Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | CARLA CARECHO | ||
Descritores: | ARRESTO APREENSÃO DE VEÍCULO FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 05/16/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
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Sumário: | (da responsabilidade da relatora): I. Por força do disposto nos artigos 228º, n.º 1 e 3 e 401º, n.º 1, al. d), ambos do CPP e artigos 342º e 372º do CPC, ex vi artigos 4º e 228º, n.º 1, também do CPP, ao terceiro, a favor de quem se mostra registada a propriedade de uma viatura automóvel, não pode deixar de ser garantido o direito de recorrer da decisão de arresto de tal viatura - tendo por isso legitimidade e interesse em agir, como o exigem os artigos 401º, n.º 1, al. d), in fine do CPP e artigo 631º, n.º 2, do CPC -, bem assim de deduzir oposição, ainda que haja meios processuais reservados a terceiros que visam pôr em causa a eficácia das medidas judiciais tomadas, como é o caso dos embargos de terceiro. II. A decisão de reforço do arresto sobre as identificadas viaturas, não viola o caso julgado constituído por prévia decisão, na qual, apesar de se ter decidido pelo levantamento da apreensão decretada pelo Tribunal de 1ª instância, não se apreciou se se verificavam, ou não, os requisitos que sustentariam o pretendido reforço, mas apenas a desadequação do mecanismo previsto no artigo 178º, n.º 1 do CPP do qual aquele Tribunal de 1ª instância lançou mão para determinar a aludida apreensão. III. A divergência de convicção pessoal dos recorrentes sobre a prova coligida e aquela que o Tribunal a quo sobre a mesma formou, não se confunde com qualquer vício do artigo 410º nº 2 do CPP, mormente o aí previsto na al. a). IV. A falta de fundamentação (de facto ou de direito) de um despacho judicial, sem embargo do estatuído nos artigos 205º, n.º 1 da CRP e 97º do CPP, não configura uma nulidade (sanável ou insanável), antes uma irregularidade, ficando sanada caso não seja observado o regime de arguição previsto no artigo 123º do CPP. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferências, as Juízas Desembargadoras da 9ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa I – Relatório Nos autos de Procedimento Cautelar de Arresto com o n.º 5037/14.0TDLSB-G, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Criminal, Juiz 5, apenso aos Autos de PCC n.º 5037/14.0TDLSB em que foi arguido AA, a. veio o assistente e demandante civil “BB” , por requerimento de 29.06.2023 (ref.ª Citius n.º 36401285), requerer o “reforço do arresto preventivo já decretado nos autos dos bens da herança jacente de AA para efeitos da garantia do crédito que lhe foi reconhecido nos autos, no valor de 29.539.629,08 € a título de capital, acrescido de juros de mora à taxa legal, até efectivo e integral pagamento, bem como o mais legal”, no sentido de incluir no mesmo, para o que aqui releva, as viaturas automóveis com as matrículas ..-RO-.. (...) e BX-..-.. (...); b. alegando que sobre tal pretensão não havia sido proferida decisão, apresentou aquele requerente novo requerimento a 12.07.2023 (ref.ª Citius n.º 36532674), dando no mesmo nota que: i) em relação a tais bens foi proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação de Lisboa no sentido de que fosse revogado o despacho de apreensão de ambas as viaturas, ordenando-se o seu levantamento; ii) no dia 07.07.2023 o Il. Mandatário da “...” e CC informou que já procedeu ao levantamento das referidas viaturas, requerendo que lhe fossem devolvidos os certificados de matrícula; Concluiu, requerendo que seja proferida decisão quanto ao já peticionado reforço de arresto preventivo. c. Apresentou aquele requerente novo requerimento, desta feita a 17.09.2023 (ref.ª Citius n.º 37007257), alegando mais uma vez que sobre a deduzida pretensão de reforço de arresto sobre as apontadas viaturas automóveis não havia sido proferida decisão, dando ainda nota do seguinte: i. no âmbito do Apenso N, foi o ora requerente notificado da prolação do despacho proferido a 11.09.2023 (ref.ª Citius n.º 428392567), no qual se determina que seja solicitado a este Apenso G o envio urgente dos certificados de matrícula respeitante aos veículos em causa e que, juntos os mesmos, se proceda à sua entrega aos requerentes; ii. ao proceder-se conforme o ali determinado (cfr. c.i.), “corre-se o sério risco de se frustarem quaisquer pretensões que o requerente e o Estado Português detenham em relação a tais bens, já que é praticamente certo que ocorrerá, acto contínuo, a sua dissipação”, iii. tanto mais que no referido Apenso N, a 07.07.2023, o Il. Mandatário dos referidos (cfr. b.ii.) informou que as duas viaturas já se encontram na sua posse. Mais alegou: iv. encontra-se cessada a suspensão da instância; v. o Acordão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido no Apenso N que determinou “o levantamento da apreensão das viaturas de matrícula ..-RO-.. e BX-..-..” não se pronunciou acerca do reforço de arresto preventivo sobre os aludidos bens, pelo que se mantém “o poder jurisdicional de V. Ex.ªs” para decidir quanto a tal pretensão. Concluiu, reiterando o seu pedido de reforço de arresto apresentado em 29.06.2023 e sobre o qual já incidiu pedido de insistência por requerimento apresentado a 12.07.2023. Foi proferido, a 18.09.2023 (ref.ª Citius n.º 428598755) o despacho de que “... e CC agora recorrem, pelo qual se decidiu: “Nesta conformidade, visando salvaguardar o pagamento das indemnizações já reconhecidas ao Ministério Público e ao assistente, BB, ordeno o arresto, à ordem dos presentes autos, com remoção dos locais onde se encontram, dos veículos automóveis com as matrículas ..-RO-.. (...) e BX-..-.. (...), cuja propriedade se mostra inscrita, respectivamente, a favor de ..., e de CC, devendo a Polícia Judiciária proceder à apreensão de tais veículos e ficando a administração e conservação dos mesmos cometidas ao Gabinete de Administração de Bens (GAB), entidade afecta ao Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P. (IGFEJ, I. P.). Quanto aos documentos de identificação das referidas viaturas, deverão manter-se apreendidos à ordem dos autos, logo que apresentados pelo processo 526/21.2TELSB (em conformidade com o despacho proferido no apenso N a 11.09.2023). Sem custas. Proceda ao registo da presente decisão. Comunique à conservatória do registo automóvel (arts. 391º, 755º e 768º do Código de Processo Civil). Comunique à Polícia Judiciária e ao Gabinete de Administração de Bens, solicitando-se à primeira que proceda à apreensão dos veículos e ao segundo que, com urgência, comunique aos autos a data de início da sua efectiva disponibilidade sobre os mesmos, dados os poderes de conservação e administração de que fica incumbido. Notifique o Ministério Público e o assistente. Os visados pelo ora decretado arresto (..., e CC) apenas serão notificados após se verificar que se encontram à guarda efectiva do Gabinete de Administração de Bens os três veículos objecto do ora decidido – art. 366º, nº 6, do CPC.” Por carta registada com AR, foram “...” e CC notificados de tal despacho (ref.ªs Citius n.º 430709174 e n.º 430709176, respectivamente), “nos termos do artigo 366º, n.º 1 e n.º 1 do artigo 372º, ambos do CPC e para, querendo, em alternativa: - Recorrer, no prazo de 15 dias, nos termos gerais, do despacho que decretou a providência, quando entenda que, face aos elementos apurados, ela não deveria ter sido decretada. Caso a decisão inclua a inversão do contencioso, pode impugná-la no mesmo prazo; - Deduzir oposição, no prazo de 10 dias, quando pretenda alegar factos produzir meios de prova não tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinar a sua redução. Caso a decisão inclua a inversão do contencioso, pode impugná-la no mesmo prazo. Com a oposição deve oferecer o rol de testemunhas e requerer outros meios de prova.” Inconformados com tal despacho, a 18.12.2023 interpuseram recurso “... (ref.ª Citius n.º 37928425) e CC (ref.ª Citius n.º 37925430). Extraiu aquela, das respectivas Motivações, as seguintes Conclusões: “Questão prévia a. Os dois veículos objecto de arresto, que dá origem aos presente recurso, já haviam sido arrestados à ordem deste mesmo processo; b. De facto, foi interposto recurso, consequência do arresto que incidiu sobre ambos os veículos para o Venerando Tribunal da relação de Lisboa; c. Aquele Venerando Tribunal da relação veio conceder provimento aos dois recursos interpostos por “...” e CC, revogando a decisão recorrida, ordenando o levantamento da apreensão das viaturas de matrícula ..-RO-.. (...) e BX-..-.. (...) d. Este doutro Acórdão foi proferido a 22.02.2023; e. Sucede que, depois do Acórdão que revogou o primeiro despacho e ordenou o levantamento da apreensão das viaturas de matrícula ..-RO-.. (...) e BX-..-.. (...), por incrível, e não menos absurdo, que possa parecer, o tribunal “a quo” volta a proferir um segundo despacho “gémeo” a determinar a apreensão dos mesmos veículos?!... f. Despacho este que se limitou a repetir o anterior, e que o Tribunal da relação revogou; g. Estamos a falar de um caso em que um Tribunal superior se pronunciou, mutatis mutandi, estamos perante uma situação de caso julgado; h. A única possibilidade que permitiria a mera repetição do despacho revogado, seria no caso de surgirem provas adicionais que, de alguma forma pudessem vir abalar a convicção e decisão proferida pelo Venerando Tribunal da Relação; i. A não ser assim, torna-se impossível o despacho “gémeo”, objecto do presente recurso ser confirmado, ou melhor, nem sequer poderá ser objecto de apreciação subjectiva, pois foi objectivamente revogado; j. O Tribunal “a quo” não só não invocou qualquer prova adicional, como também, nem sequer fundamentou porque razão repetiu um despacho “gémeo” de igual teor que foi revogado, antes se limitando apenas, e tão só em fazer uma mera remissão, dando por reproduzido os despachos, cujo desfecho foi a sua revogação no seu todo, no que respeita à apreensão dos dois veículos. k. Deste modo, por manifesta falta de fundamento, por se tratar de um caso julgado, este segundo despacho “gémeo” de arresto, objecto do presente recurso, também ele deverá ser, mais uma vez, revogado, o que aqui se invoca para todos os devidos efeitos e legais consequências. Conforme resulta da questão prévia, entendemos que o despacho objecto do presente recurso, tem de ser revogado, não só por razões de facto, como foi o outro despacho “gémeo” emanado pelo mesmo Tribunal “a quo” mas, antes, tem de ser liminarmente revogado por uma questão de Direito, conforme invocado. Não obstante, à cautela, por dever de patrocínio, e para não seguirmos a linha do despacho recorrido, não iremos fundamentar a matéria de facto por mera remissão. l. O presente recurso decorre de um segundo Despacho “gémeo” proferido pelo Meritíssimo Juiz “a quo” que repetiu um despacho anterior (igual) que foi revogado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, pelo que, a matéria de recutso é, também ela igual à do recurso anterior; m. O despacho objecto do presente recurso, é uma mera repetição do primeiro despacho (que foi revogado) e que confirmou a pretensão de apreensão promovida pelo Digníssimo Procurador do Ministério Público sobre a “apreensão” do veículo, propriedade do Recorrente; n. Não existe qualquer prova, seja ela de que natureza for, que possa indiciar que o veículo apreendido resulta de uma qualquer conduta criminosa da Recorrente ou, de algum outro arguido; o. Assim, o que existe para fundamentar a apreensão em crise são meras presunções, meras suposições e/ou suspeitas. NADA MAIS. p. Deste modo, existe uma manifesta e total insuficiência, ou melhor, ausência total de matéria de facto que se possa considerar provada de modo a permitir a apreensão em causa; q. A prova real, concreta, e verdadeira que existe é aquela junta aos autos pela Recorrente; r. Concretamente, que este veículo foi adquirido, juntamente com outros dois veículos por uma sociedade comercial que se dedica à indústria …; s. Veículos, esses, que foram adquiridos na ...; t. Por outro lado, não seria lógico, todo este esquema inimaginável e, não menos rebuscado, e dispendiosoa, por causa de 17.500,00 €…; u. E quanto à utilização por CC, importa relembrar que era o motorista do AA; v. O CC vive em … e sempre que ia, diariamente, transportar o AA, levava a carrinha “RO” da empresa “...” (hoje propriedade da ora recorrente ...”), deixava-a na garagem da ... e levava o veículo ...” para transportar o AA; w. Quando regressava a Lisboa, fazia-o na carrinha “RO”, como é óbvio, pois é a gasóleo e consome, manifestamente, menos combustível que o ...” a gasolina; x. Convenhamos que não fazia qualquer sentido o ...”, um veículo mais dispendioso, a todos os níveis, até porque é um veículo a gasolina e tem um consumo estrondoso, fazer diariamente, várias vezes ... e ..., e ainda ficar estacionado na via pública em ... …; y. Com todo o respeito, pelas razões expostas, verifica-se que não faz qualquer sentido a apreensão de um veículo de trabalho, embora, preferencialmente utilizado pelo CC; z. Concluindo, este veículo “RO” não foi adquirido com montante do ..., como também a sua aquisição não visou ocultar qualquer origem ilícita de fundos, nem permitir a reintrodução de qualquer capital na economia legítima; aa. O grave é que, com a apreensão fica a sociedade impedida de utilizar o veículo apreendido para os diversos fins pretendidos, sobretudo sem poder exercer a sua actividade comercial; - Artigo 410º, n.º 2, al. a) do CPP bb. A insuficiência, ou melhor, neste caso, a ausência de toda e qualquer matéria de facto provada que permita sustentar tal decisão de apreensão, dá origem ao presente recurso; cc. Mais uma vez, nem sequer existe qualquer erro notório na apreciação da prova, uma vez que, prova é algo que não existe até ao momento, nos presentes autos, no que à recorrente diz respeito; dd. Assim, não existe prova cabal, legal, admissível e possível, que possa sustentar, legitimar a apreensão em crise; ee. Salvo melhor entendimento, apenas e só após a produção de prova bastante, é que se poderá conferir legitimidade à apreensão em causa; - Artigo 412º do CPP ff. Decidindo como decidiu o douto Despacho ao utilizar a figura da apreensão no caso concreto, totalmente desligada de qualquer finalidade probatória (meio de obtenção e/ou conservação da prova) extravasa o espírito do artigo 178º do CPP, bem como, viola e ofende a garantia do direito de propriedade dos bens consagrada e prevista do artigo 62º da CRP e, bem assim, o princípio estabelecido no artigo 18º da CRP; gg. Atenta a total ausência de prova, jamais se entende a apreensão decretada; hh. Deste modo, pelas razões invocadas, quer de facto, quer de Direito, e sempre com o maior respeito, deverá o douto Despacho recorrido ser revogado. Atento tudo o exposto, deverá ser levantada a apreensão do veículo ..-RO-.., marca ..., modelo ... e ser devolvido à recorrente. Nestes termos e nos demais de Direito, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o douto Despacho recorrido e, em consequência, ordenar o levantamento da apreensão e registo efectuado, com todas as legais consequências, como se afigura de elementar e inteira Justiça.” (fim de transcrição) São as seguintes as Conclusões que o recorrente CC extraiu das Motivações de recurso que apresentou (ref.ª Citius n.º 37925430): “Questão prévia a. Os dois veículos objecto de arresto, que dá origem aos presente recurso, já haviam sido arrestados à ordem deste mesmo processo; b. De facto, foi interposto recurso, consequência do arresto que incidiu sobre ambos os veículos para o Venerando Tribunal da relação de Lisboa; c. Aquele Venerando Tribunal da relação veio conceder provimento aos dois recursos interpostos por “...” e CC, revogando a decisão recorrida, ordenando o levantamento da apreensão das viaturas de matrícula ..-RO-.. (...) e BX-..-.. (...) d. Este doutro Acórdão foi proferido a 22.02.2023; e. Sucede que, depois do Acórdão que revogou o primeiro despacho e ordenou o levantamento da apreensão das viaturas de matrícula ..-RO-.. (...) e BX-..-.. (...), por incrível, e não menos absurdo, que possa parecer, o tribunal “a quo” volta a proferir um segundo despacho “gémeo” a determinar a apreensão dos mesmos veículos?!... f. Despacho este que se limitou a repetir o anterior, e que o Tribunal da relação revogou; g. Estamos a falar de um caso em que um Tribunal superior se pronunciou, mutatis mutandi, estamos perante uma situação de caso julgado; h. A única possibilidade que permitiria a mera repetição do despacho revogado, seria no caso de surgirem provas adicionais que, de alguma forma pudessem vir abalar a convicção e decisão proferida pelo Venerando Tribunal da Relação; i. A não ser assim, torna-se impossível o despacho “gémeo”, objecto do presente recurso ser confirmado, ou melhor, nem sequer poderá ser objecto de apreciação subjectiva, pois foi objectivamente revogado; j. O Tribunal “a quo” não só não invocou qualquer prova adicional, como também, nem sequer fundamentou porque razão repetiu um despacho “gémeo” de igual teor que foi revogado, antes se limitando apenas, e tão só em fazer uma mera remissão, dando por reproduzido os despachos, cujo desfecho foi a sua revogação no seu todo, no que respeita à apreensão dos dois veículos. k. Deste modo, por manifesta falta de fundamento, por se tratar de um caso julgado, este segundo despacho “gémeo” de arresto, objecto do presente recurso, também ele deverá ser, mais uma vez, revogado, o que aqui se invoca para todos os devidos efeitos e legais consequências. Conforme resulta da questão prévia, entendemos que o despacho objecto do presente recurso, tem de ser revogado, não só por razões de facto, como foi o outro despacho “gémeo” emanado pelo mesmo Tribunal “a quo” mas, antes, tem de ser liminarmente revogado por uma questão de Direito, conforme invocado. Não obstante, à cautela, por dever de patrocínio, e para não seguirmos a linha do despacho recorrido, não iremos fundamentar a matéria de facto por mera remissão. l. O presente recurso decorre de um segundo Despacho “gémeo” proferido pelo Meritíssimo Juiz “a quo” que repetiu um despacho anterior (igual) que foi revogado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, pelo que, a matéria de recutso é, também ela igual à do recurso anterior; m. O despacho objecto do presente recurso, é uma mera repetição do primeiro despacho (que foi revogado) e que confirmou a pretensão de apreensão promovida pelo Digníssimo Procurador do ... sobre a “apreensão” do veículo, propriedade do Recorrente; n. O fundamento do douto Despacho objecto do presente recurso limitou-se a fazer uma mera remissão para um expediente de um outro processo e despacho …; o. A verdade é qie não existem nem surgiu qualquer outra prova legal e cabal que permita fundamentar ou justificar a apreensão do veículo apreendido ao Recorrente; p. Não existe qualquer prova, seja ela de que natureza for, que possa indiciar que o veículo apreendido resulta de uma qualquer conduta criminosa da Recorrente; q. Não há uma única prova, seja ela de que natureza for, que possa indiciar que o veículo apreendido resulta de uma qualquer conduta criminosa do Recorrente; r. O CC adquiriu a propriedade do veículo em termos e condições explicados ao longo das Motivações de Recurso; s. Assim, o que existe para fundamentar a apreensão em crise são meras presunções, meras suposições e/ou suspeitas. NADA MAIS. t. Deste modo, existe uma manifesta e total insuficiência, ou melhor, ausência total de matéria de facto que se possa considerar provada de modo a permitir a apreensão em causa; - Artigo 410º, n.º 2, al. a) do CPP u. A insuficiência, ou melhor, neste caso, a ausência de toda e qualquer matéria de facto provada que permita sustentar tal decisão de apreensão, dá origem ao presente recurso; v. Mais, nem sequer existe qualquer erro notório na apreciação da prova, uma vez que, prova é algo que não existe até ao momento, nos presentes autos, no que à recorrente diz respeito; w. Assim, não existe prova cabal, legal, admissível e possível, que possa sustentar, legitimar a apreensão em crise; x. Salvo melhor entendimento, apenas e só a produção de prova bastante, é que se poderá conferir legitimidade à apreensão em causa; - Artigo 412º do CPP y. Decidindo como decidiu o douto Despacho ao utilizar a figura da apreensão no caso concreto, totalmente desligada de qualquer finalidade probatória (meio de obtenção e/ou conservação da prova) extravasa o espírito do artigo 178º do CPP, bem como, viola e ofende a garantia do direito de propriedade dos bens consagrada e prevista do artigo 62º da CRP e, bem assim, o princípio estabelecido no artigo 18º da CRP; z. Atenta a total ausência de prova, jamais se entende a apreensão decretada; aa. Deste modo, pelas razões invocadas, quer de facto, quer de Direito, e sempre com o maior respeito, deverá o douto Despacho recorrido ser revogado. Atento tudo o exposto, deverá ser levantada a apreensão do veículo BX-..-.., marca ..., modelo 911 Carrera 4 Targa e ser devolvido ao recorrente. Nestes termos e nos demais de Direito, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o douto Despacho recorrido e, em consequência, ordenar o levantamento da apreensão e registo efectuado, com todas as legais consequências, como se afigura de elementar e inteira Justiça.” (fim de transcrição) Tais Recursos foram admitidos, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo, por Despacho de 19.12.2023 (ref.ª Citius n.º 431308184), tendo sido ordenado ainda o cumprimento do artigo 411º, n.º 6 do CPP. Apresentou o assistente BB a sua Resposta (ref.ª Citius n.º 47773817): i. suscitando desde logo a desadequação do meio processual utilizado pelos recorrentes – Recurso -, pois que tendo sido decretado o arresto sobre cada uma das identificadas viaturas, o meio processual de que a “...” e CC deveriam ter lançado mão era a oposição por meio de embargos de terceiro, pois que são terceiros nos autos, devendo assim os interpostos recursos ser rejeitados por falta de legitimidade (artigos 401º, n.º 1, a contrario, 414º, n.º 2 e 420º, n.º 1, al. b), todos do CPP). ii. Pugnando pela não verificação da excepção de caso julgado, porquanto o despacho ora recorrido incidiu sobre questão que não foi conhecida, apreciada ou julgada pelo apontado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22.02.2023, pois que este não se pronunciou sobre o arresto preventivo dos bens em causa, não se pronunciou quanto a qualquer dos requisitos de tal arresto que foi agora decretado; iii. Considerando as sentenças proferidas nos autos de Arresto a 13.11.2021, 23.11.2021 e 09.12.2021, onde se reconheceu a probabilidade séria da existência dos créditos do assistente e do MP, bem assim o justificado receio de perda da garantia patrimonial aos mesmos inerentes, deixa de ser necessário continuar a demonstrar e a revisitar tais requisitos, os quais já se encontram estabilizados e reconhecidos nos autos, sendo apenas necessário constatar a falta ou insuficiência dos bens já arrestados para garantia do crédito já reconhecido; iv. Considerando que o arresto preventivo incide sobre o património do arguido, tenha o mesmo origem lícita ou ilícita, podendo incidir sobre bens do arguido que se encontrem na posse de terceiros, há que manter o arresto decretado sobre ambas as viaturas automóveis. Também o Ministério Público apresentou a sua Resposta a 12.01.2024, com as seguintes Conclusões: “1. O despacho de 18.09.2023 que determinou o arresto das viaturas de matrícula ..-RO-.. e BX-..-.. concluiu em face da sua apreensão através do Gabinete de Administração de Bens da Polícia Judiciária, sendo que tal apreensão não põe em causa o caso julgado decorrente do douto acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa de 22.02.2023. 2. O douto acórdão visou o despacho de 15.07.2022 que em face da suspensão de instância civel decorrente do óbito do arguido AA, nos termos dos arts 269° nº1 al.a), 270º, nº 1 e 276° nº1 (a) todos do Código de Processo Civil rejeitou o reforço de arresto requerido pelo BB e pelo Ministério Público mas determinou a apreensão das viaturas nos termos do art 178° do Código de Processo Penal a fim de evitar dano irreparável da possibilidade da sua dissipação. 3. Nesse sentido não foram apreciados os fundamentos da apreensão, mas apenas o recurso ao disposto no art 178° do Código de Processo Penal como mecanismo de garantia patrimonial, concluindo-se pela inadmissibilidade. 4. Nos presentes autos, finda a suspensão da instância cível foi desta feita pelo despacho sob recurso decretado o arresto preventivo nos termos do art 227º e 228° do Código de Processo Penal, 5. Sendo que a apreensão efectivada decorre de tal arresto, pelo que é manifesta que não se trata de qualquer violação de caso julgado, incumbindo quanto muito apreciar da verificação dos pressupostos do mesmo. 6. Decorre dos autos que no Proc 523/21,2TELSB que corre termos no DCIAP apurou-se que, "Que constata-se, ainda, que à data da sua apreensão à ordem destes autos, este veiculo se encontrava na oficia de DD, sendo que, nos orçamentos dessa oficina. AA figurava sempre como sendo o cliente (e não CC, como sucederia caso o veiculo the pertencesse. Acresce que quando inquirido, DD referiu que nunca reparou carros pertencentes a CC e que quem era seu cliente era AA, tendo sido este quem lhe entregou o ... em Agosto de 2021. Além disso, desde 2018, que além do ..., the reparou também os veículos de matrícula ..-FM-.. e ..-..-OJ.I No decurso dessa inquirição, formeceu aos autos mensagens que corrobora as suas declarações, assim como comprovativo de transferência bancária realizada por AA para conta da testemunha para pagamento de serviços prestados do veículo ...." 7- Mais decorre de tais autos constam mensagens do recorrente CC refere ao identificado DD "o ... do Dr AA aparece com estes avisos. Sabe o que se trata?" ou "o carro do Dr AA tem estes problemas ... BX.....(...) Dr pergunta se há hipóteses de ir a ... buscar.” 8. A viatura automóvel de marca ... BX-..-.. fol adquirida pelo recorrente em Outubro de 2016, no mesmo ano em que a sociedade "..." adquiriu a viatura Mercedes (relativa ao recurso da ...), sociedades do ora recorrente. 9. Tais factos foram tidos em consideração e análise do douto despacho sob recurso quando decidiu: "Realça-se, aliás, que no acórdão condenatório proferido nos autos principais (embora ainda não transitado em julgado) ficou demonstrado que tal arguido realizou operações de transferência para terceiros do património e fundos que ilegitimamente obteve com o fim de dissimular a sua verdadeira origem e impedir o respectivo rastreio, localização e apreensão, o que explica que, também quanto às viaturas em apreço, as detivesse em nome dos aludidos requerentes. " 10. Decorre dos autos que correm termos no DCIAP (Proc 526/21.2TELSB) que a Policia Judiciária recolheu os registos de entradas e saídas da ... nos quais consta a viatura em causa como "o veículo é do proprietário", decorrendo dos autos que a informação apurada é corroborada com a informação obtida através das interceções realizadas, às comunicações recebidas/efectuadas por EE, onde se constata que o "Mercedes" (sic) utilizado por CC pertence ao casal AA mas está na esfera juridica de CC, conforme se depreende na comunicação realizada a ........2022 em que FF questiona EE, se o veículo de marca Mercedes ainda está em nome de GG tendo … respondido que não não, uma caminha, ela tem outro, um Mercedes, o Mercedes eo outro... hummm, não! Tá no nome hummm...doutra pessoa" (SIC). FF por não ter percebido a resposta dada, questiona novamente se "o que andava o CC é que ela ainda tem" (SIC) tendo EE respondido que "tem mas não, não ela, o CC, está em nome do CC, tá no nome dele, esse e um outro, um...um de muito valor (SIC) Reforça-se que EE é imã de GG e, pelo menos desde a fuga de AA, vivem juntas na mesma residência (inicialmente no ... da ... e actualmente no lote 23, E6 2º andar da ...) portanto é natural que EE tratando-se de pessoa da sua confiança, possua informação privilegiada e conhecimento dos factos descritos. 11. Os documentos que o recorrente alega que demonstram a aquisição da viatura na ... com dinheiro levantado para o efeito e com licença para Taxi, que junta com o recurso no nosso entender os documentos em causa são cópias rudimentares de dificil leitura e que desde já se impugnam quanto ao teor e genuinidade, não demonstrando o que o recorrente pretende demonstrar. 12. Na verdade, o recorrente referindo que a viatura se destinava à actividade de táxi contraditoriamente refere que a usava para se fazer transportar para casa de AA usando outra viatura no transporte do mesmo, o que as informações anteriormente referidas contrariam. 13. Face a todo o exposto em nenhuma das situações o douto despacho padece de qualquer vício, designadamente o vício de insuficiência ou omissão de matéria de facto de que os recorrentes manifestaram conhecer e apresentando factos que justificam o caricato de as viaturas estarem na garagem de AA e usadas pelo mesmo, sob a sua disponibilidade!. Por todo o exposto, improcedem todas as alegações do aqui recorrente, não padecendo assim o douto despacho sob recurso qualquer reparo. Termos em que negando provimento ao recurso interposto pelo arguido V. Exas., Venerandos Desembargadores, farão, Justiça” (fim de transcrição) Subidos os autos a este Tribunal da Relação, foi emitido Parecer pelo Senhor Procurador-Geral Adjunto, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 416º do CPP, tendo acompanhado a Resposta apresentada pelo Ministério Público junto da 1ª instância (ref.ª Citius n.º 21219407). Cumprido o artigo 417º, n.º 2 do CPP, veio a recorrente “...” Dar por integralmente reproduzido as Motivações e Conclusões apresentadas. Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à Conferência – artigo 419º, n.º 3 do CPP. * Questão prévia: Defende o assistente BB, invocando para o efeito os artigos 401º, n.º 1, a contrario, 414º, n.º 2 e 420º, n.º 1, al. b), todos do CPP, a falta de legitimidade da sociedade “...” e de CC para interporem os recursos em causa, porquanto sendo terceiros nos autos, deveriam ter lançado mão do mecanismo de embargos de terceiro, previsto no CPC, para reagir contra o despacho que decretou o arresto das viaturas automóveis identificadas nos autos. Estamos em crer que não merece discussão que ao(s) terceiro(s) a favor de quem se mostra registada a propriedade sobre certa(s) e determinada(s) viatura(s) automóvel(eis), importa reconhecer e assegurar efectivamente a possibilidade de reagir contra decisão judicial que determina o arresto preventivo de tal(ais) viatura(s), pois em causa está a tutela jurisdicional na defesa de um direito de propriedade privada, protegido pelos artigos 20º e 62º da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP). Dúvidas igualmente inexistem quanto à circunstância da sociedade comercial “...” e de CC serem terceiros para efeitos do procedimento cautelar de arresto inicialmente movido pelo assistente BB contra AA, bem assim quanto ao pedido de reforço de tal arresto formulado por aquele, cujo deferimento se mostra posto em causa com os recursos interpostos e objecto de apreciação por este Tribunal da Relação. E como nos diz de forma clara Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de processo penal, à luz da CRP e da CEDH”, 3ª ed., pág. 1021, comentário ao artigo 401º “Tem legitimidade para recorrer aquele que é afectado pela decisão, isto é, aquele cujos direitos foram prejudicados ou poderão vir a ser prejudicados pela mesma. Tem interesse em agir aquele que tem carência do processo (rectius, do recurso) para fazer valer o seu direito.” Por seu turno, o artigo 414º, sob a epígrafe “Admissão do recurso”, dita no seu n.º 2: “ O recurso não é admitido quando a decisão for irrecorrível, quando for interposto fora de tempo, quando o recorrente não reunir as condições necessárias para recorrer, quando faltar a motivação ou, faltando as conclusões, quando o recorrente não as apresente em 10 dias após ser convidado a fazê-lo.” Já o artigo 420º (Rejeição do recurso), no seu n.º 1, al. b) tem o seguinte teor: “O recurso é rejeitado sempre que que se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do n.º 2 do artigo 414º” Por seu turno, dispõe o artigo 631º, n.º 2 do CPC: “As pessoas directa e efectivamente prejudicadas pela decisão podem recorrer dela, ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes acessórias.” O artigo 366º, n.º 6 do CPC, que consagra o Contraditório do requerido, preceitua: “6 - Quando o requerido não for ouvido e a providência vier a ser decretada, só após a sua realização é notificado da decisão que a ordenou, aplicando-se à notificação o preceituado quanto à citação.” Na mesma linha surge o artigo 372º do CPC:“1 - Quando o requerido não tiver sido ouvido antes do decretamento da providência, é-lhe lícito, em alternativa, na sequência da notificação prevista no n.º 6 do artigo 366.º: a) Recorrer, nos termos gerais, do despacho que a decretou, quando entenda que, face aos elementos apurados, ela não devia ter sido deferida; b) Deduzir oposição, quando pretenda alegar factos ou produzir meios de prova não tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinem a sua redução, aplicando-se, com as adaptações necessárias, o disposto nos artigos 367.º e 368.º. Face a tais inquestionáveis noções e considerando o efeito útil da decisão recorrida, torna-se evidente que os aqui recorrentes têm legitimidade para recorrer do despacho proferido pelo tribunal a quo que decretou o arresto de cada uma das identificadas viaturas automóveis, ainda que se tenha presente que há, no nosso direito, meios processuais reservados a terceiros que visam pôr em causa a eficácia das medidas judiciais tomadas, como é o caso dos embargos de terceiro (cfr. Lebre de Freitas, in “CPC Anotado, Coimbra Editora, 2003, em anotação ao artigo 680º). Do exposto, podemos ter por assente que ao(s) terceiro(s) titular(es) do(s) bem(ns) arrestado(s), não pode deixar de ser garantido o direito de recorrer da decisão de arresto, bem assim de deduzir oposição ou, como referido, embargar de terceiro, tudo nos termos do disposto nos artigos 228º, n.º 1 e 3 e 401º, n.º 1, al. d), ambos do CPP e artigos 342º e 372º do CPC, ex vi artigos 4º e 228º, n.º 1, ambos do CPP (neste sentido veja-se o Ac. Rel.Lisboa de 14.12.2023, Proc. n.º 244/11.0TELSB-S.L1-5, relatora Juíza Desembargadora Ana Cláudia Nogueira, in www.dgsi.pt) Dependendo do meio processual de que o(s) terceiro(s) visado(s) com o decretamento da providência de arresto preventivo lance mão, diferentes serão os pressupostos/requisitos que importará alegar (e provar) com vista a lograr obter a solicitada tutela jurisdicional. Com efeito, socorrendo-se do mecanismo dos embargos de terceiro, a apresentar junto do tribunal a quo, por apenso aos autos de providência cautelar de arresto, visará(ão) o(s) terceiro(s) invocar e provar, v.g., a sua qualidade de proprietário(s) (formal e material) de tal(ais) bem(ns), logrando que aquele decrete o levantamento do arresto em tempos determinado, bem assim que seja proferida decisão de mérito quanto à existência e titularidade do direito invocado (cfr. artigos 342º a 350º do CPC). Deduzindo oposição, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 372º, n.º 1, al. b) do CPC, também junto do tribunal da 1ª instância, o(s) terceiro(s) alegará(ão) factos ou produzirá(ão) meios de prova não tidos em conta por aquele mesmo tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinem a sua redução, aplicando-se, com as adaptações necessárias, o disposto nos artigos 367º e 368º. Servindo-se o(s) terceiro(s) da via do recurso, invocará(ão) em seu favor, junto de Tribunal Superior, fundamentos de facto e de direito aptos a contrariar aqueles que fundamentaram a decisão recorrida (artigos 410º e 412º, ambos do CPP) que decretou o arresto do(s) bem(ns) identificados. Mas como se torna evidente, tendo sido decretado o arresto sobre cada uma das viaturas automóveis em relação às quais cada um dos recorrentes se arroga seu proprietário, pretendendo assim o levantamento de tal medida cautelar, porque ofensiva dos seus direitos, têm os mesmos, na qualidade de terceiros, legitimidade e interesse em agir, tal qual se mostram desenhados pelos citados artigos 401º, n.º 1, al. d), in fine do CPP e artigo 631º, n.º 2, do CPC, sendo estes os únicos requisitos processuais exigidos para a admissibilidade do recurso. E ainda que assim se não entendesse, importaria olhar para o processado dos autos. Conforme acima já se deixou consignado, foram os ora recorrentes, após o decretamento do arresto das viaturas em causa e da respectiva realização, notificados “nos termos do artigo 366º, n.º 1 e n.º 1 do artigo 372º, ambos do CPC e para, querendo, em alternativa: - Recorrer, no prazo de 15 dias, nos termos gerais, do despacho que decretou a providência, quando entenda que, face aos elementos apurados, ela não deveria ter sido decretada. Caso a decisão inclua a inversão do contencioso, pode impugná-la no mesmo prazo; - Deduzir oposição, no prazo de 10 dias, quando pretenda alegar factos produzir meios de prova não tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinar a sua redução. Caso a decisão inclua a inversão do contencioso, pode impugná-la no mesmo prazo. Com a oposição deve oferecer o rol de testemunhas e requerer outros meios de prova.” Tendo sido então notificados nos termos vindos de exarar, e tendo aqueles terceiros optado por interpor recurso do aludido despacho que decretou o arresto das viaturas automóveis com vista ao reforço do arresto já em tempos decretado, não poderá a excepção de ilegitimidade de cada um dos recorrentes para a interposição dos presentes recursos, suscitada pelo assistente BB, proceder. * II – Fundamentação do Recurso Do âmbito do recurso e das questões a decidir: De acordo com o preceituado nos artigos 402º, 403º e 412º, n.º 1, todos do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do(s) recorrente(s), já que é nelas que sintetiza(m) as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na(s) motivação(ões). Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem o(s) recorrente(s), nos termos dos artigos 379º, nº 2 e 410º, nº 3 ambos do CPP e dos vícios previstos no artigo 410,º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (assim se decidiu no Ac. do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995 e no AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005). Umas e outras definem, pois, o objecto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior. Olhando então para as conclusões dos recorrentes, não esquecendo ainda o teor da Resposta apresentada pelo assistente “BB”, são as seguintes as questões a apreciar: 1º- Verifica-se a excepção de caso julgado? 2º - Caso a resposta à segunda questão seja negativa, padece o despacho recorrido do vício previsto no artigo 410º, n.º 2, al. a) do CPP/ falta de fundamentação de facto do despacho recorrido? 3º - Caso a resposta à terceira questão seja negativa, mostram-se (in)verificados os requisitos que determinaram o arresto de cada uma das viaturas automóveis identificadas com as matrículas ..-RO-.. (...) e BX-..-.. (...), cuja propriedade se mostra inscrita, respectivamente, a favor de “...” e de CC? - É do seguinte teor o despacho recorrido, proferido a 18.09.2023: “Vieram o Ministério Público e o assistente, BB, requerer o reforço dos arrestos decretados nos autos, pugnando pela sua extensão aos veículos automóveis com as matrículas ..-RO-.. (...) e BX-..-.. (...), o primeiro com inscrição da propriedade a favor de ..., e o segundo com inscrição da propriedade a favor de CC, alegando que, não obstante inscritos a favor de terceiros, tais veículos pertenciam a AA, acrescentando que os bens já apreendidos e arrestados à ordem dos autos são insuficientes para permitir o pagamento das indemnizações que, no acórdão condenatório proferido em 14.05.2021, já lhes foram reconhecidas. Encontram-se juntas aos autos as certidões do registo automóvel, actualizadas, referentes às supra mencionadas viaturas. Em face da abundante prova documental junta aos autos, dispensa-se a produção de quaisquer outros meios de prova. O Tribunal é competente, em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, bem como legitimidade. Não há nulidades, questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer. Da conjugação dos diversos elementos documentais juntos aos autos, designadamente, os constantes da informação junta ao presente apenso a 01.07.2022 (ref. 417241966), das certidões do registo automóvel juntas a 01.08.2023 (ref. 36684916), do acórdão proferido nos autos principais a 14.05.2021, da sentença proferida em 16.06.2023 pelo Venerando Tribunal da relação de Lisboa, nos autos principais, e não sendo este apenso incidental alheio a todo o demais processado nos autos principais, que igualmente se analisa de forma crítica, encontra-se indiciariamente demonstrado, atento o juízo de probabilidade necessário ao tipo de providência em apreço, que: Através da ap. 09786, de 20.12.2021, encontra-se registada, na Conservatória do Registo de Automóveis de Lisboa, a propriedade do veículo automóvel de matrícula ..-RO-.., de marca ..., a favor de ... Através da ap. 4225, de 28.10.2016, encontra-se registada, na Conservatória do Registo de Automóveis de Lisboa, a propriedade do veículo automóvel de matrícula BX-..-.. de marca ..., a favor de CC, por compra a AA; AA faleceu em 12.05.2022 no estado de casado com GG, que repudiou a respectiva herança; Em consequência, foi julgada habilitada a herança jacente do falecido para, em sua representação, prosseguir a acção cível; Por acórdão proferido nos autos principais a 14.05.2021, não transitado em julgado, o arguido AA foi condenado: 5.1. - Quanto à parte criminal: i) pela prática, em co-autoria, e em autoria material, e na forma consumada, de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 103º, nº 1, alíneas a), b) e c) e 104º, nº 2, do Regime Geral das Infracções Tributárias, na pena de 4 (quatro) anos de prisão; ii) pela prática, em co-autoria material, e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança qualificado, p. e p. pelos artigos 205º, nº 1 e n º 4, alínea b), com referência ao artigo 202º, alínea b), do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão; iii) pela prática, em co-autoria, e em autoria material, e na forma consumada, de um crime de branqueamento, p. e p. pelo artigo 368º-A, nºs 1 a 4, do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão; iv) em cúmulo jurídico das referidas penas parcelares, na pena única de 10 (dez) anos de prisão; 5.2. – Quanto à parte cível: i) A pagar ao Estado Português a quantia de € 4.901.505,19 (quatro milhões novecentos e um mil quinhentos e cinco euros e dezanove cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da sua notificação para contestar o pedido de indemnização civil e até integral pagamento; ii) A pagar ao assistente, BB, solidariamente com outros arguidos, a quantia de € 29.539.629,08 (vinte e nove milhões quinhentos e trinta e nove mil seiscentos e vinte e nove euros e oito cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da sua notificação para contestar o pedido de indemnização civil, e até integral pagamento; 6. Nos termos do acórdão referido em 1., foram declarados perdidos a favor do Estado, nomeadamente, os seguintes bens e valores, pertencentes ao arguido AA e/ou a pessoas e entidades com este relacionadas, objecto de apreensões e arrestos decretados nos autos, a fim de pelo seu produto serem pagas as indemnizações referidas em 1.2.: a) Os activos da conta bancária do arguido AA, no ..., no valor de € 22.766,67 (autos de Arresto A, a fls. 188); b) O saldo de € 2.286,89, da conta bancária do arguido AA, no ... (autos de Arresto A, a fls. 195 e 1056); c) Os activos das contas bancárias do arguido AA no ..., no valor de € 17.971,70 (autos de Arresto A, a fls. 218); d) Os saldos contas bancárias do arguido AA, no ..., no valor de 152,05USD e de € 1.110.368,01 (autos de Arresto A, a fls. 220); e) Os activos das contas bancárias de GG, no ..., no valor de € 190.216,57 (autos de Arresto A, a fls. 1311); f) O saldo da conta bancária do arguido AA no ..., de € 1.072,66 (autos de Arresto A, a fls. 236); g) Os activos da conta bancária da ..., no ..., no valor de € 17.110,00 (autos de Arresto A, a fls. 329); h) Os activos da conta bancária da ..., no ..., no valor de € 25.801,00 (autos de Arresto A, a fls. 319 e 329); i) Os activos da conta bancária da ..., no ..., no valor de € 54.067,45 (autos de Arresto A, a fls. 329); j) Os activos da conta bancária de GG, no ..., no valor de € 28.675,43 (nos autos de Arresto A, a fls. 329); l) A fracção autónoma correspondente ao …, designada pela letra … do prédio urbano sito na ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº … (autos de Arresto B); m) A fracção autónoma correspondente ao … do prédio urbano sito na ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o nº … (autos de Arresto B); n) O prédio urbano denominado ..., sito em ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … e descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o nº … (autos de Arresto B); o) O prédio urbano denominado ..., sito na ..., em ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … e descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o nº … (autos de Arresto B); p) - A quantia de € 68.000,00 (sessenta e oito mil euros) - auto de busca e apreensão de fls. 541; q) -As obras de arte descritas no auto de busca e apreensão de 11.11.2010; 7. AA realizou operações de transferência, para terceiros, de património que obteve com a prática dos factos que originaram a sua condenação, supra referida em 5., com o fim de impedir o respectivo rastreio, localização e apreensão; 8. Não obstante as inscrições referidas em 1. e 2., a favor de ..., e de CC, as viaturas em causa pertenciam a AA, sendo por este usadas conforme lhe aprouvesse; 9. Existe o risco de não ser possível o ressarcimento dos lesados caso os veículos automóveis supra referidos em 1. e 2. não sejam objecto de apreensão à ordem dos presentes autos e removidos dos locais onde se encontram. Factos indiciariamente não provados: Inexistem. Dá-se nesta sede por integralmente reproduzido o que, quanto aos pressupostos de decretamento do arresto, se consignou nos despachos proferidos nestes autos a 15.07.2022 e a 23.09.2022, uma vez que é manifesta a desnecessidade de repetir tais considerações, perfeitamente adquiridas. Ora, tendo em conta a factualidade que supra indiciariamente se considerou assente, dúvidas não restam de que os créditos do Ministério Público e do assistente se encontram reconhecidos por acórdão condenatório, pese embora ainda não transitado em julgado, do mesmo modo que é inequívoca a existência de justo receio de perda da garantia patrimonial inerente. Por conseguinte, mantendo-se a probabilidade séria da existência dos créditos do Ministério Público e do assistente, e sendo justificado o receio de perda da garantia patrimonial dos mesmos, é adequado o solicitado reforço da providência de arresto, pelo que, procedendo integralmente o requerido, cumpre decretar o arresto dos dois veículos automóveis supra referidos, cuja propriedade se encontra registada em nome de terceiros para quem, formalmente, o falecido AA transmitiu a respectiva propriedade. Tais veículos ficarão afectos à administração e conservação por parte do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P. (IGFEJ, I. P.), através do Gabinete de Administração de Bens (GAB), nos termos previstos no art. 10º, nº 1, e nº 3, al. a), da Lei nº 45/2011, de 24 de Junho, mantendo-se à ordem dos presentes autos a apreensão dos documentos de identificação dos veículos (art. 768º, nº 3, al. a), do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do art. 391º do mesmo diploma). DECISÃO: Nesta conformidade, visando salvaguardar o pagamento das indemnizações já reconhecidas ao Ministério Público e ao assistente, BB, ordeno o arresto, à ordem dos presentes autos, com remoção dos locais onde se encontram, dos veículos automóveis com as matrículas ..-RO-.. (...) e BX-..-.. ..., cuja propriedade se mostra inscrita, respectivamente, a favor de ..., e de CC, devendo a Polícia Judiciária proceder à apreensão de tais veículos e ficando a administração e conservação dos mesmos cometidas ao Gabinete de Administração de Bens (GAB), entidade afecta ao Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P. (IGFEJ, I. P.). Quanto aos documentos de identificação das referidas viaturas, deverão manter-se apreendidos à ordem dos autos, logo que apresentados pelo processo 526/21.2TELSB (em conformidade com o despacho proferido no apenso N a 11.09.2023). Sem custas. Proceda ao registo da presente decisão. Comunique à conservatória do registo automóvel (arts. 391º, 755º e 768º do Código de Processo Civil). Comunique à Polícia Judiciária e ao Gabinete de Administração de Bens, solicitando-se à primeira que proceda à apreensão dos veículos e ao segundo que, com urgência, comunique aos autos a data de início da sua efectiva disponibilidade sobre os mesmos, dados os poderes de conservação e administração de que fica incumbido. Notifique o Ministério Público e o assistente. Os visados pelo ora decretado arresto (..., e CC) apenas serão notificados após se verificar que se encontram à guarda efectiva do Gabinete de Administração de Bens os três veículos objecto do ora decidido – art. 366º, nº 6, do CPC.” (fim de transcrição) * 1ª questão objecto do recurso: verifica-se a excepção de caso julgado? Invoca cada um dos recorrentes a excepção de caso julgado, argumentando que os dois veículos objecto de arresto, com as matrículas de ..-RO-.. (...) e BX-..-.. (...), já haviam sido arrestados à ordem deste mesmo processo e interposto recurso de tal decisão pelos aqui recorrentes “...” e CC para o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, foi proferido Acordão a 22.02.2023 que concedeu provimento aos dois recursos interpostos, revogando a decisão recorrida e ordenando o levantamento das apreensões. Por tal, não poderia o tribunal a quo, voltar a proferir um segundo despacho “gémeo” àquele que foi revogado, determinando a apreensão dos mesmos veículos. Argumentam ainda que a única possibilidade que permitiria a mera repetição do despacho revogado, seria no caso de surgirem provas adicionais que, de alguma forma pudessem vir abalar a convicção e decisão proferida pelo Venerando Tribunal da Relação”. Não tendo o Tribunal a quo invocado qualquer prova adicional, nem fundamentado porque razão repetiu um despacho “gémeo” de igual teor ao que foi revogado, deverá o despacho objecto de recurso ser liminarmente revogado. O assistente BB na Resposta que apresentou, pugnou pela não verificação da excepção de caso julgado, porquanto o despacho ora recorrido incidiu sobre questão que não foi conhecida, apreciada ou julgada pelo apontado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22.02.2023, pois que este não se pronunciou sobre o arresto preventivo dos bens em causa, não se pronunciou quanto a qualquer dos requisitos de tal arresto que foi agora decretado. Também o Ministério Público, na sua Resposta, defendeu que a apreensão determinada pelo despacho recorrido não põe em causa o caso julgado decorrente do douto acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa de 22.02.2023, porquanto este visou o despacho de 15.07.2022 que em face da suspensão de instância cível decorrente do óbito do arguido AA, nos termos dos arts 269° nº1 al.a), 270º, n.º 1 e 276° nº1 (a) todos do Código de Processo Civil rejeitou o reforço de arresto requerido pelo BB e pelo Ministério Público, mas determinou a apreensão das viaturas nos termos do art 178° do Código de Processo Penal a fim de evitar dano irreparável da possibilidade da sua dissipação, pelo que não foram apreciados os fundamentos da apreensão, mas apenas o recurso ao disposto no art 178° do Código de Processo Penal como mecanismo de garantia patrimonial, concluindo-se pela inadmissibilidade. Para que melhor se perceba o que aqui está em causa, deixa-se aqui transcrito, na parte que revela, o dito Acórdão deste Tribunal proferido a 22.02.2023: “(…) II – Fundamentação 1. Dispõe o artigo 412º, n.º 1 do CPP que a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação das Conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente assume as razões do pedido. Assim, atento o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes, as questões a apreciar e decidir em cada um dos recursos são: - da falta de prova que fundamente as apreensões; - da insuficiência da matéria de facto para a decisão e violação dos artigo 178º do CPP e 62º da CRP. 2. Elementos pertinentes Por acórdão de 14/05/2021, AA foi condenado em 1.ª instância na pena única de 10 anos de prisão, e bem assim no pagamento de indemnizações ao Estado Português e ao assistente/demandante, BB Nesse mesmo acórdão foram declarados perdidos a favor do Estado diversos bens e valores objecto de arrestos. Por acórdão da Relação de Lisboa, de 23/02/2022, foi negado provimento aos recursos interpostos - acórdão de que ainda não se conhece o trânsito. Entretanto, o assistente, BB, requereu o arresto de outros bens, alegando, em síntese, além do mais, que o referido AA estava condenado, ainda que sem trânsito em julgado, a pagar-lhe indemnização e que existia o fundado receio de não ver o seu crédito satisfeito. O Ministério Público declarou aderir aos pedidos de arresto apresentados pelo assistente. Por decisões de 23/11/2021 e 9/12/2021, foi determinado o arresto de diversos bens nas mesmas discriminados, visando salvaguardar o pagamento das indemnizações já reconhecidas ao Ministério Público e ao assistente, BB Tendo AA falecido no dia 12/05/2022, foi deduzida habilitação de herdeiros. Por despacho de 13/07/2022, foi determinado: "(...) a instância de arresto e seus apensos próprios (designadamente, os apensos de embargos de terceiros ainda pendentes) ficam suspensos até que se mostrem habilitados os respectivos sucessores arts. 269°, nº 1, al. a), 270°, nº 1, e 276°, nº 1, al. a), todos do Código de Processo Civil (CPC). Ressalva-se, porém, em conformidade com o disposto no art. 275°, nº 1, do CPC, e atenta a própria natureza dos autos principais (procedimento criminal), que a suspensão da presente instância não prejudica a realização dos actos urgentes destinados a evitar dano irreparável." Entretanto, o BB, requereu o reforço do arresto, indicando, além do mais, as viaturas automóveis de matricula 07- RO-34 (...) e BX-..-.. (...). Sobre tal requerimento pronunciou-se a decisão de 15/07/2022, com o seguinte teor: "Conforme declarado por despacho proferidos 13.07.2022, os autos de arresto e seus incidentes próprios mostram-se suspensos até que se mostrem habitados ou sucessores do requerido AA, falecido na pendência dos autos. Decorre, entre o mais, do requerimento apresentado pelo assistente na presente data, sob a ref. 33144922, que promoveu, nos autos principais, junto do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, a habilitação dos herdeiros do mencionado arguido/requerido, encontrando-se a mesma pendente do oferecimento de oposição por parte da cabeça de casal e herdeira, aí requerida, GG. Ora, tendo a habilitação dos sucessores do arguido/requerido sido já promovida, é óbvio que a decisão que, a tal respeito, venha a ser proferida, abrange necessariamente a tramitação dos presentes autos de arresto e dos apensos que dele dependem, pelo que, por manifesta inutilidade, não terá seguimento a petição inicial apresentada no requerimento com a ref. 33144922 Vem ainda o assistente, nesta data, sob a ref. 33145240, requerer o reforço do arresto decretado no presentes autos por via das sentenças proferidas a 23.11.2021 e a 09.12.2021, por forma a que o mesmo abranja também os bens móveis, veículos e contas bancárias apreendidos à ordem do processo n.º 526/21 2TELSB, que corre termos no DCIAP. Cumpre decidir. Resulta do ofício confidencial apresentado nos autos pelo DCIAP a 01.07.2022 (ref. 417241966) que os bens e activos relativamente aos quais o assistente pretende que seja reforçado o arresto se mostram apreendidos à ordem do sobredito processo n" 526/21.2TELSB. Não se pode olvidar, conforme já reconhecido nas diversas decisões que foram sendo proferidas nos autos, que os direitos de crédito já reconhecidos ao assistente BB, bem como ao Ministério Público, pelo elevado valor a que ascendem, exigem e reclamam a existência de garantia patrimonial que permita assegurar o seu devido ressarcimento. Porém, mostrando-se suspensa a instância, não se vislumbra que o decretamento de novo arresto, ainda que em reforço dos já decretados, caiba no âmbito de previsão do art. 275, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC). Na verdade, a instância de arresto se encontra suspensa, decretar novos arrestos em reforço dos anteriores redundaria numa verdadeira contradição e significaria que a suspensão a que a lei alude nenhuma consequência prática poderia ter, ainda que a urgência em garantir o ressarcimento dos créditos já reconhecidos seja manifesta. Tal não significa, porém, que se encontre o tribunal impedido de qualificar, do ponto de vista jurídico, e de forma diversa da requerida, a pretensão do assistente, lançando mão dos mecanismos processuais que se destinem a evitar dano irreparável (jura novit curia). Não podendo ser esquecido que os presentes autos têm por escopo permitir o ulterior ressarcimento dos direitos de crédito dos lesados (provenientes da prática de crimes praticados, entre outros, pelo arguido/requerido AA), créditos esses já reconhecidos por via do acórdão condenatório proferido em primeira instância nos autos principais, e totalmente confirmado em segunda instância pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa (ainda que não transitado em julgado), tem plena aplicação, pese embora a fase processual em que o processo se encontra, a figura da apreensão a que alude o art. 178º do Código de Processo Penal (CPP). Na verdade, os presentes autos incidentais não existiram se não fosse a ocorrência dos crimes já julgados nos autos principais, e nenhuma diligência conservatória de garantias de pagamento teria sido tomada pelo tribunal se a condenação pela prática de tais crimes não tivesse ocorrido. Por isso mesmo, pese embora a atipicidade do meio processual a utilizar, dada a fase em que os autos principais se encontram, o mesmo tem pleno cabimento no momento presente, por permitir evitar o dano, irreparável decorrente de uma possível dissipação patrimonial que tornaria mais dificultada a garantia de pagamento dos créditos já reconhecidos. Assim, a fim in de evito dano irreparável que adviria da possibilidade de dissipação dos bens apreendidos à ordem do processo n.º 526/21.2TELSB, que corre termos pelo DCIAP, caso entretanto tal apreensão fosse levantada, a que acrescem os fundamentos considerados nas sentenças de 23.11.202021 e de 9.12.2021, cujo teor dou por integralmente reproduzido, determino a apreensão, à ordem dos presentes autos, nos termos do disposto no art. 178°, n.º 1, do CPP, dos seguintes bens e valores: - Os veículos automóveis de matrícula ..-RO-.. (...) e BX-..-.. (...); (...)." Notificados os titulares inscritos dos veículos automóveis, para, querendo, se pronunciarem em 10 dias, vieram os ora recorrentes, em 28/7 / 2022, alegar, além do mais, não lhes ser aplicável o artigo 178.º do C.P.P. Na sequência, em 23/07/2022, foi proferido o despacho recorrido, com o seguinte teor: "Na sequência do despacho proferido nestes autos a 15.07.2022, que, entre mais, decretou a apreensão dos veículos de matrícula ..-RO-.. (...) e BX-..-.. (...), vieram os respectivos titulares inscritos, concretamente, ..., e CC, invocar que lhes pertencem tais viaturas, não devendo ser mantida a apreensão das mesmas. Acontece, porém, que das informações recolhidas pela Polícia Judiciária no âmbito do processo n.º 526/21.2 TELSB que corre termos pelo DCIAP, e que se mostram plasmadas no expediente junto aos autos a 01.07.2022, é inequívoco que, pese embora os registos de propriedade relativos a tais viaturas não se mostrem inscritos a favor do requerido AA, a verdade é que as mesmas se encontravam na sua esfera de disponibilidade, encontrando-se o mesmo conotado, publicamente, como proprietário dos veículos. Realça-se, aliás, que no acórdão condenatório proferido nos autos principais (embora ainda não transitado em julgado) ficou demonstrado que tal arguido realizou operações de transferência para terceiros do património e fundos que ilegitimamente obteve com o fim de dissimular a sua verdadeira origem e impedir o respectivo rastreio, localização e apreensão, o que explica que, também quanto às viaturas em apreço, as detivesse em nome dos aludidos requerentes. Por conseguinte, improcedendo as posições manifestadas por ..., e CC, mantenho a apreensão determinada por despacho de 15.07.2022 sobre as viaturas de matrícula ..-RO-.. (Mercedes- Benz) e BX-..-.. (...). Notifique. Proceda-se ao registo das apreensões na conservatória do registo automóvel art. 178°, n.º 12, do Código de Processo Penal." 3. Apreciando Estão em causa duas viaturas automóveis que, entre outros bens, o assistente BB, indicou para reforço do arresto decretado nos autos. O tribunal, entendendo que o reforço do arresto não era admissível em razão da suspensão da instância de arresto e seus apensos próprios, ultrapassou essa dificuldade através da utilização do mecanismo da apreensão, invocando o artigo 178.º, n.°1, do C.P.P. Estabelece o artigo 178.º do C.P.P. (na sua actual redacção): "Objeto e pressupostos da apreensão 1- São apreendidos os instrumentos, produtos ou vantagens relacionados com a prática de um facto ilícito típico, e bem assim todos os animais, as coisas e os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova. 2- Os instrumentos, produtos ou vantagens e demais objetos apreendidos nos termos do número anterior são juntos ao processo, quando possível, e, quando não, confiados à guarda do funcionário de justiça adstrito ao processo ou de um depositário, de tudo se fazendo menção no auto, devendo os animais apreendidos ser confiados à guarda de depositários idóneos para a função com a possibilidade de serem ordenadas as diligências de prestação de cuidados, como a alimentação e demais deveres previstos no Código Civil. 3- As apreensões são autorizadas, ordenadas ou validadas por despacho da autoridade judiciária. 4- Os órgãos de polícia criminal podem efectuar apreensões no decurso de revistas ou de buscas ou quando haja urgência ou perigo na demora, nos termos previstos na alínea c) do n.º 2 do artigo 249º. 5- Os órgãos de polícia criminal podem ainda efetuar apreensões quando haja fundado receio de desaparecimento, destruição, danificação, inutilização, ocultação ou transferência de animais, instrumentos, produtos ou vantagens ou outros objetos ou coisas provenientes da prática de um facto ilícito típico suscetíveis de serem declarados perdidos a favor do Estado 6- As apreensões efectuadas por órgão de polícia criminal são sujeitas a validação pela autoridade judiciária, no prazo máximo de setenta e duas horas. 7- Os titulares de instrumentos, produtos ou vantagens ou outros objetos ou coisas ou animais apreendidos podem requerer ao juiz a modificação ou a revogação da medida. 8- O requerimento a que se refere o número anterior é autuado por apenso, notificando- se o ... para, em 10 dias, deduzir oposição. 9- Se os instrumentos, produtos ou vantagens ou outros objetos ou coisas ou animais apreendidos forem suscetíveis de ser declarados perdidos a favor do Estado e não pertencerem ao arguido, a autoridade judiciária ordena a presença do interessado e ouve-o. 10 - A autoridade judiciária prescinde da presença do interessado quando esta não for possível. 11- Realizada a apreensão, é promovido o respetivo registo nos casos e nos termos previstos na legislação registal aplicável. 12- Nos casos a que se refere o número anterior, havendo sobre o bem registo de aquisição ou de reconhecimento do direito de propriedade ou da mera posse a favor de pessoa diversa da que no processo for considerada titular do mesmo, antes de promover o registo da apreensão a autoridade judiciária notifica o titular inscrito para que, querendo, se pronuncie no prazo de 10 dias." Por sua vez, preceitua o artigo 228.º do mesmo diploma: "Arresto preventivo 1- Para garantia das quantias referidas no artigo anterior, a requerimento do Ministério Público ou do lesado, pode o juiz decretar o arresto, nos termos da lei do processo civil; se tiver sido previamente fixada e não prestada caução económica, fica o requerente dispensado da prova do fundado receio de perda da garantia patrimonial. 2- O arresto preventivo referido no número anterior pode ser decretado mesmo em relação a comerciante. 3- A oposição ao despacho que tiver decretado arresto não possui efeito suspensivo. 4 - Em caso de controvérsia sobre a propriedade dos bens arrestados, pode o juiz remeter a decisão para tribunal civil, mantendo-se entretanto o arresto decretado. 5 - O arresto é revogado a todo o tempo em que o arguido ou o civilmente responsável prestem a caução económica imposta. 6 - Decretado o arresto, é promovido o respetivo registo nos casos e nos termos previstos na legislação registal aplicável, promovendo-se o subsequente cancelamento do mesmo quando sobrevier a extinção da medida. 7- O arresto preventivo é aplicável à pessoa coletiva ou entidade equiparada." O arresto preventivo constitui uma medida de garantia patrimonial, visando acautelar, segundo remissão para o artigo 227.°, o "pagamento da pena pecuniária, das custas do processo ou de qualquer outra dívida para com o Estado relacionada com o crime" ( 227º , n.º 1, al. a)) , o pedido de indemnização civil e outras obrigações civis derivadas daquele (227.º, n.°2), e bem assim a perda do valor dos instrumentos, produtos e vantagens da prática do facto ilícito típico [227.º, n.°1, al. b)]. A apreensão prevista no artigo 178º distingue-se do arresto preventivo e do arresto dos bens do arguido para confisco alargado (artigo 10.º da Lei n.º 5/2002 de 11 de Janeiro) pelos seus requisitos formais e, sobretudo, pelo seu âmbito de aplicação, constituindo realidades jurídicas diversas. Como se lê no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 387/2019 "Não obstante a inserção sistemática deste artigo no título do CPP que tem por objeto os meios de obtenção da prova, a apreensão é também uma garantia processual da perda (do confisco) de bens (de instrumentos, de produtos e de vantagens), sendo este um entendimento convergente da generalidade da doutrina. Para GERMANO MARQUES DA SILVA, a apreensão não é apenas um meio de obtenção e conservação da prova, mas também de segurança de bens para garantir a execução. Assim, embora se destine essencialmente a conservar provas reais, visa também garantir a efetivação da privação definitiva do bem (Curso de Processo Penal, Vol. II, p. 217). No entendimento de DAMIÃO DA CUNHA, «no âmbito do CP (mas também do CPP) existe uma direta ligação entre a figura da apreensão (enquanto medida processual) e a declaração de perda; existe uma dupla função quanto aos bens apreendidos: eles são meios de prova do facto cometido e devem ser declarados perdidos em direta ligação ao facto ilícito praticado (Perda de Bens a Favor do Estado, Artigos 7.-12.º da Lei 5/2002 de 11 de Janeiro (medidas de combate à Criminalidade Organizada e Económico- Financeira ), Centro Estudos Judiciários, 2002, p. 26). Por fim, também JOÃO CONDE CORREIA entende que a apreensão de bens tem natureza hibrida: a medida destina-se a obter e a conservar as provas (finalidade processual probatória), mas também a garantir a perda dos objetos que as encarnam a favor do Estado, nos termos dos artigos 109.º e seguintes do CP (finalidade processual substancial). Para este autor, se os instrumenta, producta ou vantagens não forem apreendidos, para além das dificuldades probatórias acrescidas que isso pode acarretar, será mais difícil proceder depois ao seu confisco, impedir a prática de novos crimes e, sobretudo, acumulação indesejável e perniciosa das suas vantagens (Da Proibição do Confisco à Perda Alargada, ob. cit., p. 154 e 155). Na jurisprudência, legitimando constitucionalmente esta duplicidade, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 294/2008, considerou que a apreensão é também um meio de segurança dos bens que tenham servido ou estivessem destinados a servir a prática do crime, ou que constituam o seu produto, lucro, preço ou recompensa, como forma de garantir a execução da sentença penal, o que também justifica a conservação dos objetos apreendidos à ordem do processo até à decisão final». Assim, ao contrário de outros ordenamentos jurídicos, onde a lei separa a apreensão para efeitos de prova da apreensão para efeitos de perda, a legislação nacional prevê o carácter misto deste mecanismo, misturando finalidades probatórias e substantivas com as garantias processuais da efetividade do confisco." Como explica João Conde Correia, enquanto a apreensão atinge o património contaminado as coisas directa ou indirectamente relacionadas com um facto ilícito típico, garantindo não só a conservação da prova, mas a perda dos instrumentos, produtos, recompensas e vantagens decorrentes da prática do facto ilícito típico, ο arresto só atinge o património lícito, garantindo, para o que importa, a perda do valor dos instrumentos, dos produtos e das vantagens, que não podem ou já não podem ser confiscados em espécie (Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo II, Almedina, 2019 . 628). A nosso ver, sob o pretexto da suspensão da instância no arresto e nos seus apensos, o tribunal acabou por invocar e aplicar o artigo 178.º, n.°1, do C.P.P., como medida de garantia patrimonial de créditos indemnizatórios e, por isso, fora do seu âmbito legal de aplicação, relativo às finalidades de conservação da prova e garantia de exequibilidade da sentença penal relativamente a uma eventual decisão de perda / confisco, que tem de incidir sobre instrumentos, produtos e vantagens do crime. Essa utilização como medida de garantia patrimonial de créditos indemnizatórios está bem patente na afirmação da "atipicidade do meio processual a utilizar" e da finalidade de "evitar o dano irreparável decorrente de uma possível dissipação patrimonial que tornaria mais dificultada a garantia de pagamento dos créditos já reconhecidos", "dano irreparável que adviria da possibilidade de dissipação dos bens apreendidos å ordem do processo nº 526/21.2TELSB (...)". Como está patente quando se diz "os direitos de crédito já reconhecidos ao assistente BB, bem como ao Ministério Público, pelo elevado valor a que ascendem, exigem e reclamam a existência de garantia patrimonial que permita assegurar o seu devido ressarcimento." Foi precisamente para garantia patrimonial do seu crédito que o assistente/demandante civil requereu o reforço do arresto preventivo, vindo o tribunal, como já se viu, a optar pela aplicação de um mecanismo jurídico que não está gizado para servir tal finalidade, sendo que nada consta no acórdão condenatório relativo às viaturas em causa de que possamos extrair tratar-se de instrumentos, produtos e vantagens de crime e não foi essa, sequer, como já se viu, a justificação apresentada no despacho determinante da apreensão, que não equacionou essa questão. Só posteriormente, face à posição dos ora recorrentes, titulares inscritos das viaturas, o tribunal refere-se ao acórdão condenatório e a "operações de transferência para terceiros do património e fundos que ilegitimamente obteve com o fim de dissimular a sua verdadeira origem e impedir o respectivo rastreio, localização e apreensão, o que explica que, também quanto às viaturas em apreço, as detivesse em nome dos aludidos requerentes", ainda que tal acórdão nada diga quanto às viaturas em questão. Por conseguinte, conclui-se que os recorrentes têm razão quando afirmam que a decretada apreensão das viaturas não tem suporte factual, nem fundamento no disposto no invocado artigo 178.º, n.º1, do C.P.P. III - Dispositivo Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em conceder provimento aos recursos interpostos por CC E ..., revogando, em consequência, a decisão recorrida, ordenando o levantamento da apreensão das viaturas de matrícula ..-RO-.. (...) e BX-..-.. (...), com todas as consequências legais. Sem custas. (…)” (fim de transcrição) Sendo este o teor do Acórdão prolatado por este Tribunal Superior no Apenso N dos autos a que os presentes também se encontram apensos (com a designação Ap. G), vejamos se se verifica a invocada excepção, convocando, antes do mais, os ensinamentos da doutrina e da jurisprudência sobre a figura jurídico-processual em questão. O instituto processual em apreço constitui corolário da obrigatoriedade e da prevalência das decisões dos tribunais, visando garantir o princípio enunciado nestes termos no n.º 2 do artigo 205º da CRP: “As decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades” (neste sentido Jorge Miranda e Rui Medeiros, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Tomo III, Coimbra Editora 2007, , págs. 77 e 78). Como decorre do disposto nos artigos 619º, 620º, 621º e 628º do CPC, o caso julgado pressupõe a existência de uma decisão que resolveu uma questão que se entronca na relação material controvertida ou que versa sobre a relação processual, e visa evitar que essa mesma questão venha a ser validamente definida, mais tarde, em termos diferentes, pelo mesmo ou por outro tribunal. Consubstancia-se assim, o caso julgado, “na inadmissibilidade da substituição ou modificação da decisão por qualquer tribunal (incluindo aquele que a proferiu) em consequência da insusceptibilidade da sua impugnação por reclamação ou recurso ordinário, tornando indiscutível o conteúdo da decisão” (cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 2ª edição, 1997, p. 567). Por seu turno, Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código de Processo Civil”, Volume III, págs. 60 e 61, sublinha: “(...) Enquanto que a força e autoridade do caso julgado tem por finalidade evitar que a relação jurídica material, já definida por uma decisão com trânsito, possa vir a ser apreciada diferentemente por outra decisão, com ofensa da segurança jurídica, a excepção destina-se a impedir uma nova decisão inútil, com ofensa do princípio da economia processual”. No mesmo sentido, José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2.º, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2008, págs. 713-714, onde nomeadamente se lê que, seja “qual for o seu conteúdo, a sentença produz, no processo em que é proferida, o efeito de caso julgado formal, não podendo mais ser modificada (…). Mas, quando constitui uma decisão de mérito (“decisão sore a relação material controvertida”), a sentença produz também, fora do processo, o efeito de caso julgado material: a conformação das situações jurídicas substantivas por ela reconhecidas como constituídas impõe-se, com referência à data da sentença, nos planos substantivo e processual (…), distinguindo-se, neste, o efeito negativo da inadmissibilidade duma segunda acção (proibição de repetição: excepção de caso julgado) e o efeito positivo da constituição da decisão proferida em pressuposto indiscutível de outras decisões de mérito (proibição de contradição: autoridade de caso julgado)”. Ainda Miguel Teixeira de Sousa, desta feita in “O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material», BMJ, n.º 325, pág. 49: “a excepção de caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior», enquanto que «quando vigora como autoridade e caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade de caso julgado é o comando de acção, a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição do processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão anterior.” Como referido, a lei processual distingue, nos artigos 619º e 620º do CPC, duas formas de caso julgado: a primeira (artigo 619º) verifica-se quando a sentença aprecia a relação material controvertida; a segunda (artigo 620º) quando a decisão (seja ela sentença ou despacho) recai unicamente sobre a relação processual, quando não aprecia o fundo da acção. O caso julgado formal traduz assim a força obrigatória dos despachos e das sentenças que recaiam unicamente sobre a relação processual, dentro do processo, consistindo o caso julgado material, na força obrigatória dentro e fora do processo. O caso julgado formal está ligado a questões processuais, onde não é discutida a relação material controvertida, só tendo força dentro do processo onde é proferida a decisão. E essa força vincula não só os destinatários (partes), mas também o tribunal. O “caso julgado formal, por oposição ao caso julgado material, restringe-se às decisões que apreciam matéria de direito adjectivo, produzindo efeitos limitados ao próprio processo” (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, Almedina, 2018, pág. 745); tem valor intraprocessual, vinculativo no próprio processo em que a decisão é proferida (assim, Miguel Teixeira de Sousa in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, ed. Lex, 2ª edição, 1997, pág. 569). Adquirindo, em regra, valor de caso julgado formal (Miguel Teixeira de Sousa, “Estudos …”, ob. cit., págs. 569-570), as decisões de forma (artigo 620º do CPC), que incidem sobre aspectos processuais (que, em qualquer momento do processo, apreciam e decidem questões que não sejam de mérito (José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 4ª edição, pág. 753), são vinculativas no processo, produzindo efeitos processuais: enquanto efeito negativo, resulta da decisão transitada a insusceptibilidade de qualquer tribunal, incluindo o que a proferiu, se voltar a pronunciar sobre ela; como efeito positivo, resulta da decisão transitada a vinculação do tribunal que a proferiu (e de outros) ao que nela foi definido ou estabelecido (Miguel Teixeira de Sousa, “Estudos …”, ob. cit., pág. 572). Assim que qualquer despacho proferido sobre questão processual (no fundo, todos os despachos que decidam questão que não seja de mérito), uma vez transitado em julgado, adquire valor de imutabilidade, sendo no processo inadmissível (e por isso ineficaz – artigo 625º, n.º 2 do CPC) decisão posterior sobre a mesma questão que dele tenha sido objecto (José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código …”, ob. cit., págs. 752-753). Não sendo respeitados os efeitos processuais resultantes de decisão transitada em julgado, ocorrerá situação de contraditoriedade, a solucionar de acordo com a regra prescrita no artigo 625º, n.º 2 do CPC, valendo aquela que primeiro transitou em julgado (princípio da prioridade do trânsito em julgado). Neste mesmo sentido vem entendendo a Jurisprudência do STJ: o caso julgado formal duma decisão obsta a que no processo seja tomada (pelo tribunal que a proferiu ou por qualquer outro) nova decisão (seja renovando, seja modificando a anterior) – e, assim que uma ‘pretensão já decidida, em contexto meramente processual’, e não recorrida, seja objecto de repetida decisão (se tal acontecer, a segunda decisão deve ser desconsiderada por violação do caso julgado formal assente na prévia decisão (Ac. STJ de 8.03.2018, relator Juiz Conselheiro Fonseca Ramos, in www.dgsi.pt). Veja-se, por fim, o que a este propósito se deixou lavrado no AUJ do STJ n.º 5/2019, in DR 1ª série, 26.09.2019: “(…) 74 — Assim, estamos perante caso julgado material quando a decisão se torna firme, impedindo a renovação da instância em qualquer processo que tenha por objecto a apreciação do mesmo ou dos mesmos factos ilícitos. «E perante caso julgado formal quando a decisão se torna insusceptível de alteração por meio de qualquer recurso como efeito da decisão no próprio processo em que é proferida, conduzindo ao esgotamento do poder jurisdicional do juiz e permitindo a sua imediata execução (actio judicatï)» — acórdãos, do Supremo Tribunal de Justiça, de 23 de Janeiro de 2002 (processo 3924/01), e de 3 de Março de 2004 (processo 215/04). O caso julgado formal respeita a decisões proferidas no processo, no sentido de determinação da estabilidade instrumental do processo em relação à finalidade a que está adstrito — acórdão, do Supremo Tribunal de Justiça, de 18 de Setembro de 2013 (processo n.º 438/08.5SGLSB.L1 -B.S1). 75 — No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Novembro de 2008 (processo 08P268), refere -se, designadamente: «O caso julgado formal constitui noção separada do caso julgado que, como categoria geral (caso julgado material) está construída para a decisão definitiva do direito do caso, nas condições da sua existência, conteúdo e modalidades de exercício; no processo penal respeita à declaração sobre a culpabilidade e determinação da sanção, bem como da não culpabilidade (seja por não pronúncia ou por absolvição). «O caso julgado formal respeita ao efeito da decisão no próprio processo em que é proferida». «O caso julgado material consubstancia a eficácia da decisão proferida relativamente a qualquer processo ulterior com o mesmo objecto» e «tem um valor impeditivo da renovação da apreciação judicial sobre a mesma matéria» — cf. Cavaleiro de Ferreira, loc. cit., p. 25. N.º 185 26 de setembro de 2019 Pág. 75 Diário da República, 1.ª série. O caso julgado que fixa, no processo e fora dele, a vinculação de efeitos materiais quanto à definição e concretização judicial da relação controvertida ou objecto material do processo, é o caso julgado material — fixado e estável com fundamento na vinculação às decisões e na realização dos valores da justiça, certeza e segurança, também no âmbito do exercício do direito de punir do Estado em relação ao cidadão arguido da prática de uma infracção penal. Em processo penal, pode dizer -se que existe caso julgado material quando a decisão se torna firme, impedindo a renovação da instância em qualquer processo que tenha por objecto a apreciação do mesmo ou dos mesmos factos ilícitos. O caso julgado formal não assume semelhante função, nem contém, no essencial, dimensão substancial. Há caso julgado formal quando a decisão se torna insusceptível de alteração por meio de qualquer recurso como efeito da decisão no próprio processo em que é proferida, conduzindo ao esgotamento do poder jurisdicional do juiz e permitindo a sua imediata execução (actio judicati) — cf. acórdão do Supremo Tribunal de 23 e Janeiro de 2002, proc. 3924/01. O caso julgado formal respeita a decisões proferidas no processo, no sentido de determinação da estabilidade instrumental do processo em relação à finalidade a que está adstrito. Em processo penal atinge, pois, no essencial, as decisões que visam a prossecução de uma finalidade instrumental que pressupõe estabilidade — a inalterabilidade dos efeitos de uma decisão de conformação processual, ou, no plano material, a produção de efeitos que ainda se contenham na dinâmica da não retracção processual, mas supondo a inalterabilidade subsequente dos pressupostos de conformação material da decisão. No rigor das coisas, o caso julgado formal constitui apenas um efeito de vinculação intraprocessual, pressupondo a imutabilidade dos pressupostos em que assenta. O procedimento é dinâmico, sequencial e, como contínuo instrumental, subsiste até ao momento em que o processo atinja a sua finalidade — a obtenção de uma decisão que lhe ponha termo, seja decisão final sobre pressupostos negativos de procedimento ou sobre a verificação de condições extintivas, seja decisão final de determinação, positiva ou negativa, da culpabilidade ou de aplicação da sanção que couber.” (fim de citação) Chegados aqui, há então que passar para a etapa seguinte: apurar se uma pretensão constitui a renovação, alteração ou repetição (esse o pressuposto nuclear do instituto) duma anteriormente decidida. Tal remete-nos para o âmbito objectivo do caso julgado, isto é, para a determinação do seu objecto, para a “determinação do quantum da matéria que foi apreciada pelo tribunal” (Miguel Teixeira de Sousa, “Estudos …”, ob. cit., pág 572) na decisão transitada. Mas como bem frisou já Vaz Serra, in Revista de Legislação e Jurisprudência, n.º 110, pág. 232, relembrado no Ac. STJ de 20.06.2012, Proc. n.º 241/07.0TTLSB.L1.S1, relator Juiz Conselheiro Sampaio Gomes, in www.dgsi.pt., para efeitos de determinação de tais limites objectivos, a força do caso julgado não incide apenas sobre a parte decisória propriamente dita, antes se estende à decisão das questões preliminares que foram antecedente lógico, indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado, tudo isto “ (...) em nome da economia processual, do prestígio das instituições judiciárias e da estabilidade e certeza das relações jurídicas” (Ac. do S.T.J. de 10.07.97, in CJSTJ, ano V, tomo II, pág. 165). Vertendo ao caso em apreço, o que importa indagar é se o despacho de 18.09.2023, ora recorrido, ao julgar procedente a pretensão de reforço do arresto, determinando o arresto das identificadas viaturas automóveis, violou questão já previamente apreciada e decidida por este Tribunal da Relação no apontado Acórdão de 22.02.2023, decisão esta já transitada em julgado, onde se decidiu pelo levantamento da apreensão efectuada das duas supra identificadas viaturas automóveis. E a resposta impõe-se que seja negativa. Com efeito, no apontado Acórdão de 22.02.2023, este Tribunal da Relação não apreciou se se verificavam, ou não, os requisitos que sustentariam o decretamento do reforço do arresto pretendido pelo assistente BB, visando, entre outros bens, as duas identificadas viaturas automóveis, mas antes (e tão somente) se debruçou sobre a (des)adequação da utilização pelo tribunal a quo do mecanismo da apreensão previsto no artigo 178º, n.º 1 do CPP com base na qual foi determinada a apreensão efectuada, tendo-se entendido que este mecanismo foi utilizado “fora do seu âmbito de aplicação legal”. Desta feita, a concessão de provimento aos recursos interpostos por ... e por CC, cingiu-se à apreciação da seguinte questão: para a decretada apreensão inexiste “fundamento no disposto no invocado artigo 178º, n.º 1 do CPP”. Em súmula, não procedeu este Tribunal superior, no prolatado Acórdão de 22.02.2023, à apreciação do mérito da causa. Desta feita, o tribunal a quo, ao proferir o despacho recorrido, pelo qual determinou o arresto das duas viaturas automóveis, atendendo à pretensão de reforço do arresto que o assistente dirigiu aos autos, não violou o decidido pelo Tribunal da Relação a 22.03.2023, não se verificando assim a excepção de caso julgado (material). Por outra banda, apenas se verificaria a violação do caso julgado (formal) se o tribunal a quo, no despacho agora colocado em crise, tivesse deferido a pretensão apresentada aos autos pelo assistente, “renovando” a apreensão das aludidas viaturas ao abrigo do artigo 178º, n.º 1 do CPP. Sucede, porém, e repetimos, que o decidido pelo tribunal a quo foi-o, agora, não ao abrigo de disposição legal que visa a apreensão de “património contaminado” (artigo 178º, n.º 1 do CPP), mas ao abrigo das disposições processuais civis (artigos 391º e ss. do CPC), por força do disposto no artigo 228º do CPP, “com vista à garantia patrimonial do crédito do assistente”. Se é certo que a pretensão formulada a 17.09.2023 pelo assistente BB (sobre a qual se pronunciou o despacho ora recorrido), para além da tríplice identidade de sujeitos e do pedido, tem por base os mesmos factos que já constavam da anterior pretensão de reforço de arresto aduzida aos autos a 15.07.2022 (causa de pedir), o certo é que, e insistimos, o despacho proferido pelo tribunal a quo a 18.09.2023 veio a ser revogado pelo apontado Acórdão proferido por este Tribunal da Relação a 22.02.2023, pois que aqui se entendeu que o tribunal a quo, ao sustentar a sua decisão no artigo 178º, n.º 1 do CPP, e já não no artigo 228º do CPP, que remete para o CPC, o fez erradamente. Concluímos assim que o tribunal a quo, ao proferir o despacho revidendo de 18.09.2023 (decisão de mérito que decretou o arresto das duas viaturas de matrícula ..-RO-.. e BX-..-..) não violou o caso julgado decorrente do Acórdão prolatado por este Tribunal da Relação a 22.02.2023, este (apenas) com força obrigatória dentro do processo (artigo 620º, n.º 1 do CPC), pois que neste não se definiu o direito concreto aplicável àquela concreta questão litigada (reforço do arresto sobre as duas identificadas viaturas automóveis), isto é, não se apreciou a verificação dos fundamentos exigidos para o decretamento do pretendido reforço do arresto. Na verdade, e sublinhamos mais uma vez, não se estando perante uma situação de caso julgado material, não se encontrava o tribunal a quo impedido de, cessada a declarada suspensão da instância por força do falecimento do inicialmente requerido no incidente de arresto preventivo, apreciar a (renovada) pretensão de reforço do arresto aduzida nos autos pelo assistente visando as duas identificadas viaturas, e determinar o requerido arresto. Saber se se verificam os requisitos para o decretamento do arresto pretendido é uma outra questão, também ela objecto do presente recurso, e a qual passaremos a apreciar. Não se concede, assim, nesta parte, provimento ao recurso, por se entender não verificada a excepção de caso julgado. * Passemos agora à apreciação da segunda questão objecto do recurso: padece o despacho recorrido do vício previsto no artigo 410º, n.º 2, al. a) do CPP /falta de fundamentação de facto do despacho recorrido? Dispõe o citado n.º 2, al. a) do artigo 410º sobre a epígrafe “Fundamentos do recurso”: 2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova.” Deste regime legal resulta que mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal superior à matéria de direito, o recurso pode ter como fundamento a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum. Como ensinam Maia Gonçalves, in “Código de Processo Penal Anotado”, 10ª ed., pág. 279; Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Vol. III, Verbo, 2ª ed. pág. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 6ª ed., págs. 77 e ss., o vício de que agora cuidamos tem de resultar do texto da decisão recorrida, não se estendendo a outros elementos, nomeadamente que resultem do processo, mas que não façam parte daquela decisão, sendo, portanto, inadmissível o recurso a elementos àquela estranhos para o fundamentar, como por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento. Neste mesmo sentido, o Ac. STJ de 08.01.2014, Proc. n.º 7/10.0TELSB.L1.S1, relator Juiz Conselheiro Armindo Monteiro, in www.dsgi.pt: a insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, vício de confecção da matéria de facto, nos termos do artigo 410º, n.º 2, al. a) do CPP, há-de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, aquilo que é usual acontecer e que funcionam como critérios de orientação da decisão, probabilidades fortes de acontecimento, critérios generalizantes de inferência lógica” Como nos diz o Ac. STJ de 5.12.2007, Proc. n.º 07P3406, relator Juiz Conselheiro Raul Borges, in www.dgsi.pt, tal vício ocorre quando a matéria de facto provada se mostra exígua para fundamentar a solução de direito encontrada, quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição. Ou, como se diz num outro Ac. STJ, de 25.03.1998, BMJ n.º 475, pág. 502: “quando, após o julgamento, os factos colhidos não consentem, quer na sua objectividade, quer na sua subjectividade, dar o ilícito como provado. O vícío consiste numa carência de factos que permitam suportar uma decisão dentro do quadro das soluções de direito plausíveis e que impede que sobre a matéria de facto seja proferida uma decisão de direito segura (assim. Ac. STJ de 20.12.2006, Proc. n.º 3379/06, 3ª, citado no aludido Ac. STJ de 5.12.2007) Reporta-se este vício à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não se confunde com a falta de prova para a decisão da matéria de facto provada (assim, o citado Ac. STJ de 08.01.2014). Trata-se, portanto, de vício intrínseco da sentença que visam o erro na construção do silogismo judiciário. Invocam os recorrentes que “não existe qualquer prova, seja ela de que natureza for, que possa indiciar que o veículo apreendido resulta de uma qualquer conduta criminosa dos recorrentes ou de algum outro arguido” (ponto n) das Conclusões); “o que existe para fundamentar a apreensão em crise são meras presunções (ponto o) das Conclusões). Mais argumentam que o despacho recorrido exibe “uma manifesta e total insuficiência de matéria de facto que se possa considerar provada de modo a permitir a apreensão em causa” (ponto p)). Revisitado este argumentário recursivo, ressalta que os recorrentes incorrem em confusão entre o que é o vício a que alude o artigo 410º, n.º 2, al. a) do CPP, ademais de conhecimento oficioso, com a falta ou insuficiência de prova. Salvo o devido respeito, parece-nos que o que os recorrentes verdadeiramente pretendem na invocação deste vício é misturá-lo com o eventual erro de julgamento da matéria de facto. O que no fundo almejam é colocar em causa a valoração da prova que o Tribunal a quo efectuou, colocando em causa a convicção do tribunal a quo de que a sociedade recorrente e a pessoa singular recorrente mais não foram do que “testas de ferro” do falecido AA (e de GG). Ora, a divergência de convicção pessoal dos recorrentes sobre a prova coligida e aquela que o Tribunal formou não se confunde com qualquer vício do artigo 410º nº 2 do CPP ( Mas ainda que se conceda que cada um dos recorrentes o que pretendeu foi invocar a falta de fundamentação (de facto) do despacho recorrido, importa que se olhe para o seguinte. Por força do imperativo constitucional consagrado no artigo 205º, n.º 1, “[a]s decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”. A propósito do dever de motivação judicial, o Tribunal Constitucional tem referido o seguinte, v.g. no Ac. n.º 55/85, in BMJ n.º 360, pág. 195), Ac. n.º 135/99 e Ac. n.º 408/2007, estes in tribunalconstitucional.pt: “A fundamentação das decisões judiciais, em geral, cumpre duas funções: a) uma, de ordem endoprocessual, que visa essencialmente impor ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica da decisão, permitir às partes o recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação, e ainda colocar o tribunal de recurso em posição de exprimir, em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente; b) outra, de ordem extraprocessual, já não dirigida essencialmente às partes e ao juiz ad quem, que procura, acima de tudo, tornar possível um controlo externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão — que procura, dir-se-á por outras palavras, garantir a transparência do processo e da decisão.” “No fundo, acaba por consagrar-se constitucionalmente a proibição da indefesa, assegurando-se, tanto quanto possível, um “due process of law”” – Joaquim Correia Gomes, “A Motivação Judicial em Processo Penal e as suas Garantias Constitucionais”, Revista Julgar, n.º 6, 2008, pág. 88 Tal princípio veio a merecer acolhimento no artigo 97º, n.º 5 do CPP, o qual dispõe: “[o]s atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”. Esclarece o n.º 1 do citado preceito: “[o]s atos decisórios dos juízes tomam a forma de: a) Sentenças, quando conhecerem a final do objeto do processo; b) Despachos, quando conhecerem de qualquer questão interlocutória ou quando puserem termo ao processo fora do caso previsto na alínea anterior”. Temos então que, quer se trate de sentenças, quer de despachos (interlocutórios ou finais), os atos decisórios dos juízes têm que conter os respetivos motivos, de facto e de direito, sendo a inobservância de tal dever de fundamentação cominada, no caso da sentença, com a nulidade (cfr. artigos 374º e 379º, n.º 1, al. a) do CPP). No caso que nos ocupa, o acto decisório em causa configura um despacho. Ora, apenas em casos pontuais, como é o caso do despacho de aplicação de medida de coação (com excepção do Termo de Identidade e Residência), a lei também comina de nulidade quando aquele não contenha todos os elementos ali discriminados (cfr. artigo 194º, n.º 6 do CPP). Do exposto, conclui-se que o vício de falta de fundamentação do despacho recorrido não configura uma nulidade, sanável ou insanável, uma vez que não se encontra elencada nos artigos 119º e 120º do CPP, nem é expressamente cominada como tal em qualquer outra disposição legal. Neste mesmo sentido, vejam-se os seguintes Acórdãos: Rel. Guimarães, de 27.04.2020, Proc. nº 86/17.9T9PTB.G1; Rel. Lisboa de 13.01.2021, Proc. nº 116/20.7PFLRS.L1-3 e de 27.04.2023, Proc. nº 3789/21.0T9LSB.L1, todos in www.dgsi.pt). Com efeito, atento o princípio da tipicidade ou da legalidade consagrado em matéria de nulidades no artigo 118º, n.º 1 do CPP, “a violação ou infração das leis de processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei”, dispondo o n.º 2 que “nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o ato ilegal é irregular”, só constituem nulidades as expressamente previstas na lei como tal, ficando submetidas ao regime previsto nos artigos 119º a 122º do CPP, sendo os demais casos de violação ou inobservância das normas processuais meras irregularidades, sujeitas ao regime previsto no artigo 123º do mesmo diploma legal, que preceitua: “1 - Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do ato a que se refere e dos termos subsequentes que possa afetar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio ato ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado. 2 - Pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afetar o valor do ato praticado.” Nesta conformidade, conclui-se que nem todas as irregularidades merecem tutela legal, sendo unicamente relevantes para o efeito aquelas que possam afetar o acto praticado. Por seu turno, o regime regra da declaração da irregularidade é o de que esta seja feita a requerimento do interessado, nos estritos termos e prazos previstos na lei, ficando sanada se não for tempestivamente arguida. A arguição da irregularidade está sujeita ao apertado regime de tempestividade previsto no n.º 1 do citado artigo 123º do CPP: assistindo o interessado à prática do acto a que se refere a irregularidade, terá de a invocar no próprio ato; se a irregularidade se reportar a acto a que o interessado não assista – como sucede no caso em apreço, uma vez que o despacho recorrido foi proferido por escrito nos autos e posteriormente notificado aos sujeitos processuais –, aquele dispõe do prazo de três dias após o conhecimento efectivo ou presumido da prática da irregularidade que, na segunda hipótese, poderá ser extraído da notificação para qualquer termo do processo ou da intervenção no primeiro ato que tenha lugar após a acção ou omissão e em que ele se aperceba da mesma. Caso a irregularidade não seja arguida nos sobreditos moldes, o acto produzirá todos os seus efeitos jurídicos como se fosse perfeito. (assim, por todos, veja-se o Ac. Rel. Lisboa de 22.02.2023, Proc. n.º 449/22.8TELSB-A.L1-3, relatora Juíza Desembargadora Isabel Cristina Gaio Ferreira de Castro, in www.dgsi.pt, na esteira, aliás, do vertido no Ac. Fix. Jurisprudência n.º 5/2002, DR I-A, de 17 de Julho de 2002, págs. 5376 a 5377). Vertendo para o caso em apreço, o despacho objeto de recurso foi proferido em 18.09.2023 e foi notificado por via postal, com AR expedida na data de 24.11.2023 aos recorrentes, que se consideram do mesmo notificados na data da assinatura dos respectivos AR. Sucede, porém, que os recorrentes não invocaram tal irregularidade processual junto do tribunal que proferiu o despacho agora em crise, nos prazos estabelecidos pelos citados preceitos legais. Assim, o pretenso vício da falta de fundamentação que constitui, neste caso, mera irregularidade, com o regime de arguição previsto no citado artigo 123º do CPP. Não tendo sido este regime observado, preclude o conhecimento desta questão, considerando-se tal irregularidade sanada. E ainda que assim se não entendesse, sempre importaria sublinhar que o tribunal a quo elencou no despacho recorrido, quais os fundamentos de facto da sua decisão – veja-se a factualidade vertida nos pontos 1. a 9. do aludido despacho -, analisando de forma sintética, mas sobejamente compreensível, os meios de prova em que se apoiou em ordem a concluir que cada um dos recorrentes mais não foi que uma “testa de ferro” do inicialmente requerido AA. Com tal fundamentação, mostram-se cumpridas as exigências constitucionais aludidas respeitantes ao dever de fundamentação dos despachos decisórios, pois o que se mostra vertido no despacho em crise permite, de forma inteligível, apreender o raciocínio subjacente ao mesmo. Tanto assim é que cada um dos recorrentes não teve dificuldades em “montar” o seu argumentário recursivo por forma a “desmontar a construção” do despacho recorrido. Posto isto, e independentemente de cada um dos recorrentes discordar com a análise do tribunal a quo acerca dos (suficientes) indícios recolhidos nos autos, em toda a sua extensão (como se recolhe da fundamentação vertida no despacho recorrido (1)), tal divergente valoração dos indícios não se reconduz a nenhum dos vício apontados, seja o da falta de fundamentação (de facto) (artigo 97º, n.º 5 do CPP), seja o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, artigo 410º, n.º 2, al. a) do mesmo diploma legal), os quais se têm por não verificados. * Passemos agora à apreciação da terceira questão objecto do recurso: mostram-se (in)verificados os requisitos que determinaram o arresto de cada uma das viaturas automóveis identificadas com as matrículas ..-RO-.. (...) e BX-..-.. (...), cuja propriedade se mostra inscrita, respectivamente, a favor de cada um dos recorrentes, “...” e de CC? Foram os seguintes os fundamentos do despacho recorrido para julgar procedente a pretensão formulada pelo assistente BB de reforço do arresto: i. não obstante a propriedade sobre cada uma das viaturas identificadas se encontre inscrita na Conservatória do Registo Automóvel a favor de terceiros, que não o falecido (inicialmente requerido) AA, as mesmas eram propriedade deste; ii. o falecido AA realizou transferências de património para terceiros, in casu as aludidas viaturas automóveis para os ora recorrentes, património esse obtido com a prática dos factos pelos quais foi condenado pela prática dos crimes de fraude fiscal qualificada, abuso de confiança qualificado e crime de branqueamento; iii. transferências de património essas com o fito de impedir o respectivo rastreio, localização e apreensão; iv. o falecido AA foi condenado a pagar ao assistente, solidariamente com outros arguidos, a quantia de 29.539.629,08 € (vinte e nove milhões quinhentos e trinta e nove mil seiscentos e vinte e nove euros e oito cêntimos); v. verifica-se o risco de não ser possível o ressarcimento do lesado caso não sejam as viaturas em causa objecto de arresto e remoção dos locais onde se encontrem. Por sua vez, a recorrente ... alega, em síntese, que a viatura ... em causa nos autos lhe pertence, tendo sido por si efectivamente adquirida na ..., estando apenas habitualmente estacionada na garagem do dito AA por uma questão de logística diária que melhor explicita nas Motivações que apresentou. Já o ... foi ofertado pelo falecido AA ao recorrente CC, atenta a relação de amizade que os unia, e não apenas a profissional (este era motorista daquele) e a fim de evitar a deterioração de tal viatura considerando o seu não uso por parte da esposa do falecido, tendo o mesmo permanecido na garagem do falecido por o recorrente não ter lugar para a parquear. Advogam assim os recorrentes que o que fundamenta a decisão recorrida são meras presunções, suposições e/ou suspeitas, nada mais, sendo que a prova real, concreta, e verdadeira que existe é aquela junta aos autos pelos recorrentes (cfr. pontos o) e q) das Conclusões), aditando o recorrente CC que não existe qualquer prova que possa indiciar que o veículo apreendido resulte de uma conduta criminosa do recorrente (pontos p) e q) das respectivas Conclusões). A este propósito, chamamos à colação a seguinte jurisprudência: - “Embora seja admissível a existência de apenas um indício, desde que veemente e categórico, na ausência de “prova direta” a prova sobre factos deverá, por regra, alcançar-se através da ponderação conjunta de elementos probatórios que permitam excluir qualquer outra explicação lógica e plausível. Os factos indiciadores devem ser plurais, independentes, contemporâneos do facto a provar, concordantes, conjugando-se entre si e conduzindo a inferências convergentes», sendo certo que na «análise crítica global devem ser tidos em conta quer os indícios da inocência, quer os que enfraquecem a conclusão de responsabilização criminal extraída do indício positivo» (Ac. Rel. Guimarães de 17.02.2014, Proc. nº 443/12.7JABRG.G1, relator Juiz Desembargador João Lee Ferreira, in www.dgsi.pt); - “I. A presunção é uma conclusão de um raciocínio, que induz o facto desconhecido a partir de um facto conhecido, o indício, suposta uma adequada relação de causalidade, surtindo o facto indiciado como resultante de uma comparação entre o facto indiciário e uma lei ou regra da experiência comum, ou seja, de acordo com o que é usual acontecer. II. A prova indiciária é suficiente para determinar a participação no facto punível se da sentença estiverem completamente demonstrados, por prova directa (requisito de ordem material), os indícios, que devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e, sendo vários, devem estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência, que deve ser razoável, não arbitrário, absurdo ou infundado e respeitar a lógica da vida e da experiência. III -Dos factos-base deriva o elemento a provar, existindo entre ambos um nexo preciso, directo, segundo as regras da experiência, de modo a resistirem aos contraindícios, ou seja, a indícios negativos, estes alicerçados também naquelas regras, de ordem tal que, abalando a força dos indícios positivos, instalando a dúvida, os positivos não podem subsistir” (Ac. do STJ de 26.09.2012, Proc. nº 101/11.0PAVNO.S1, relator Juiz Conselheiro Armindo Monteiro, in www.dgsi.pt) “IV - A prova nem sempre é directa, de percepção imediata, muitas vezes é baseada em indícios. V - Indícios são as circunstâncias conhecidas e provadas a partir das quais, mediante um raciocínio lógico, pelo método indutivo, se obtém a conclusão, firme, segura e sólida de outro facto; a indução parte do particular para o geral e, apesar de ser prova indirecta, tem a mesma força que a testemunhal, a documental ou outra. VI - A prova indiciária é suficiente para determinar a participação no facto punível se da sentença constarem os factos-base (requisito de ordem formal) e se os indícios estiverem completamente demonstrados por prova directa (requisito de ordem material), os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e, sendo vários, estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência. VII - O juízo de inferência deve ser razoável, não arbitrário, absurdo ou infundado, e respeitar a lógica da experiência e da vida; dos factos-base há-de derivar o elemento que se pretende provar, existindo entre ambos um nexo preciso, directo, segundo as regras da experiência. (Ac. STJ, de 11.7.2007, Proc. n.º 1416/07 -3.ª Sec., relator Juiz Conselheiro Armindo Monteiro, in www.dgsi.pt) Diz-nos ainda Juiz Conselheiro Santos Cabral, em jeito de conclusão no texto intitulado “Prova Indiciária e as novas formas de Criminalidade” publicado na Revista Julgar, n.º 17, 2012, pág. 13 e ss.: “A necessidade de controle dos instrumentos através dos quais o juiz adquire a sua convicção sobre a prova visa assegurar que os mesmos se fundamentam em meios racionalmente aptos para proporcionar o conhecimento dos factos e não em meras suspeitas ou intuições ou em formas de averiguação de escassa ou nula fiabilidade. Igualmente se pretende que os elementos que o julgador teve em conta na formação do seu convencimento demonstrem a fidelidade as formalidades legais e as garantias constitucionais. As regras da experiência ou regras de vida como ensinamentos empíricos que simples facto de viver nos concede em relação ao comportamento humano e que se obtém mediante uma generalização de diversos casos concretos tendem a repetir-se ou reproduzir-se logo que sucedem os mesmos factos que serviram de suporte efectuar a generalização. Estas considerações facilitam a lógica de raciocínio judicial porquanto se baseia na provável semelhança das condutas humanas realizadas em circunstâncias semelhantes a menos que outra coisa resulte no caso concreto que se analisa ou porque se demonstre a existência de algo que aponte em sentido contrário ou porque a experiência ou perspicácia indicam uma conclusão contrária.” Dito isto, não podemos deixar de concordar com o juízo feito pelo tribunal a quo e vertido nos pontos 7. e 8. da fundamentação de facto do despacho recorrido se mostra mais consentâneo com as regras da experiência e da normalidade das coisas, o que não sucede com a facticidade invocada por cada um dos recorrentes, embora não deixemos de ter presente, como a vida nos tem ensinado, que não raras vezes a realidade das coisas é mais rica e surpreendente que a ficção. Não é, porém, o caso. Vejamos o porquê. Dos documentos juntos pela recorrente ... com o recurso ora em apreço, resulta que formalmente foi a sociedade “...” que adquiriu a viatura ... com o n.º de quadro WDD2122051A805243 na ..., em Junho de 2016, tendo sido ainda esta sociedade quem diligenciou pelo transporte e legalização de tal viatura, à qual foi atribuída a matrícula “..-RO-..”. Extrai-se ainda da documentação agora junta, a realização da operação bancária alegada nos pontos 19 – levantamento de numerário; bem assim a emissão, pelo IMT de licença do veículo em causa para transporte em táxi com veículo isento de distintivo. Documentado está já nos autos a transferência da propriedade da viatura para a ora recorrente .... Quanto ao mais argumentado, mormente na parte final do ponto 19., bem assim nos pontos 20. a 24., 26. a 30. e 31. a 42., tal não resulta da prova documental junta. Com efeito, e sem pretendermos ser simplicista e perdoe-se o uso da expressão, “o dinheiro não fala”. Assim, a primeira nota a apontar é a de que a quantia monetária que foi levantada, como documentado, poderia ter tido muitos outros fins que não a alegada compra da viatura em causa. E ainda que se pudesse conceber tal destino para a apontada quantia, ficaria ainda por explicar a origem, na conta bancária em causa, dessa mesma quantia. Acresce que o demais alegado não se mostra consentâneo com a normalidade das coisas: então uma viatura que foi, como se argumenta, adquirida e licenciada para a actividade de táxi (com licença válida de 16.05.2017 a 29.07.2018), veio depois a ver a sua propriedade transferida para a ora recorrente a 20.12.2021, pelos motivos que se invocam em 29. das Motivações? Que uso foi feito de tal viatura entre 30.07.2018 e esta última data? Para o de táxi não terá sido, ou pelo menos não foi junto aos autos documento comprovativo de atribuição de licença para tal actividade em período temporal posterior àquele que o documento n.º 5 junto evidencia. Não se mostra consentâneo com o escopo de uma sociedade que se dedica à actividade económica de serviço de táxi ter um carro parado. E ainda que se aduza, como o faz a recorrente nos artigos 36º e 37º das Motivações, que tal veículo era usado maioritariamente por CC (motorista do falecido AA), gerente de ambas as sociedades “...” e “...”, para efectuar as suas deslocações diárias de Lisboa para a ... (local de residência do referido AA), como é que tal se compagina com a actividade de táxi para a qual a viatura esteve, em tempos, licenciada, sendo, ademais, tal actividade o fito para a aquisição da mesma – cfr. ponto 16º das Motivações? Não faz também qualquer sentido o demais alegado pela recorrente nos artigos 38º e 39º das Motivações: se a viatura “..-RO-..” era propriedade da aqui a recorrente e utilizada maioritariamente por aquele CC para se deslocar para o seu local de trabalho, como equacionar, como o faz a recorrente, que o regresso da ... a Lisboa poderia ser feito com uma outra viatura, que não a aquela “RO”, mas antes por uma viatura “...”, viatura esta a utilizada para fazer o transporte de AA? Desta feita, e salvo o devido respeito, todo este argumentário recursivo se mostra muito confuso e destituído de razoabilidade e de comunhão com a normalidade das coisas, pelo que incapaz de abalar o julgamento feito pelo tribunal a quo quanto à factualidade julgada provada nos aludidos pontos 7. e 8., bem assim a motivação apresentada para a fundamentação do juízo positivo quanto a este grupo de factos. - Passemos à viatura da marca ..., com propriedade registada a favor de AA a 17.10.1997 e a favor de CC a 28.10.2016. Invoca o recorrente CC ter sido beneficiário de uma doação por parte do seu patrão e amigo de há 20 anos, o falecido AA. Mais invoca que tal doação teve subjacente a circunstância de, a fim de evitar a deterioração do mesmo, porque permanentemente imobilizado, não haver vantagem em vendê-lo, por tratar-se de um veículo antigo, sem valor comercial interessante. O que dizer? Muito pouco, pois que é consabido que uma viatura da marca ..., modelo 911 Carrera, é, por natureza, um clássico. Pelo que o valor comercial do mesmo é, a dado passo, proporcional à sua “longevidade”. Contando tal viatura com primeiro registo de matrícula no ano de 1990, na data de 2016, seria inquestionável o seu valor comercial. E como compaginar, entre si, o demais argumentado? Então a viatura que estava na garagem do falecido AA, porque a esposa deste (a quem havia sido por aquele oferecida) não a utilizava, iria continuar a ali permanecer? Com efeito, e uma vez que, de acordo com o alegado, o beneficiário da doação não tinha garagem em Lisboa, onde residia, para abrigar tal viatura dos elementos naturais, iria mantê-la na garagem onde sempre esteve, passando de “permanentemente imobilizado” (artigo 15º das Motivações) para “raramente utilizado” (artigo 21º)? Não se pode assim deixar de concluir que inexistiu entre o recorrente e o falecido AA qualquer contrato de doacção tendo por objecto a viatura da marca ..., modelo 911 Carrera identificada nos autos, sendo aquele o beneficiário. Inexistiu assim, subjacente ao registo de propriedade de tal viatura a favor do ora recorrente, qualquer negócio jurídico, mantendo-se a propriedade sobre tal viatura na esfera jurídica do falecido AA, pelo que importa conservar o julgamento de facto vertido no despacho recorrido nos pontos 7. e 9. dos factos provados. Não se concede assim, neste segmento, provimento ao recurso. - Por último, importa que nos reportemos a um outro ponto: - invoca a recorrente ... que o direito aplicado pelo tribunal a quo – artigos 178º do CPP e 109 e 110º, estes do CP – não tem aplicação in casu, uma vez que o veiculo apreendido não está relacionado com a prática de qualquer facto ilícito, não é susceptível para servir de prova e não houve qualquer actuação ou intenção de ocultar qualquer origem ilícita de fundos a fim de permitir a sua reintrodução na economia legítima; - também o recorrente CC argumenta ter inexistido da sua parte e da do falecido AA qualquer manobra criminosa ou ilícita e que a viatura ... foi adquirida por este muito antes dos factos ilícitos objecto dos autos principais a que os presentes correm por apenso. Quanto a tais argumentações cabe apenas dizer que os veículos em causa – ..-RO-.. (...) e BX-..-.. (...) - mostram-se, por força do despacho recorrido, arrestados ao abrigo do artigo 228º do CPP, e não apreendidos ao abrigo dos citados artigos 178º do CPP e 109 e 110º, estes do CP. Relembremos aqui o que estabelece o artigo 178º do CPP (na sua actual redacção): “Objeto e pressupostos da apreensão 1- São apreendidos os instrumentos, produtos ou vantagens relacionados com a prática de um facto ilícito típico, e bem assim todos os animais, as coisas e os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova. 2- Os instrumentos, produtos ou vantagens e demais objetos apreendidos nos termos do número anterior são juntos ao processo, quando possível, e, quando não, confiados à guarda do funcionário de justiça adstrito ao processo ou de um depositário, de tudo se fazendo menção no auto, devendo os animais apreendidos ser confiados à guarda de depositários idóneos para a função com a possibilidade de serem ordenadas as diligências de prestação de cuidados, como a alimentação e demais deveres previstos no Código Civil. 3- As apreensões são autorizadas, ordenadas ou validadas por despacho da autoridade judiciária. 4- Os órgãos de polícia criminal podem efectuar apreensões no decurso de revistas ou de buscas ou quando haja urgência ou perigo na demora, nos termos previstos na alínea c) do n.º 2 do artigo 249º. 5- Os órgãos de polícia criminal podem ainda efetuar apreensões quando haja fundado receio de desaparecimento, destruição, danificação, inutilização, ocultação ou transferência de animais, instrumentos, produtos ou vantagens ou outros objetos ou coisas provenientes da prática de um facto ilícito típico suscetíveis de serem declarados perdidos a favor do Estado. 6- As apreensões efectuadas por órgão de polícia criminal são sujeitas a validação pela autoridade judiciária, no prazo máximo de setenta e duas horas. 7- Os titulares de instrumentos, produtos ou vantagens ou outros objetos ou coisas ou animais apreendidos podem requerer ao juiz a modificação ou a revogação da medida. 8- O requerimento a que se refere o número anterior é autuado por apenso, notificando- se o Ministério Público para, em 10 dias, deduzir oposição. 9- Se os instrumentos, produtos ou vantagens ou outros objetos ou coisas ou animais apreendidos forem suscetíveis de ser declarados perdidos a favor do Estado e não pertencerem ao arguido, a autoridade judiciária ordena a presença do interessado e ouve-o. 10 - A autoridade judiciária prescinde da presença do interessado quando esta não for possível. 11- Realizada a apreensão, é promovido o respetivo registo nos casos e nos termos previstos na legislação registal aplicável. 12- Nos casos a que se refere o número anterior, havendo sobre o bem registo de aquisição ou de reconhecimento do direito de propriedade ou da mera posse a favor de pessoa diversa da que no processo for considerada titular do mesmo, antes de promover o registo da apreensão a autoridade judiciária notifica o titular inscrito para que, querendo, se pronuncie no prazo de 10 dias.” Por sua vez, preceitua o artigo 228º do CPP, sob a epígrafe “Arresto preventivo”: “1- Para garantia das quantias referidas no artigo anterior, a requerimento do Ministério Público ... ou do lesado, pode o juiz decretar o arresto, nos termos da lei do processo civil; se tiver sido previamente fixada e não prestada caução económica, fica o requerente dispensado da prova do fundado receio de perda da garantia patrimonial. 2- O arresto preventivo referido no número anterior pode ser decretado mesmo em relação a comerciante. 3- A oposição ao despacho que tiver decretado arresto não possui efeito suspensivo. 4 - Em caso de controvérsia sobre a propriedade dos bens arrestados, pode o juiz remeter a decisão para tribunal civil, mantendo-se, entretanto, o arresto decretado. 5 - 0 arresto é revogado a todo o tempo em que o arguido ou o civilmente responsável prestem a caução económica imposta. 6 - Decretado o arresto, é promovido o respetivo registo nos casos e nos termos previstos na legislação registral aplicável, promovendo-se o subsequente cancelamento do mesmo quando sobrevier a extinção da medida. 7- O arresto preventivo é aplicável à pessoa coletiva ou entidade equiparada.” Ora, fazendo nossas as palavras registadas no citado Ac. Rel. Lisboa de 22.02.2023 proferido no apenso aos autos a que os presentes também correm por apenso, sob a letra N, dir-se-á: “(…) O arresto preventivo constitui uma medida de garantia patrimonial, visando acautelar, segundo remissão para o artigo 227º, o “pagamento da pena pecuniária, das custas do processo ou de qualquer outra dívida para com o Estado relacionada com o crime” ( 227º , n.º 1, al. a)) , o pedido de indemnização civil e outras obrigações civis derivadas daquele (227.º, n.°2), e bem assim a perda do valor dos instrumentos, produtos e vantagens da prática do facto ilícito típico [227º, n.°1, al. b)]. A apreensão prevista no artigo 178º distingue-se do arresto preventivo e do arresto dos bens do arguido para confisco alargado (artigo 10.º da Lei n.º 5/2002 de 11 de Janeiro) pelos seus requisitos formais e, sobretudo, pelo seu âmbito de aplicação, constituindo realidades jurídicas diversas. (…) Como explica João Conde Correia, enquanto a apreensão atinge o património contaminado as coisas directa ou indirectamente relacionadas com um facto ilícito típico, garantindo não só a conservação da prova, mas a perda dos instrumentos, produtos, recompensas e vantagens decorrentes da prática do facto ilícito típico, ο arresto só atinge o património lícito, garantindo, para o que importa, a perda do valor dos instrumentos, dos produtos e das vantagens, que não podem ou já não podem ser confiscados em espécie (Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo II, Almedina, 2019 . 628).” (sublinhados nossos) Sendo assim, como é, é de todo inócuo apreciar a proveniência lícita e ilícita dos arrestados automóveis, frisando-se uma vez mais que o fundamento legal para a retirada das viaturas da esfera da disponibilidade dos ora recorrentes não foi o dos citados artigos 178º do CPP e 109º e 110º, ambos do CP, mas sim o regime estatuído no artigo 228º do CPP. - Por tudo o exposto, não vemos razões nem de facto nem de direito para revogar o despacho recorrido. Não se concede, por tal, provimento aos recursos interpostos. * III – Das custas À responsabilidade por custas relativas ao pedido cível deduzido no processo penal são aplicáveis as normas do processo civil (artigo 523º do CPP). A regra geral em matéria de custas, encontra-se prevista no artigo 527º do CPC que dispõe: “1 – A decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte a que elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. 2 – Entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for. 3 – No caso de condenação por obrigação solidária a solidariedade estende-se às custas.” Resulta igualmente do disposto no artigo 1º, n.ºs 1 e 2 do Regulamento das Custas Processuais, que são devidas custas pelo recurso. Temos assim que o primeiro critério a considerar para determinar a responsabilidade pelas custas é o do princípio da causalidade segundo o qual, suportará as custas a parte que lhes deu causa, entendendo-se por esta, de acordo com o princípio da sucumbência, a parte vencida ou as partes vencidas na proporção em que o forem. Nos presentes autos, atento o vindo de decidir, cada um dos recorrentes ficou vencido no recurso que interpôs junto deste Tribunal da Relação, pelo que importa que se condene cada um deles nas custas devidas por cada um dos recursos interpostos. Desta feita, atenta a complexidade das questões suscitadas, e atendendo ao fixado na Tabela III anexa ao RCP, entendemos adequado condenar cada um dos recorrentes em 3,5 UC´s (três e meia unidades de conta). *** IV – DISPOSITIVO Acordam as Juízas Desembargadoras desta 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em não conceder provimento a cada um dos recursos interpostos pelos recorrentes “...” e CC, mantendo-se nos seus precisos termos o despacho recorrido proferido nos autos de Arresto a 18.09.2023. * Condena-se cada um dos recorrentes no pagamento das custas, fixando-se a título de taxa de justiça em 3,5 UC´s (três e meia unidades de conta) - cfr. artigos 523º do CPP, 527º, n.º 1 do CPC e 7º, nº 2 do R. das Custas Processuais e Tabela III, anexa. * Registe e notifique (artigo 425º, nºs 3 e 6 do CPP). * Tribunal da Relação de Lisboa, 16 de Maio de 2024 (Texto processado por computador e composto pelo 1º signatário, sendo por este revisto, bem assim pelas demais Juízas Desembargadoras Adjuntas e por todas assinado digitalmente) CARLA CARECHO FERNANDA SINTRA AMARAL MICAELA PIRES RODRIGUES _______________________________________________________ 1. Quando ali se lê: “Da conjugação dos diversos elementos documentais juntos aos autos, designadamente, os constantes da informação junta ao presente apenso a 01.07.2022 (ref. 417241966), das certidões do registo automóvel juntas a 01.08.2023 (ref. 36684916), do acórdão proferido nos autos principais a 14.05.2021, da sentença proferida em 16.06.2023 pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, nos autos principais, e não sendo este apenso incidental alheio a todo o demais processado nos autos principais, que igualmente se analisa de forma crítica, encontra-se indiciariamente demonstrado, atento o juízo de probabilidade necessário ao tipo de providência em apreço, que: (…)” |