Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | MARILIA DOS REIS LEAL FONTES | ||
Descritores: | ARRENDAMENTO MORTE DO ARRENDATÁRIO COMUNICAÇÃO AO CÔNJUGE DO FALECIDO MORTE DO PRIMITIVO ARRENDATÁRIO CADUCIDADE SOBREVIVÊNCIA DE FILHO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 09/12/2024 | ||
Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
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Sumário: | I – O contrato de arrendamento celebrado por um dos cônjuges, em data anterior à entrada em vigor do NRAU, comunica-se ao cônjuge que lhe sobreviveu e com quem era casado sob o regime da comunhão geral de bens, com efeitos desde a data de entrada em vigor do NRAU. II - Com a morte do pai do autor em 2014, não se operou nenhuma transmissão da posição de arrendatário, nos termos e para os efeitos previstos no art.º 57º do NRAU, mas mera “consolidação” da posição de arrendatário na pessoa da mãe do autor. III - Tendo o contrato de arrendamento sido celebrado antes da entrada em vigor do RAU, aplica-se à transmissão por morte o regime transitório previsto no artigo 57º do NRAU. E, por força do disposto na al. e) do seu n.º 1, o contrato de arrendamento não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva filho que com ele convivia há mais de um ano, com deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60%. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam as Juízes na 8ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: 1. Relatório A, veio, ao abrigo do art.º 10º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil, intentar AÇÃO DE CONDENAÇÃO sob a forma de processo comum contra HERANÇA ABERTA POR ÓBITO DE B, representada pela cabeça de casal C. Peticionou que: a) Fosse reconhecido o direito do A. ao arrendamento do locado sito na …, descrito na Conservatória do Registo Predial da … (doc. 16) e inscrito na matriz pelo artigo 327, pertencente ao acervo hereditário de B ainda indiviso, e b) Fosse a R. condenada a reconhecer o direito do A. identificado em a); c) Fosse a R. condenada a manter o arrendamento nos mesmos termos e condições em que foi celebrado, e d) Fosse a R. condenada a manter a renda mensal de 77,85€, atualizável nos termos legais e/ou contratuais. * Para tanto, alegou, em síntese, o seguinte: - O A. é filho de JR e AJ; - Os pais do A. casaram em 26/11/1955 no regime de comunhão (geral) de bens; - Em 11/07/1962, o pai do A. celebrou com B um contrato de arrendamento para habitação do prédio sito na …; - O A., então com 8 anos de idade, passou a viver com os pais no referido locado desde então; - Em 02/10/2014, faleceu o pai do A., residente no locado; - Em 04/01/2019 foi reconhecida ao A. uma incapacidade de 69%, instalada desde 2018; - Em 22/06/2022, faleceu a mãe do A., residente no locado; - Em 30/06/2022, o A. informou a cabeça de casal da herança aberta por óbito de B – C – do falecimento da sua mãe e pediu para que o contrato “passasse para seu nome” e que fosse tida “atenção na renda” devido aos seus baixos rendimentos; - Em 27/07/2022, recebeu resposta onde era informado de que o contrato de arrendamento havia sido transmitido do pai para a mãe do A. e, por isso, caducara com a morte desta; - O A. continuou a viver no locado, como sempre viveu desde 1962, de forma ininterrupta, com os seus pais e sempre em economia comum, ou seja, vive no locado há cerca de 52 anos por referência à data do óbito de ambos os progenitores e, portanto, há mais de 30 anos; - Atualmente, o A. encontra-se reformado por velhice; - E aufere uma pensão mensal de 703,25€; - Correspondente ao RABC do agregado familiar, constituído apenas por si, no valor de 4.950,38€; - A herança aberta por óbito do primitivo senhorio – B – permanece indivisa; - Do acervo hereditário daquela faz parte o locado correspondente a prédio urbano sito na …, de que o terceiro andar direito faz parte, com utilização independente; - O contrato de arrendamento sub judice foi celebrado para habitação, pelo prazo de seis meses, renovável por iguais períodos e condições; - É o A. quem tem pago as rendas, no valor mensal de 77,85€, nomeadamente desde o óbito da mãe, embora já viesse a fazê-lo desde momento anterior; - O contrato em causa nunca transitou para o NRAU; - Apesar de o limite legal de renda mensal não exceder 41,25€ (como se exporá infra), o A. aceita continuar a pagar o valor mensal de 77,85€, determinada anteriormente. - O contrato de arrendamento sub judice foi celebrado na vigência da Lei 2030 de 22 de junho de 1948, sendo, por isso, anterior ao Regime de Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo decreto-lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro, que entrou em vigor em 15 de novembro de 1990; - A transmissão do arrendamento por morte do arrendatário constitui uma exceção à caducidade do respetivo contrato com o intuito de tutelar os direitos e os interesses das pessoas que viviam com o arrendatário, cuja posição económica enfraquece necessariamente em consequência da morte deste; - Por se tratar de contrato celebrado antes da vigência do RAU, rege, quanto à matéria de transmissão do direito ao arrendamento por morte do inquilino, o Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela lei n.º 6/2006, de 27 de Maio, na redação vigente, nomeadamente pelas normas transitórias previstas no Capítulo II do Título II, por força do seu art.º 59.º, n.º 1, conjugado com os seus art.º 60º, n.º 1, 26º, n.º 1 e 2, e 28º, e ainda com o disposto nos seus art.º 30º a 37º, 50º a 54º e 57º; - O art.º 57º, n.º 1, alínea a), do NRAU, prevê (e previa em 2014, aquando do óbito do pai do A.) a transmissão do contrato de arrendamento por morte para o cônjuge residente no locado; - A transmissão de um direito consiste na passagem deste de uma esfera jurídica para outra, extinguindo-se naquela e constituindo-se ex novo nesta; - Aquando da celebração do contrato de arrendamento, os pais do A. já eram casados sob o regime de comunhão (geral) de bens, que era o regime supletivo previsto no art.º 1108º do Código Civil de 1867; - Consequentemente, o direito ao arrendamento foi adquirido por ambos, atento o regime patrimonial do casamento, ainda que o contrato de arrendamento tenha sido somente subscrito pelo pai do A; - Assim, os pais do A. exerceram concomitante e conjuntamente o direito ao arrendamento, que era co-titulado, até ao óbito do cônjuge marido, ocupando ambos a posição simultânea de primitivos arrendatários; - Por esse motivo, aquando do óbito do pai do A., em 2014, não houve transmissão do arrendamento para a mãe do A., cônjuge daquele, como sustenta a R.; - Ao invés, a cônjuge mulher manteve-se no locado em exercício de direito próprio, já que tal direito era preexistente na sua esfera jurídica e não surgiu nesta em consequência do óbito do cônjuge marido; - Só após o óbito da mãe do A. é que se operou a primeira transmissão do direito ao arrendamento, isto é, da primitiva co-arrendatária para o seu filho, aqui A.; - Considerando que o A. vivia com a mãe (e também com o pai) há mais de um ano (na realidade desde que nasceu e no locado desde o início da relação locatícia) e que é portador de deficiência graduada em 69%, conclui-se que se verificam os requisitos impostos pelo art.º 57º, n.º 1, alínea e), do NRAU, que defere a transmissão do arrendamento para filho, que com ele (primitivo arrendatário) convivesse há mais de um ano, e que seja portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %; - No que respeita à renda, o A. pode beneficiar do regime previsto nos art.º 30º a 37º e a 50º a 54º do NRAU; - O A. aufere o rendimento anual total de 9.845,50€ e, portanto, é inferior a cinco RMNA, correspondente a 53.200,00€ no ano de 2023, como determinado pelo decreto-lei n.º 85-A/2022, de 22 de dezembro, para efeito do que dispõe o art.º 35º, n.º 1, do NRAU; - Por esse motivo, a renda anual tem o limite de 1/15 do valor patrimonial do locado, nos termos do art.º 35º, n.º 2, alínea a), do NRAU; - Assim, a renda anual tem o limite anual de 4.287,36€ correspondente a 1/15 do valor patrimonial do locado que é de 28.582,40€; - O RABC do A. é de 4.950,38€, correspondente ao valor mensal de 412,53€; - Assim, é cumulativamente aplicável ao valor da renda, o limite de 10% do RABC, equivalente a 41,25€; - Apesar disso, o A. aceita a renda mensal de 77,85€, como afirmado supra. A ré contestou, por impugnação e, deduziu reconvenção, afirmando, em suma, o seguinte: - No que diz respeito à natureza e características do contrato de arrendamento, seguimos o entendimento de António Menezes Cordeiro, que afirma se dever incluir entre os direitos estritamente pessoais referidos no art.º 1733.º, n.º 1, al. c) o direito de arrendamento já que “dada a remissão feita [para o regime de bens], nunca se poderá comunicar”, vide, nesse sentido Ac. De 03.06.2003 do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no processo n.º 03ª1462, disponível em www.dgsi.pt.; - Considerando o direito do arrendatário um direito pessoal de gozo, a posição jurídica de arrendatário apresenta natureza estritamente pessoal, à semelhança do que acontece, com a posição de um direito de usufruto ou de um direito de uso e habitação; - Devendo o mesmo ser qualificado como um contrato intuitu persona; - Assim, e tendo em consideração o artigo 57.º do NRAU, com a epígrafe “Transmissão por morte no arrendamento para habitação”, que se aplica ao presente contrato, nos termos também alegados pelo Autor, constata-se que esse artigo apenas prevê a não caducidade do contrato de arrendamento para habitação por morte do primitivo arrendatário; - Mas a mãe do Autor, não era a primitiva arrendatária; - Não podendo assim, vir o Autor agora alegar a transmissão do contrato de arrendamento, com fundamento na al. e), do n.º 1, do artigo 57 do NRAU; - No dia 13.10.2014 é enviada à Ré, pela mãe do Autor, carta registada com aviso de receção a comunicar, nos termos do artigo 1106.º (Transmissão por morte) e 1107.º (Comunicação), do Código Civil, o falecimento do arrendatário JR; - É, assim, nesta data, que se dá a primeira transmissão por morte do primitivo arrendatário, uma vez que sobreviveu, nos termos do artigo 57.º, n.º 1, al. a), do NRAU, cônjuge com residência no locado; - O contrato de arrendamento caducou quando a mãe do Autor falece em 22.06.2022, uma vez que o mesmo já havia sido transmitido a ela e, nos termos do artigo 57.º do NRAU, aplicado aos contratos antigos, o regime jurídico aplicado aos mesmos não prevê a transmissão de contrato de arrendamento em dois graus; - Foi propósito do legislador, instituindo a impossibilidade de transmissão em dois graus, libertar os proprietários dos contratos de arrendamento antigos, com rendas absolutamente desatualizadas face ao mercado atual; - Se não se entender o contrato de arrendamento como um contrato intuitu persona, o que não se espera; - O artigo 1068.º, do Código Civil, estipula atualmente que “o direito do arrendatário comunica-se ao seu cônjuge, nos termos gerais e de acordo com o regime de bens vigente”. - No entanto, essa norma que veio instituir o princípio da comunicabilidade conjugal do direito do arrendatário, é aplicável apenas aos contratos celebrados na vigência da nova lei; - Isto porque, conforme estabelece o art.º 59.º, do NRAU, as alterações introduzidas pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, aplicam-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias, entre as quais se encontram as normas previstas no Capítulo II, relativas aos contratos habitacionais celebrados antes da vigência do RAU, que condicionam o direito à transmissão do arrendamento para o cônjuge sobrevivo nos termos dos artigos 57.º e 58.º do NRAU, estabelecendo que o arrendamento apenas não caduca por morte do primitivo arrendatário; - Tendo o artigo 57.º do NRAU como epígrafe “Transmissão por morte no arrendamento para habitação”, nunca sendo referido ou previsto o termo concentração, ao contrário do que atualmente prevê o n.º 1, do artigo 1107.º, do Código Civil; - Razão pela qual, entende-se que o contrato de arrendamento em discussão na presente ação, cessou definitivamente por caducidade, nos termos dos artigos 1079.º e 1051.º, do Código Civil e da norma especial transitória prevista no artigo 57.º do NRAU, não podendo a norma prevista no artigo 1068.º, do Código Civil, aplicar-se ao caso concreto, por violação do princípio da especialidade (art.57.º do NRAU), enquanto princípio geral do direito – “lex specialis derogat legi generali” – igualmente previsto no artigo 7.º, n.º 3 do Código Civil; - No presente caso, e no que concerne à questão da comunicabilidade, seguimos também de perto o raciocínio explanado no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21-05-2025, Processo 5958/18.0T8FNC.L1-2, disponível em www.dgsi.pt.; - Nos presentes autos, o contrato de arrendamento foi celebrado no ano de 1962, tendo como contratante arrendatário unicamente o pai do Autor; - À data da celebração do contrato de arrendamento e do casamento dos pais do Autor, a lei consagrava o princípio da incomunicabilidade do direito ao arrendamento para habitação ao cônjuge do arrendatário, atento o que então dispunha o artigo 1110.º, n.º 1 do Código Civil; - Tal princípio foi mantido até à entrada em vigor do NRAU, em 28.06.2006; - Essa lei, por sua vez, prevê a novidade da comunicabilidade do arrendamento aos cônjuges não arrendatários, tendo em consideração o que estipula o art.º 1068.º do Código Civil. - No âmbito do NRAU, o legislador consagrou norma expressa sobre aplicação da lei no tempo – o já referido art.º 59.º - sendo que o seu n.º 1, ao referir que o NRAU se aplica também aos contratos de arrendamento cujas relações contratuais constituídas subsistam à data da entrada em vigor do diploma, não contraria nem diverge das regras de aplicação da lei no tempo consagradas no art.º 12.º do Código Civil; - Explicitando o teor do n. º 1 (do art.º 59.º do NRAU), o n.º 2 do art.º 12.º vem como que definir o que são e o que não são factos passados e efeitos dos factos passados, sendo certo que aos factos passados e aos efeitos dos factos passados aplica-se a lei antiga (J. Baptista Machado, “Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil”, Livraria Almedina, 1968, pág. 354); - Assim, à data do facto a regular, ou seja, à data da celebração do contrato de arrendamento, em que vigorava também o contrato de casamento celebrado entre o arrendatário e o respetivo cônjuge, fixou-se, à luz da lei então vigente, a adstrição da situação jurídica de arrendatário exclusivamente à esfera jurídica do cônjuge que interveio na celebração do contrato, com exclusão do seu cônjuge; - Entende-se, efetivamente, que a comunicabilidade do arrendamento ao cônjuge que não figura no contrato, prevista no art.º 1068.º do CC, quando reportada a situação em que quer o contrato de arrendamento, quer o casamento com o cônjuge contraente, tenham ocorrido em data anterior a 27-06-2006 (data da entrada em vigor do NRAU), não é admissível, pois que a situação de incomunicabilidade já se encontrava anteriormente estabelecida, não podendo ser alvo agora de alteração, salvo se tivesse existido (e tal não aconteceu) determinação legal expressa nesse sentido; - A comunicabilidade apenas poderia verificar-se, na eventualidade, que aqui se não regista, de um dos factos constitutivos – o casamento - ter ocorrido em data posterior à entrada em vigor do NRAU (e no caso daquele obedecer a um dos regimes de comunhão de bens); - A não ser assim, como não foi, há que concluir, pela inexistência da comunicação do contrato ao Autor; - Assim, quando faleceu o titular primitivo do contrato de arrendamento, não existiu comunicação do arrendamento para a esposa deste, tendo antes existido transmissão do contrato de arrendamento para o cônjuge do primitivo arrendatário; - Desta forma, aquando do falecimento do pai do Autor, operou-se a primeira transmissão do direito ao arrendamento do primitivo arrendatário para o seu cônjuge; - Consequentemente, e uma vez que o artigo 57.º do NRAU não prevê transmissão em duplo grau, o Autor não tem direito ao arrendamento do locado, nem tem direito a permanecer nele como arrendatário uma vez que o contrato de arrendamento caducou com o falecimento da sua mãe; - Deverá ser declarada a caducidade do contrato de arrendamento correspondente ao prédio sito …, declarando-se que a ocupação do autor desde 22.12.2022 (seis meses após o falecimento da mãe do Autor) é ilícita e ilegítima, devendo o Autor ser condenado a restituir à Ré o identificado apartamento, livre de pessoas e bens; - A ocupação ilícita do Autor no apartamento, tem causado prejuízos na esfera patrimonial da Ré; - Tendo o primitivo arrendatário e, posteriormente, o seu cônjuge, falecido, caducou o direito ao arrendamento; - A Ré deu conta disso ao Autor por missiva enviada a este a 27.07.2002, tendo a Ré fixado o prazo de 6 meses previsto na lei, a contar do falecimento da AJ, mãe do Autor, para o Autor restituir o imóvel; - O Autor mantém-se ilegalmente no apartamento desde 22.12.2022, retendo o apartamento contra a vontade da Ré, violando o seu direito de propriedade, apesar de instado a restituir o mesmo; - Como consequência da ação ilícita do Autor, a Ré tem vindo a perder o valor da renda que receberia dando esse apartamento de arrendamento, de montante não inferior a 550€ mensais; Solicita a absolvição de todos os pedidos formulados pelo Autor e procedência do pedido reconvencional - declaração de caducidade do contrato de arrendamento correspondente ao prédio sito …, declaração de que a ocupação do Autor desde 22.12.2022 (seis meses após o falecimento da mãe do Autor) é ilícita e ilegítima, condenação do Autor a restituir à Ré o identificado apartamento, livre de pessoas e bens e condenação do Autor ao pagamento de indemnização no valor de 550€ mensais, desde o mês de janeiro de 2023, até restituição efetiva do imóvel, que atualmente se fixa no valor de 2.750€. * Foi proferido despacho que fixou o valor da causa, saneou o processo – relegando o conhecimento da exceção de ilegitimidade para decisão final, fixou o objeto do litígio e os temas da prova. * Realizou-se a audiência de julgamento com observância do legal formalismo. * O Mmº Juiz “a quo” proferiu sentença na qual julgou a acção totalmente procedente, por provada, e, em consequência, reconheceu o direito do autor A. ao arrendamento do apartamento sito …, por lhe ter sido transmitido, por morte da sua mãe, com a renda mensal de €77,85 e julgou a reconvenção totalmente improcedente. * Inconformado com tal decisão, veio a ré dela interpor o presente recurso de apelação, apresentando no final das suas alegações as seguintes conclusões: “1. O presente recurso versa sobre matéria de direito por entender a Recorrente, que o Tribunal a quo fez uma inadequada interpretação das normas jurídicas atinentes ao caso, em concreto, uma errada inserção da norma do artigo 1068.º, do Código Civil em sede de aplicação da lei no tempo, ao ter considerado a comunicabilidade da posição de arrendatário do pai do A. para a mãe deste, por via do casamento, tendo, consequentemente, concluído a douta sentença pela primeira transmissão do contrato de arrendamento para o A. por morte da mãe deste, por força do disposto na al. e), do n.º 1, do artigo 57.º do NRAU. 2. A divergência que levou à interposição do presente recurso incide, unicamente, sobre a comunicabilidade do direito ao arrendamento por via do casamento quando estejam em causa contratos de arrendamento celebrados antes da vigência do RAU, assentando a divergência em entendimento diverso do tribunal a quo sobre a aplicação dessa lei (artigo 1068.º CC) no tempo (artigos 12.º, n.º 1 do Código Civil e 59.º, n.º 1 do NRAU). 3. O artigo 1068.º, do Código Civil, estipula atualmente que “o direito do arrendatário comunica-se ao seu cônjuge, nos termos gerais e de acordo com o regime de bens vigente”, no entanto, considera-se, ao contrário do entendimento plasmado na douta sentença, que essa norma que veio instituir o princípio da comunicabilidade conjugal do direito do arrendatário, é aplicável apenas aos contratos celebrados na vigência da nova lei. 4. O art.º 59.º, do NRAU, estabelece que as alterações introduzidas pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, aplicam-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias, entre as quais se encontram as normas previstas no Capítulo II, relativas aos contratos habitacionais celebrados antes da vigência do RAU, que condicionam o direito à transmissão do arrendamento para o cônjuge sobrevivo nos termos dos artigos 57.º e 58.º do NRAU, estabelecendo que o arrendamento apenas não caduca por morte do primitivo arrendatário. 5. Esse condicionamento (impossibilidade de transmissão em dois graus) estabelecido no artigo 57.º do NRAU teve como propósito libertar os proprietários dos contratos antigos, com rendas absolutamente desatualizadas face ao mercado atual, como se verifica no presente caso, em que o contrato data de 11.07.1962 e tem uma renda mensal no valor de €77,85. 6. O artigo 57.º do NRAU tem como epígrafe “Transmissão por morte no arrendamento para habitação”, não se encontrando aí referido ou previsto o termo concentração, ao contrário do que atualmente prevê o n. º 1, do artigo 1107.º, do Código Civil. 7. O entendimento defendido pelo Tribunal a quo levaria a que a norma prevista no artigo 57.º, n. º 1, al. a) do NRAU fosse uma norma vazia, sem aplicação prática, uma vez que a transmissão aí prevista apenas se aplicaria aos cônjuges casados no regime de separação de bens que tivessem celebrado contrato de arrendamento antes do RAU! 8. Assim, entende-se que o contrato de arrendamento em discussão na presente ação, cessou definitivamente por caducidade, nos termos dos artigos 1079.º e 1051.º, do Código Civil e da norma especial transitória prevista no artigo 57.º do NRAU, não podendo a norma prevista no artigo 1068.º, do Código Civil, aplicar-se ao caso concreto, por violação do princípio da especialidade (art.57.º do NRAU), enquanto princípio geral do direito – “lex specialis derogat legi generali” – igualmente previsto no artigo 7.º, n.º 3 do Código Civil. 9. À data da celebração do contrato de arrendamento pelo pai do A. e do casamento dos pais do A., a lei consagrava o princípio da incomunicabilidade do direito ao arrendamento para habitação ao cônjuge do arrendatário, atento o que então dispunha o artigo 1110.º, n. º 1 do Código Civil, princípio mantido até à entrada em vigor do NRAU, em 28.06.2006, tendo, posteriormente, nos termos do artigo 1068.º do Código Civil, passado a ser previsto a comunicabilidade do arrendamento aos cônjuges não arrendatários. 10. No entanto, conforme se escreveu neste Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão datado de 21-05-2020, Processo 5958/18.0T8FNC.L1-2, o qual seguimos de perto, é necessário compreender a inserção dessa norma em sede de aplicação da lei no tempo: “É sabido que o artigo 12.º do Código Civil, rege os princípios gerais sobre a aplicação da lei no tempo e consagra no seu n. º 2, que “quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser diretamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem (sublinhado nosso), entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor. ” 11. Ora, no âmbito do NRAU, o legislador consagrou norma expressa sobre a aplicação da lei no tempo – o já referido art.º º 59.º - sendo que o seu n. º 1, ao referir que o NRAU se aplica também aos contratos de arrendamento cujas relações contratuais constituídas subsistam à data da entrada em vigor do diploma, não contraria nem diverge das regras de aplicação da lei no tempo consagradas no art.º º 12.º do Código Civil. 12. Estes dois artigos vêm como que definir o que são e o que não são factos passados e efeitos dos factos passados, sendo certo que aos factos passados e aos efeitos dos factos passados aplica-se a lei antiga (J. Baptista Machado, “Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil”, Livraria Almedina, 1968, pág. 354). 13. A interpretação defendida na sentença proferida pelo tribunal a quo, implica atribuir um novo e diferente efeito jurídico a factos ocorridos antes da vigência do novo regime legal (celebração do contrato de arrendamento e, antes dele, celebração de casamento), aos quais já havia sido, à luz da lei em vigor à data da sua ocorrência, determinado o efeito correspondente (incomunicabilidade do direito ao arrendamento ao cônjuge do arrendatário). 14. Entende-se, efetivamente, que a comunicabilidade do arrendamento ao cônjuge que não figura no contrato, prevista no art.º 1068.º do CC, quando reportada a situação em que quer o contrato de arrendamento, quer o casamento com o cônjuge contraente, tenham ocorrido em data anterior a 27-06-2006 (data da entrada em vigor do NRAU), não é admissível, pois que a situação de incomunicabilidade já se encontrava anteriormente estabelecida, não podendo ser alvo agora de alteração, salvo se tivesse existido (e tal não aconteceu) determinação legal expressa nesse sentido. 15. Há que concluir, nos presentes autos, pela inexistência da comunicação do contrato à mãe do A.. 16. Isto porque se entende, conforme defende o Acórdão supra referido, que pese embora o art.º 1068.º do CC, disponha diretamente sobre o conteúdo da relação jurídica arrendatícia, não o faz “Abstraindo dos factos que lhes deram origem”, como vem referido no artigo 12.º, n.º 2, do CC, antes pelo contrário, fá-lo tendo em consideração tais factos.” 17. Assim, ao contrário da posição defendida pelo Tribunal a quo, quando faleceu o titular primitivo do contrato de arrendamento, não existiu comunicação do arrendamento para a esposa deste, tendo antes existido transmissão do contrato de arrendamento para o cônjuge do primitivo arrendatário, nos termos do artigo 57.º, n.º 1, al. a) do NRAU, tendo-se operado a primeira transmissão do direito ao arrendamento do primitivo arrendatário para o seu cônjuge. 18. Consequentemente, e uma vez que o artigo 57.º do NRAU não prevê transmissão em duplo grau, o A. não tem direito ao arrendamento do locado, nem tem direito a permanecer nele como arrendatário, uma vez que o contrato de arrendamento caducou com o falecimento da sua mãe. 19. Tendo em conta a conduta ilícita do A., que retém a casa contra a vontade da Ré, violando o seu direito de propriedade e os seguintes factos dados como provados, em concreto, “A R. tem intenção de arrendar o locado” e “A fração autónoma tem um valor locativo mensal não inferior a €550,00”, a Apelante tem tido prejuízos e benefícios que deixou de receber em virtude da conduta culposa e ilícita do A, designadamente, tem vindo a perder o valor da renda que receberia dando esse apartamento de arrendamento, factos que determinam a obrigação de indemnizar a Ré fundada em responsabilidade extracontratual. Pugna pela revogação da sentença recorrida e substituição da mesma por outra que: A) Julgue improcedente a ação intentada pelo A., absolvendo-se a R. de todos os pedidos formulados pelo A.; B) Julgue procedente o pedido reconvencional da R. e, em consequência: C) Declare a caducidade do contrato de arrendamento correspondente ao prédio sito …; D) Declare que a ocupação do A. desde 22.12.2022 (seis meses após o falecimento da mãe do A.) é ilícita e ilegítima; E) Condene o A. a restituir à R. o identificado apartamento, livre de pessoas e bens; F) Condene o A. ao pagamento de indemnização no valor de 550€ mensais, desde o mês de janeiro de 2023, até restituição efetiva do imóvel. * O autor apresentou contra-alegações, concluindo que: “1. O contrato de arrendamento sub judice foi celebrado em 11/07/1962. 2. Vigorava à data o Código Civil de 1867. 3. O arrendatário (pai do Recorrido) faleceu em 02/10/2014. 4. A mãe do Recorrido faleceu em 22/06/2022. 5. Os pais do A. casaram em 26/11/1955 sob o regime de bens de comunhão (geral) de bens. 6. O art.º 1619º do Código Civil de 1867 previa a comunicabilidade e a transmissão do direito ao arrendamento. 7. O art.º 46º da lei n.º 2030, de 22 de junho de 1948, estabeleceu, a transmissão do arrendamento para o cônjuge sobrevivo e para os ascendentes, admitindo uma segunda transmissão do direito ao arrendamento do primitivo arrendatário para a cônjuge e desta para o filho, aqui Recorrido, que sempre viveu com os pais no locado. 8. Quer se considere a lei vigente à data da celebração do contrato de arrendamento (art.º 46º da lei n.º 2030, de 22 de junho de 1948), quer se considere a lei em vigor à data do óbito dos pais (art.º 57º, n.º 1, alínea e), do NRAU), como considerou a douta sentença recorrida, operou-se a transmissão do direito ao arrendamento para o Recorrido. Pugna pela confirmação da sentença recorrida. * Recebidos os autos neste Tribunal, foram colhidos os vistos. * 2. Objeto do recurso Admitido o recurso, e remetido o mesmo a este Tribunal, nada obstando ao conhecimento do seu mérito. * 3. Questões a decidir São as conclusões formuladas pelo recorrente que delimitam o objeto do recurso, no tocante ao desiderato almejado por aquele, bem como no que concerne às questões de facto e de Direito suscitadas, conforme resulta das disposições conjugadas dos arts. 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC. Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art.º 5º n.º 3 do CPC)[1]. Por outro lado, não pode o Tribunal de recurso, conhecer de questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas[2]. No caso em análise, as questões essenciais a decidir são as seguintes: “1 - Saber se a posição de arrendatário do pai do A. no contrato foi comunicada à mãe deste, por via do casamento; 2 - Saber se o contrato de arrendamento foi transmitido para o A., por morte da sua mãe; 3 - Saber se o contrato se transmitiu para A. em virtude de residir em economia comum com os primitivos arrendatários, há mais de 30 anos; 4- Saber se, ao invés, se o contrato em questão caducou, e, em caso afirmativo, se a R. tem direito a ser indemnizada pelos prejuízos derivados da ocupação do locado pelo A.. * 3. Fundamentação Na sentença recorrida, consideraram-se provados os seguintes factos, articulados pelas partes, ou deles instrumentais ou complementares, com interesse relevante para a decisão da causa: “1. O A. é filho de JR e AJ. 2. Os pais do A. casaram em 26.11.1955, no regime de comunhão geral de bens. 3. Em 11.07.1962, JR celebrou com B um contrato de arrendamento para habitação, que iniciou os seus efeitos em 01.08.1962. 4. O contrato incide sobre o apartamento correspondente ao prédio sito …. 5. O contrato foi celebrado pelo prazo de seis meses, renovável por iguais períodos e condições. 6. Em 07.07.1983 faleceu B. 7. C é cabeça de casal da herança aberta por morte de B. 8. Do acervo hereditário deste faz parte o locado em causa. 9. Em 02.10.2014 faleceu o pai do A.. 10. Em 22.06.2022 faleceu a mãe do A.. 11. Os pais do A. residiam no locado. 12. Em 30.06.2022, o A. informou C do falecimento da sua mãe e pediu para que o contrato “passasse para seu nome” e que fosse tida “atenção na renda” devido aos seus baixos rendimentos. 13. Em 27.07.2022, recebeu resposta onde foi informado de que o contrato de arrendamento havia sido transmitido do pai para a mãe do A. e, por isso, caducara com a morte desta. 14. C requereu também a entrega do locado no prazo de 6 meses após o óbito da mãe do A., sendo o valor de renda recebido a título de indemnização pelo uso do imóvel. 15. Por carta de 28.09.2022, o A. invocou o seu direito ao arrendamento, pelo facto de ser portador de incapacidade superior a 60%, e o direito a que a renda fosse fixada de acordo com as suas condições económicas. 16. Por carta datada de 20.10.2022, o A. dirigiu nova carta a C, onde manteve a invocação do seu direito ao arrendamento também com base no facto de sempre ter vivido no locado com os seus pais, em economia comum. 17. Por carta enviada ao A. pela advogada de C datada de 02.12.2022, foi reiterado o entendimento de que o contrato de arrendamento caducara nos termos da lei, de que não era propósito dos senhorios, num futuro próximo, arrendar o locado, e informando que uma pessoa se deslocaria ao locado em 28.12.2022 para entrega das respetivas chaves. 18. Foi expedida nova carta, datada de 13.01.2023, invocando a falta de entrega do locado na mencionada data. 19. Por carta de 07.02.2023, a advogada de C apresentou proposta de arrendamento do locado ao A. com renda anual de €6.000,00. 20. Desde a data da morte do pai, o A. tem pago as rendas do imóvel, no valor de €77,85. 21. O A. reside no locado, de forma ininterrupta, desde 1962. 22. Em 04.01.2019, foi reconhecida ao A. uma incapacidade de 69%, instalada desde 2018. 23. A R. tem intenção de arrendar o locado. 24. A fração autónoma tem um valor locativo mensal não inferior a €550,00. * Não existem quaisquer factos não provados com relevo para a decisão a proferir. * A causa de pedir da presente acção funda-se num contrato de arrendamento tendo por objecto um imóvel urbano, celebrado em 1962, para fins habitacionais, entre B, que assumiu a posição de senhorio, e JR, que assumiu a posição de arrendatário. Por falecimento do primitivo senhorio, e uma vez que faz parte do acervo hereditário da herança aberta por morte deste, a administração do locado incumbe ao cabeça de casal, cargo assumido pela R (art.º 2079º do CC). Na posição de arrendatário, surgiu após a morte do falecido Joaquim, a esposa deste e mãe do autor e, importa, agora apurar que o autor pode suceder também e, em que moldes, a ambos os pais, nessa posição. O contrato em análise caracteriza-se por uma das partes se obrigar a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa imóvel, mediante retribuição. À data da sua celebração estava em vigor o Código Civil de 1867, que não consagrava qualquer exigência de forma para o contrato de arrendamento para habitação celebrado entre dois particulares. Estamos, pois, perante um contrato não formal. Nos termos do artigo 59º, n.º 1 da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, o NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias. Entre estas normas transitórias inclui-se o artigo 57º do referido diploma legal, aplicável aos contratos habitacionais celebrados antes da vigência do RAU, aprovado pelo DL n.º 321-B/90, por força do disposto no art.º 26º “ex vi” arts. 27º e 28º, todos do NRAU. Resulta provado que o contrato de arrendamento foi celebrado pelo pai do A. na constância do matrimónio com a mãe deste, em que vigorava o regime supletivo de comunhão geral de bens (artigos 1098º e 1108º do CC de 1867, em vigor à data). Cumpre, assim, determinar se o direito do arrendatário se comunicou, por via do casamento, ao seu cônjuge. Por força do artigo 3º do NRAU, foi aditada ao CC, no artigo 1068º, a seguinte disposição «O direito do arrendatário comunica-se ao seu cônjuge, nos termos gerais e de acordo com o regime de bens vigente». Ora, a jurisprudência dos tribunais superiores divide-se relativamente à comunicabilidade do direito ao arrendamento quando estejam em causa contratos celebrados antes da vigência do RAU. Essa divergência assenta em entendimentos diversos sobre a aplicação da lei no tempo, a saber dos artigos 12º, n.º 2 do CC e 59º, n.º 1 do NRAU. Para uma corrente jurisprudencial, o artigo 1068º do CC não é de aplicação automática, uma vez que, ainda que disponha sobre o conteúdo da relação jurídica de arrendamento, não o faz abstraindo-se dos factos que lhe deram origem, como refere o n.º 2 do artigo 12º do CC, mas sim tendo-os em consideração. Assim, aquela norma não abrange as relações já constituídas, pelo que a posição de arrendatário não se comunica por efeito do casamento[3]. Já para outra linha, a partir da entrada em vigor da norma constante do artigo 1068º do CC, o arrendamento passa a comunicar-se automaticamente ao cônjuge, pois esta disposição incide diretamente sobre o conteúdo da relação jurídica de arrendamento constituída antes da entrada em vigor do RAU, mas que subsiste aquando da entrada em vigor do NRAU3. Nesse sentido, a remissão final do artigo 1068º do CC para o regime de bens vigente implica, atendendo às normas que regulam esta matéria, que na comunhão geral de bens haja comunicabilidade da posição jurídica de arrendatário para o cônjuge não signatário do contrato (artigo 1732º do CC). Entendeu-se na sentença recorrida que: “decorre do n.º 2 do artigo 12º do CC que à constituição das situações jurídicas aplica-se a lei do momento em que esta tem lugar, mas ao conteúdo das situações jurídicas que subsistam à data da entrada em vigor da lei nova aplica-se imediatamente esta lei, quando se abstraia dos factos que lhe deram origem. O artigo 1068º do CC incide sobre o estatuto jurídico dos cônjuges dos arrendatários, do qual pode fazer parte, consoante o regime de bens vigente, a comunicação da qualidade de arrendatário. Esta disposição legal atinge essas pessoas, não enquanto contraentes, mas enquanto pessoas ligadas, por intermédio do seu cônjuge, ao vínculo de arrendamento, sem, no entanto, considerar os factos que lhe deram origem. Nesse sentido, julga-se que a segunda tese concretiza o disposto nos artigos 12º, n.º 2, 2ª parte do CC e 59º, n.º 1 do NRAU, pelo que aqui se acolhe. Com efeito, deve concluir-se pela aplicação imediata do artigo 1068º do CC ao contrato de arrendamento em causa. Neste sentido, servindo-se dos ensinamentos da doutrina no Ac. do STJ de 13-4-20214, escreveu-se: “Usando a terminologia de Teixeira de Sousa (Introdução ao Direito, pp. 286 e 288), podemos dizer que a nova lei não está aqui a regular sobre uma situação jurídica que não possa abstrair do seu título constitutivo, isto é, que seja modelada por esse título. O título constitutivo é o ato de arrendamento, mas ao estipular sobre a comunicabilidade do direito a lei não se está a fixar no título, mas sim na situação jurídica, tudo independentemente, pois, do ato que a criou”[4]. Conclui-se, assim, como se acima se expôs que o artigo 1068º do CC aplica-se ao contrato de arrendamento em causa; e, consequentemente, também se conclui pela comunicabilidade da posição de arrendatário do pai para a mãe do A., em virtude do casamento. Considerando a posição acima adotada, aquando do falecimento do pai do A., em 02.10.2014, o contrato de arrendamento não se transmitiu para o cônjuge sobrevivo, uma vez que já fazia parte da sua esfera jurídica. Só com a morte da mãe do A., em 22.06.2022, o contrato teve a sua primeira transmissão. Tendo o contrato de arrendamento sido celebrado antes da entrada em vigor do RAU, aplica-se à transmissão por morte o regime transitório previsto no artigo 57º do NRAU. Por força do disposto na al. e) do seu n.º 1, o contrato de arrendamento não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva filho ou enteado, que com ele convivesse há mais de um ano, com deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60%. Por outro lado, decorre do artigo 1107º do CC que por morte do arrendatário, a transmissão do arrendamento deve ser comunicada ao senhorio, com cópia dos documentos comprovativos e no prazo de três meses a contar da ocorrência, sob pena de o transmissário faltoso ser obrigado a indemnizar por todos os danos derivados da omissão. Ora, resulta provado que o A. vivia com a mãe no locado aquando do falecimento desta, como já vinha fazendo desde 1962, e bem assim que é portador de deficiência com incapacidade fixada em 69%. Verifica-se, pois, o preenchimento dos requisitos estabelecidos no artigo 57º, n.º 1, al. e) do NRAU. Resulta igualmente provado que o A. endereçou três comunicações à R.: uma relativa ao falecimento da sua mãe (30.06.2022); uma segunda, na qual indica ser portador de deficiência com incapacidade superior a 60% (28.09.2022); e outra, na qual invoca sempre ter vivido no locado com os seus pais (20.10.2022). Verifica-se, pois, que o A. comunicou à R. os factos que sustentam o seu direito de transmissão do arrendamento, embora alguns o tenham sido já depois de decorridos três meses sobre a morte da mãe daquele. No entanto, a falta de cumprimento do disposto no n.º 1 do artigo 1107º do CC não acarreta a caducidade do contrato de arrendamento, mas antes a obrigação de o transmissário indemnizar o senhorio pelos danos derivados da omissão – o que pressupõe que, para tanto, seja demandado por este. Nestes termos, verifica-se que o A. exerceu o seu direito de transmissão do arrendamento, pelo que o contrato em causa se mantém em vigor nos exatos termos em que foi acordado, designadamente quanto ao montante da renda, fixado em €77,85 mensais, sem prejuízo de eventuais atualizações por força da lei ou de cláusula contratual”. Não ignorando a querela jurisprudencial e doutrinária sobre o tema, entendemos que andou bem a primeira instância, ao decidir, como se decidiu. Efectivamente, o contrato de arrendamento foi celebrado em 1962. Nessa altura e nos 44 anos que se seguiram, o direito do arrendatário, não se comunicava ao cônjuge. Em 2006, após a entrada em vigor da Lei 6/2006, deixou de ser assim. A mencionada lei, repôs o art.º 1068 do Código Civil, segundo o qual: “O direito do arrendatário comunica-se ao seu cônjuge, nos termos gerais e de acordo com o regime de bens vigente”. Esta norma aplica-se, à situação jurídica em apreço. Senão vejamos: Os falecidos pais do autor foram casados no regime da comunhão geral de bens. O art.º 59, nº 1 da Lei 6/2006, estabelece que o NRAU se aplica aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo das normas transitórias. Assim, o NRAU aplica-se à relação contratual aqui em causa, pois que essa relação subsistia à data da sua entrada em vigor (27.06.2002), uma vez que o primitivo arrendatário faleceu depois de tal data (02.10.2014). Decorre dos artºs 26, 27 e 28 do NRAU que os contratos de arrendamento para fins habitacionais celerados anteriormente à entrada em vigor do RAU passam a estar submetidos ao NRAU. Deste diploma decorre expressamente que o direito do arrendatário se comunica ao seu cônjuge, nos termos gerais e de acordo com o regime de bens vigente. É a própria lei que contém preceitos de direito transitório que aponta para a solução do problema sem recurso à regra geral do art.º 12 do Código Civil, cujo recurso levou a tomada de posições diversas da que perfilhamos[5]. Neste sentido já se pronunciou o STJ, revogando precisamente uma decisão do Tribunal da Relação e mantendo a da primeira instância que ia no sentido da, agora recorrida[6]. Esta parece-nos ser a posição que mais se mostra conforme com o espírito da lei e a justeza da solução. Recorde-se como já foi alvitrado nesta Relação [7], que entendimento diverso, levaria a privilegiar em detrimento de uma situação como a destes autos, o caso em que um casal como os pais do autor, se divorcia e se volta a casar após a entrada em vigor do NRAU, para que já não houvesse dúvidas sobre o reconhecimento da titularidade do direito de arrendamento ao cônjuge sobrevivo. Nesta senda, seguimos a posição perfilhada neste último acórdão relatado pelo Sr. Desembargador Diogo Ravara, no qual também se discutia a possibilidade de “dupla transmissão da posição de arrendatário”, segundo o qual: “Assim sendo, considerando que no caso dos autos os pais do réu se casaram em 1954, e que o seu casamento se submeteu ao regime da comunhão geral de bens[27], que inclui todos os bens presentes e futuros de ambos os cônjuges (arts. 1108º do CC 1867 e 1732º do CC1966), tendo o contrato de arrendamento sido outorgado em data posterior, mais precisamente em 20-09-1961, o contrato de arrendamento comunicou-se à mãe do réu com efeitos desde a data da entrada em vigor do NRAU, ou seja, desde 27-06-2006. Ora, como apoditicamente sublinham MARIA OLINDA GARCIA e RUTE TEIXEIRA PEDRO, por força do disposto no art.º 1068º do CC, na redação que lhe foi conferida pelo NRAU, gera-se uma situação de contitularidade da posição jurídica de arrendatário passando o cônjuge do arrendatário com este casado num dos regimes de comunhão a deter a qualidade de coarrendatário. Nesta conformidade, na referida data de 27-06-2006 a mãe do réu tornou-se coarrendatária do locado. Adquirindo ex lege a qualidade de arrendatária do locado, em igualdade de circunstâncias com o pai do réu, à data do seu decesso, a mãe do réu deve para todos os efeitos ser tida como “primitiva arrendatária”, nos termos e para os efeitos previstos no art.º 57º do NRAU. (…) A comunicação da posição de arrendatário dá lugar a uma situação de contitularidade das inerentes posições jurídicas. Nesta medida, nas situações de pluralidade de arrendatários geradas por aquela comunicação, o decesso de um dos contitulares não gera fenómenos de transmissibilidade, na medida em que o contitular sobrevivo já era titular desse direito. Fala-se por isso em mera “concentração” da posição de arrendatário, visto que o arrendatário sobrevivo passa a ser o único detentor dessa posição jurídica – Como ensina Luís MENEZES LEITÃO, “A Transmissão por morte do arrendamento para o cônjuge apenas devo ocorrer nos Casos em que o arrendamento não lhe seja comunicado, nos termos do art.º 1068º, uma vez que, se houver comunicação, não se chega a verificar a caducidade do arrendamento, em consequência da morte de apenas um dos cônjuges, concentrando-se o arrendamento no outro titular.”. Neste sentido cfr. tb. ac. RP 23-02-2023 (Filipe Caroço), p. 10982/16.5T8PRT.P1. Em decorrência do supra exposto, com a morte do pai do réu, em 14-11-2015 não se operou nenhuma transmissão da posição de arrendatário, nos termos e para os efeitos previstos no art.º 57º do NRAU, mas mera “consolidação” da posição de arrendatário na pessoa da mãe do réu”. A ser assim, conclui-se, como na sentença recorrida que o artigo 1068º do Código Civil, se aplica ao contrato de arrendamento em causa e que, aquando do falecimento do pai do A., em 02.10.2014, o contrato de arrendamento não se transmitiu para o cônjuge sobrevivo, uma vez que já fazia parte da sua esfera jurídica. Só com a morte da mãe do A., em 22.06.2022, o contrato teve a sua primeira transmissão. Tendo o contrato de arrendamento sido celebrado antes da entrada em vigor do RAU, aplica-se à transmissão por morte o regime transitório previsto no artigo 57º do NRAU. E, por força do disposto na al. e) do seu n.º 1, o contrato de arrendamento não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva filho ou enteado, que com ele convivesse há mais de um ano, com deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60%, como se demonstrou ser o caso dos presentes autos. * Decisão: Pelo exposto, acordam as Juízes deste Tribunal em julgar improcedente o recurso. Custas a cargo da apelante (art.º 527, nº 1 do CPC). * Lisboa,12/9/2024 Marília Leal Fontes Carla Mendes Teresa Sandiães (com declaração de voto) Declaração de voto: Subscrevo o acórdão, ainda que não adira à opção - perante a divergência jurisprudencial existente -, pela corrente que defende a aplicação imediata tout court do art.º 1068º do CC, norma introduzida pela Lei nº 6/2006 (NRAU). Todavia, no caso concreto, no momento da entrada em vigor da referida norma, existia um casamento atual do arrendatário (que veio a falecer em momento posterior), cujo cônjuge, nestas circunstâncias, entendo ter beneficiado da comunicabilidade do arrendamento, por aplicação ao contrato do disposto no art.º 1068º do CC, por via do art.º 59º do NRAU e do art.º 12º do CC. Assim, por morte do cônjuge daquele, é admissível a transmissão do arrendamento para o filho, ora A., reunidos os demais pressupostos. Teresa Sandiães _______________________________________________________ [1] Neste sentido cfr. GERALDES, Abrantes António, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Edição, Almedina, 2018, págs. 114 a 116. [2] Neste sentido cfr. GERALDES, Abrantes António, in “Opus Cit.”, 5ª Edição, Almedina, 2018, pág. 116. [3] 2 Nesse sentido, Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 21.05.2020 (processo n.º 5958/18.0T8FNC.L1-2) e de 23.03.2017 (processo n.º 5042/14.6TCLRS.L1-2), disponíveis em www.dgsi.pt. 3 Nesse sentido, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17.10.2023 (processo n.º 4184/21.6T8FNC.L1.S1), de 15-05-2023 (processo 1309/20.2T8OER.L1.S1), de 13.04.2021 (processo n.º 5958/18.0T8FNC.L1.S1), de 13-04-2021 (processo 5958/18.0T8FNC.L1.S1) e de 01.03.2018 (processo n.º 4685/14.2T8FNC.L1.S1), disponíveis em www.dgsi.pt. [4] Proc. 5958/18.0T8FNC.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt Ainda no mesmo Acórdão: “Estando-se, pois, perante a regulação de uma situação jurídica sem atenção ao facto que lhe dá origem, vale o disposto na segunda parte do n.º 2 do art.º 12.º do CCivil: a nova lei abrange as relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor. Concordantemente, afirma Rita Lobo Xavier (“Concentração” ou Transmissão do Direito ao Arrendamento Habitacional em caso de divórcio ou de morte - em Estudos em Honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, vol. II, pág. 1019), que “A aplicação da lei nova aos contratos de arrendamento já em curso está em conformidade com o princípio formulado no art.º 12º, nº 2. Na verdade, as disposições do NRAU constituem manifestamente normas que versam o conteúdo das relações jurídicas, abstraindo do facto que lhe deu origem e, por isso, na falta de disposição em contrário, sempre se aplicariam aos contratos de arrendamento já existentes.” [5] Vide, por todos, os seguintes acórdãos: - RL 29-05-2012 (Rosário Gonçalves), p. 1321/11.2YXLSB.L1-1RL 18-10-2012 (Pedro Martins), p. 4994/08.0TBAMD-A.L1-2; - RC 09-04-2013 (Albertina Pedroso), p. 1346/11.8TBCVL-A.C1; - RL 23-09-2014 (Mª Adelaide Domingos), p. 738/11.7YXLSB.L1-1; - RL 09-12-2014 (Gouveia Barros), p. 414/12.3TVLSB.L1-7; - RL 23-03-2017 (Jorge Leal), p. 5042/14.6TCLRS.L1-2; - RL 10-10-2019 (Carlos Castelo Branco), p. 381/16.4YLPRT.L1-2; - RL 21-05-2020 (José Mª Sousa Pinto), p. 5958/18.0T8FNC.L1-2; [6] Ac. Do STJ de 13.04.2021, Proc. 5958/18.0T8FNC.L1.S., disponível em www.dgsi.pt. [7] Ac. Do TRL de 06.02.2024, disponível em www.dgsi.pt. |