 3 e 4 do Artigo 412.º do Código de Processo Penal.
VIII. Consideramos incorrectamente julgados os Factos Provados 4, 5, 6, 8 e 9 constantes da Fundamentação da Sentença recorrida pontos os quais devem ser dados como não provados, devendo antes tal matéria dar-se como não provada, impondo decisão diferente da recorrida.
IX. A Sentença recorrida está viciada por ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA e Erro de julgamento, revelando as provas num sentido e extraindo decisão recorrida ilação contrária, incluindo quanto à matéria de facto provada.
X. Conforme resulta das declarações e depoimentos que se encontram gravados no sistema integrado de gravação digital, do arguido (sessão de 25/10/2023, 00:00:01 a 00:42:51), ofendido DD (sessão de 25/10/2023, 00:00:01 a 00:42:51) e as testemunhas EE (sessão de 28/11/2023, 00:00:01 a 00:31:28), FF (sessão de 28/11/2023, 00:00:01 a 00:16:20), GG (sessão de 28/11/2023, 00:00:01 a 00:10:38), HH (sessão de 28/11/2023, 00:00:01 a 00:06:07) BB, (sessão de 18/12/2023, 00:00:01 a 00:09:57) e CC (sessão de 18/12/2023, 00:00:01 a 00:18:34).
XI. Da (pouca) prova documental existente nos autos e da prova produzida em audiência, não se conseguem demonstrar e/ou provar acima de qualquer dúvida razoável, para já nem dizer irremovível, os factos pelos quais o Arguido foi acusado e condenado, não havendo sustentabilidade para os Factos Provados 4, 5, 6, 8 e 9 constantes da Fundamentação da Sentença recorrida.
XII. A apreciação da prova produzida foi sempre em desfavor do arguido.
XIII. A Meritíssima Juiz da Primeira Instância esquece e viola o princípio constitucional da presunção de inocência, consagrado no artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, que tem um dos seus corolários no princípio basilar do nosso sistema judiciário: o princípio “in dubio pro reo”.
XIV. Na realidade, nenhuma da previsão dos crimes de que o arguido era acusado, e foi condenado em 1.ª Instância, está preenchida.
XV. Do crime de ofensa à integridade física qualificada, quanto a este crime estatui a norma legal respectiva, o Artigo 143.º do Código Penal, que “quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido (...)”
XVI. Todavia, como se demonstrou abundantemente a prova produzida não permite concluir que tenha sido o arguido a atingir o ofendido com o seu veículo.
XVII. Na verdade, (quase) toda a prova vai no sentido contrário: foi o ofendido que se lançou para cima do veículo do arguido e não que tenha sido atingido por ele.
XVIII. E se dizemos quase é porque o ofendido depõe de forma diversa, mas o seu depoimento não é corroborado pela restante prova produzida e, de facto, o depoimento do ofendido nesta matéria é absolutamente e objectivamente refutado e negado por toda a prova.
XIX. O arguido não atingiu o ofendido com o seu veículo, o que nos parece certo e seguro em face da prova, mas, por mera cautela de patrocínio, mesmo que não haja a certeza de como este facto aconteceu – o que não concedemos –, não restam dúvidas que, da prova produzida e que plasmámos acima, não se consegue ficar sem dúvidas irremovíveis quanto ao efectivamente sucedido.
XX. Vamos directamente para a conclusão da Sentença recorrida quanto ao crime de omissão de auxílio, pois a prova produzida e interpretada devidamente tem necessariamente de levar à conclusão contrária, o arguido ao invés de ser condenado tem forçosa e necessariamente de ser absolvido, tanto do que resulta da previsão do n.º 2 como da do n.º 1 do Artigo 200.º do CP.
XXI. Ao contrário do que decidiu o Tribunal Recorrido, o crime não está provado, pois não foi o arguido que embateu/abalroou o ofendido, foi este que saltou para cima do veículo do arguido; não foi o arguido que levou o ofendido arrastado em cima do capô, foi o ofendido que aí se colocou e se manteve não esperando que o arguido imobilizasse o veículo para sair em segurança; o ofendido não foi projectado para o solo, largou-se e saiu por sua vontade de cima do capô onde se tinha colocado, não esperando que o arguido imobilizasse o seu veículo; não foi o arguido que deu azo ao acidente, foi o ofendido que se colocou de forma voluntária em cima do capô do veículo do arguido, foi o arguido que tendo possibilidade de sair não o fez (o arguido fez marcha atrás e arrancou já com o arguido em cima do capô), foi o arguido que não esperou que o arguido imobilizasse o seu veículo.
XXII. Também não podemos concordar com a Sentença recorrida na desvalorização que faz sobre o facto de existirem outras pessoas e no caso outras pessoas habilitadas para socorrer prontamente o ofendido. Não concordamos nós, nem a Sentença recorrida é acompanhada pela jurisprudência dominante.
XXIII. Também quanto a este crime, analisada devidamente a prova constante dos autos, terá o arguido de ser absolvido.
XXIV. Quanto ao crime de condução perigosa, mais uma vez, não há prova que suporte o preenchimento do tipo legal de crime e, na realidade, neste caso, nem sequer há aparência de ter existido essa prova ou que qualquer conduta do arguido possa ser subsumida à previsão legal do Artigo 291.º, n.º 1 do CP.
XXV. A Meritíssima Juiz a quo desfila um rol de considerações teóricas e de explicação da norma, que estão correctas, note-se, mas, no fim, além de não ter factos e condutas do arguido para sustentar a previsão da norma – o arguido não galgou o ilhéu direccional identificado na Sentença, o arguido ultrapassou um veículo que estava imobilizado, fê-lo em segurança, no seu sentido de trânsito, na faixa respectiva e entrou de forma correcta e legal na ..., o arguido não representou ser fonte de um possível perigo, desde logo porque não o foi, e portanto não podia conhecer ou aceitar as circunstâncias das quais emanaria um perigo inexistente.
XXVI. Na realidade, o Tribunal a quo na ânsia de condenar, na ânsia de não por em causa a débil acusação, condena sem provas e, neste caso, sem sequer concretizar o perigo concreto que a manobra (legal) de ultrapassagem de um veículo imobilizado representou. Aqui chegados, é evidente que,
XXVII. Havendo fundadas dúvidas sobre a actuação criminosa do arguido, deverá o julgador aplicar o princípio "in dubio pro reo", o qual expressamente impõe que as dúvidas sejam resolvidas em benefício do arguido.
XXVIII. Este princípio é uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, em caso de dúvida.
XXIX. No caso concreto, não havendo prova suficiente, constitui erro notório e violação inquestionável dos princípios da livre apreciação da prova e do in dúbio pro reo.
XXX. DISPOSIÇÕES LEGAIS VIOLADAS:
Artigos 127º, 379º, nº 1, al. b), 1º, al. f), 303º e 359º, do CPP
Artigo 30º, nº 2, 40º, 70º, 79º, 71º e 72º, 78º e 79º do CP Artigo 1,º 18º, nº 2, 29º e 32º, n.º 2 da CRP
XXXI. Nesta medida e tudo visto e sopesado, o arguido terá de ser absolvido da prática do crime em causa, com todas as legais consequências.
XXXII. Mais, da leitura dos factos dados como provados e da fundamentação da sentença recorrida, surge uma versão dos acontecimentos que contraria, esta sim, de todas as regras da experiência comum e reconduz os factos e a situação que alegadamente aconteceu a um total e irremediável absurdo, dada a sua inverosimilhança e irrealidade, que na verdade não tem sustentação na prova
XXXIII. Pelo que, com recurso à experiência comum, aos princípios da lógica e da normalidade das coisas e dos comportamentos, a interpretação e convicção do julgador só pode ir, com respeito pelos princípios fundadores do processo penal, no sentido da absolvição.
(…)».
3. O recurso veio a ser admitido a subir nos próprios autos, de imediato e com efeito suspensivo.
4. Notificado o Ministério Público do requerimento e alegações de recurso, veio em resposta subscrever os fundamentos da decisão recorrida, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
1. Não assiste razão ao recorrente quando alega que se verifica uma nulidade do acórdão por insuficiência no exame crítico das provas, nos termos do n.º 1 do artigo 379º e n.º 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal, sendo de considerar improcedente o recurso quanto à nulidade invocada.
2. Não se vislumbrando que o Tribunal a quo tenha errado na apreciação da prova e muito menos que o tenha feito de modo notório e evidente, também aqui o recurso deve ser considerado improcedente.
3. Face à prova produzida e aqui elencada, conforme consta da douta sentença, os factos 4, 5, 6, 8 e 9 foram correta e fundamentadamente dados como provados, pois, só assim o poderia ser!
4. Considerando a factualidade dada como provada, dúvidas não existem de que a conduta do arguido, ao utilizar nas circunstâncias apuradas o seu veiculo automóvel para atingir o ofendido, potenciando ainda mais as lesões que se iriam verificar, preencheu o disposto nos artigos 145º, n.º 1, al a) e n.º 2, com referência aos artigos 143º, n.º 1 e 132º, n.º 2, al. h), todos do Código Penal.
5. Conforme vemos a douta sentença procedeu a uma correta aplicação do direito, não havendo qualquer margem para dúvidas de que a conduta do arguido é subsumível ao crime de ofensa à integridade física qualificada.
6. Atenta a factualidade dada como provada, temos que resultou provado que o arguido após embater/abalroar o ofendido e de o ter levado arrastado em cima do capot e de este ter sido projetado para o solo, seguiu viagem sem lhe prestar qualquer auxílio tendo-se apercebido de que o mesmo havia sofrido o sobredito acidente.
7. Ou seja, o arguido optou por não imobilizar a viatura que conduzia abandonando o local e não cuidando de se certificar se aquele necessitava de socorro, nem sequer cuidando de chamar a assistência médica.
8. Nestes termos, verifica-se que a matéria de facto apurada reflete, pois, a existência de um perigo concreto para a saúde e integridade física do ofendido DD até porque o mesmo sofreu lesões que lhe determinaram um período de três dias de doença.
9. Tal como se deixou já explanado supra de nada releva que o mesmo tenha sido prontamente socorrido por Bombeiros.
10. Destarte, e em face dos factos provados, temos que a conduta do arguido preenche inequivocamente o tipo criminal em análise e, precisamente porque foi aquele quem deu azo ao acidente, preenche o tipo legal na sua modalidade agravada, prevista no
n.º 2 do artigo 200.º do C. Penal.
11. Também no que diz respeito ao crime de omissão de auxílio dúvidas não existem que os factos praticados pelo arguido preenchem os elementos do tipo, conforme bem decidiu o Tribunal a quo.
12. Atentos os factos dados como provados dúvidas não há que o arguido preencheu com a sua conduta a totalidade dos elementos objetivos e subjetivos do tipo legal do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, de que vinha acusado.
13. Na verdade, resultou provado que o arguido ao arrancar com o seu veículo, galgando o ilhéu direcional existente no entroncamento da ... com a ..., ultrapassando assim o veículo com a matrícula 62-14VA pela esquerda, e ao ter prosseguido a sua marcha – com o ofendido em cima do seu capô – a uma velocidade que não foi possível apurar, o arguido sabia que poderia colocar em risco a vida de outros condutores que consigo se cruzassem e no mesmo local circulassem, tendo se conformado com tal resultado e não olvidando, ainda, que violava as regras de condução estradal, nomeadamente o disposto nos artigos 13º, 24º, n.º 1, 25º, n.º 1, al.
h), 27º, 89º, 145º, n.º 1, als. c) e f) e 146º, al. q) do Código da Estrada.
14. “O princípio in dubio pro reo só é desrespeitado quando o Tribunal, colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação das provas, decidir, em tal situação, contra o arguido” (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, Processo nº 60/09.9SAGRD.C1, de 06-01-2010).
15. Ora, de toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento não se verificou qualquer situação de dúvida que impusesse a aplicação de tal princípio, motivo pelo qual não assiste qualquer razão ao recorrente.
16. Face ao exposto deve o presente recurso ser considerado totalmente improcedente, mantendo-se a douta sentença nos exatos termos em que foi proferida!».
5. Subidos os autos a esta Relação, o Exm.º Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer em que, começando por definir as vias legais de recurso quanto à matéria de facto, conclui que, a sentença não enferma de qualquer vício, sendo que o arguido se limita a divergir subjetiva e genericamente na avaliação da prova produzida com recurso a uma argumentação não apoiada em elementos de prova concretamente impositiva de sentido contrário à decidida pelo tribunal recorrido.
Perfilhando a posição do Ministério Público na primeira instância, termina concluindo pela improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida.
6. Foi dado cumprimento ao disposto no art. 417º/2 do Código de Processo Penal, sem que o arguido se pronunciasse.
7. O processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia da com o preceituado no art. 419º/3, b) do Código de Processo Penal.
II- FUNDAMENTAÇÃO
1. QUESTÕES A DECIDIR
Como é jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – como sejam a deteção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras experiência comum, previstos no art. 410º/2 do Código de Processo Penal, e a verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos do art. 379º/2 e 410º/3, do mesmo código – é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites de cognição do tribunal superior.
Assim, são as seguintes as questões a decidir:
1.ª A decisão recorrida padece de nulidade?
2.ª Ocorre erro notório na avaliação da prova, com violação do princípio in dubio pro reo, e contradição entre os fundamentos e a decisão de facto?
3.ª A prova produzida impunha decisão diferente da tomada quanto aos pontos 4., 5., 6., 8. e 9. dos factos provados?
4.ª A decisão recorrida faz uma incorreta aplicação do direito aos factos quanto ao preenchimento dos elementos típicos dos crimes de que o arguido vinha acusado pelos quais foi condenado?
2. APRECIAÇÃO DO RECURSO
1. DECISÃO RECORRIDA
É do seguinte teor da sentença recorrida na parte da fundamentação de facto, relevante para a apreciação do recurso [transcrição]:
«(…)
Produzida a prova e discutida a causa resultam os seguintes:
FACTOS PROVADOS:
1. – No dia …2020, por volta das 17h30, o arguido AA conduzia o veículo automóvel da marca ..., modelo 250, com a matrícula ..-..-RL, pela ..., em ... quando, ao chegar ao entroncamento com a ..., embateu com a parte dianteira daquele na traseira do veículo automóvel da marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-..-VA, conduzido pelo ofendido DD.
2. - Com efeito, o ofendido DD encontrava-se ali parado, na medida em que se encontrava a respeitar o sinal de cedência de passagem relativamente a outros veículos que por ali passavam.
3. - Após tal embate, o ofendido DD ligou as luzes de perigo do veículo que conduzia, colocou o colete, saiu do automóvel, tendo ido colocar o triângulo de sinalização.
4. - De seguida, DD dirigiu-se ao arguido AA que logo ali lhe disse que não se dava como culpado de tal colisão, mais lhe sugerindo pagar ele próprio os estragos provocados pela mesma.
5. - O ofendido manteve-se no meio da estrada enquanto o arguido AA voltou a entrar no seu automóvel, tendo feito marcha atrás, e arrancando logo de seguida em frente;
6. - Galgando o ilhéu direccional existente no local, ultrapassando o veículo com matrícula ..-1..-VA pela esquerda e acabando por abalroar o ofendido que acabou prostrado em cima do capô do automóvel conduzido pelo arguido.
7. – Apesar, de o ofendido DD se encontrar em tal posição, o arguido prosseguiu com a sua marcha, carregando aquele no seu capô, e percorrendo uma distância de 30 metros, até perto do viaduto de acesso à ....
8. – Devido à velocidade que o arguido imprimiu ao seu veículo, que não foi possível quantificar, o ofendido acabou por ser projectado para o chão, caindo para a direita do lado do arguido, parando junto do lancil do passeio ali existente, próximo da loja chinesa ....
9. - O arguido AA continuou a sua marcha, abandonou o local, e não prestou qualquer ajuda ao ofendido DD, nomeadamente para verificar se o mesmo se encontrava consciente ou ferido, como também não chamou os bombeiros, nem ligou para o 112, deixando o ofendido sozinho.
10. - Como consequência directa da conduta do arguido, o ofendido sentiu dores nas zonas atingidas, tendo sido assistido nesse mesmo dia no ..., onde recebeu tratamento, e sofrido as seguintes lesões: «membro superior direito: cicatriz de ferida contusa na região do olecrânio, ovoide, de maior eixo transversal com 2cm por 1cm; limitação por dor da flexão máxima e extensão do cotovelo; membro inferior direito: incrustação de alcatrão numa área de 1x1cm, sobre a crista ilica postero superior»; as quais lhe determinaram 12 dias de doença, «com afectação da capacidade de trabalho geral (3 dias)».
11. - O arguido sabia que o automóvel que conduzia era capaz de colocar a integridade física e a vida humana do ofendido, e de terceiros em risco, não tendo, contudo, se coibido de actuar da forma supra-descrita.
12. - Na verdade, com essa mesma conduta o arguido agiu com o propósito concretizado de molestar o corpo e a saúde física do ofendido.
13. - De resto, sabia o arguido que após a queda do ofendido ao chão, sobre si, causador de tal acidente, impendia o dever de prestar toda a ajuda que fosse necessária, nomeadamente chamar o 112, verificar se aquele se encontrava consciente, qual a extensão dos seus ferimentos e ficar junto do mesmo até à chegada dos meios de emergência, o que não fez, sempre com o propósito concretizado de deixar DD entregue à sua sorte.
14. - Por outro lado, ao arrancar com o seu veículo, galgando o ilhéu direcional existente no entroncamento da ... com a ..., ultrapassando assim o veículo com a matrícula ..-..-VA pela esquerda, e ao ter prosseguido a sua marcha – com o ofendido em cima do seu capô – a uma velocidade que não foi possível apurar, o arguido sabia que poderia colocar em risco a vida de outros condutores que consigo se cruzassem e no mesmo local circulassem, tendo se conformado com tal resultado e não olvidando, ainda, que violava as regras de condução estradal.
15. - Durante todo o episódio acima descrito, o arguido agiu sempre livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
Provou-se ainda que:
(Do pedido de indemnização civil)
16. – Que devido à conduta do arguido, o ofendido DD suportou custos relativos a taxas moderadoras, exames, despesas com farmácia, deslocações e tratamentos necessários, cujo custo importou a quantia de € 723,08.
17. – Em consequência da conduta do arguido, o ofendido para além de dores, sofreu insónias por não poder mover-se livremente na sua cama.
Mais se provou que:
18. – O arguido reside com mulher, reformada.
19. – Na sua actividade profissional o arguido aufere a quantia de € 750,00, despendendo a quantia de € 600,00 a titulo de renda de habitação.
20. – O arguido não possui antecedentes criminais.
*
FACTOS NÃO PROVADOS:
1. – Que na ocasião mencionada em 8., o arguido imprimiu uma velocidade superior a 70 km/h.
2. – Que devido à conduta do arguido, o ofendido teve custos de combustível, portagens e dias sem trabalhar que importou quantia não inferior a € 300,00.
3. – Que em consequência da conduta do arguido, o ofendido perdeu o trabalho em parttime que desempenhava como ..., que esteve mais de 15 dias sem frequentar as aulas e o seu trabalho em part-time, levando a que perdesse o ano que frequentava no curso de ... automóvel que frequentava.
*
Motivação da decisão de facto
O Tribunal firmou a sua convicção na ponderação, à luz das regras da experiência comum e na livre convicção do julgador, da análise crítica e conjugada do conjunto da prova produzida, nos termos do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal. A livre apreciação da prova não se confunde com apreciação arbitrária da mesma, pois que tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios de experiência comum e de lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.
Sendo que a convicção do tribunal é formada, através dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas produzidas e, também, pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, ansiedade, embaraço, desamparo, serenidade, olhares para alguns dos presentes e risos, como “linguagem silenciosa e do comportamento”, a coerência de raciocínio e de atitude, a serenidade e seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, e as coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência, de tais declarações e depoimentos.
Com efeito, é ponto assente que a comunicação não se estabelece apenas por palavras mas também pelo tom de voz e postura corporal dos interlocutores, sendo apreciadas no contexto da mensagem em que se integram.
Trata-se de um acervo de informação não verbal e dificilmente documentável face aos meios disponíveis, mas imprescindível e incidível para a valoração da prova produzida e apreciada, segundo as regras de experiência comum.
Foi assim, à luz de tais princípios, que se formou a convicção deste Tribunal e consequentemente se procedeu à selecção da matéria de facto positiva e negativa relevante.
Da prova produzida resultaram duas versões dispares dos factos, por um lado a versão trazida a julgamento pelo arguido e outra trazida pelo ofendido, a testemunha DD.
O arguido confrontado com os factos que lhe são imputados, admitiu que na mencionada ocasião circulava atrás do veiculo conduzido pelo ofendido e que a dado momento, ao chegar ao entroncamento com a ..., embateu com a parte dianteira do seu veiculo na traseira do veiculo conduzido por aquele. Referiu que saiu do veiculo e dirigiu-se para junto daquele, dizendo-lhe que preencheria a declaração amigável, pois que se deu logo como culpado. Mais referiu que, o ofendido ainda assim disse que iria chamar a policia e ligou para o 112. O arguido referiu que terá mencionado ao ofendido que teria pressa, mas que ainda assim aguardou no local por 20 minutos, ocasião em que referiu que se iria embora e o ofendido referiu que não iria sair do local, momento em que desferiu diversos murros no capot do veiculo do arguido.
Pelo arguido foi referido que disse que se iria embora e dirigiu-se para junto da sua viatura, ocasião em que o ofendido colocou-se em frente do seu veiculo, colocando-se de seguida em cima do capot da viatura do arguido. Mais referiu que efectuou manobra de marcha a trás, tendo arrancado de seguida com o ofendido agarrado em cima do seu capot, tendo percorrido cerca de 20/30 metros, momento em que abrandou a velocidade, tendo o ofendido saído de cima do capot pelos seus próprios pés, desequilibrando-se de seguida. Questionado referiu que na medida em que viu o ofendido levantar-se e dada a proximidade do quartel dos Bombeiros, decidiu ir-se embora. Mais referiu que na mencionada ocasião encontrava-se com muita pressa, na medida em que lhe haviam ligado a informar que existia uma fuga de água num apartamento seu.
Questionado acerca da razão de querer sair do local, referiu que na ocasião sentiu-se ameaçado, dada a discussão que se gerou no local entre ele e o ofendido que se encontrava acompanhado por um individuo, que lhe terão desferido empurrões e murros no capot da sua viatura automóvel.
Confrontado com estes factos referiu que agiu correctamente e tornava a fazê-lo caso fosse necessário.
Mais prestou declarações quanto às suas condições socioeconómicas.
Por sua vez, o ofendido DD referiu que na ocasião encontrava-se acompanhado pela testemunha EE, e que quando se encontrava a circular em … junto ao quartel dos bombeiros foi embatido na traseira pelo veiculo conduzido pelo ora arguido. Referiu que colocou em funcionamento os sinais luminosos, vestiu o colete retro-reflector e dirigiu-se para junto da viatura do arguido.
Referiu que o arguido terá dito que os estragos eram mínimos e que cada um deveria de assumir a sua parte, o que o ofendido não concordou e nessa medida ligou para o 11. Mais referiu que, a certo momento o arguido dirigiu-se para o interior da sua viatura, e após ter feito marcha atrás, arrancou bruscamente, seguindo em frente, galgando o ilheu existente no local, ocasião em que surpreendeu o ofendido, tendo este sido apanhado de frente, não restando outra hipótese senão agarrar-se ao capot do veiculo do arguido a fim de evitar ser atropelado. Mais referiu que foi surpreendido pela manobra do arguido, não tendo quaisquer dúvidas de que o arguido o viu na estrada e ainda assim decidiu avançar em frente.
Mais referiu que transportado em cima do capot cerca de 20 metros, vindo a ser projectado ao solo, ficando prostrado no chão, ocasião em que foi socorrido pelos bombeiros que ali se encontravam do outro lado da estrada. Mais referiu que o arguido se ausentou do local.
Por esta testemunha foram ainda descritas as lesões verificadas, tanto ao nível físico como psicológico.
De realçar que esta versão dos factos, foi corroborada pelas testemunhas EE e FF que assumiram relevância quanto à dinâmica dos factos a que assistiram. De realçar que os depoimentos destas testemunhas foram atendidos por este Tribunal atenta a forma isenta e objectiva como depuseram e nessa medida lograram obter credibilidade junto deste Tribunal.
Pela testemunha EE foi referido que acompanhava o ofendido aquando dos factos e que após o embate no veiculo pelo arguido, dirigiram-se para junto deste. Referiu que o arguido desvalorizou o embate, mostrava-se irritado, falando alto ao mesmo tempo que dizia “juventude de merda” e “barrabotas”. Confrontado com o embate, o arguido referiu que não assinava a declaração amigável.
Esta testemunha explicou que a certa altura viu o ora arguido a entrar no seu veiculo e quando repara novamente já viu o ofendido agarrado ao capot do veiculo do arguido que se encontrava em movimento. Mais referiu que o arguido conduziu o veiculo cerca de 20/30 metros, ocasião em que o ofendido foi projectado para o chão e o arguido fugiu do local. Por esta testemunha foi referido que correu para junto do ofendido e que entretanto, chegaram ao local bombeiros. Mais referiu que posteriormente chegaram ao local a policia e o pai do ofendido. Relativamente ao estado em que se encontrava o ofendido, por esta testemunha foi referido que aquele queixava-se de dores, tendo sido assistido nesse mesmo dia no ....
A testemunha FF, referiu que se encontrava numa esplanada, sentada virada para o local dos factos quando viu o veiculo do arguido embater no veiculo do ofendido. Referiu que viu o arguido sair da viatura exaltado, proferindo expressões em voz alta, como “estes jovens de merda”, ao mesmo tempo que dizia que se ia embora. Por esta testemunha foi referido que viu o ofendido posicionado em frente ao veiculo do arguido e viu momentos depois o arguido a arrancar em frente atingindo o ofendido que teve de se agarrar ao capot do carro. Referiu ainda que o arguido levou o ofendido alguns metros até que este caiu para o chão, não tendo o arguido abrandado a marcha nem imobilizado a viatura, tendo prosseguido o seu caminho.
Para o apuramento das consequências físicas e emocionais que esta situação provocou no ofendido, para além de se ter atendido à prova documental constante de fls. 30/33, 36/39, 74/77, 138/146, e ter-se atendido ao depoimento do próprio, assumiu ainda relevância o depoimento da testemunha II, pai do ofendido, que não obstante não ter presenciado a dinâmica dos factos, logrou explicar o que assistiu quando chegou ao local. Por esta testemunha foi referido que que deslocou-se ao local por indicação do ofendido que lhe ligou. Quando ali chegou viu o ofendido com ferimento no braço, sendo que o mesmo queixava-se de dores. Mais referiu que nos dias seguintes, o mesmo teve de ser medicado para as dores, o que se reflectia nas noites com insónias, o que implicou ainda deslocações a hospital, mudanças de penso e sessões de fisioterapia.
Em sede de audiência de julgamento foram ainda inquiridas as testemunhas GG, HH, JJ, KK, BB e CC.
Pela testemunha GG, à data dos factos ..., referiu que se encontrava no seu gabinete quando ouviu o barulho de um embate, tendo visto em seguida os dois intervenientes fora das respectivas viaturas a falarem. Mais referiu que a certa altura viu um dos indivíduos dirigir-se para o veiculo de marca ..., tendo realizado marcha atrás e de seguida arrancou para a frente, tendo o outro interveniente lançado-se para cima do capot. Por esta testemunha foi referido que foi o ofendido quem se lançou para cima do veiculo do arguido, tendo caído metros mais à frente, uma vez que o veiculo ... ia em aceleração.
A testemunha HH, agente da PSP, a desempenhar funções na ..., referiu que lhe foi comunicada uma ocorrência e nesse seguinto deslocou-se ao local do embate. Referiu que aí chegado apenas viu o ofendido, pois que o arguido se tinha ausentado do local. Quanto à dinâmica dos factos nada assistiu, sabendo apenas do que lhe foi relatado, tendo confirmado o teor do auto de noticia de fls. 3 e o croqui de fls. 6 dos autos.
Pela testemunha JJ, agente da PSP, na ..., referiu que teve intervenção na inquirição de testemunhas e na elaboração do relatório de fls. 102/109 dos autos, tendo confirmado as conclusões a que chegou.
Ora do confronto das referidas versões apresentadas, o Tribunal não teve qualquer dúvida quanto à prática dos factos pelo arguido, pois que a convicção deste Tribunal assentou não só no relato espontâneo do ofendido, como nos depoimentos das supra referidas testemunhas, que para além de terem sido coerentes entre si, vieram de encontro com a prova pericial constante dos autos, a saber de fls. 36/39 e prova documental de fls. 74/77, 138/146.
Da prova produzida, não restam dúvidas a este Tribunal que o ora arguido praticou tais factos e da forma descrita na factualidade dada como provada, atenta a forma coerente e espontânea com que as acima testemunhas, depuseram e permitiram dessa forma reconstituir a dinâmica dos factos, sendo certo que a versão apresentada pelo arguido não assumiu credibilidade, até porque não foi corroborada por nenhum meio de prova credível.
É certo que em audiência foram inquiridas as testemunhas KK, BB e CC, contudo o Tribunal não atendeu aos referidos depoimentos na medida em que a primeira em nada logrou esclarecer quanto aos factos em apreço e os restantes não assumiram uma postura isenta, pois que transpareceram uma atitude de desculpabilização quanto à actuação do ora arguido, isentando-o de responsabilidades.
Aqui chegados, importa referir que não obstante a disparidades de versões apresentadas, tomou-se em consideração o depoimento do ofendido, não só porque descreveu a dinâmica dos factos de forma isenta e objectiva, com suporte no depoimento das acima testemunhas, como foi consentâneo com as lesões apresentadas e reflectidas na prova pericial e documental constante dos autos.
Da prova produzida, dúvidas não restam a este Tribunal que os factos aconteceram e da forma dada como provada. É certo que durante o julgamento surgiram versões díspares dos factos, e nessa medida o Tribunal teve de se socorrer da restante prova, nomeadamente testemunhal, de forma a esclarecer o que de facto aconteceu.
Para a resposta positiva à restante factualidade para além de se ter atendido às declarações do arguido quanto às suas condições socioeconómicas, atendeu-se ainda ao teor de fls. 3, 4/6, 7, 11, 12, 13, 23, 58 e CRC constante dos autos.
Finalmente, os factos dados como não provados resultam da ausência de produção de prova acerca da sua ocorrência.
A verdade objecto do processo não é uma verdade ontológica ou científica, é uma convicção prática firmada em dados objectivos que, directa ou indirectamente, permitem a formulação de um juízo de facto.
(…)».
1. DA NULIDADE DA SENTENÇA – art. 379º do Código de Processo Penal
Entende o recorrente que a sentença recorrida (conclusões IV a VI):
- não faz uma verdadeira e objetiva apreciação e exame crítico das provas, designadamente, das declarações do arguido, do ofendido e das demais testemunhas oculares;
- afasta o depoimento das testemunhas BB e CC com recurso a figuras vagas e obscuras, de uma pretensa desculpabilização do arguido, que não permitem conhecer o itinerário cognoscitivo do Tribunal para a formação da sua convicção;
- escolhe a “versão” do ofendido em total detrimento da “versão” do arguido, dizendo ser aquela a versão que é coerente, espontânea, credível, verdadeira e corroborada pela restante prova, ao passo que a “versão” do ofendido é enviesada, fantasiosa, egocêntrica e sem aderência à realidade e à prova produzida.
Para além de tudo isso, queixa-se o recorrente de que, na condução da audiência de julgamento, a Mm.ª Juíza a quo revelou uma ideia apriorística e pré-concebida acerca da sua culpabilidade, como que moldando a leitura da prova a essa mesma ideia, baseada em perceções e não em elementos objetivos e objetiváveis.
Vejamos.
1. Do Dever de Fundamentação e Exame Crítico das Provas
O dever de fundamentação das decisões judiciais é uma garantia integrante do próprio Estado de direito democrático, com inerente consagração constitucional no art. 205º/1 da Constituição, nos termos do qual «As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.».
Temos assim que qualquer decisão judicial, exceção feita às «de mero expediente», terá sempre de permitir o conhecimento das razões que motivam a sua prolação.
Trata-se de garantir o direito a um processo justo e equitativo, dando a conhecer de forma transparente aos visados/afetados pela decisão a ponderação efetuada em ordem a alcançar o inciso decisório; só desse modo se possibilitará a sindicância da legalidade e bondade de tal juízo e, do mesmo passo, o pleno exercício do direito de defesa.
Com efeito, é apenas mediante o conhecimento do processo lógico que conduziu à decisão que o visado pela mesma poderá com ela conformar-se ou dela discordar, adotando neste caso a estratégia de impugnação tida por mais adequada.
A fundamentação da decisão mostra-se, assim, absolutamente essencial, desde logo, para garantir a possibilidade do exercício eficaz do direito ao recurso.
Concretizando esta garantia ao nível da lei ordinária, o art. 97º/5 do Código de Processo Penal consagra o princípio geral sobre a fundamentação dos atos decisórios, estatuindo que estes são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.
Esse princípio geral é reiterado e reforçado pelo legislador em relação à sentença.
De acordo com o disposto no art. 374º/2 do Código de Processo Penal, a estrutura da sentença proferida em processo criminal deve conter, na parte da fundamentação e a seguir à enumeração dos factos provados e não provados, uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
A sentença que não contenha as menções referidas no citado nº 2 e no nº 3, b), do art. 374º do Código de Processo Penal, padece de nulidade, que deve ser arguida ou conhecida em recurso, nos termos do previsto no 379º/1, a) e 2, do mesmo diploma.
Tal remédio jurídico, particularmente gravoso, prende-se com a relevância central dada no nosso sistema jurídico à fundamentação das decisões judiciais, como verdadeiro pilar da autoridade e legitimidade dos tribunais num Estado de Direito democrático, assente, por sua vez, no princípio da legalidade e na garantia da independência e da imparcialidade do juiz.
No que concerne à decisão sobre a matéria de facto, é pela fundamentação que, por um lado, se garante o exercício do direito de defesa das partes e, por outro, o segundo grau de jurisdição em matéria de facto.
Neste particular, para poder reapreciar a decisão e formular o seu próprio juízo, o tribunal de recurso tem de conhecer o processo lógico que lhe serviu de suporte, de modo a poder concluir se a mesma é resultado de um processo intelectual de valoração racional e crítica, assente em regras da lógica e da experiência comum e em conhecimentos científicos, isto é, se a decisão sobre a matéria de facto não é arbitrária nem tendenciosa.
Tal implica que a motivação de facto se concretize numa exposição, tanto quanto possível completa, mas sem deixar de ser sintética, dos motivos que fundamentam a decisão e num exame crítico das provas que tenham sido consideradas relevantes pelo juiz.
Sendo a lei omissa quanto ao exato alcance do pretendido com a exigência de exame crítico das provas no art. 374º/2, do Código de Processo Penal, importa atentar na produção jurisprudencial que lança luz sobre esta matéria, tendo presente que é com a reforma do Código de Processo Penal introduzida pela L. 59/98, de 25/08 que este segmento é acrescentado àquele preceito legal.
Por resumir de algum modo o entendimento comum acerca desta exigência legal, destaca-se a seguinte passagem do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/01/2006, relatado por Henriques Gaspar no processo 05P3460, disponível em www.dgsi.pt :
«O exame crítico das provas consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor dos documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pela ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção. O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte.».
Em suma:
Para cumprir com o desiderato legal de oferecer na decisão da matéria de facto um exame crítico das provas, o tribunal terá que enunciar, ainda que concisamente, as razões de ciência dos vários meios de prova, explicitar a razão da sua opção por uma e não por outra das versões em confronto e indicar os motivos da credibilidade que atribuiu a cada um dos elementos de prova atendidos - depoimentos, documentos, exames, etc.-, em termos tais que possa lograr convencer os respetivos destinatários da bondade da mesma.
Não basta, pois, a indicação dos meios de prova utilizados e descrição assética do que deles consta – resumindo o conteúdo dos depoimentos ou de um documento, por exemplo -, tornando-se necessário explicitar o processo de formação da convicção do tribunal a partir desses meios de prova, com apelo às regras de experiência e aos critérios lógicos e racionais que conduziram a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido.
Só assim será possível comprovar se foi seguido um processo lógico e racional na apreciação da prova ou se esta se fundou num subjetivismo incomunicável que abre as portas ao arbítrio.
Postas estas considerações sobre a forma como deve ser entendido o exame crítico das provas exigido pelo art. 374º/2 do Código de Processo Penal, analisemos o caso concreto.
Atentando no teor da sentença recorrida quanto à fundamentação da decisão sobre os factos, conforme acima se transcreveu, claro resulta que, não sendo exemplar, mostrando-se minimalista e até simplista em alguns pontos, contém o necessário à compreensão do processo lógico da formação da convicção e da decisão.
Com efeito, da mesma resulta a valoração feita em relação ao depoimento do ofendido e razões pelas quais lhe foi conferida credibilidade, assim como as razões pelas quais se descredibilizou a versão do arguido, tendo implícito um mínimo de análise crítica de tais elementos probatórios.
Tal resulta evidenciado no seguinte trecho da decisão:
«(…)
Ora do confronto das referidas versões apresentadas, o Tribunal não teve qualquer dúvida quanto à prática dos factos pelo arguido, pois que a convicção deste Tribunal assentou não só no relato espontâneo do ofendido, como nos depoimentos das supra referidas testemunhas, que para além de terem sido coerentes entre si, vieram de encontro com a prova pericial constante dos autos, a saber de fls. 36/39 e prova documental de fls. 74/77, 138/146.
Da prova produzida, não restam dúvidas a este Tribunal que o ora arguido praticou tais factos e da forma descrita na factualidade dada como provada, atenta a forma coerente e espontânea com que as acima testemunhas, depuseram e permitiram dessa forma reconstituir a dinâmica dos factos, sendo certo que a versão apresentada pelo arguido não assumiu credibilidade, até porque não foi corroborada por nenhum meio de prova credível.
É certo que em audiência foram inquiridas as testemunhas KK, BB e CC, contudo o Tribunal não atendeu aos referidos depoimentos na medida em que a primeira em nada logrou esclarecer quanto aos factos em apreço e os restantes não assumiram uma postura isenta, pois que transpareceram uma atitude de desculpabilização quanto à actuação do ora arguido, isentando-o de responsabilidades.
Aqui chegados, importa referir que não obstante a disparidades de versões apresentadas, tomou-se em consideração o depoimento do ofendido, não só porque descreveu a dinâmica dos factos de forma isenta e objectiva, com suporte no depoimento das acima testemunhas, como foi consentâneo com as lesões apresentadas e reflectidas na prova pericial e documental constante dos autos.
Da prova produzida, dúvidas não restam a este Tribunal que os factos aconteceram e da forma dada como provada. É certo que durante o julgamento surgiram versões díspares dos factos, e nessa medida o Tribunal teve de se socorrer da restante prova, nomeadamente testemunhal, de forma a esclarecer o que de facto aconteceu.
(…)».
Por outro lado, o desconforto manifestado acerca da forma como a Mm.ª Juíza a quo conduziu o processo, segundo entende, com pré-conceitos sobre os factos ajuizados que teriam condicionado a sua análise da prova, tem que ser também ele objetivado e objetivável em concretos factos, o que o recorrente não faz.
O que sobra, pois, são as discordâncias do recorrente com o sentido decisório assumido pelo Tribunal a quo, na opção feita pela versão trazida aos autos pelo ofendido, em detrimento da sua, por considerar aquela como mais credível.
É em relação a isso que o arguido recorrente manifesta verdadeiramente a sua discordância.
E aí o escrutínio passará pela apreciação da impugnação de facto que deduz também no recurso, ultrapassada que fique a apreciação dos vícios formais.
Contendo, pois, a sentença todos os requisitos previstos sob o art. 374º/2 do Código de Processo Penal quanto à decisão sobre os factos, nomeadamente, uma enunciação lógica, ainda que mínima, dos fundamentos em que assenta, factos provados e não provados, assim como um exame crítico dos elementos de prova atendidos, não se mostra verificada a causa de nulidade prevista sob o art. 379º/1,a) do Código de Processo Penal.
Improcede nesta parte o recurso.
2. DOS VÍCIOS DA SENTENÇA - art. 410º/2 do Código de Processo Penal
Alega o recorrente que a sentença recorrida se mostra eivada de erros notórios na apreciação da prova, de contradições insanáveis no seu texto e do confronto deste com a experiência comum, bem como de contradições entre os factos dados como provados e entre estes e a motivação que conduziu aos mesmos, nos termos dos arts. 410º/2 e 3 e 412º, que implicam, pelo menos, a violação do disposto naqueles artigos, bem como do disposto no art. 374º/2, com a cominação prevista no art. 379º/1/alínea a), todos do Código de Processo Penal.
Com todo o respeito, cremos que o recorrente, deste modo, mistura e confunde como se se tratasse da mesma coisa, a apreciação formal das causas de nulidade da sentença, previstas sob o art. 379º do Código de Processo Penal (que vimos de apreciar), com os vícios da sentença previstos no art. 410º/2 do Código de Processo Penal, e ainda com o erro de julgamento com regime previsto sob o art. 412º/1 e 3, do Código de Processo Penal.
Cumpre, pois, traçar fronteiras e posicionar o objeto do recurso de acordo com as normas processuais aplicáveis.
Afastada que foi a verificação da suscitada causa de nulidade da sentença, aponta o recorrente à sentença os vícios de erro notório na apreciação da prova com violação do princípio in dubio pro reo e contradições insanáveis no seu texto e do confronto deste com a experiência comum, mas também de contradição dos factos com a sua fundamentação.
Estabelece o art. 410º/2 do Código de Processo Penal, que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal à matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.
c) Erro notório na apreciação da prova.
Em qualquer dessas hipóteses, o vício, constituindo um defeito estrutural da decisão, terá de resultar do respetivo texto, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum; é, nessa medida, vedado o recurso a elementos estranhos ao texto da decisão – v.g. prova documentada ou quaisquer dados existentes nos autos, ainda que provenientes do julgamento - para fundamentar a verificação do vício.
Trata-se de vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto que resultam numa decisão destituída de racionalidade lógica, cuja apreciação prescinde da análise da prova produzida, como ocorre na impugnação ampla prevista no art. 412º/3 do Código de Processo Penal.
Assim, o Tribunal de recurso limita-se a detetar os vícios evidenciados pela decisão recorrida, atendo-se a esta, e, não podendo saná-los, a determinar o reenvio do processo para novo julgamento.
Ocorre erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis, mas também quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.
Existe, pois, tal vício quando o tribunal valoriza a prova contra critérios legalmente fixados e/ou contra as regras da experiência comum, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente.1
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido . É um erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental. As provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial.
Os vícios previstos no art. 410º/2, não podem ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, questão do âmbito da livre apreciação da prova.
Neste conspecto, o que releva, necessariamente, é essa convicção formada pelo Tribunal, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função de controlo ínsita na identificação dos vícios do artigo 410º/2, a convicção pessoalmente alcançada pelo recorrente sobre os factos.
*
Ora, olhando ao texto da decisão recorrida, não vemos que exista contradição, erro notório ou violação das regras de experiência e do princípio in dubio pro reo.
Tão pouco o recurso identifica concretamente alguma situação que possa subsumir-se a um destes vícios.
Parece-nos, antes, patente que o recorrente contesta a leitura que o Tribunal recorrido fez da prova, pretendendo convencer este Tribunal de recurso da sua leitura dessa prova com base nas mesmas provas atendidas em primeira instância, considerando que as mesmas, nos excertos que indica, impunham uma decisão diversa quanto aos factos, o que tem lugar apenas em sede de impugnação ampla da matéria de facto.
Nesta sede, atendo-nos ao texto decisório como se impõe, não é possível descortinar algum dos assinalados vícios; a decisão apresenta-se fundamentada num raciocínio lógico, numa leitura conjugada de toda a prova produzida, e apresentando conclusões consentâneas com esse raciocínio, razoáveis e conformes com as regras da experiência, em observância da regra da livre apreciação da prova inscrita no art. 127º do Código de Processo Penal.
O facto de na análise da prova ter o Tribunal a quo decidido em desfavor da tese ou versão trazida pela defesa do arguido não representa, como pretendido, qualquer violação do princípio in dubio pro reo.
Com efeito, vigora entre nós o princípio da livre apreciação da prova, consagrado sob o art. 127º do Código de Processo Penal, nos termos do qual a análise e valoração da prova devem ser realizadas segundo critérios objetivos que permitam percecionar o percurso lógico-racional da fundamentação da convicção formada pelo julgador.
O princípio in dubio pro reo constitui, por sua vez, um limite normativo a essoutro princípio da livre apreciação da prova, na medida em que impõe uma orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre a prova de um facto, de que o Tribunal decida pro reo, ou seja a favor do arguido.
Como corolário do princípio da presunção de inocência consagrado no art. 32º/2, da Constituição da República Portuguesa, decorre do princípio in dubio pro reo que todos os factos relevantes para a decisão que sejam desfavoráveis ao arguido e que, face à prova, não possam ser subtraídos à dúvida razoável do julgador, não podem dar-se como provados.
Tal princípio tem aplicação no domínio da avaliação das provas na decisão sobre a matéria de facto, significando que, em caso de falta de prova sobre um facto, a dúvida se deverá resolver a favor do arguido, dando-o como não provado se lhe for desfavorável.
Não será, porém, toda e qualquer dúvida que justificará a absolvição com base neste princípio; tão somente aquela que, respeitando à afirmação de um facto integrador de elemento típico de um crime ou com ele relacionado, seja legítima, racional, séria e razoável (não já a dúvida ligeira, hipotética ou possível), e conduza a reserva intelectual inultrapassável, impeditiva da convicção do tribunal quanto a essa afirmação.[2]
Daí que o Tribunal de recurso só possa censurar o uso feito desse princípio se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele, escolheu a tese desfavorável ao arguido.
Encerrando o princípio in dubio pro reo uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa, a sua violação requer que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido.
À semelhança do que sucede com os vícios consagrados no nº 2 do art. 410º do Código de Processo Penal, em sede de recurso, a violação do princípio in dubio pro reo apenas ocorre quando tal vício resulte da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, pois o recurso não constitui um novo julgamento. [3]
E a versão acolhida na sentença recorrida foi a única plausível para o Tribunal em face da prova produzida, analisada esta à luz das regras da experiência.
Por isso, nesta parte, o Tribunal não se socorreu do princípio in dubio pro reo (que apenas significa que perante factos incertos, a dúvida favorece o arguido) porque não teve quaisquer dúvidas da valoração da prova e ficou seguro do juízo quanto à autoria dos factos, isso mesmo exarando na decisão sob recurso.
Tal princípio só teria sido violado se da prova produzida e documentada resultasse que, ao condenar o arguido com base naquela, o julgador tivesse contrariado as regras da experiência comum ou atropelasse a lógica intrínseca dos fenómenos da vida, caso em que, ao contrário do decidido, deveria ter chegado a um estado de dúvida insanável e, por isso, deveria ter decidido a favor do arguido.
Como já referimos, não é o caso.
O princípio in dubio pro reo, não deve ser convocado perante qualquer contradição ou dúvida, pois parte desta e pressupõe-na, na medida em que o princípio da presunção de inocência deve orientar a apreciação dos elementos probatórios.
No labor de apreciação probatória, na ponderação e conjugação de todos os elementos, apenas deve ser reclamado perante uma dúvida positiva, racional, que impeça a formação da convicção do Tribunal, que manifestamente não é o caso.
Se a fundamentação não viola o princípio da legalidade das provas e da livre apreciação da prova, alicerçando-se em provas legalmente válidas e valorando-as de forma racional, lógica, objetiva, sem desrespeito pelas regras de experiência, não pode concluir-se que a mesma prova gera factos incertos, que implique dúvida razoável que afaste a valoração efetuada pelo Tribunal e que imponha a alteração da decisão de facto recorrida, sendo por conseguinte, lícita e válida a decisão do Tribunal a quo.
No caso dos autos a livre apreciação da prova encetada pelo Tribunal recorrido não conduziu à subsistência de dúvidas sobre a existência dos factos dados por assentes e do seu autor, nem a mesma se impunha, não havendo, por isso, lugar a invocar aqui o princípio in dubio pro reo.
E assim sendo, resta saber se a prova produzida, concretamente a especificadamente indicada no recurso, impunha decisão diversa da que foi tomada quanto aos factos, analisando a impugnação da matéria de facto também objeto do recurso.
3. DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO – art. 412º/3 do Código de Processo Penal
Conclui o recorrente que ocorre erro de julgamento quanto aos factos sob os pontos 4., 5., 6., 8. e 9., porquanto da prova produzida, concretamente das declarações prestadas pelo arguido e dos depoimentos testemunhais resulta que os factos não ocorreram como ali descrito.
2.4.1 Regras e Requisitos
Enquanto concretização do duplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, consagrado no art. 428º do Código de Processo Penal, segundo o qual os tribunais da Relação conhecem não só de direito mas também de facto, o erro de julgamento resulta da forma como foi valorada a prova produzida e ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tenha sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. Tal erro pressupõe que a prova produzida, analisada e valorada, não podia conduzir à fixação da matéria de facto provada ou não provada nos termos em que o foi.
Nesta forma de impugnação ampla, os poderes de cognição do tribunal de recurso não se restringem ao texto da decisão recorrida (como sucede com os vícios previstos no art. 410º/2 do Código de Processo Penal), alargando-se à apreciação do que contém e se pode extrair da prova produzida em audiência, nomeadamente por via da análise da documentação dessa prova e/ou da audição da gravação, no caso da prova por declarações e testemunhal; essa análise e audição é, no entanto, sempre delimitada e guiada pela especificação que onera o recorrente, como previsto nos n.ºs 3 e 4 do art. 412º do Código de Processo Penal.
Ou seja, serão uma análise e audição cingidas aos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, às concretas provas que, na sua perspetiva, impõem decisão diversa da recorrida, sendo que, quando gravadas, mediante audição das passagens em que se funda a impugnação que forem especificamente indicadas.
Todavia, conforme tem vindo a entender-se de forma pacífica na jurisprudência, esse recurso sobre a matéria de facto não visa a realização de um segundo e novo julgamento, com base na audição de gravações e na apreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, como se esta não existisse; antes se destina a obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida, na forma como apreciou a prova, quanto aos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.[4]
Na prática, o que se visa é uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente especifique como incorretamente julgados, através da avaliação das provas que, em seu entender, imponham decisão diversa da recorrida.
Nessa reapreciação, terá que atender-se à forma como se formou a convicção do julgador vertida na decisão sob recurso, tendo presente o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127º do Código de Processo Penal.
Trata-se de uma regra de apreciação da prova segundo o livre convencimento motivado do julgador, mas sem poder confundir-se com íntima convicção do juiz, devendo assentar numa análise lógica e motivada da prova, segundo regras de experiência e com bom senso.
Daí a importância da fundamentação da decisão sobre os factos, exigindo-se do julgador a indicação dos fundamentos que foram decisivos para a formação da sua convicção, ou seja, os meios concretos de prova e as razões ou motivos pelos quais relevaram ou obtiveram credibilidade no seu espírito.
De tal sorte que, se essa decisão proferida em primeira instância se basear na livre convicção do juiz objetivada numa fundamentação compreensível e lógica, optando por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção, obtida com os benefícios da imediação e da oralidade, apenas deverá ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização, pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum; só nesse caso, se impõe uma decisão diversa da recorrida, como postulado pelo disposto no art. 412º/3,b) do Código de Processo Penal, para o ónus da especificação.
Não basta, pois, que no recurso sobre a matéria de facto, o recorrente pretenda fazer uma revisão da convicção alcançada pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção era possível, sendo imperioso demonstrar que as provas indicadas a impõem.
Terá, assim, que ficar evidenciado que a convicção do tribunal recorrido se reconduz, por exemplo, a uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais, ou seja, que se demonstre não só a possível incorreção decisória, mas a imperatividade de uma diferente convicção.
Na realidade, ao tribunal de recurso cabe analisar o processo de formação da convicção do julgador do tribunal a quo, verificando se os juízos de racionalidade, de experiência e de lógica confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar, não bastando, para uma eventual alteração, uma diferente convicção ou avaliação do recorrente quanto à prova produzida.
Por isso, a decisão recorrida só é de alterar quando for evidente que as provas não conduzem a ela, já não o devendo ser quando, perante duas versões, o juiz optou por uma, fundamentando-a de forma lógica e racional. Ou seja, o tribunal da Relação só pode e deve determinar uma modificação da matéria de facto quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão.[5]
Nessa análise, o tribunal de recurso há-de usar igualmente do princípio da livre convicção na sua valoração autónoma das provas dentro dos já falados limites impostos pela especificação exigida ao recorrente nos termos do art. 412º/3 e 4 do Código de Processo Penal, e da não imediação que beneficia a primeira instância; não bastará, assim ao tribunal de recurso a assunção ou a recuperação genéricas da convicção ou dos termos da convicção do tribunal recorrido.[6]
Em suma: o tribunal de recurso deve verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova nela indicados e os meios de prova apontados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.
Mas vejamos um pouco mais em detalhe com reporte ao caso em mãos.
2.4.2 Factos Impugnados
São então os seguintes os factos postos em causa (assinalados a negrito):
«(…)
4 - De seguida, DD dirigiu-se ao arguido AA que logo ali lhe disse que não se dava como culpado de tal colisão, mais lhe sugerindo pagar ele próprio os estragos provocados pela mesma.
5 - O ofendido manteve-se no meio da estrada enquanto o arguido AA voltou a entrar no seu automóvel, tendo feito marcha atrás, e arrancando logo de seguida em frente;
6 - Galgando o ilhéu direccional existente no local, ultrapassando o veículo com matrícula ..-..-VA pela esquerda e acabando por abalroar o ofendido que acabou prostrado em cima do capô do automóvel conduzido pelo arguido.
(…)
8 – Devido à velocidade que o arguido imprimiu ao seu veículo, que não foi possível quantificar, o ofendido acabou por ser projectado para o chão, caindo para a direita do lado do arguido, parando junto do lancil do passeio ali existente, próximo da loja chinesa ....
9 - O arguido AA continuou a sua marcha, abandonou o local, e não prestou qualquer ajuda ao ofendido DD, nomeadamente para verificar se o mesmo se encontrava consciente ou ferido, como também não chamou os bombeiros, nem ligou para o 112, deixando o ofendido sozinho.
(…)».
Ouvido o registo da prova na íntegra, verificamos que aquela que vem indicada pelo arguido para sustentar erro de julgamento, no contexto da demais prova produzida, é de molde a impor decisão diversa da proferida quanto a tais factos e outros deles dependentes.
Senão vejamos.
O Tribunal ponderou de acordo com a sua livre convicção duas versões sobre a dinâmica dos acontecimentos aqui em causa.
Assim, enquanto o arguido afirmara:
1- ter-se dado como culpado do acidente de viação havido, envolvendo a sua viatura e a tripulada pelo ofendido DD, apenas não querendo esperar no local pela Polícia por achar poder resolver-se tudo com o preenchimento da declaração amigável, o que não teria sido aceite pelo ofendido e o seu acompanhante, a testemunha EE, tendo mesmo recebido deste empurrões e murros desferidos no seu carro;
2- ter sido DD quem, na tentativa de evitar que se ausentasse do local, como admite ter sido sua intenção e ter anunciado, se agarrou à sua viatura ainda antes de fazer marcha atrás para se desviar da viatura daquele, à sua frente, levando-o então no capô durante alguns metros, até à sua queda no solo;
3- ter sido DD quem, ao pôr o pé no chão para sair do capô do carro, provocou a sua queda ao solo, sendo que ia parar logo a seguir; ter visto pelo retrovisor que DD logo a seguir à queda se ergueu do solo, convencendo-se de que não precisava de assistência;
o ofendido, diria, relativamente aos mesmos momentos, que:
1- teve que chamar a polícia porque o arguido pretendia que cada um assumisse os seus danos e recusou a resolução por declaração amigável;
2- ter sido surpreendido e abalroado pela viatura do arguido quando se encontrava na estrada, tendo que se agarrar ao capô para que o carro não lhe passasse por cima;
3- ter caído no chão por ter sido projetado, tendo ficado 4/5 minutos no chão, vindo a ser logo socorrido pelos bombeiros que se encontravam em frente, em parada, e assistiram à ocorrência.
Ora, como mais detalhadamente se explicitará infra, se no concernente ao desentendimento em relação a uma resolução amigável do acidente – momento 1 -, o decidido pelo Tribunal, dando como provados os factos inscritos em 4., se nos afigura conforme com a prova produzida, não se divisando que a que vem indicada impusesse decisão diversa, sem prejuízo de deverem ser os mesmos completados com factos de contexto relevantes para a decisão, o mesmo não pode dizer-se em relação aos momentos 2 e 3, quanto ao modo como se deu o contacto entre o corpo do ofendido e a viatura do arguido, assim como o sucedido com e após a queda do ofendido no solo – factos 5., 6., 8. e 9..
Vejamos em detalhe.
2.4.2.1. Dos factos provados em 4.
Entende o recorrente que deveria este ponto ter a seguinte redação:
4. De seguida, DD e EE dirigiram-se ao arguido AA e de imediato o DD anunciou que ia chamar a polícia, entretanto os três falaram durante pelo menos 10 minutos, até que o arguido anunciou que se ia embora.
Com a redação assim sugerida, pretenderia o arguido substituir aquela que consta deste ponto, e que dá conta da postura que terá adotado de não assunção de responsabilidade pelo acidente.
Ora, se se lhe reconhece razão quanto a não traduzir a descrição factual o que exatamente se passou, podendo fazê-lo – até por ser nessa parte consensual, como veremos –, com relevo na apreciação da causa, já não pode dar-se cobertura à tentativa que deste modo enceta de “apagar” dos factos provados um facto relevante, que tem que ver com a conduta adotada ante o acidente de viação em que se viu envolvido, prévia ao desenrolar dos acontecimentos que deram origem a estes autos.
E nesse particular, a sua versão de que assumiu logo a culpa pelo acidente e que pretendia resolver a situação com a declaração amigável, que até teria ido buscar ao carro, não sendo plausível de acordo com as regras da experiência face ao que em seguida ocorreu de acordo com o próprio arguido, não tem sustento em qualquer outro elemento probatório digno de crédito.
Ao contrário.
Nesta parte, a versão do ofendido DD surge confirmada por EE e FF, presentes no local, que prestam depoimentos consistentes e coerentes entre si quanto a este ponto, dando conta da postura agressiva do arguido, que pretendia que cada um assumisse o seu prejuízo, usando mesmo a expressão por todos mencionada de: «esta juventude de merda».
Não releva a este propósito o depoimento de CC, desconsiderado também pelo Tribunal a quo, que, além de se dar com o arguido há mais de 50 anos, prestou um depoimento muito vago, dando inicialmente ideia de que teria ouvido à distância de 20 m as conversas havidas no local do acidente por onde teria passado na sua viatura, casualmente, com o seu cônjuge, estacionando no parque de estacionamento de um estabelecimento comercial ali perto, para depois dizer (a instâncias da Sra. Procuradora) que uma vez no estacionamento não conseguiu ouvir nada, e que apenas teria ouvido, à passagem pelo local do acidente, porque tinha a janela aberta, qualquer coisa como «vamos assinar» e «Não! Tenho mais que fazer»; recuando ao depoimento espontâneo, inicial, transcrito em 36. da motivação do recurso, percebe-se que a testemunha nem sequer foi capaz de atribuir a um concreto dos envolvidos as expressões: «vamos assinar isto», «vamos assinar o papel», afirmando no entanto ter sido o arguido quem teria dito «não assino o papel … tenho mais que fazer, tenho de me ir embora, não posso estar à espera da polícia.».
Não faria qualquer sentido, de resto, como o próprio arguido afirmou nas suas declarações, que o ofendido não aceitasse seguir a via amigável, pois que a sua viatura fora embatida por trás pela do arguido, reconhecendo este em julgamento ser o culpado, mais a mais sendo escassa a gravidade do embate havido; neste contexto, apenas se mostraria necessária a chamada da Polícia ao local, ante uma postura auto-desresponsabilizante como aquela que DD, EE e FF, atribuíram ao arguido.
Assim, inexiste fundamento para que se alterem os factos dados como provados sob o ponto 4., muito embora, como já referido, atenta a defesa assumida pelo arguido, importasse completá-los com outros indicados no recurso, de resto consensuais entre arguido, ofendido e testemunhas presenciais, que fornecem um contexto mais real e preciso para os acontecimentos que vêm a seguir-se.
Assim, escutando os depoimentos das testemunhas presenciais, com especial relevo para EE e FF, que tudo testemunharam de perto, tendo inclusivamente interagido com o arguido, dirigindo-lhe a palavra, merecendo a credibilidade do Tribunal a quo, não pode deixar de ter-se por provado com relevo tendo em conta a defesa do arguido:
- além do que já constava de 4. dos factos provados; ainda que
- EE acompanhava DD na viatura acidentada, estava no local e dirigiu-se ao arguido no sentido da resolução do acidente;
- existiu um período de conversação entre o arguido, DD e EE, que terá sido de pelo menos 10 minutos (embora o arguido fale em 20 minutos);
- o arguido anunciou que se ia ausentar do local.
Quanto a este último facto, pese embora o depoimento do ofendido não seja bem claro – pois tanto disse ter sido surpreendido com o arguido a arrancar com o carro que nada teria dito que o fizesse esperar, como, questionado especificamente sobre este aspeto, acabou a referir: «O Senhor AA só disse que já estava farto de estar a empatar o trânsito que se queria ir embora e que aquilo era uma palhaçada.»; a instâncias do mandatário do arguido, diria mesmo que o arguido o teria repetido em vários momentos.
Também EE disse ter ficado com a noção de que o arguido se ia embora, tendo tentado convencê-lo a não fugir - «Eu venho ter com ele para não fugir, e depois desisti e fui para o lado do carro dele, do DD»; segundo EE, de igual forma o ofendido DD receava essa fuga, pois que teria, depois de si, ido ter com o arguido para tentar que não se fosse embora.
FF diria a este propósito:
«(…) E o senhor depois a dizer que se ia embora… Eu virei-me para o senhor: “o senhor não pode deixar o local do acidente”… E ele disse-me assim: “mas não posso porquê?”… E eu disse: “olhe, porque eu tenho um familiar na polícia e você não pode abandonar até a polícia chegar”… E ele meteu-se no carro e então fez a manobra e o DD meteu-se à frente”.».
Ora, toda a prova converge assim para que se dê como provado o seguinte:
4. De seguida, DD, juntamente com EE que o acompanhava, dirigiram-se ao arguido AA que logo ali disse que não se dava como culpado de tal colisão, mais sugerindo a DD que pagasse ele próprio os estragos provocados pela mesma; nessa sequência, DD disse que ia chamar a Polícia; decorridos cerca de 10 minutos desde o início da conversa, o arguido anunciou que se ia embora.
2.4.2.2 Dos factos provados em 5. e 6.
Propõe o recorrente a seguinte redação para estes pontos:
5. Sem que os condutores acordassem quanto à forma de resolver o embate referido em 1., o arguido AA voltou a entrar no seu automóvel, tendo feito marcha atrás e arrancado logo de seguida em frente.
6. Antes de arguido colocar o seu veículo em marcha, o ofendido, percebendo que aquele se iria ausentar do local, lançou-se para cima do capô daquele, agarrando-se e aí sem mantendo, enquanto o arguido fazia marcha atrás, parava e arrancava em frente, ultrapassando pela esquerda, no seu sentido de trânsito, o veículo com a matrícula ..-..-VA, que se encontrava imobilizado.
Contesta o arguido que pudesse dar-se como provado encontrar-se o ofendido, na estrada, de frente para a viatura por si tripulada, embatendo-lhe e “apanhando-o, assim, de frente” com o propósito de o molestar no seu corpo.
Defende que, pelo menos, deveria ter existido uma dúvida acerca deste facto, a ser necessariamente resolvida em favor do arguido, por via do princípio in dubio pro reo.
Procura depois, com base no que declarou em julgamento, dizer-se intimidado pelo acompanhante do ofendido, a testemunha EE, referindo mesmo que este o teria empurrado e teria desferido murros no capô do seu carro, deixando ali mossas visíveis. Teria decidido ir-se embora por ter percebido que ia correr mal.
Assim que entra no carro e liga o motor, o ofendido DD, convencido que desse modo o impediria de sair dali, ter-se-ia logo agarrado ao capô da sua viatura.
Ou seja: nesta versão, ao contrário do considerado provado, não foi o arguido com a sua viatura que abalroou o ofendido quando este se encontrava no meio da estrada, levando-o à frente, mas foi este que, procurando impedi-lo de dali se ausentar, convencido de que assim o conseguiria, se agarrou ao capô do seu carro.
E quanto a este ponto, ao contrário do decidido, parece-nos impor a prova uma leitura consentânea com a versão do arguido, ainda que com algumas nuances, por ser aquela que se mostra corroborada pela prova produzida, a que o Tribunal a quo conferiu crédito, numa leitura conforme às regras da experiência e do normal acontecer.
Vejamos.
Em 5., 6. e 12. dos factos provados considerou-se provado que o arguido dirigiu a sua viatura contra o ofendido quando este se encontrava no meio da estrada, abalroando-o, com o propósito concretizado de o molestar no corpo e saúde física.
O ofendido teria assim seguido 30 metros em cima do capô da viatura do arguido por aí ter ficado prostrado na sequência desse abalroamento, até ser projetado para o solo – 7. e 8. dos factos provados.
É consensual entre todos que o ofendido foi transportado no capô da viatura conduzida pelo arguido nesse percurso de 30 m; a divergência situa-se na forma como o ofendido ali foi parar: o arguido afirma que foi o ofendido quem se agarrou ao capô como forma de o impedir de se ausentar do local; o ofendido, por sua vez, diz que foi abalroado no meio da estrada pelo carro do arguido em andamento com o propósito de o atingir na integridade física, versão acreditada pelo Tribunal a quo e vertida para os factos provados.
Ora, não vemos que possa dar-se como provado, nem o imputado abalroamento, nem o propósito subjacente a tal conduta, impondo a prova produzida uma outra dinâmica para estes acontecimentos.
Explicamos porquê.
Abalroar, significa colidir com (um obstáculo), investir/acometer contra - https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/abalroar .
Olhando ao croqui de fls. 6 e ao local onde o ofendido diz ter sido colhido pela frente da viatura conduzida pelo arguido, que seguiria, nas suas palavras a 50/60 km/h, não vemos como seria fisicamente possível que, sendo o ofendido abalroado ou seja, embatido, atropelado, com o veículo em andamento, de frente para o mesmo, conseguisse ainda voar sobre o capô e aí se manter até à queda 30 m à frente; tanto mais que, no final, apenas lhe foram examinados ferimentos relacionados com a queda no solo, essencialmente num cotovelo e crista ilíaca de uma perna, nada se atribuindo à dita colisão; desconhece-se, de resto, em que parte do corpo do ofendido teria a viatura embatido (tronco? pernas?).
A verdade é que a prova produzida em que a sentença recorrida se sustém, e cuja credibilidade não vemos razões para questionar, numa leitura conforme às regras da lógica e da experiência contraria esta tese, adotada na acusação e vertida para os factos provados, com todo o respeito, sem uma correta análise crítica por parte do Tribunal a quo.
Isto porque, articulando toda essa prova, não vemos que possa dar-se como demonstrada esta conduta deliberada do arguido de investir com a sua viatura contra o ofendido, colidindo com o mesmo, com o propósito de o atingir e ofender no seu corpo e saúde física; dela resulta, ao invés, uma dinâmica inteiramente diversa de tal evento.
Senão vejamos.
Deixemos de parte as razões que terão levado o arguido a abandonar o local do acidente, sendo que deu várias: desde ter que ir resolver uma fuga de água num apartamento, até não ter tempo para ali estar à espera da Polícia por causa de uma coisa tão insignificante, passando por temer que algo corresse mal ao sentir-se intimidado pelo acompanhante do ofendido, EE, e acabando na manifestação de quer era o dono da sua vontade e ninguém o podia obrigar a ficar ali.
Com exceção desta última explicação, não existe um único elemento de prova credível que corrobore as demais; de resto, a justificação que em declarações apresenta de que se teria sentido intimidado por EE, que teria cerca de 120 kg e o teria empurrado e dado murros no capô do seu carro, e a de que tinha uma fuga de água, foram explanadas de forma genérica e pouco consistente, não merecendo por isso censura a sua descredibilização.
O certo é que o arguido, na sequência de acidente de viação consistente em embate da viatura que tripulava na traseira da viatura tripulada pelo ofendido, quis ausentar-se do local desse acidente antes da chegada da Polícia sem que os condutores chegassem a consenso acerca de uma resolução amigável, manifestou essa vontade e concretizou-a.
Sobre esta matéria, o arguido indicou duas testemunhas: BB, irmão de um seu inquilino, e o já mencionado CC; estes, chamados a depor em julgamento, diriam ter presenciado os factos, efetuando no entanto relatos muito pouco circunstanciados, genéricos, dizendo estarem de passagem no local (CC, num primeiro momento) ou à distância, a partir de um parque de estacionamento ali próximo.
BB, pareceu trazer um discurso preparado, tocando cirurgicamente todos os pontos que interessava à defesa tocar, sem articular um discurso e descrição próprios de quem assiste a um evento desta natureza; falou genericamente nuns senhores que teria visto a discutir com o Sr. AA, e um mais alto ter-se-ia chegado ao pé dele e teria começado a empurrar com a barriga, falando depois genericamente nuns empurrões; questionado sobre os acontecimentos subsequentes, e depois de dizer que um indivíduo se teria posto em cima do capô do carro do arguido antes de ele fazer marcha atrás, e que o Sr. AA recuou para a pessoa sair do capô (o que nem o arguido referira), a instâncias da Sra. Procuradora, e concordando com esta, diria simplesmente que a pessoa se pôs no capô, o Sr. AA teria recuado com a pessoa nessa situação, e avançado em seguida, sendo nesse momento que a pessoa caiu.
CC, por seu turno, dizendo ter visto uma parte, não tendo visto o resto, descreveria as pessoas que estavam a discutir com o arguido como sendo jovens, do sexo masculino, “eram mais fortes do que eu”, “fortinhos como o Sr. AA”, quando o arguido havia distinguido de forma muito clara DD, o condutor, como sendo pequeno e magro, e EE, como grande e forte, com cerca de 120 kg; depois, de forma muito genérica refere ter visto uma pessoa em cima do capô do carro do Sr. AA, ainda conseguindo precisar a instâncias que o carro estava imobilizado quando ele se pôs em cima do mesmo, mas indo-se embora depois, nada mais presenciando, isto apesar de assim deixar de acompanhar até ao fim um acontecimento deveras incomum e grave a envolver uma pessoa com quem se dá há cerca de 50 anos.
Em suma: tal como considerou a Mm.ª Juíza a quo, estas testemunhas, pelo grau de comprometimento revelado em relação à pessoa do arguido e versão que o mesmo trouxe a juízo, não são merecedoras de credibilidade.
Assim, não merece censura o afastamento da versão do arguido no tocante à justificação apresentada para se ausentar do local.
Não acompanhamos, porém, o pressuposto que o mesmo Tribunal evidenciou no decurso do julgamento ser o seu, de que o arguido estava obrigado a ficar no local do acidente a qualquer custo, não podendo dali ausentar-se enquanto não chegasse a autoridade policial.
Se é certo que, na ausência de um entendimento entre os condutores, cabia ao arguido, se não queria aguardar pela autoridade policial, fornecer ao ofendido a sua identificação, a do proprietário do veículo e a da seguradora, bem como o número da apólice, nos termos do nº 1 do art. 89º do Código da Estrada aprovado pelo D.L. 114/94, de 03/05, o que não consta tenha feito, não é menos certo que, não havendo feridos ou mortos resultantes do acidente, não recaía sobre o arguido um dever legal de permanecer no local a aguardar a chegada de agente de autoridade, como decorre a contrario do nº 2 do mesmo art. 89º do Código da Estrada.
Em qualquer caso, não estando em causa a prática de um crime em flagrante delito que justificasse porventura uma detenção, sempre careceria de legitimidade o ato de obrigar/forçar outra pessoa a permanecer em determinado local, privando-a da sua liberdade de movimento.
Ora, ficou claro da prova produzida que o ofendido e seu acompanhante, recearam a fuga do arguido – EE chega a dizer ter suspeitado que o arguido estivesse alcoolizado – e procuraram sustê-la, tentando convencer o arguido a não sair dali.
Conforme acima se referiu, EE disse ter ficado com a noção de que o arguido se ia embora, tendo tentado convencê-lo a não fugir - «Eu venho ter com ele para não fugir, e depois desisti e fui para o lado do carro dele, do DD» -, sendo que, mais adiante, confirma que DD teria ido ter com o arguido para tentar que não se fosse embora, e que o viu «em frente ao carro. Para ele não fugir (…)».
FF diria também:
«(…) E o senhor depois a dizer que se ia embora… Eu virei-me para o senhor: “o senhor não pode deixar o local do acidente”… E ele disse-me assim: “mas não posso porquê?”… E eu disse: “olhe, porque eu tenho um familiar na polícia e você não pode abandonar até a polícia chegar”… E ele meteu-se no carro e então fez a manobra e o DD meteu-se à frente.»
Ou seja: ao contrário do que DD quis fazer crer, acabando por ser acreditado pelo Tribunal a quo, de facto, não resulta da demais prova nem que haja sido surpreendido pela atitude do arguido de se ausentar do local ao volante da sua viatura, nem que haja sido apanhado/abalroado na estrada, de frente para a viatura do arguido.
Isto porque, como já referido, o arguido anunciou prévia e publicamente que iria abandonar o local, sendo que DD, segundo o seu acompanhante EE, e a testemunha FF, estaria nesse preciso momento junto dos veículos envolvidos a tentar evitar que tal acontecesse; mas também porque os testemunhos presenciais credibilizados pelo Tribunal recorrido, ao contrário do que foi considerado na decisão recorrida, não conferem suporte à versão do ofendido, antes corroboram a versão do arguido quanto ao modo como o ofendido foi parar acima do capô da sua viatura.
Neste particular, importa notar que o depoimento do ofendido apresentou discrepâncias e exageros que não foram sinalizados na decisão recorrida, mas que levam a que não possa atribuir-se-lhe plena credibilidade como, em alguns pontos, se lhe não atribuiu – cfr. o apanhado feito sob os pontos 119. a 123. da motivação do recurso.
Assim, com especial relevo, temos que o ofendido diz ter sido levado na frente da viatura do arguido por cerca de 100 a 150 metros (e não 20, como inexatamente se escreve na motivação da decisão recorrida), quando se deu como provado em 7. que foram apenas 30 metros, assim como que a viatura seguia a 50/60Km/h, quando atenta a curta distância percorrida, o ponto de partida da viatura que teria ainda que vencer a barreira da guia do ilhéu sobre o qual teria que passar, assim como as suas características e as lesões, apesar de tudo, menores, sofridas com a queda, seria de todo inverosímil que fosse essa a velocidade a que circulava o veículo atropelante; por isso, se terá considerado a mesma não apurada.
Mas, além disso, o ofendido, instado a explicar como é que aparece pela frente da viatura do arguido, refere inicialmente que «ia a passar para o outro lado e o carro já vinha a andar», depois que estava no passeio a telefonar para a Polícia, dizendo mais adiante, confrontado com a contradição, que não estava aí parado mas a andar por ali, e teria sido ao contornar o seu carro vindo em direção ao arguido que, na estrada, seria surpreendido pela manobra dele de ir contra si, abalroando-o.
Ora, EE, o seu acompanhante, diria ter sido ele próprio quem telefonou para a polícia, duas vezes, tendo DD telefonado ao pai, negando que DD tivesse estado ao telefone na altura em que tudo aconteceu; refere ao invés que nessa altura DD tinha ido ter com arguido para tentar que não se fosse embora; isto, apesar de EE referir não ter presenciado o momento em que DD acede ao capô do carro do arguido, dizendo que estaria a falar com a testemunha FF, o que não é por esta confirmado; perceciona-se, de resto que terá evitado responder à questão da defesa sobre se foi o arguido que foi contra o ofendido ou se foi este que se debruçou sobre o carro daquele, dizendo: “Não, ele é que… como é que hei de explicar? Eu só sei que tanto movimento tanta coisa só sei que ele, só reparei em cima do capô em vinte ou trinta metros.”; mas ante a insistência, negando que DD tivesse estado ao telefone, acaba por dizer: «A gente chamou as autoridades, só sei que o DD estava… foi ter com ele, quando ele arranca já estava no capô. Em cima. (…) “Ele estava, ou seja, estava, o carro estava assim, ele estava assim, eu só sei que quando… não reparei, mas só que eu vejo ele a arrancar em cima do capô.
Também FF, de forma espontânea e categórica, afirma que «O DD meteu-se à frente», «Ele meteu-se à frente», «Ele pôs-se para ele não fugir»; ante insistência da Senhora Procuradora sobre se sobre se o DD se tinha metido à frente, FF diria: «Eu não sei se o DD… Aí eu não posso dizer se ele se atirou para cima ou se o senhor o levou, pronto… Mas esse senhor depois fez… Porque aquilo tem um cruzamento e o senhor até passou por cima daquilo e levou-o com toda a velocidade à frente (…) O que eu me apercebi foi que ele se pôs para o senhor não fugir, como quem diz: daqui não sais». E quando é especificamente perguntada: «Mas ele pôs-se em cima do carro antes de o carro arrancar ou depois?», FF diz: «Foi antes», explicando em seguida que ele se agarrou ao carro.
Por seu lado, GG, comandante dos ..., cujas instalações todos consensualmente disseram situarem-se defronte para o local do acidente, de forma espontânea e objetiva descreveu assim o sucedido:
«Fui à porta e vi um moço e um senhor entretanto já fora do carro e até pensei “olha, não há feridos, estão fora do carro e não há feridos em princípio”. Entretanto, passado um bocado, vi o senhor, salvo o erro do ..., que fez marcha atrás, passou para o lado do outro carro em que bateu e o moço mandou-se para cima do capô do carro e o senhor ia a acelerar e o moço foi a cair… Aquilo tem uma entrada para o chinês logo a seguir, antes de se virar para o ...… O moço caiu aí e, entretanto, mandei lá uma ambulância e mandei lá pessoal para o socorrer.».
Acrescentaria: «Ele é que se mandou, porque como o senhor se foi embora, depois do acidente foi-se embora… Se calhar eu fazia o mesmo, estou a falar por mim, que se calhar fazia o mesmo… E o senhor ia a acelerar…», sendo categórico a atribuir ao moço a intenção de fazer parar a viatura ....
E depois de questionado pela Senhora Procuradora do Ministério Público se o carro ia em direção ao moço disse: «Não, o carro passou ao lado e ele passou aí e ele mandou-se para cima do carro, porque o carro…», voltando mais adiante, quando questionado «Mas o carro não ia em direção ao senhor…?», a responder repetidamente «não, não, não, não»; e mesmo depois de nas instâncias a que foi sujeito se ter posto em causa o que afirmara tão categoricamente, e que não condizia com o afirmado pelo ofendido, rematou de forma muito autêntica: «que ele se mandou, mandou!».
Registamos que a Mm.ª Juíza a quo, parecendo-nos atido à versão que havia recebido em depoimento do ofendido, de que tinha sido abalroado quando estava na estrada, colhido pela viatura do arguido, de frente, não condizente com o que esta testemunha - porventura a mais isenta de todas as ouvidas -, foi afirmando de forma tão clara, não deixou de a pôr em causa sempre com reporte àqueloutra versão e à incredulidade, desde início abertamente revelada quanto à versão do arguido neste particular.
No entanto, GG, que por vezes pareceu não compreender as questões que lhe colocavam ante a clareza do que dissera, não deixou margem para dúvidas neste particular, indo de resto ao encontro dos depoimentos que vimos de referenciar e das regras da lógia e da experiência que começamos por evocar.
Assim, a instâncias da Senhora Juíza, volta a dizer: «e o moço, quando vê que ele se vai embora, mandou-se para cima do capô.», explicando o local onde estava o moço, na traseira da sua viatura, atirando-se para cima do capô quando o ..., depois de fazer marcha atrás, contorna aquela viatura para passar pelo lado, e vai a arrancar em frente; daí que EE diga ter visto o ... a arrancar já com DD em cima do capô.
Perguntado ainda GG, quase até à exaustão, como poderia ser isso e se o carro tinha espaço para passar sem bater no rapaz, respondeu afirmativamente sem qualquer hesitação.
Na verdade, se seguirmos a sua descrição, condizente, de resto com o que resulta em geral dos depoimentos de EE e de FF, o ofendido encontrava-se na traseira da sua própria viatura (ele próprio dissera ter ali ficado espaço suficiente para lhe permitir aceder à mala em busca do colete e triângulo de sinalização), quando o arguido se dirige à sua viatura ... dizendo que se vai embora; entra e inicia manobra de marcha atrás, recuando o suficiente para poder desviar-se da viatura do ofendido e seguir em frente; o que teria feito sem qualquer obstáculo, não fosse o ofendido ter tentado fazê-lo parar, muito provavelmente convencido de que o conseguiria se se agarrasse ao capô do carro, o que terá logrado no momento em que o mesmo arranca depois da marcha atrás, portanto a uma velocidade necessariamente mais reduzida, permitindo-lhe, vindo de lado, agarrar-se à ranhura do capô, onde se situam as escovas limpa para-brisas, lado do pendura, e seguindo com as pernas de lado, tal qual foi descrito por EE; o arguido prossegue a marcha com o ofendido agarrado/pendurado no capô por cerca de 30 m, passando com as rodas (dianteira e traseira) do lado esquerdo do carro sobre o lancil do ilhéu direcional ali existente com as placas indicativas das Direções, vindo o ofendido a cair de seguida para o lado direito do seu sentido de marcha, na berma.
Com o detalhe apenas do exato momento em que o ofendido se agarra ao capô do seu carro – que o arguido diz ter sido antes de iniciar a manobra de marcha atrás, e os testemunhos referidos não logrando confirmá-lo, apontam com segurança para o momento posterior a essa manobra, em que se prepara para arrancar em frente -, fica patente a verosimilhança da descrição fornecida pelo arguido nas suas declarações quanto à dinâmica do evento.
Conforme referiu, o ofendido queria obrigá-lo a estar ali e convenceu-se que colocando-se em cima do seu carro o conseguiria: «eu quis sair dali», «ele pensava que naturalmente era o facto de se pôr em cima do meu carro que me faria ficar ali. Ora, eu não tinha que ficar.», «quando eu vi ele a pôr-se em cima do capô, percebi: acabou-se tudo», «ele montou-se em cima do meu carro para eu não sair, vou pôr-me aqui e tu já não sais», «vi a cara de estarrecido dele quando arranquei, ele não estava a contar».
Esta a versão, que o Tribunal tacitamente excluiu, aderindo, a nosso ver, de forma pouco crítica ao que foi a versão do ofendido, como se viu eivada de fragilidades e contrariada por provas que o próprio Tribunal a quo considerou credíveis.
Temos assim que, com relevo para a decisão, não resulta provada a imputada resolução criminosa tomada pelo arguido de molestar o corpo e saúde física do ofendido, abalroando-o com a sua viatura quando aquele se encontrava no meio da estrada – 5., 6. e 12. dos factos dados como provados.
Antes decorre da prova indicada no recurso, no cômputo global de toda a prova produzida, que foi o ofendido quem, na tentativa de impedir o arguido de abandonar o local, e acreditando que o conseguiria daquela forma, se lançou e agarrou ao capô da viatura dele quando se preparava para dali sair.
*
Duas últimas notas em relação a estes factos impugnados.
1.ª
Uma, para o facto inscrito em 6. de ter o arguido galgado o ilhéu direcional ali existente, pretendendo agora erradicar esse facto dos provados.
O arguido admitiu poder ter passado com as rodas (dianteira e traseira), do lado esquerdo (condutor) sobre o lancil desbastado que contornava o referido ilhéu direcional, bem visível no esboço de fls. 6, quando efetuava a ultrapassagem do veículo imobilizado do ofendido, pela esquerda.
DD, explicando que o seu carro estava a ocupar a via de transito por completo, diria que o arguido passou com um bocado do carro em cima da parte desse ilhéu que estava a dividir a estrada, sendo que, metade subiu por aí e a outra metade passou na estrada; FF confirmaria que o carro do arguido passou com os pneus por cima do ilhéu; EE, a instâncias da Senhora Procuradora, disse não ter atentado se foi galgado o ilhéu direcional; GG diria a este propósito «Acho, não tenho a certeza do que agora vou falar… Acho que ainda pisou um bocadinho o passeiozinho do triângulo, penso que ainda passou por cima disso, penso eu, se a minha memória não…».
E mesmo CC, que ali teria passado, no mesmo sentido de trânsito dos veículos envolvidos, referiu ter conseguido passar sem subir o passeio do ilhéu por conduzir um veículo pequeno, um Toyota Yaris, o que não seria possível para os carros maiores.
Neste quadro, entendida a palavra galgar como transpor, passar por cima – cfr. https://dicionario.priberam.org/galgar, e considerando que a prova (incluindo as declarações do arguido e do ofendido) se conjuga no sentido de que a viatura conduzida pelo arguido passou com as rodas do lado esquerdo por cima da guia ou lancil do referido ilhéu direcional, importa apenas precisar tal circunstancialismo nos factos provados.
2.ª
Uma outra nota, prende-se com os factos atinentes ao elemento subjetivo correspondente à invocação pelo recorrente de que não há prova da verificação de risco para a vida de outros condutores que consigo se cruzassem naquelas circunstâncias – 126. da motivação.
Argumenta que «não só não se refere se havia outros veículos na via em causa, como na verdade não podia haver, pois, aquela via é de sentido único até à entrada para a ..., em que não se sabe se o veículo do arguido chegou a entrar – não se sabe onde terminam os tais 20 ou mesmo os 30 metros.».
E de facto, percorrendo a prova e mesmo os factos objetivos dados como assentes, nada resulta dos mesmos que dê suporte a tal asserção que conclusivamente é inscrita em 11. e 14. dos factos provados.
Efetivamente, todo o risco criado pela condução do arguido com o ofendido em cima do capô do seu carro se concentra nessa concreta situação, inexistindo qualquer elemento ou facto objetivo que aponte para que tenha sido posta em causa a vida, ou sequer a integridade física, de terceiros, nomeadamente de outros condutores que ali circulassem.
Por outro lado, descrevendo-se em 14. um conjunto de condutas atribuídas à autoria do arguido, conclui-se que este sabia estar a violar as regras de condução estradal.
Sucede que, de todas essas condutas, apenas uma delas pode configurar-se como infratora de uma regra estradal (sendo que não é indicada na sentença, nem vinha mencionada na acusação) e ainda assim sem que resulte estabelecido nos factos qualquer relação causal entre essa infração e o perigo para o ofendido ou terceiros.
Senão vejamos.
A posição de marcha adotada pelo arguido, de passar pela esquerda o veículo do ofendido que se encontrava imobilizado na faixa de rodagem, não configura em si mesma violação do disposto no art. 13º do Código da Estrada, que elege como regra no seu nº 1 a da circulação pelo lado direito da faixa de rodagem; todavia, no nº 2 prevê expressamente que «Quando necessário, pode ser utilizado o lado esquerdo da faixa de rodagem para ultrapassar ou mudar de direção.».
Atenta a posição do veículo do ofendido na via de sentido único onde se deu o acidente (cfr. croqui de fls. 6), apenas seria possível avançar em frente passando o mesmo pela esquerda, em razão do que, não se vê que possa ter sido violada esta regra estradal.
É certo que ao efetuar essa passagem[7] pela esquerda do veículo imobilizado, o arguido passou com as rodas do lado esquerdo da sua viatura por cima do lancil do ilhéu direcional existente no entroncamento, podendo eventualmente configurar-se aí uma infração do preceituado no art. 16º/1 do Código da Estrada[8], que não vem mencionado na decisão recorrida, e que dispõe: «Nos cruzamentos, entroncamentos e rotundas o trânsito faz-se por forma a dar a esquerda à parte central dos mesmos ou às placas, postes, ilhéus direcionais ou dispositivos semelhantes existentes, desde que se encontrem no eixo da faixa de rodagem de que procedem os veículos.».
No entanto, mesmo que pudesse considerar-se esta regra atinente à obrigatoriedade de circulação pela faixa de rodagem da direita (por forma a assumir a tipicidade do crime de condução rodoviária perigosa), não se encontra espelhada nos factos a descrição objetiva de qualquer situação que permita estabelecer a relação entre essa passagem sobre o lancil do ilhéu direcional e um perigo criado para a integridade física ou vida do ofendido ou de terceiros.
Por outro lado, como já resultava dos factos provados, não se apurou a velocidade a que seguia o arguido ou sequer ficou provado qualquer facto do qual resultasse a inadequação da mesma às condições da via e de circulação.
Por último, não ficou positivada nos factos provados descrição objetiva de factos dos quais se pudesse extrair a conclusão exarada em 14. de que essa velocidade ou a violação de qualquer regra estradal tenham constituído a fonte do perigo para a integridade física ou vida dos condutores que se cruzassem com o arguido, ou para o ofendido.
Na verdade, a situação de risco para a integridade física do ofendido foi ab initio despoletada por ação do próprio, ao agarrar-se ao capô da viatura do arguido quando este se colocava em circulação.
É claro que ao prosseguir a marcha do veículo com o ofendido colocado em cima do capô, não detendo de imediato essa marcha, podendo fazê-lo, o arguido criou ele próprio um perigo, potenciando o risco assumido inicialmente pelo ofendido.
Todavia, que norma estradal violou com essa conduta?
Nenhuma.
O que nos conduz a que a afirmação feita de que ao adotar aquelas condutas o arguido não olvidava violar as regras de condução estradal é vazia de conteúdo fáctico objetivo, sendo puramente conclusiva.
Tais asserções, que assim assomam puramente conclusivas, devem ser expurgadas dos factos provados em 11. e quanto ao 14..
Não obstante, e no tocante ao constante de 14., não se mostrando inócua nem atípica penalmente a conduta descrita objetivamente em 6. e 7. dos factos provados, de ter o arguido prosseguido a marcha do seu veículo com o ofendido em cima do capô, deve manter-se nos factos provados a afirmação subjetiva contida neste ponto, de que sabia o arguido estar a pôr em risco a integridade física daquele, conformando-se com tal resultado.
Resumindo e concluindo:
As provas indicadas no recurso, tendo presente o conjunto de toda a prova produzida, impõem decisão diversa quanto aos factos, sendo dados como não provados os seguintes:
- O ofendido manteve-se no meio da estrada enquanto o arguido AA voltou a entrar no seu automóvel (5., parte);
- Acabando por abalroar o ofendido que acabou prostrado em cima do capô do automóvel conduzido pelo arguido depois de ultrapassar o veículo com a matrícula ..-..-VA (6., parte);
- O arguido sabia que o automóvel que conduzia era capaz de colocar em risco a integridade física e vida de terceiros e a vida do ofendido (11., parte);
- O arguido agiu com o propósito concretizado de molestar o corpo e a saúde física do ofendido (12.).
- Ao arrancar com o seu veículo, galgando o ilhéu direcional existente no entroncamento da ... com a ..., ultrapassando assim o veículo com a matrícula ..-..-VA pela esquerda, e ao ter prosseguido a sua marcha com o ofendido em cima do capô a uma velocidade que não foi possível apurar, o arguido sabia que poderia colocar em risco a vida de outros condutores que consigo se cruzassem e no mesmo local circulassem, tendo-se conformado com tal resultado e não olvidando, ainda, que violava as regras de condução estradal; (14.).
E provados sob os pontos 5., 6., 11. e 14., os seguintes factos:
5. Na sequência do referido em 4., quando DD se encontrava na traseira da sua viatura, o arguido AA voltou a entrar no seu automóvel, tendo feito marcha atrás e arrancado logo de seguida em frente.
6. Quando o arguido arrancava com a sua viatura para ultrapassar o veículo ..-..-VA, DD, percebendo que aquele se iria ausentar do local, lançou-se para cima do capô daquela viatura, lado direito, agarrando-se na zona das escovas do limpa para brisas; aí se manteve enquanto o arguido seguia em frente, ultrapassando pela esquerda, no seu sentido de trânsito, o veículo com a matrícula ..-..-VA, que se encontrava imobilizado, e passando com as rodas dianteira e traseira desse lado sobre a guia do ilhéu direcional existente no local.
(…)
11. O arguido sabia que o automóvel que conduzia era capaz de colocar em perigo a integridade física do ofendido, não tendo, contudo, se coibido de atuar da forma supradescrita.
14. Por outro lado, ao arrancar com o seu veículo e ter prosseguido a sua marcha – com o ofendido em cima do seu capô – a uma velocidade que não foi possível apurar, o arguido sabia que poderia colocar em risco a integridade física daquele, tendo-se conformado com tal resultado.
*
Tratando-se de factos que configuram alteração não substancial dos que constavam da acusação, invocados pela defesa, não há lugar a qualquer comunicação nos termos do preceituado no art. 358º/2 do Código de Processo Penal.
*
2.4.2.3 Dos factos provados em 8. e 9.
Admitindo o recorrente que, como provado em 8., o ofendido caiu para a sua direita, parando junto do lancil do passeio ali existente, próximo da loja chinesa ..., entende que não se pode saber e muito menos dar como provado que isso aconteceu devido à velocidade do veículo e que o ofendido tenha sido projetado para o chão; desde logo porque não foi apurada a velocidade a que seguia, mas também pelas lesões ocasionadas no ofendido.
Em declarações, o arguido diria que já tinha abrandado e ia parar para o ofendido sair do carro, quando este se precipitou a colocar o pé no chão e, por força da inércia, porque estava de costas para a estrada, acabou por cair.
Vejamos.
Tanto quanto nos foi possível escutar, a única pessoa que fala espontaneamente em ter sido projetado é o próprio ofendido, mas antes de o fazer diz também «caí para o lado»; sendo que (ao contrário do que consta da motivação exposta na decisão recorrida) EE não usa espontaneamente esta palavra, mas antes: «caiu para a berma», «quando ele caiu», sendo que FF refere igualmente: «caiu para o chão» e GG usa também o verbo cair – «caiu ali (…) ou caiu ou largou-se».
Mais uma vez em busca do rigor, temos que neste contexto a palavra projetar deve ser interpretada no sentido de atirar à distância, arremessar, arrojar – cfr. https://dicionario.priberam.org/projetar .
Muito diferente, é cair de uma posição mais elevada para uma mais baixa, pela força da gravidade.
Ora, numa instância que, apesar de ruidosa, nos pareceu superficial, feita ao ofendido DD, não se aprofundou a sua visão quanto aos detalhes que se prendem com a dinâmica desta situação – onde segurou o capô, em que parte do veículo, onde e como seguiam as pernas, se teve sempre força para segurar ou em algum momento lhe faltou essa força, o que teria levado à sua queda, se em algum momento tentou colocar os pés no chão.
Considerando que se desconhece a velocidade a que seguia a viatura e qualquer outro detalhe da forma como ocorreu a queda no solo, tendo-se apenas por certa essa queda uma vez percorridos 30 metros, não pode dar-se como provado que foi devido a essa velocidade, desconhecida, que o ofendido foi projetado para o chão.
De resto, é conforme com as regras da experiência que o simples movimento da viatura que estava em circulação para a frente quando a queda se deu, independentemente da velocidade a que a mesma seguisse, haja conferido um impulso adicional ao impacto com o solo, mesmo que o ofendido se tivesse apenas largado do capô.
Também aqui a prova impõe alteração da matéria de facto, passando a ter-se como não provado que foi devido à velocidade que o arguido imprimiu ao seu veículo que o ofendido foi projetado para o chão, e como provado sob o ponto 8. que:
8. Percorridos os referidos 30m a velocidade que não foi possível quantificar, o ofendido acabou por cair para a direita atento o sentido de marcha do arguido, parando junto do lancil do passeio ali existente, próximo da loja chinesa ....
*
Por fim e no concernente aos factos sob o ponto 9., contesta o recorrente que tenha abandonado o ofendido à sua sorte, deixando-o sozinho, sem verificar se estava consciente ou ferido.
Também não ligou para o 112 nem para os Bombeiros por tudo se desenrolou em frente do quartel de ..., estando a corporação em parada voltada para o local; de resto, o comandante GG, ouvido como testemunha, a tudo assistiu.
Em declarações, o arguido disse que viu pelo retrovisor o ofendido levantar-se e que confiou no socorro dos bombeiros ali em frente, tendo visto alguns ali a ver a ocorrência enquanto estivera parado, sabendo ainda haver uma ambulância do INEM parada nas traseiras, pelo que maior prontidão no socorro não poderia haver.
Ora, quanto a tudo se ter passado diante do quartel dos Bombeiros, estando em curso uma parada de bombeiros, de tal sorte que o próprio comandante a tudo assistiu, prestando pronto socorro ao ofendido, resulta evidenciado no depoimento desse mesmo comandante, GG, que disse ter visto a queda do ofendido DD no solo, tendo logo enviado uma ambulância para o socorrer; este, por sua vez, confirmou estarem os bombeiros do outro lado da rua em parada, tendo visto o acidente e acionado logo uma ambulância, referindo 4/5 minutos até ser socorrido.
De resto, segundo EE, depois de prontamente assistido no local, o ofendido ainda aguardou pela Polícia no local, não aceitando o transporte para o Hospital, e seguindo depois a conduzir para o ....
Já no tocante à afirmação feita pelo arguido de que o ofendido se levantou assim que caiu no chão, tendo-o visto pelo retrovisor, não se mostra corroborada por qualquer outro elemento de prova e contraria o expressamente declarado pelo ofendido, de que teria ficado aí uns 4 ou 5 minutos deitado no chão.
E se é verdade que também aqui o depoimento de DD foi pouco consistente, este não é um facto dado como provado ou não provado sobre a qual cumpra ao Tribunal pronunciar-se.
O que de facto é dado como provado corresponde ao que o recorrente admite: não prestou assistência ao ofendido, nomeadamente para verificar se estava consciente ou ferido; e também não chamou os Bombeiros nem ligou para o 112.
é contrário a toda a prova produzida que o arguido tenha deixado o ofendido sozinho; na verdade, pelo menos as testemunhas FF e EE, estavam no local; além disso, tudo se desenrolou pelas 17.30h, em zona movimentada, defronte ao quartel dos ..., onde na ocasião decorria a parada dos bombeiros, como todos foram referindo nos respetivos depoimentos e declarações.
Como tal, não só a prova produzida impõe que se dê como não provado que o arguido deixou o ofendido sozinho, como é mister consignar os factos alegados pela defesa neste particular, com relevância para a decisão.
Importa assim que os factos sob o ponto 9. reflitam a prova produzida, dando-se como não provado que o arguido tivesse deixado o ofendido sozinho, e como provado o seguinte:
9. O arguido AA continuou a sua marcha, abandonou o local, e não prestou qualquer ajuda ao ofendido DD, nomeadamente para verificar se o mesmo se encontrava consciente ou ferido, como também não chamou os bombeiros, nem ligou para o 112; porém, o quartel dos ... situa-se defronte do local da ocorrência, tendo pelos mesmos sido prestado imediato socorro ao ofendido.
1. DO DIREITO
2.5.1 Dos Crimes
Vem o arguido condenado pela prática de três crimes:
- um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos arts. 143º/1, 145º/1, a) e 2 e 132º/2,h), do Código Penal;
- um crime de omissão de auxílio previsto e punido pelo disposto no art. 200º/1 e 2 do Código Penal;
- um crime de condução perigosa previsto e punido pelo art. 291º/1,b) do Código Penal.
*
Das alterações introduzidas nos factos provados resulta também alteração do respetivo enquadramento jurídico-penal.
Senão vejamos.
2.5.1.1 Do Crime de Ofensa à Integridade Física Qualificada
Entende o recorrente não poder ser condenado pela prática deste crime em virtude de não se provar que foi quem dirigiu o seu veículo contra o ofendido, tendo antes sido este a lançar-se para cima do seu veículo.
No labor de, em concreto, realizar a subsunção dos factos à norma, o Tribunal a quo fica-se pelos seguintes parágrafos:
«Ora, considerando a factualidade dada como provada, dúvidas não existem de que a conduta do arguido, ao utilizar nas circunstâncias apuradas o seu veiculo automóvel para atingir o ofendido, potenciando ainda mais as lesões que se iriam verificar, preencheu o disposto nos artigos 145º, n.º 1, al a) e n.º 2, com referência aos artigos 143º, n.º 1 e 132º, n.º 2, al. h), todos do Código Penal.
Não se verificam quaisquer causas de exclusão de ilicitude e/ou da culpa, nem falta qualquer condição de punibilidade.».
Olhando aos factos dados como provados, constatamos que o Tribunal a quo raciocina como se houvesse um propósito de ofender o corpo e saúde do ofendido e uma correspondente resolução criminosa, que depois seria concretizada com recurso a uma viatura como forma de exponenciar as lesões que se iriam verificar.
Sucede que, como resulta do acima decidido, não ficou provado que o arguido haja utilizado o seu veículo para atingir o ofendido numa ação deliberada de agressão.
O que resulta dos factos provados é algo diverso: o arguido ausentou-se do local do acidente ao volante da sua viatura, tendo sido o ofendido DD quem se agarrou ao capô dessa viatura quando esta arrancava para seguir em frente (tudo indica, convencido de que assim o faria parar); sucede que o arguido não parou e seguiu em frente levando no capô o ofendido ao longo de cerca de 30 m até este cair para a berma.
Desta queda no solo resultaram como consequência direta para o ofendido as lesões descritas em 10..
Ora, não resultando provado que o arguido haja deliberadamente abalroado o ofendido quando este se encontrava no meio da estrada com o propósito de o molestar no corpo e saúde física, cai por terra a imputação do crime de ofensa à integridade física qualificada com referência ao uso de meio particularmente perigoso, neste caso, uma viatura automóvel.
Mas significa isso que a conduta do arguido pode considerar-se penalmente neutra ou atípica?
Claramente não.
Explicamos porquê.
Resulta provado de 6. a 8., 10., 11., 14. e 15. que:
- Após o ofendido se agarrar ao capô da sua viatura, o arguido, que pretendia ausentar-se do local do acidente, seguiu em frente, ultrapassando pela esquerda, no seu sentido de trânsito, o veículo com a matrícula ..-..-VA, que se encontrava imobilizado, e passando com as rodas dianteira e traseira desse lado sobre o lancil do ilhéu direcional existente no local;
- O arguido percorreu nestas condições 30m a velocidade não quantificada até que o ofendido acabaria por cair para a direita atento o sentido de marcha em que seguia, sem que aquele abrandasse ou parasse a sua marcha, que prosseguiu mesmo depois dessa queda;
- Como consequência direta da conduta do arguido, o ofendido sentiu dores nas zonas atingidas, tendo sido assistido nesse mesmo dia no ..., onde recebeu tratamento, e sofrido as seguintes lesões: «membro superior direito: cicatriz de ferida contusa na região do olecrânio, ovoide, de maior eixo transversal com 2cm por 1cm; limitação por dor da flexão máxima e extensão do cotovelo; membro inferior direito: incrustação de alcatrão numa área de 1x1cm, sobre a crista ilíaca postero-superior»; as quais lhe determinaram 12 dias de doença, «com afectação da capacidade de trabalho geral (3 dias)».
- O arguido sabia que o automóvel que assim conduzia era capaz de colocar em risco a integridade física do ofendido, não se coibindo de manter o veículo em marcha naquelas condições indiferente a esse risco.
- Sabia ainda o arguido que ao arrancar com o seu veículo, prosseguindo a sua marcha – com o ofendido em cima do seu capô – a uma velocidade que não foi possível apurar, poderia colocar em risco essa integridade física, não se coibindo de assim atuar, conformando-se com tal resultado.
- Durante todo o episódio acima descrito, o arguido agiu sempre livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
Desta factualidade resulta evidenciado que, depois de um primeiro momento em que o ofendido DD se colocou em risco, agarrando-se ao capô da viatura em que seguia o arguido, este, passando a ter o controlo do perigo, prosseguiu a sua marcha nessas condições, apesar de representar como possível mercê dessa sua conduta a ofensa à integridade física do ofendido, conformando-se com esse resultado.
Pelo que, tendo naquelas condições, deliberada, livre e conscientemente, prosseguido a marcha com o seu veículo, ciente da possibilidade de vir a ser produzida ofensa à integridade física na pessoa que “transportava” no respetivo capô, a qual se viria a concretizar com a queda do ofendido no solo e as lesões na sua integridade física daí diretamente decorrentes descritas em 10. dos factos provados, representou como possível e conformou-se com a produção do resultado típico do crime de ofensa à integridade física previsto sob o art. 143º/1 do Código Penal.
Esse resultado típico não pode, assim, deixar de ser imputado subjetivamente ao arguido a título de dolo eventual, como previsto sob o art. 14º/3 do Código Penal.
Não colhe o argumento do recorrente para se isentar de responsabilidade nesta ocorrência segundo o qual o ofendido podia ter esperado que imobilizasse o veículo para que saísse do mesmo em segurança; na verdade, o ofendido não tinha razão alguma para acreditar que essa imobilização iria acontecer, bem pelo contrário, uma vez que arrancou e manteve a sua marcha apesar de o levar agarrado ao capô.
Na realidade, com o prosseguimento da marcha do veículo, o ofendido perdeu o controlo da fonte de perigo, que passou a ser controlada por inteiro pelo condutor da viatura, ou seja, pelo arguido, não sendo exigível (nem possível) que o ofendido previsse de que forma iria o arguido exercer esse controlo.
Por último, é de afastar a qualificação do crime de ofensa à integridade física por via da utilização de meio particularmente perigoso, nos termos do preceituado no art. 132º/1 e 2, h), ex vi do art. 145º/1 e 2,a) do Código Penal, por não se divisar especial perversidade ou censurabilidade no uso pelo arguido da viatura automóvel nas concretas circunstâncias que resultam provadas.
Como se sabe, é usada no nº 2 do art. 132º do Código Penal, a técnica legislativa dos chamados «exemplos-padrão», com uma enumeração casuística exemplificativa de circunstâncias agravantes de funcionamento não automático, em concretização da cláusula geral do nº 1 do mesmo preceito, que contém um critério generalizador determinante de um especial tipo de culpa e de uma imagem global do facto agravada.[9]
O preenchimento de um exemplo-padrão de entre os incluídos no nº 2 do art. 132º do Código Penal desencadeia, pois, tão somente um efeito indiciário, que pode vir a ser confirmado através de uma ponderação global das circunstâncias do facto e da atitude do agente nelas expressa; ou, inversamente, neutralizado e infirmado.[10]
Pelo que, para que possa fazer-se atuar a qualificativa é necessário que o agente tenha atuado com especial censurabilidade ou com especial perversidade; tratando-se, numa situação e noutra, da verificação de um grau de culpa particularmente intenso, do que se trata, no caso da especial censurabilidade, é de uma culpa ligada a um maior grau de ilicitude do facto em si, e no caso da especial perversidade, é de uma culpa ligada a características da personalidade do agente particularmente desvaliosas, mormente pela vertente de uma atitude interior má ou de crasso e primitivo egoísmo.[11]
Exige pois o legislador um grau de culpa particularmente intenso, que o tipo normal de ofensa à integridade física simples não contemple, na certeza, face à técnica dos exemplos-padrão seguida e à natureza meramente indiciária das alíneas do nº 2 do art. 132º do Código Penal, que é de admitir que uma ofensa à integridade física com uso de meio particularmente perigoso, em si mesma sempre anómala, grave e censurável, possa não ser qualificada; isto porque se o legislador admite a possibilidade de não qualificação nessas circunstâncias, importará então que algo de particularmente grave, ao nível do grau de culpa do arguido, esteja presente para que essa qualificação ocorra.
Ora, de acordo com os factos provados, não pode assacar-se ao arguido em termos de resolução criminosa o recurso deliberado ao veículo automóvel como forma de atingir o ofendido, muito menos de incrementar as lesões que lhe pudesse vir a provocar; isto porque foi o próprio ofendido quem assumiu o risco implícito no ato de se colocar em cima do capô de uma viatura automóvel em movimento, tendo o arguido só então assumido o desígnio de manter o veículo em movimento, apesar de o saber particularmente perigoso para a integridade física do ofendido.
Por outro lado, não se apurou a velocidade a que seguia o veículo e que tivesse sido essa velocidade a projetar o ofendido para o solo, provando-se apenas que este, percorridos 30 m, caiu e, em consequência, sofreu uma lesão na zona do cotovelo, e outra na crista ilíaca, cujo grau de gravidade não impediu o ofendido de, prestados os primeiros socorros, permanecer no local a aguardar a chegada da Polícia, seguindo depois ao volante da sua viatura de Vila Franca de Xira para o ....
Nestas circunstâncias particulares, não cremos preenchida a previsão da cláusula geral de qualificação, seja na vertente da especial censurabilidade - na medida em que o desvalor do ilícito concretamente realizado não assumiu uma gravidade para além da que supõe o crime de ofensa à integridade física - seja na vertente da especial perversidade – na medida em que a atuação do arguido, embora obviamente criticável, não teve subjacente um desígnio inicial de contrariedade ao direito com deliberada agressão ao ofendido, havendo sido este quem, inopinadamente, se colocou em posição de risco, sem embargo de ter depois assumido o controlo desse perigo, exponenciando-o com a manutenção do veículo em marcha.
Em suma: muito embora o ofendido se tenha colocado em situação de risco ao colocar-se em cima do capô da viatura conduzida pelo arguido, este potenciou esse risco, criando um perigo real e iminente para a integridade física do ofendido ao manter a marcha do veículo levando-o agarrado ao capô; tendo-o feito apesar de representar como consequência possível dessa sua conduta a ofensa à integridade física do ofendido, conformando-se com essa realização, cometeu um crime de ofensa à integridade física simples.
As particulares circunstâncias do caso não permitem assacar à conduta do arguido uma especial censurabilidade ou perversidade pelo uso da viatura automóvel, em razão do que, cai a qualificação do crime por via do disposto nos arts. 132º/1, 2, h) e 145º/a) e 2, do Código Penal.
Assim, o recurso procede parcialmente devendo a decisão recorrida ser nesta parte revogada, absolvendo-se o arguido do crime de ofensa à integridade física qualificada previsto pelos arts. 145º/1, a) e 2, com referência aos arts. 143º/1 e 132º/2, h), todos do Código Penal, mas condenando-se o mesmo pelo crime de ofensa à integridade física simples, com dolo eventual, nos termos dos arts. 14º/3 e 143º/1, do Código Penal.
Tratando-se do tipo base de crime de ofensa à integridade física em que o arguido vinha já condenado, e sendo a sua imputação fundada nos factos decorrentes da defesa apresentada em recurso, nada há a comunicar para efeitos do disposto no art. 424º/3 do Código de Processo Penal.
2.5.1.2 Do Crime de Condução Perigosa de Veículo Rodoviário
O arguido foi condenado pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto pelo art. 291º/1,b) do Código Penal, nos termos do qual:
«Quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada:
a. Não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar em estado de embriaguez ou sob influência de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, ou por deficiência física ou psíquica ou fadiga excessiva; Violando grosseiramente as regras da circulação rodoviária relativas à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direção, à passagem de peões, à inversão do sentido de marcha em autoestradas ou em estradas fora de povoações, à marcha-atrás em autoestradas ou em estradas fora de povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita;
e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.».
Como se infere do teor da norma, o bem jurídico que se visa proteger com este crime é a segurança da circulação e tráfego rodoviários, tutelando reflexamente bens jurídicos individuais, como a vida, a integridade física e o património.
Sendo a condução rodoviária uma atividade que, por si só, envolve um elevado grau de risco para estes bens jurídicos individuais, visou penalizar-se o agravamento desse risco que é desencadeado pela ausência de condições do condutor para o exercício da condução e pelo desrespeito das regras de circulação rodoviária.
Trata-se, pois, de um crime de perigo concreto na medida em que da conduta infratora do agente terá de resultar um perigo real e efetivo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, não sendo necessário que se verifique efetivamente a lesão de tais bens.[12]
Constituem elementos típicos ao nível objetivo:
- A conduta de conduzir um veículo, com ou sem motor, na via pública;
- A ausência de condições do condutor para praticar uma condução em segurança, por influência do álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou outras de efeito análogo, por cansaço extremo, deficiência, física ou psíquica; ou
- Infração grosseira das regras de circulação relativas à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direção, à passagem de peões, à inversão do sentido de marcha (em autoestradas ou em estradas fora de povoações), ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita;
- A ausência de condições ou a conduta infratora do agente, tenham criado, justamente por causa da situação geradora dessa falta de condições ou da violação das regras de circulação, perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado.
No que concerne à previsão da conduta infratora causadora de perigo, a que se reporta a alínea b) do nº 1 do art. 291º do Código Penal, o legislador instituiu um catálogo fechado de infrações consideradas mais gravosas por estarem frequentemente na origem de acidentes e conduzirem a resultados mais danosos; ao fazê-lo criou um tipo legal de crime de execução vinculada, não deixando margem de discricionariedade na definição das regras de circulação violadas suscetíveis de serem consideradas para efeitos de criação do perigo. [13]
Não é, ainda, suficiente que se violem essas regras de condução, exigindo-se um especial grau de violação das mesmas, constituindo uma sua violação grosseira, ou seja, uma «violação de deveres elementares da circulação rodoviária a que corresponde uma particular censura relativamente ao agente (…) importante é que comprometa severamente a segurança do tráfico rodoviário e os bens individuais de outras pessoas, a que esteja associada um elevado grau de culpa do agente)».[14]
Constitui também evento típico o perigo gerado pela conduta infratora, para além da ação perigosa em si própria, postulando-se ao nível da imputação objetiva a demonstração de um vínculo causal entre esta ação e a situação de perigo dela destacável, em que a lesão do bem jurídico se afigure possível ou provável.[15]
Como nos diz o Professor Faria Costa[16], o perigo representa a probabilidade de dano, ocorrendo sempre que, através de um juízo de experiência, se possa afirmar que a situação em causa comportava uma forte probabilidade de o resultado desvalioso se vir a desencadear ou a acontecer.
Ao nível do tipo subjetivo de ilícito, como ensina Germano Marques da Silva[17] o crime de condução perigosa de veículo rodoviário comporta diversas cambiantes:
a) dolo de ação e dolo de perigo quanto ao evento de perigo;
b) dolo de ação e negligência quanto ao evento de perigo;
c) negligência da ação e negligência quanto ao evento de perigo.
No primeiro caso, rege o nº 1; no segundo, o nº 2 do preceito; o nº 3 disciplina a última forma de imputação subjetiva possível.
Assim, para que se verifique o preenchimento típico, haverá que resultar também provado que o agente atuou livre e conscientemente no exercício da condução, sem qualquer circunstância que afastasse a intenção de conduzir daquele modo, e, quanto ao perigo, que o mesmo atuou sabendo que da forma como o fazia colocava em perigo qualquer dos mencionados bens jurídicos.
No caso do nº1 do art. 291º, o que caracteriza a imputação dolosa neste tipo de infração de perigo é o facto de se traduzir na probabilidade do dano; o agente atua com dolo de perigo quando representa a possibilidade de o resultado desvalioso ocorrer como consequência necessária da sua conduta.
Nesse contexto, e uma vez que não emirja qualquer circunstância que exclua a ilicitude dos factos ou afaste o juízo de censura que deve ser dirigido contra a atitude do agente, por ter atuado contra a norma jurídica, deve o mesmo ser punido pelo crime de condução perigosa de veículo rodoviário.
Postas estas premissas, cremos resultar evidente não poder considerar-se preenchido este tipo legal de crime, mais a mais, à luz dos factos tal qual resultam das alterações ora introduzidas.
O Tribunal a quo limita-se neste capítulo à indicação das normas do Código da Estrada que terão sido infringidas, as quais se prendem com o limite de velocidade – arts. 24º/1, 25º/1, h), 27º, 89º, 145º/1, c), do Código da Estrada - a posição de marcha – arts. 13º e 145º/1, f) – e a identificação dos condutores em caso de acidente de viação – arts. 89º e 146º/q), do Código Estrada.
Ora, ao contrário do que, diga-se, de forma superficial, se considera na decisão recorrida, mesmo tendo por base os factos tal qual foram aí considerados, não vemos que deles resultasse ter sido violada pelo arguido alguma das regras estradais indicadas relativas à velocidade e à posição de marcha, conforme supra concluímos em sede da impugnação dos factos.
Assim, a posição de marcha adotada pelo arguido, de passar pela esquerda o veículo do ofendido que se encontrava imobilizado na faixa de rodagem, não configura em si mesma violação do disposto no art. 13º do Código da Estrada, que elege como regra no seu nº 1 a da circulação pelo lado direito da faixa de rodagem; todavia, no nº 2 prevê expressamente que «Quando necessário, pode ser utilizado o lado esquerdo da faixa de rodagem para ultrapassar ou mudar de direção.».
Atenta a posição do veículo do ofendido na via de sentido único onde se deu o acidente, apenas seria possível avançar em frente passando o mesmo pela esquerda, em razão do que, não se vê que possa ter sido violada esta regra estradal.
É certo que, como referimos, ao efetuar essa passagem pela esquerda do veículo imobilizado, o arguido passou com as rodas do lado esquerdo da sua viatura por cima do lancil do ilhéu direcional existente no entroncamento, podendo eventualmente configurar-se aí uma infração do preceituado no art. 16º/1 do Código da Estrada, que não vem mencionado na decisão recorrida.
No entanto, mesmo que pudesse considerar-se esta regra atinente à obrigatoriedade de circulação pela faixa de rodagem da direita, por forma a assumir a tipicidade do crime de condução rodoviária perigosa, não se encontra espelhada nos factos provados a descrição objetiva de qualquer situação que permita estabelecer a relação entre essa passagem sobre o lancil do ilhéu direcional e um perigo criado para a integridade física ou vida do ofendido ou de terceiros.
Por outro lado, como já resultava dos factos provados, não se apurou a velocidade a que seguia o arguido ou sequer ficou provado qualquer facto do qual resultasse a inadequação da mesma às condições da via e de circulação.
Por último, não ficou positivada nos factos provados descrição objetiva de factos dos quais se pudesse extrair a conclusão exarada em 14. de que essa velocidade ou a violação de qualquer regra estradal tenham constituído a fonte do perigo para a integridade física ou vida dos condutores que se cruzassem com o arguido, ou para o ofendido.
E se é assim quanto às regras relativas a limites de velocidade e de posição de marcha, a questão que se põe quanto às regras relativas à conduta dos condutores em caso de acidentes de viação, é outra e mais simples ainda: a sua violação não integra o tipo legal de crime de condução perigosa de veículo rodoviário.
Com efeito, a regra citada na decisão recorrida prevista sob o art. 89º/1 do Código da Estrada, acerca do fornecimento pelo condutor da sua identificação, não se integra em qualquer das tipologias indicadas taxativamente no tipo legal de crime como aquelas cuja infração é suscetível de criar o perigo típico, sendo nessa medida a sua violação atípica do ponto de vista do crime de condução perigosa.
De resto, em momento algum dos factos provados se afirma haver o arguido negado a sua identificação aos demais intervenientes, nem se vê em que tal conduta pudesse contribuir para o perigo típico da condução rodoviária perigosa.
Assim, ao considerar para efeito da integração jurídico-penal no crime de condução rodoviária perigosa a infração desta concreta regra, o Tribunal a quo fê-lo sem sustentação na mole factual dada como provada, e em violação do princípio da legalidade em direito penal, posto que é típica de tal crime tão somente a violação das regras estradais atinentes à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direção, à passagem de peões, à inversão do sentido de marcha em autoestradas ou em estradas fora de povoações, à marcha atrás em autoestradas ou em estradas fora de povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita.
Só a violação destas regras estradais poderia fazer o arguido incorrer neste crime, como referido supra, sem qualquer margem de discricionariedade para o julgador.
Em suma:
Não pode, pois, concluir-se que tenha o arguido com a sua conduta violado grosseiramente as regras de circulação rodoviária, nomeadamente as indicadas na decisão recorrida como fundamento para a integração do tipo legal de crime de condução rodoviária perigosa; não é, além disso, possível estabelecer um nexo de vinculação causal entre a única infração estradal que pode divisar-se – subir e passar sobre o lancil do ilhéu direcional à esquerda da sua posição de marcha – e o perigo criado para a integridade física do ofendido.
E assim sendo, não se encontrando preenchidos estes elementos objetivos típicos do crime de condução perigosa de veículo rodoviário previsto e punido pelo art. 291º/1, b) do Código Penal pelo qual o arguido vinha condenado em primeira instância, não pode deixar de revogar-se nesta parte a decisão recorrida, absolvendo-se o arguido desse crime.
2.5.1.3 Do crime de Omissão de Auxílio
Entende ainda o arguido não estar preenchido o tipo legal de crime de omissão de auxílio pelo qual foi igualmente condenado, discordando da desvalorização que é feita do facto de existirem outras pessoas no local, incluindo pessoas habilitadas para socorrer prontamente o ofendido, ao arrepio da jurisprudência dominante.
O Tribunal recorrido expendeu a este propósito o seguinte, excluídas as considerações de Direito:
«(…)
Ora, atenta a factualidade dada como provada, temos que resultou provado que o arguido após embater/abalroar o ofendido e de o ter levado arrastado em cima do capot e de este ter sido projectado para o solo, seguiu viagem sem lhe prestar qualquer auxílio tendo-se apercebido de que o mesmo havia sofrido o sobredito acidente.
Ou seja, o arguido optou por não imobilizar a viatura que conduzia abandonando o local e não cuidando de se certificar se aquele necessitava de socorro, nem sequer cuidando de chamar a assistência médica.
Nestes termos, verifica-se que a matéria de facto apurada reflecte, pois, a existência de um perigo concreto para a saúde e integridade física do ofendido DD até porque o mesmo sofreu lesões que lhe determinaram um período de três dias de doença.
Tal como se deixou já explanado supra de nada releva que o mesmo tenha sido prontamente socorrido por Bombeiros.
Destarte, e em face dos factos provados, temos que a conduta do arguido preenche inequivocamente o tipo criminal em análise e, precisamente porque foi aquele quem deu azo ao acidente, preenche o tipo legal na sua modalidade agravada, prevista no n.º 2 do artigo 200.º do C. Penal.
(…)».
Contesta o arguido esta decisão essencialmente com dois fundamentos:
1. A circunstância de haver sido o mesmo prontamente socorrido pelos bombeiros cujo quartel se situava defronte para o local do acidente, sendo que se encontravam ainda no local outras pessoas;
2. O facto de ter sido o arguido a colocar-se na situação de perigo.
Vejamos.
Comete o crime de omissão de auxílio nos termos do disposto no art. 200º/1 e 2, do Código Penal.
«1 - Quem, em caso de grave necessidade, nomeadamente provocada por desastre, acidente, calamidade pública ou situação de perigo comum, que ponha em perigo a vida, a integridade física ou a liberdade de outra pessoa, deixar de lhe prestar o auxílio necessário ao afastamento do perigo, seja por ação pessoal, seja promovendo o socorro, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
2 - Se a situação referida no número anterior tiver sido criada por aquele que omite o auxílio devido, o omitente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
(…)».
Os bens jurídicos protegidos pela incriminação são a vida, a integridade física e a liberdade de outra pessoa. [18]
É, pois, a solidariedade humana que justifica a imposição de um dever geral de auxílio a todos aqueles que não estejam já vinculados por um particular dever de garante, nos termos do art. 10º/2 do Código Penal.
Trata-se de crime de perigo concreto, pressupondo como seu elemento constitutivo a existência efetiva de perigo, a que reporta o uso da expressão «grave necessidade (…) que ponha em perigo», devendo tratar-se de um risco iminente de lesão substancial (grave) dos bens jurídicos protegidos, da vida, integridade física ou liberdade.
Recuperando aqui a definição de perigo de Faria Costa[19], temos que o perigo representa a probabilidade de dano, ocorrendo sempre que, através de um juízo de experiência, se possa afirmar que a situação em causa comportava uma forte probabilidade de o resultado desvalioso se vir a desencadear ou a acontecer.
Ao nível do tipo objetivo da previsão do nº1 do art. 200º do Código Penal, postula-se que se omita auxílio a uma pessoa cuja vida, integridade física ou liberdade se encontra em perigo em virtude de grave necessidade decorrente de uma situação de desastre natural ou humano, tratando-se, por isso, de um crime de omissão pura.
A expressão grave necessidade deverá ser interpretada tendo presentes as circunstâncias concretas em que se encontrava a vítima, relevando-se para tanto, entre o mais, a capacidade e condições individuais de cada um. [20]
Como escreve Maria Leonor Assunção [21], «Por necessidade entende-se, normalmente, carência de alguma coisa que é imprescindível (...). A ideia de necessidade, fundamentando-se numa indispensabilidade, contém em si uma exigência que normalmente actua como princípio energético orgânico que impele a procurar o bem de que se carece, uma vez que a sua não obtenção conduz a consequências prejudiciais. Esse impulso orgânico energético é, consequentemente, pré-determinado pela situação de constrangimento e fatalidade em que o necessitado se encontra.
No caso do art. 219.º, a situação de necessidade decorre de um processo fáctico que, pelo menos a partir de determinado momento, não pode ser controlado pela vítima. Necessidade no sentido do preceito pressupõe, assim, a impossibilidade de por si só afastar o perigo que ameaça bens jurídicos pessoais, isto é, a incapacidade de desenvolver a actividade de defesa adequada às circunstâncias.» (negrito nosso).
Deve, assim, entender-se por necessidade a carência, precisão, urgência no auxílio, manifestada na incapacidade de prestar assistência a si próprio, decorrente de desastre, acidente ou calamidade pública.
Esta necessidade deve ainda ser grave.
Segundo Maria Leonor Assunção, a gravidade requerida pelo tipo «(…) subentende um elemento quantitativo, podendo traduzir-se pela existência de consideráveis sinais exteriores facilmente percepcionados por qualquer pessoa, e um elemento qualitativo, que se manifesta na seriedade e premência do estado de necessidade. O que implica, portanto, a urgência da actuação, atentas as graves consequências que desse estado poderão advir para o necessitado.
Caso de grave necessidade, para efeitos do art. 219.º, é a situação de emergência em que se encontra um ser humano, carecendo em absoluto de uma intervenção alheia, adequada a afastar o perigo que ameaça bens jurídicos pessoais, que por si só é incapaz de superar (x)
Em suma:
A gravidade requerida pelo tipo intensifica o grau de necessidade, conduzindo a uma ideia de possibilidade acentuada da superveniência de um dano, por um lado, e por outro, de um perigo iminente de lesão substancial dos bens jurídicos protegidos, a requerer interferência de forma a afastar tal perigo. [22]
A ilicitude da conduta reside, assim, na não prestação do auxílio necessário, sendo este o que, na situação concreta, for, simultaneamente, considerado indispensável e adequado ao afastamento do perigo segundo o critério do homem comum, num juízo objetivo a formular ex ante, ou seja, colocando-nos na situação concreta em que se encontrava o omitente.
Pressuposto da tipicidade da conduta omitente de auxílio é ainda a capacidade fáctica do agente para o prestar e que para prestar esse auxílio esse agente não incorra em grave risco para a sua vida ou integridade física, nos termos do nº 3 do art. 200º do Código Penal.
Para preenchimento do nº 2 do art. 200º do Código Penal, que qualifica a omissão de auxílio, requer-se já uma prévia ingerência do omitente, tendo sido ele a criar – exclusivamente ou com o contributo da pessoa carente de auxílio - a situação de perigo que fundamenta um dever especial (potenciado) de auxílio, e consequentemente a cominação de uma pena mais grave para a sua violação.
Ao nível do tipo subjetivo, trata-se de crime doloso, em qualquer das formas de dolo previstas no art. 14º do Código Penal, em que a afirmação do dolo se basta com a representação de que o necessitado de auxílio corre riscos de vida ou de lesão grave da sua saúde ou liberdade e com a conformação ou indiferença perante essa situação de perigo.
*
Com relevo para a decisão quanto a este crime, além dos factos já acima elencados a propósito do crime de ofensa à integridade física, resulta provado que:
«(…)
9. O arguido AA continuou a sua marcha, abandonou o local, e não prestou qualquer ajuda ao ofendido DD, nomeadamente para verificar se o mesmo se encontrava consciente ou ferido, como também não chamou os bombeiros, nem ligou para o 112; porém, o quartel dos ... situa-se defronte do local da ocorrência, tendo pelos mesmos sido prestado imediato socorro ao ofendido.
(…)
13. sabia o arguido que após a queda do ofendido ao chão, sobre si, causador de tal acidente, impendia o dever de prestar toda a ajuda que fosse necessária, nomeadamente chamar o 112, verificar se aquele se encontrava consciente, qual a extensão dos seus ferimentos e ficar junto do mesmo até à chegada dos meios de emergência, o que não fez, sempre com o propósito concretizado de deixar DD entregue à sua sorte.
(…)».
*
Entende o recorrente que o tribunal não podia desvalorizar, como desvalorizou, o facto de se encontrarem outras pessoas junto do ofendido e outras pessoas habilitadas a socorrê-lo prontamente, já que tudo se passou defronte do quartel dos bombeiros.
Pois bem.
Como resulta dos factos provados com as alterações ora introduzidas, não só o arguido não foi deixado sozinho, como foi prontamente socorrido pelos bombeiros cujo quartel se situava defronte para o local do acidente; de resto, como decorre do depoimento do ofendido DD e do seu acompanhante, EE, após prestação dos primeiros socorros, aquele rejeitaria ser transportado de ambulância para o Hospital, aguardando a chegada da Polícia no local e seguindo depois a conduzir a sua viatura para o Hospital da sua área de residência.
Tem vindo a entender-se na jurisprudência e na doutrina[23], que comete o crime de omissão de auxílio aquele que, tendo criado a situação de grave necessidade, se desinteressa pela sorte do titular dos bens jurídicos em perigo, omitindo a atuação no sentido ordenado pela norma, independentemente de terceiros virem a desenvolver as diligências necessárias ao afastamento do perigo.
Todavia, isso não significa que deva considerar-se irrelevante o facto de, quando dos acontecimentos aqui em causa, se encontrarem no local outras pessoas, por um lado, e por outro, tudo se ter passado defronte de um quartel de bombeiros, tendo estes prestado prontamente socorro ao ofendido, sobretudo se associados a estes factos estiverem circunstâncias concretas relacionadas com o perigo para o ofendido que era em concreto previsível e o estado em que o mesmo ficou efetivamente após a queda.
Isto porque, nas palavras da acima citada autora, Maria Leonor Assunção, «a situação de necessidade, tal como a sua gravidade, deverá (…) ser averiguada através de uma análise cuidada das circunstâncias fácticas que lhe deram causa, com referência à vítima considerada individualmente, isto é, fazendo apelo à capacidade física e psíquica que revela no momento da ocorrência (...)».
Ora, como resulta dos factos provados, o acidente que vitimou o ofendido, consistiu na sua queda para o solo, na berma do lado direito, desprendendo-se e caindo do capô do veículo do arguido onde voluntariamente se havia colocado; desconhece-se a velocidade a que seguia esse veículo, sendo certo que a queda ocorreu 30 m após o início da marcha, tendo nesse percurso o arguido que desviar-se do veículo do ofendido imobilizado na via, passando com as rodas do lado esquerdo sobre o lancil do ilhéu direcional ali colocado.
Das lesões verificadas na pessoa do ofendido, verifica-se que se reconduzem a uma ferida contusa com 2cm por 1cm, na zona do cotovelo direito, e uma incrustação de alcatrão numa área de 1x1cm na crista ilíaca correspondente ao membro inferior direito; 12 dias de doença, «com afectação da capacidade de trabalho geral (3 dias)».
Da conjugação das aludidas condições de circulação da viatura que “transportava” o ofendido no capô, com as lesões que lhe foram ocasionadas pela queda, resulta que pese embora o caricato e aparato da situação, não se terá a mesma revestido de um grande potencial de dano.
O ofendido foi prontamente assistido pelos Bombeiros locais cujo quartel fica defronte do local do acidente (tendo si testemunhado pelo seu Comandante), sendo este facto – localização do quartel dos bombeiros e visibilidade para o acidente - notório e conhecido de todos os envolvidos, tanto mais que as viaturas de arguido e ofendido encontravam-se precisamente no entroncamento com a ..., encontrando-se o quartel dos bombeiros defronte para o local do acidente, como viria a dar-se como provado – 1. e 14., dos factos provados -, tendo inclusivamente o seu comandante testemunhado os factos, enviando de imediato ambulância de socorro.
Mais: muito embora não tenha ficado provado que o ofendido DD se levantou logo em seguida à queda no solo, como alegava o arguido, o próprio assumiu que, tendo sido socorrido pelos bombeiros que acionaram logo uma ambulância – 4/5 minutos -, permaneceu já depois disso no local a aguardar a chegada do seu pai e da Polícia, seguindo depois ao volante da sua viatura para o ..., rejeitando o transporte de ambulância.
Neste quadro, efetuando um juízo de prognose e de acordo com o critério do homem comum, não vemos como pudesse prefigurar-se para o arguido, omitente, uma situação de absoluta e grave carência de assistência por parte do ofendido, a reclamar o seu auxílio como indispensável a salvaguardar a integridade física do ofendido, atingida pela sua queda no solo. [24]
Na realidade, naquelas circunstâncias não seria de esperar que o ofendido ficasse incapacitado para prover ao seu próprio socorro ou pedir ajuda, como não ficou, sendo que, além disso, a presença de outras pessoas no local e a proximidade dos bombeiros, tornavam esse socorro praticamente certo e imediato, como viria na realidade a suceder.
Não se divisava, em suma, nestas concretas circunstâncias um perigo iminente de lesão substancial (grave) dos bens jurídicos protegidos, a requerer a intervenção urgente e indispensável do arguido de forma a afastar tal perigo.
Ademais, como é propugnado por Paulo Pinto de Albuquerque [25], citando o acórdão do STJ de 06/06/2002 [26], a assistência prestada à pessoa necessitada de auxílio de imediato e de forma adequada por um terceiro faz cessar o dever de auxílio.
E assim sendo, não deixando de ser moralmente criticável a atitude do arguido de seguir caminho, alheando-se da situação em que ficara o ofendido, falece a verificação do elemento objetivo típico do crime de omissão de auxílio, por não se considerar verificada uma situação de grave necessidade, devendo nessa medida o arguido dele ser absolvido.
Resulta prejudicada a apreciação da segunda questão colocada pelo recorrente quanto a este crime.
2.5.2 Da Pena
Atenta a condenação do recorrente nesta sede recursiva na prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo art. 143º/1 do Código Penal, a que corresponde uma pena de multa ou de prisão até 3 anos, quando vinha condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto pelo mesmo preceito e ainda pelo art. 145º/1,a) e 2, do Código Penal, com uma moldura penal de prisão até 4 anos, importa proceder a escolha e determinação da pena respetiva.
1. Critérios legais da escolha e determinação da Pena
Como decorre do disposto no art. 40º/1 e 2, do Código Penal, «A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade», sendo que, «Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.».
A culpa, enquanto contrariedade ao direito e ao dever-ser ético jurídico, não é, pois, o fundamento da pena, antes constituindo, a um tempo, o seu suporte axiológico-normativo, não havendo pena sem culpa – nulla poena sine culpa – e também o limite que a pena nunca poderá exceder.
Em sintonia com o citado preceito, dispõe o art. 71º/1 do mesmo código que «A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.».
A medida concreta da pena será então obtida tendo como limite mínimo da moldura a medida da necessidade de tutela de bens jurídicos (exigências de prevenção geral positiva), sendo em seguida doseada por referência às exigências de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais; por fim, a culpa fornece o limite máximo e inultrapassável da pena.
Culpa e prevenção (geral e especial) são, por conseguinte, os dois limites a observar no processo de escolha e determinação concreta da medida da pena, assegurando o equilíbrio entre a medida ótima da tutela dos bens jurídicos e das expectativas da comunidade e a medida concreta da pena abaixo da qual «já não é comunitariamente suportável a fixação das penas sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar».[27]
Daí que, será justa toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa.[28]
O nº 2 do citado art. 71º dispõe que «Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depuserem a favor ou contra ele», nomeadamente as enunciadas nas suas várias alíneas, ou seja:
- o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente [al. a)]:
- a intensidade do dolo ou da negligência [al. b)];
- os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram [al. c)];
- as condições pessoais do agente e a sua situação económica [al. d)];
- a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime [al. e)]; e
- a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena [al. f)].
As circunstâncias e os critérios do art. 71º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para codeterminar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõem maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afetação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.[29]
Estatui ainda o art. 70º do Código Penal que, se ao crime forem alternativamente aplicáveis uma pena privativa e uma pena não privativa da liberdade, o tribunal deverá dar preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, previstas no art. 40º do mesmo diploma.
Assim, o critério de determinação da pena concreta aplicável encontra-se condicionado pelo momento prévio de necessária escolha da pena, atendendo aos requisitos impostos pelo art. 70º do Código Penal, segundo os quais, prevendo os preceitos incriminadores da conduta do agente a possibilidade de aplicação de uma pena alternativa de multa, será esta aplicável se com tal se compatibilizarem as exigências de prevenção.
2.5.2.2 A escolha da pena e determinação da sua medida
Na situação sob apreciação, atendendo à conduta do ofendido - que se agarrou ao capô do carro do arguido quando este arrancava com o mesmo depois de ter anunciado que se iria embora dali -, considerando que este terá sido um episódio isolado na vida do arguido, na ocasião com 67 anos e sem antecedentes criminais registados, mostra-se suficiente a aplicação de uma pena pecuniária para que fiquem convenientemente salvaguardadas as exigências de prevenção, geral e especial, que no caso assomam medianas e um pouco acima da média, respetivamente.
Com efeito, atenta a integração social e familiar do arguido e o caráter isolado da conduta, é expectável que a condenação em sanção pecuniária se mostre bastante para o afastar da prática deste tipo de ilícito, não deixando de dar à comunidade o sinal de que este tipo de conduta, adotada numa situação de trânsito que poderia e deveria ter sido resolvida de forma amigável, é muito censurável pelo perigo que representa para a integridade física alheia.
Sendo em atenção à prevenção especial e ao intuito ressocializador, no sentido de eficácia da pena como dissuasora da prática de novos crimes, que a escolha da pena deve operar, opta-se pela pena de multa como sanção capaz de satisfazer tais exigências preventivas.
*
Escolhida a pena a aplicar, caberá desta feita, e dentro da respetiva moldura abstrata de 10 a 360 dias – como decorre do disposto no art. 47º/1 em conjugação co o art. 143º/1, ambos do Código Penal -, encontrar a medida concreta dessa pena considerando as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham contra ou favor do arguido.
Assim, como circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, se associam diretamente à sua prática ou à motivação que lhe deu origem, haverá a considerar que:
- o arguido agiu com dolo na sua modalidade menos intensa, de dolo eventual;
- não tem antecedentes criminais registados;
- encontra-se familiar e profissionalmente inserido, residindo com o seu cônjuge, que é reformada;
- a situação na origem do evento típico prendeu-se com a não assunção pelo arguido das suas obrigações enquanto interveniente em acidente de viação, nomeadamente de preenchimento de declaração amigável com o outro interveniente ou pelo menos fornecimento dos seus elementos de identificação, abandonando o local sem justificação plausível para tanto;
- após a queda do ofendido no solo, prosseguiu a sua marcha indiferente às consequências que da mesma pudessem advir para aquele;
- o arguido não deu qualquer sinal de ter interiorizado o desvalor da sua conduta (disse de facto em juízo que voltaria a repeti-la).
Face às circunstâncias descritas, uma vez que se revela pouco intenso o grau de culpa, constituindo esta um limite inultrapassável, elevada a ilicitude, sendo medianas as exigências de prevenção geral, e um pouco mais relevantes as de prevenção especial, dado que o limite inferior da pena se situa em 10 dias e o superior em 360 dias, julga-se justa a aplicação de uma pena de 100 (cem) dias de multa.
*
No que concerne à taxa diária, visando-se dar realização ao princípio da igualdade de ónus e sacrifícios, estabeleceu-se sob o art. 47º/2 do Código Penal que cada dia de multa corresponde a uma quantia entre 5€ e 500€, a fixar em concreto em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.
Na ausência da definição na lei de critérios a tomar em conta para determinar a condição económica e financeira do condenado, Figueiredo Dias[30] conclui que o silêncio do nosso Código Penal «só pode significar (…) o desejo do legislador de oferecer ao juiz o maior campo possível de eleição de factores relevantes. É seguro que deverá atender-se (…) à totalidade dos rendimentos próprios do condenado, qualquer que seja a sua fonte (…). Como é seguro, por outro lado, que àqueles rendimentos hão-de ser deduzidos os gastos com impostos, prémios de seguro (…) e encargos análogos. Como igualmente parece legítimo tomar em conta (…) rendimentos e encargos futuros, mas já previsíveis no momento da condenação (…)».
Como se escreve no sumário do acórdão da Relação de Coimbra de 05/11/2008 relatado por Fernando Ventura no processo 329/06.4TAMLD.C1[31]:
«I.- O sistema de sanção pecuniária diária em montante variável, acolhido no nosso ordenamento penal, procura obviar aos inconvenientes assacados à pena de multa, a saber, o peso desigual para pobres e ricos, e constitui corolário evidente do princípio da igualdade, impondo o mesmo sacrifício qualquer que sejam os meios de fortuna.
II.- Através da autonomização da operação de determinação da pena consubstanciada na definição do quantitativo diário da pena, procura conferir-se ao sistema elasticidade na adequação à situação económico-financeira do condenado, preservando eficácia preventiva, tanto no plano da prevenção geral positiva – contrariando a percepção comunitária de que a sanção pecuniária não é dissuasora – como da prevenção especial de integração – obrigando o condenado a genuína reflexão, através de real sacrifício, sem colocar em causa mínimos de subsistência.».
Ainda segundo o acórdão da mesma Relação de Coimbra de 08/03/2017 relatado por Olga Maurício no processo 415/09.9GASPS.C1[32], «Na fixação da taxa diária da pena de multa o tribunal tem que atender à situação presente para adequar a pena de multa de modo a não fixar uma pena nem que seja de cumprimento impossível, nem que se traduza numa quase absolvição.».
O Tribunal a quo proferiu a seguinte decisão nesta matéria:
«Atendendo à situação sócio-económica do arguido e à necessidade de manter o carácter sancionatório das penas aplicadas, fixa-se o quantitativo diário da multa em 6,50€ (seis euros e cinquenta cêntimos).».
O recorrente não põe em causa o montante de taxa diária da multa assim fixado, o qual nos parece igualmente adequado à situação financeira do arguido, espelhada nos factos provados de 18. a 20..
Nestes termos, fixa-se a pena a aplicar ao arguido pela prática de um um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo disposto no at. 143º/1 do Código Penal, em 100 dias de multa à taxa diária de 6,50€, num total de 650€ (seiscentos e cinquenta euros).
*
2.5.3 Do Pedido de Indemnização Civil
Importa, por fim, aferir da necessidade de extrair consequências das alterações introduzidas na matéria de facto provada e seu enquadramento jurídico-penal para efeitos da apreciação do pedido de indemnização civil formulado pelo ofendido.
Consta o seguinte da decisão recorrida a este propósito:
«Por requerimento de fls. 136/137 foi deduzido pedido de indemnização civil por DD peticionando a condenação do arguido no pagamento da quantia total de € 1.947,50 (mil novecentos e quarenta e sete euros e cinquenta cêntimos), a titulo de danos patrimoniais e não patrimoniais, quantia esta acrescida de juros legais desde a sentença até efectivo pagamento.
Face ao disposto no artigo 129.º do Código Penal, «a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil», tanto no que se refere ao respectivo quantitativo como aos seus pressupostos, uma vez que processualmente vigoram os princípios da investigação e da livre apreciação da prova.
A prática de uma de uma infracção penal implica, com frequência, a lesão de direitos patrimoniais ou não patrimoniais de terceiros. O ressarcimento de tais lesões deve, em consequência do princípio da adesão consagrado no artigo 71.º, do Código de Processo Penal, ser deduzido no processo penal.
Estabelece o artigo 483.º, n.º 1 do Código Civil: «Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem, ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».
Tais danos são tanto os não patrimoniais como os patrimoniais, aqueles valorados equitativamente, conforme decorre do artigo 496.º, n.º 3 do Código Civil, estes levando em conta a possível reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado o evento danoso («Princípio da Reposição Natural»), ponderados os critérios resultantes dos artigos 562.º, 564.º e 566.º do citado diploma, sendo que, face ao artigo 563.º, em relação a ambos os tipos de danos terá que verificar-se o respectivo nexo causal.
Quanto aos danos de natureza não patrimonial à que chamar ainda à colação o disposto no art.º 496.º, n.º 1, do Cód. Civil, onde se prescreve que: “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”.
Conforme, a propósito, referem LL e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª ed., p. 499), «a gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso), e não à luz de factores subjectivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada)(...). Não se enumeram os casos de danos não patrimoniais que justificam uma indemnização. Diz-se apenas que devem merecer, pela sua gravidade, a tutela do direito. Cabe, portanto, ao tribunal, em cada caso, dizer se o dano é ou não merecedor de tutela jurídica».
Pelo que respeita à fixação do montante da indemnização, a lei socorre-se aqui, como em outros casos em que há manifesta dificuldade de quantificação abstracta das obrigações, da equidade, entregando aos tribunais a solução do caso concreto, mas balizando o caminho a seguir para determinação do montante da indemnização ou, o que vai dar no mesmo, fixando os critérios dentro dos quais a equidade vai operar.
Tais critérios são, em primeiro lugar, a gravidade dos danos, não podendo a decisão desconsiderar essa gravidade, proporcionando a indemnização a essa extensão, mas também o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e demais circunstâncias do caso concreto – artigo 494.º, aplicável ex vi do artigo 496.º, n.º 3, 1.ª parte, ambos do Código Civil.
(…)
Na perspectiva da indemnização nos termos da responsabilidade civil pode afirmar-se que dano ou prejuízo é toda a ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica.
Os danos não patrimoniais como as dores físicas, os desgostos morais, os vexames, a perda de prestígio ou de reputação, os complexos de ordem estética, são prejuízos, que, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens como a saúde, o bem estar, a liberdade, a beleza, a perfeição física, a honra ou o bom nome, que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo mais uma satisfação do que uma indemnização.
No caso em apreço, foi deduzido pedido de indemnização civil pelo ofendido por danos não patrimoniais e patrimoniais.
Atenta a factualidade dada como provada, verificamos que os factos perpetrados pelo arguido e que integram a prática por este de um crime de ofensa à integridade física qualificada na pessoa de DD pela sua gravidade, merecem indiscutivelmente a tutela do direito.
Pois que a conduta do arguido foi adequada a causar, como causou, os danos verificados.
Nestes termos e, perante o exposto, estão reunidos os pressupostos de que depende a efectivação da responsabilidade civil do arguido para com o ofendido e, consequente obrigação de indemnização, no que concerne aos danos não patrimoniais e patrimoniais peticionados.
Assim, na fixação dos montantes indemnizatórios, no que se reporta aos danos não patrimoniais, rege o disposto no art.º 494.º do Cód. Civil, ali se referindo que o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica do agente e as demais circunstâncias do caso o justifiquem. A que acresce o disposto no artigo 566.º, n.º 2 do Código Civil que manda atender à situação patrimonial na data mais recente que puder ser atendida pelo Tribunal, devendo por isso ser aplicada por cálculo actualizado.
O critério para fixação do montante que compense danos dessa natureza encontra-se previsto no n.º 4 do artº 496.º do Cód. Civil, na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 23/2010, de 30/08, de acordo com o qual "o montante da indemnização é fixado equitativamente pelo Tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art. 494º.
Assim, o montante compensatório deve ser fixado equitativamente pelo Tribunal, tendo em conta a extensão e gravidade dos prejuízos, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso, ou, nas palavras de Antunes Varela, "todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida" - Das Obrigações em Geral, 1.º vol., Almedina, 9.ª ed.ª, pp. 627 e 628.
O ressarcimento destes danos baseia-se "(... ) na generosa formulação do art. 496.º do Cód. Civil, que confia ao julgador a tarefa de determinar o que é equitativo e justo em cada caso, no que fundamenta/mente releva, não o rigor algébrico de quem faz a adição de custos, despesas, ou de ganhos (como acontece no cálculo da maior parte dos danos de natureza patrimonial), mas, antes, o desiderato de, prudentemente, dar alguma correspondência compensatória ou satisfatória entre uma maior ou menor quantia de dinheiro a arbitrar à vítima e a importância dos valores de natureza não patrimonial em que ela se viu afectada" - neste sentido, cfr. Ac. RP, de 09/07/1998, relatado por Teixeira Ribeiro, in C.J., ano XXIII, t. IV, pp. 185 a 187, citando Pessoa Jorge, in Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, pp. 376.
Não sendo os danos não patrimoniais materialmente mensuráveis e visando a quantia a atribuir a esse título ao lesado, não propriamente indemnizá-lo mas, antes, compensá-lo com uma quantia em dinheiro, cuja aplicação em bens materiais ou morais possa de algum modo contribuir para minorar o seu sofrimento, a quantificação de dano dessa natureza tem de ser feita pelo recurso aos critérios de equidade, em que se terão em devida conta o grau de culpa do lesante, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias atendíveis como, por exemplo, a gravidade da lesão, a desvalorização da moeda e os padrões normalmente utilizados nos casos análogos.
Esta indemnização destina-se, portanto, a minorar o mal consumado e não a restituir o lesado à situação em que se encontraria se não se tivesse verificado a lesão. O que se pretende é encontrar um expediente compensatório pela lesão do direito, de molde a proporcionar ao ofendido alegrias que compensem a dor, tristeza ou sofrimento ocasionado pelo facto danoso; o que se pretende á a atribuição ao lesado de uma soma em dinheiro que lhe permita um acréscimo de bem-estar que sirva de contraponto ao sofrimento moral provocado pela lesão.
Analisados os danos, conclui-se que os mesmos são consideráveis, e, como tal, merecedores de tutela jurídico-indemnizatória.
Posto isto, e não esquecendo que a indemnização por danos não patrimoniais não visa, propriamente, o ressarcimento do lesado, mas antes oferecer-lhe uma compensação que seja justo contrabalanço para o mal sofrido (neste sentido, Rui Alarcão, Direito das Obrigações, Livraria Almedina, 1983, pp. 270), devendo, para cobrar efeito dignificante, ser significativa e não meramente simbólica, tendo em consideração a globalidade do quadro que se nos apresenta, designadamente a extensão e natureza dos danos, julgamos adequada, num juízo de equidade, à luz do critério da ponderação das realidades da vida e com o melindre que sempre acarreta a quantificação de tais danos, uma indemnização no montante de € 1.000,00 (mil euros), por tal montante se nos afigurar perfeitamente equilibrado e ajustado às particularidades da situação em análise.
Sobre tal quantia são devidos juros desde da data da presente decisão, contados à taxa legal, nos termos do artigo 566.º, n.º 2 do Código Civil e da jurisprudência que resultou expressa no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ n.º 4/2002 de 27 de Junho.
A tal quantia acresce a indemnização devida pelo arguido a título de danos patrimoniais no valor total de € 723,08 (setecentos e vinte e três euros e oito cêntimos), a título de danos patrimoniais pelo ofendido.
Encontra-se igualmente o arguido obrigado nesta parte ao pagamento dos juros vencidos e vincendos sobre esta quantia, a contar da data da notificação do pedido e até efectivo e integral pagamento, nos termos dos artigos 562.º e 566.º, ambos do Cód. Civil.
(…)».
O recorrente aduziu no recurso quanto ao pedido de indemnização civil que, «em face da necessária absolvição do arguido da prática de qualquer infracção penal, designadamente nas que vinha acusado tendo como lesado o ofendido e demandante civil, deve o mesmo improceder na sua totalidade e o arguido ser absolvido do mesmo.»
Como decorre do que vimos de decidir, o arguido não vai absolvido de todas as infrações penais por que vinha condenado, mantendo-se, pois, a condenação pelo crime de ofensa à integridade física, muito embora na sua forma simples, e com dolo eventual.
Assim sendo, e porque se mantém o nexo causal entre a sua conduta e os danos verificados, descritos em 10., 16. e 17., será de manter a indemnização fixada.
Todavia, da reconfiguração dos factos saída do presente recurso resulta que o ofendido deu um contributo essencial na verificação da situação danosa ao colocar-se voluntariamente em cima do capô da viatura tripulada pelo arguido.
Estatui o art. 570º/1 do Código Civil que «[q]uando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.».
Ponderando as circunstâncias do caso concreto, comprovadas nos autos, relativas à dinâmica do evento danoso, ocorre manifestamente um maior grau de culpa do arguido condutor do veículo automóvel na sua produção, porquanto, conforme já referido, tinha o pleno domínio da fonte do perigo, podendo parar a sua viatura e evitar o resultado típico que previu como possível, com ele se conformando; também as consequências resultantes do evento para o lesado poderiam ter sido evitadas pelo arguido demandado se não tivesse adotado a conduta de prosseguir a sua marcha levando no capô o lesado.
Todavia, não pode desconsiderar-se por completo o contributo do lesado que inadvertida e temerariamente se agarra ao capô do veículo do arguido, já depois de este anunciar ir-se embora dali e de ter colocado para tanto em marcha esse mesmo veículo, desse modo, assumindo o risco que comportava um tal ato.
Neste quadro, atendendo à gravidade da contribuição de cada uma das partes para a produção do facto danoso e nas consequências que delas resultaram, sendo que as que resultaram para o lesado poderiam ser evitadas pelo arguido demandado, mostra-se adequado fixar essa contribuição em 20% para o lesado e em 80% para o arguido demandado.
Em face do exposto, haverá que recompor as indemnizações fixadas em conformidade com esta repartição de culpas, considerando que os valores fixados em primeira instância – 1.000€ a título de danos não patrimoniais e € 723,08, a título de danos patrimoniais - não sofreram contestação.
Assim, a indemnização a título de danos não patrimoniais será fixada na proporção da culpa atribuída ao arguido/demandado, ou seja, em 800€ [1.000€ X 0,8], o mesmo se passando em relação à indemnização por danos patrimoniais, que se fixa em €578,47 [723,08€ X 0,8], num total de 1.378,47€ (mil trezentos e setenta e oito euros e quarenta e sete cêntimos), a que acrescem os juros de mora legais, vencidos e vincendos, calculados sobre esta quantia a contar da data da notificação do pedido de indemnização e até efetivo e integral pagamento, nos termos dos arts. 562º e 566º, ambos do Código Civil, conforme decidido na decisão recorrida.
*
III- DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder parcial provimento ao recurso e consequentemente:
- Alteram a matéria de facto provada passando os factos provados sob os pontos 4., 5., 6., 8., 9., 11. e 14., a ser os seguintes:
«(…)
4. De seguida, DD, juntamente com EE que o acompanhava, dirigiram-se ao arguido AA que logo ali disse que não se dava como culpado de tal colisão, mais sugerindo a DD que pagasse ele próprio os estragos provocados pela mesma; nessa sequência, DD disse que ia chamar a Polícia; decorridos cerca de 10 minutos desde o início da conversa, o arguido anunciou que se ia embora.
5. Nessa sequência, quando DD se encontrava na traseira da sua viatura, o arguido AA voltou a entrar no seu automóvel, tendo feito marcha atrás e arrancado logo de seguida em frente.
6. Quando o arguido arrancava com a sua viatura para ultrapassar o veículo ..-..-VA, DD, percebendo que aquele se iria ausentar do local, lançou-se para cima do capô daquela viatura, lado direito, agarrando-se na zona das escovas do limpa para brisas; aí se manteve enquanto o arguido seguia em frente, ultrapassando pela esquerda, no seu sentido de trânsito, o veículo com a matrícula ..-..-VA, que se encontrava imobilizado, e passando com as rodas dianteira e traseira desse lado sobre a guia do ilhéu direcional existente no local.
(…)
8. Percorridos os referidos 30 m a velocidade que não foi possível quantificar, o ofendido acabou por cair para a direita atento o sentido de marcha do arguido, parando junto do lancil do passeio ali existente, próximo da loja chinesa ....
9. O arguido AA continuou a sua marcha, abandonou o local, e não prestou qualquer ajuda ao ofendido DD, nomeadamente para verificar se o mesmo se encontrava consciente ou ferido, como também não chamou os bombeiros, nem ligou para o 112; porém, o quartel dos ... situa-se defronte do local da ocorrência, tendo pelos mesmos sido prestado imediato socorro ao ofendido.
(…)
11. O arguido sabia que o automóvel que conduzia era capaz de colocar em perigo a integridade física do ofendido, não tendo, contudo, se coibido de atuar da forma supradescrita.
(…)
14. Por outro lado, ao arrancar com o seu veículo e ter prosseguido a sua marcha – com o ofendido em cima do seu capô – a uma velocidade que não foi possível apurar, o arguido sabia que poderia colocar em risco a integridade física daquele, tendo-se conformado com tal resultado.
(…)».
- Revogam a sentença recorrida na parte em que condena o arguido pela prática dos crimes de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos arts. 143º/1, 132º/1, e 2, h), 145º/1, a) e 2, do Código Penal, de condução perigosa de veículo rodoviário previsto e punido pelo art. 291º/1, b) do Código Penal, e de omissão de auxílio, previsto e punido pelo art. 200º/1 e 2 do Código Penal, absolvendo-o dos mesmos;
- Condenam o arguido recorrente pela prática de um crime de ofensa à integridade física previsto e punido pelo disposto no art. 143º/1 do Código Penal numa pena de 100 (cem) dias de multa à taxa diária de 6,50€ (seis euros e cinquenta cêntimos), num total de 650€ (seiscentos e cinquenta euros);
- Revogam parcialmente a sentença na parte cível, condenando o arguido/demandado civil no pagamento ao ofendido/demandante civil de uma indemnização por danos não patrimoniais de 800€, e por danos patrimoniais, de €578,47, num total de 1.378,47€ (mil trezentos e setenta e oito euros e quarenta e sete cêntimos), a que acrescem os juros de mora legais, vencidos e vincendos, calculados sobre esta quantia a contar da data da notificação do pedido de indemnização e até efetivo e integral pagamento, e absolvendo-o do mais peticionado.
*
Sem custas - art. 513º/1 do Código de Processo Penal a contrario.
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Notifique.
*
Lisboa,

21 de maio de 2024
Ana Cláudia Nogueira
Manuel Advínculo Sequeira
Ester Pacheco dos Santos
_______________________________________________________
1. [] Neste sentido, entre muitos outros, o acórdão do STJ de .../.../2007, relatado por Costa Mortágua no processo 3174/06 – 5ª Secção, acessível em www.pgdlisboa.pt
2. [] Neste sentido, o acórdão do STJ de 17/03/2016, relatado por Pires da Graça no processo 849/12.1JACBR.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt
3. [] Assim, o acórdão da Relação de Coimbra de 14/01/2015, relatado por MM no processo 72/11.2GDSRT.C1, disponível em www.dgsi.pt. 
4. [] Entre outros, os acórdãos do STJ de 18/01/2018, relatado por Maia Costa no processo 563/14.3TABRG.S1, que aqui seguimos de perto, e de 17/03/2016, relatado por Pires da Graça no processo 849/12.1JACBR.C1.S1, mencionado na nota anterior, ambos acessíveis em www.dgsi.pt
5. [] Cfr. o acórdão do STJ de 25/03/2010, relatado por Raul Borges no processo 427/08.OTBSTB.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt
6. [] Neste sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/01/2010 relatado por Henriques Gaspar no processo 149/07.9JELSB.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt .
7. [] Passagem e não ultrapassagem já que, em bom rigor, a manobra de ultrapassagem implica que ambos os veículos, o que ultrapassa e o ultrapassado, se encontrem em marcha, como decorre das normas que a regulam sob os arts. 35º e sgs., do Código da Estrada; neste sentido, Paula Ribeiro de Faria in ob. cit., pág. 660. 
8. [] Encontrando-se prescrito o respetivo procedimento criminal nos termos dos arts. 27º/c) e 28º/3, do D.L. 433/82, de 27/10 que aprovou o Regime Geral das Contraordenações.
9. [] Vide Jorge de Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 1999, Coimbra Editora, págs. 25 e sg., Teresa Serra, in Homicídio Qualificado: Tipo de Culpa e Medida da Pena, 1990, Almedina, págs. 120 a 125 e Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da CEDH, 5ª edição, 2022, UCE, págs. 572 e sg.. 
10. [] Cfr. o acórdão do Tribunal Constitucional 852/2014, processo 1359/13, relatado por João Pedro Caupers, acessível em www.tribunalconstitucional.pt .
11. [] Vide Teresa Serra, in ob. cit., pág. 64, Jorge de Figueiredo Dias, in ob. cit. na nota anterior, pág. 29, e, por todos, o acórdão da Relação do Porto de 04/02/2015, relatado por Artur Oliveira no processo 145/13.7GAVLP.G1.P1, acessível em www.dgsi.pt .
12. [] Neste sentido, entre muitos outros, acórdão da Relação do Porto de 9/4/2014, na Coletânea de Jurisprudência, Tomo II, pág. 244, relatado por Fátima Furtado, e os acórdãos da Relação de Coimbra de 19/10/2011, relatado no processo 537/09.6GBPBL.C1, por Maria Pilar Oliveira, de 11/02/2009, relatado no processo 137/06.2GBSRT.C1, por Fernando Ventura de 22/05/2013, relatado no processo 257/11.1GAANS.C, por Belmiro Andrade, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
13. [] Assim, Paula Ribeiro de Faria, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Gestlegal, 2.ª edição, 2022, Tomo II, Vol. II, pág. 657; também Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Processo Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da CEDH, UCE, 5ª edição, 2022, pág. 1126, nota 8.
14. [] In ob. cit. na nota anterior, pág. 659.
15. [] Neste sentido, entre outros, o acórdão da Relação de Guimarães de 15/12/2016, relatado no processo 14/16.9GCVPA.G1, por Ausenda Gonçalves, citando António Oliveira Mendes, in O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, Almedina, 1996, pág. 47. 
16. [] In O perigo em Direito Penal: Contributo para a sua Fundamentação e Compreensão Dogmáticas, Coimbra Editora, 1992, pág. 600. 
17. [] In Crimes Rodoviários Pena Acessória e Medidas de Segurança, UCE, 1996, pág. 20. 
18. [] Neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque in ob. cit., pág. 871, e Américo Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Coimbra Editora, 1999, Tomo I, pág. 848. 
19. [] In O perigo em Direito Penal: Contributo para a sua Fundamentação e Compreensão Dogmáticas, Coimbra Editora, 1992, pág. 600. 
20. [] Cfr. Vanessa Filipa Leitão Azevedo In O crime de Omissão de Auxílio no Direito Penal Português – O art. 200º do Código Penal, Dissertação de Mestrado, FDUL, 2015, acessível on line em https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/31923/1/ulfd133599_tese.pdf, pág. 54, e Maria Leonor Assunção, In Contributo para a interpretação do artigo 219º do Código Penal (O crime de omissão de auxílio), Coimbra Editora, BFDUC, 1994, pág. 18, autoras que seguimos de perto na exposição. 
21. [] In ob. e loc. cit.. 
22. [] Neste sentido, o acórdão da Relação do Porto de 13/12/2000, relatado por Clemente Lima no processo 0011053, acessível em www.dgsi.pt .
23. [] Neste sentido Paulo Pinto de Albuquerque in ob. cit., pág. 872, nota 8, citando jurisprudência. 
24. [] Neste sentido, em situações de facto que consideramos de maior gravidade objetiva, os acórdãos do STJ de 29/01/2003, relatado por Lourenço Martins no processo 02P4426, da Relação de Lisboa de 02/12/2020, relatado por Jorge Gonçalves no processo 97/18.7GTCSC.L1-5 e da Relação de Évora de 09/01/2018, relatado por Alberto Borges no processo 1271/13.8PAPTM.E1., todos acessíveis em www.dgsi.pt .
25. [] Ob. cit., pág. 872, nota 8.
26. [] Relatado Por Luís Fonseca no processo 1252/02, com sumário acessível em www.pgdlisboa.pt/jurel/stj e com o seguinte teor na parte aqui relevante: «Para que se verifique aquele ilícito criminal é necessário que o auxílio seja necessário. Ora, o mesmo não o é quando é prestado por terceiro de forma imediata e adequada a afastar o perigo.».
27. [] Cfr. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 214 e sg. e 229. 
28. [] Cfr. Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 3ª Edição, 2019, Gestlegal, pág. 96.
29. [] Veja-se neste sentido o acórdão do STJ de 28/09/2005, in Coletânea de Jurisprudência - STJ, 2005, Tomo 3, pág. 173. 
30. [] In Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 129.
31. [ ] Acessível em www.dgsi.pt .
32. [][Acessível em www.dgsi.pt .