Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5715/11.5TCLRS.L1-6
Relator: GABRIELA DE FÁTIMA MARQUES
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
EXTENSÃO DA SERVIDÃO
MODO DE EXERCÍCIO
DÚVIDA
REMOÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/27/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I. Desde o seu início até à sua extinção, a servidão pode sofrer uma série de modificações no seu próprio conteúdo e que são impostas ou determinadas por circunstâncias várias, nomeadamente, pelo próprio exercício da servidão, pelas alterações estruturais dos prédios, da sua finalidade ou destinação económica, pelas necessidades normais e previsíveis do prédio dominante.
II. Em caso de dúvida quanto à extensão ou modo de exercício da servidão, contempla o n.º2 do citado art. 1565º, dois princípios fundamentais a que deve obedecer o intérprete: a) Satisfação das necessidades normais e previsíveis do prédio dominante; e b) Menor prejuízo para o prédio serviente.
III. Quando o título constitutivo se afigura vago e não permite avaliar o sentido adequado do conteúdo de uma determina servidão haverá que considerar o princípio do melhor aproveitamento económico possível, quer do prédio dominante, quer do prédio serviente.
IV. Na aferição da extensão ou até o exercício da servidão em nada releva o eventual licenciamento de uma obra que possa colidir com o direito de servidão. Pois, no licenciamento das operações urbanísticas há uma relação jurídica entre a Administração e os interessados, visando-se o cumprimento das regras urbanísticas, e o controlo da administração não abrange a totalidade do ordenamento jurídico, pelo que a licença de construção não é um instrumento adequado para verificar o respeito por situações jurídico-privadas, cuja definição não cabe à Administração Pública.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório:
A… intentou a presente ação declarativa sob a forma de processo ordinário contra S…, S.A., pedindo a condenação da ré a: a) Reconhecer a servidão legal de passagem existente entre o seu prédio e o prédio do autor (constituída por usucapião); b) Remover quaisquer obstáculos que existam, designadamente, a terra existente na zona Sul da servidão para pôr fim à inclinação existente e que obsta à circulação na mesma do tractor agrícola do autor; c) Remover a área de estacionamento que construiu junto ao acesso Norte da servidão, de modo a que o autor possa ter uma comunicação suficiente com a via pública; d) Remover os separadores de parqueamento e vedações existentes em toda a extensão do seu empreendimento, a poente, por forma a repor o caminho de 4 metros de largura que existia anteriormente ao início das obras; e) Plantar oliveiras no local de onde as removeu (em toda a extensão do seu empreendimento, a poente), em número nunca inferior a 20; f) Abster-se da prática de qualquer acto que impeça ou diminua a utilização por parte do autor da aludida servidão.
Em abono da sua pretensão alega, em síntese, que desde sempre e após a construção da CREL, que o autor acede à sua propriedade, um prédio misto, sito no Casal do Chafariz, no lugar de Pintéus, quer no sentido Norte/Sul, junto à ponte da CREL em terreno com a área de 120 m2, cedida pela BRISA, quer no sentido sul/norte, através de um caminho ali existente, com cerca de 4 metros de largura e árvores nas bermas, há mais de 70 anos, por onde se fazia o trânsito de pessoas, animais e veículos, entre o lugar de Pintéus e Santo Antão do Tojal, que, após a construção da Estrada Municipal n.º 541, nos anos 50, passou a ser usado pelos proprietários dos terrenos na zona existentes, caminho esse que separa o prédio do autor do prédio da ré, rectius, da interveniente principal, proprietária do prédio urbano, sito na Estrada de Pintéus. Alega que em 2010, a ré iniciou a construção de um empreendimento destinado a armazéns industriais, no prédio contíguo ao do autor: removeu as árvores existentes no caminho e a norte; depositou entulho; construiu um muro de suporte de terras, que fechou o caminho a Sul, que veio a abrir mais tarde mas com uma inclinação demasiado elevada, que impede o autor de o utilizar com o tractor agrícola; colocou separadores junto ao prédio do autor, sem contemplar os 4 metros de largura do caminho; construiu, na área de 120 m2, uma edificação onde foram instalados os contadores de água dos armazéns, que mais tarde removeu e onde veio a construir uma zona de estacionamentos que “praticamente” impossibilita o autor de aceder à sua propriedade, zona que se estende em toda a extensão e área do caminho que ali existia.
Citada a ré a mesma contestou arguindo a sua ilegitimidade passiva, fundamentando tal na circunstância de não ser proprietária do imóvel serviente na data da interposição da ação, mas sim a C… – Instituição Financeira de Crédito, S.A.. No mais, alega, em síntese, que na qualidade de locadora do imóvel realizou no mesmo a construção de armazéns, cujo projeto já havia anteriormente sido aprovado pela Câmara Municipal de Loures, pelo que nada sabe do alegado pelo A. Porém, veio a saber que o caminho que era utilizado deixou de o ser com a construção da EM 541 e com a construção da CREL foi abolida o acesso à localidade de Pintéus, tendo sido construída uma ponte sobre a CREL para o efeito. Mais refere que não existe a serventia no sentido sul/norte, nem o prédio do A. se encontra encravado, pois confina com a via pública, quer a poente, sul e a norte. Mais alega que a construção de um muro visou conter as terras a sul do prédio, que deslizavam para o caminho e a área de estacionamento situa-se dentro da propriedade e nesse local não dispõe o A. de passagem. Conclui pela improcedência da ação.
O A. replicou mantendo o alegado e que face ao contrato de locação imobiliária a ré virá a adquirir o imóvel, pugnando assim pela sua legitimidade passiva, mas requerendo a intervenção principal provocada da locadora.
Tal intervenção foi admitida, tendo a interveniente contestado, dizendo que toda a operação de compra foi feita no interesse da ré e haverá ilegitimidade da interveniente quanto aos pedidos formulados em b) a e). No mais, impugna os factos por desconhecimento e alegando que não se verifica a aparência da servidão por mais de 50 anos, nem o A. alega o valor de tal benefício que será neste caso objeto de indemnização, e ainda que a mesma se extinguiu por desnecessidade, atuando o A. em abuso de direito. Conclui ou pela procedência das exceções, ou pela improcedência do pedido.
O A. respondeu às alegadas exceções.
Por despacho proferido a 26-09-2018, foi a interveniente principal absolvida da instância relativamente aos pedidos formulados pelo autor, sob b) a e).
Realizada audiência final foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência:
1) Condenou a ré S…, S.A. e a interveniente principal C… – Instituição Financeira de Crédito, S.A., a reconhecerem a servidão legal de passagem existente entre o prédio referido em c) e o prédio referido em a), dos factos provados;
2) Condenou a ré S…, S.A. a remover a área de estacionamento construída junto ao acesso norte da servidão;
3) Condenou a ré Sociedade Imobiliária ….., S.A. e a interveniente principal C…, S.A., a absterem-se da prática de qualquer acto que impeça ou diminua a utilização por parte do autor da aludida servidão;
4) Absolveu a ré S…, S.A. do demais peticionado.
Inconformada recorreu a ré da sentença, pedindo a revogação da mesma e a sua substituição por douto Acórdão que condene a Apelante a reconhecer apenas a existência e o direito de passagem pela sua propriedade -1…-E-, entre o prédio do Apelado – …-E-, junto à CREL e a via pública, que é a Estrada Municipal 541, definida a sul da vedação da CREL e na parte norte do prédio 130-E, da Apelante, absolvendo esta do restante.
Em abono da sua pretensão recursória a ré apresentou as seguintes conclusões:  
«1ª – A douta sentença recorrida condenou a Apelante, a reconhecer a servidão legal de passagem existente entre os prédios referidos em c) e o prédio referido em a), dos factos provados.
2ª – Há evidente confusão entre o ponto 1 e o ponto 2 da decisão, visto que a designada servidão legal de passagem entre os prédios do Apelado (… – E) e da Apelante (… – E e … – E) nada têm a ver com o designado acesso norte da servidão, uma vez que este acesso constitui uma outra servidão e não uma mera continuação da outra.
3ª – A primeira das servidões é a que resulta do antigo caminho público entre a entrada a sul do empreendimento da Apelante e a parte norte do mesmo empreendimento, coincidente com a rede de vedação da CREL, colocada pela BRISA.
4ª – A segunda servidão é a que consiste na passagem a norte do empreendimento da Apelante, entre o prédio do Apelado e a Estrada Municipal nº 541, limitada a norte pela vedação colocada pela BRISA, utilizada ao longo dos tempos pelo Apelado, após construção da CREL e ponte sobre a mesma, na referida Estrada Municipal.
5ª – São duas passagens completamente distintas e ambas têm ligação à Estrada Municipal nº 541.
6ª – A dita primeira servidão (que foi o designado caminho público) deixou de ter a sua finalidade com a construção da CREL, há mais de 25 anos.
7ª – A partir da construção desta infra estrutura viária, o Apelado começou a utilizar uma parcela de terreno a norte do prédio 130 – E, da Apelante e a sul da vedação em rede da CREL, entre o seu prédio e a Estrada Municipal 541.
8ª – Esta é a segunda servidão para o prédio do Apelado que a decisão recorrida confunde com a que constituiu de sul para norte entre os prédios da Apelante e do Apelado.
9ª – Ou seja, a douta sentença cria duas entradas e saídas para o prédio do Apelado, à custa do prédio do Apelante.
10ª – A confusão resultante da decisão recorrida manifesta-se, notoriamente, quando no ponto 1, se condena a Ré a reconhecer a servidão legal existente entre os prédios referidos em c) e o prédio referido em a), dos factos provados e, no ponto 2, se condena a Ré a remover a área de estacionamento construída junto ao acesso norte da servidão, conforme já se referiu na 2ª conclusão.
11ª – O “caminho público” perdeu a sua razão de existir com o aparecimento da CREL, que lhe cortou a passagem e foi substituído pela construção e utilização da EM 541 e mais recentemente, mas com mais de 25 ano, com a construção da ponte sobre a CREL.
12ª – Com a decisão recorrida, concede-se ao Apelado o direito a circular a toda a volta e por dentro dos prédios da Apelante, ou seja, desde a parte sul desses prédios, que provêm da Estrada Municipal 541, continuando pelas estremas dos mesmos prédios com o prédio do Apelado até chegar à vedação da BRISA, a norte e virando à direita para a referida EM 541 por terreno pertencente à Apelante, ficando completamente desvirtuado o regime jurídico das servidões prediais.
13ª – Daí que, com a conformação da decisão recorrida, o prédio do Apelado passa a beneficiar não de uma, mas de duas servidões, ambas com acesso à via pública, que é a Estrada Municipal 541.
14ª – No entanto, com a construção da CREL e da ponte sobre esta no local da EM 541, todo o movimento de pessoas e veículos para dentro e para fora do prédio do Apelado, passou a fazer-se, há mais de 25 anos, pelo prédio nº 130 – E, da Apelante, na parte junto à vedação colocada pela BRISA, que limita a CREL.
15ª- A construção do empreendimento da Apelante teve na sua génese um projeto aprovado, que não considerou a existência de um caminho ou caminho público, no pressuposto de que já não existia, por virtude da construção da CREL e de que a passagem de e para o prédio do Apelado já estava a ser feita na parte mais a norte do prédio 130-E, da Apelante e a sul da vedação da CREL.
16ª- Nunca faria sentido aprovar-se um empreendimento da envergadura do que pertence à Apelante, num local que contemplasse um caminho público com regular utilização e circulação de pessoas e veículos.
17ª-Aliás, na altura da aprovação do projeto, já o Apelado havia muito que utilizava a passagem entre o seu prédio e a Estrada Municipal 541, junto à designada vedação da CREL, colocada pela BRISA, a norte do prédio 130-E, da Apelante.
18ª- A Apelante nunca se opôs, nem opõe, à circulação do Apelado, de e para o seu prédio, por esta passagem desde a EM 541.
19ª- A sentença impugnada, criou, não uma, mas duas servidões, destinadas ao prédio do Apelado, dito dominante: uma, com entrada e saída pela parte sul do empreendimento e outra, com entrada e saída a norte do mesmo empreendimento, ambas com ligação e acesso à EM 541.
20ª- O que para além de ser contrário à lei, é causador de gravíssimos prejuízos para a Apelante.
21ª- O regime jurídico das servidões prediais consigna que “ Servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente, dizendo-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia “ – Artº 1543º, do Código Civil.
22ª- Uma vez que o prédio do Apelado foi considerado como encravado, teria de observar-se o disposto no nº 1, do artº 1550º, do C´. C., ou seja: “ Os proprietários de prédios que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio, têm a faculdade de exigir constituição de servidões de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos “.
23ª- Prescreve ainda o artº 1553º, também do C.C. que “ A passagem deve ser concedida através do prédio ou prédios que sofram menor prejuízo e pelo modo e lugar menos inconveniente para o prédio onerado “.
24ª- A constituição, por sentença judicial, de duas servidões prediais, para um mesmo prédio, onerando o mesmo prédio, é ilícita, por constituir inquestionável abuso de direito.
25ª- O abuso de direito encontra-se consagrado no artº 334º, do Código Civil, que estabelece que “ É ilegítimo o exercício de um direito quando o titular excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito “.
26ª- A Apelante invoca a figura do abuso de direito para impugnar a douta sentença, por estar plenamente convicta da veracidade e validade dos respetivos pressupostos, no caso “ sub judice “.
27ª- A figura do abuso de direito faz extinguir o efeito jurídico do decidido na douta sentença recorrida.
28ª- Segundo o Acórdão do STJ, de 7.10.1998, publicado no BTE, 2ª Série, nºs 4-5-6/90, pag. 409 “ O abuso de direito é uma forma de antijuridicidade ou ilicitude e para que se verifique, conforme o artº 334º, do Código Civil, é necessário que o seu titular embora observando a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que deve observar atendendo aos interesses que legitimam a concessão desse poder, exerça o direito em termos clamorosamente ofensivos da justiça. “.
29ª- A passagem a norte do prédio 130-E, da Apelante e a sul da vedação da CREL, construída pela BRISA, constituindo encargo para a Apelante, é por esta considerada como a melhor solução para o fim em vista, que é o de permitir a entrada e saída a pessoas e veículos, da via pública para o prédio do Apelado e no sentido inverso.
30º- De acordo com os supra referidos normativos atinentes a servidões prediais, a Apelante a mais não pode ser obrigada, sob pena da legitimação do abuso de direito.
31ª- A constituição da servidão de passagem entre a Estrada Municipal 541 e o prédio do Apelado, na parte norte do prédio 130-E, da Apelante e a sul da vedação da CREL, construída pela BRISA, é o encargo sobre o prédio serviente que serve na plenitude o direito e as necessidades do Apelado e, ao mesmo tempo, a que menos onera a propriedade do Apelante.
32ª- Ao constituir uma única servidão entre os prédios da Apelante e do Apelado, a douta sentença cria, não um, mas dois acessos da via pública – EM 541 – ao prédio do Apelado, encargo que a Apelante considera contrário à constituição de servidões, logo, ilegal, despropositada e extraordinária e excessivamente onerosa para a Apelante.
33ª- A localização de uma servidão só pode considerar-se justa e com respeito pelo Direito, quando assegure o direito de passagem de e para o prédio encravado, através do prédio que sofra menor prejuízo e pelo modo e lugar menos inconveniente para o prédio onerado, conforme resulta do artº 1553º, do Código Civil.
34ª- Esta circunstância nem sequer foi ponderada pela sentença ora posta em crise.
35ªA douta sentença recorrida violou clara e inequivocamente, o disposto nos artigos 1543º, 1550º, nº 1, 1553º, 1565º, nº 2 e o artº 334º, todos do Código Civil.».
O recorrido contra alegou, pugnando pela negação de provimento ao recurso, apresentando as seguintes conclusões:
«A. Por Sentença proferida em 18 de Janeiro de 2019, com a referência 139470464, foi julgada parcialmente procedente a acção judicial instaurada pelo recorrido e, em consequência, foi a recorrente condenada a reconhecer a servidão legal de passagem existente entre os prédios de ambos, bem assim como a abster-se da prática de qualquer acto que impeça ou diminua a utilização por parte do autor da aludida servidão, e ainda a remover a área de estacionamento construída junto a acesso norte da servidão.
B. Tal decisão foi a que resultou da aplicação do direito aos factos provados, nomeadamente ao facto de entre os prédios em questão, ter existido um caminho que há mais de 70 anos, com largura que varia entre os 4 e os 6 metros, embora entre o prédio referido em a) e o prédio referido em c), 130, termine num afilamento de 1, 80 metros, delimitado nas respectivas bermas e ao longo do mesmo por árvores/oliveiras, entre o lugar de Pintéus (junto ao Chafariz) e Santo Antão do Tojal, por onde se fazia o trânsito de pessoas, animais e veículos, o qual, nos anos 50, em face da construção da Estrada Municipal n.º 541 deixou de ser utilizado pela população do lugar de Pintéus, continuando, porém, a ser usado pelos proprietários dos terrenos ali existentes e os respectivos trabalhadores rurais, por ser este o único acesso às suas propriedades, o que era do conhecimento da população e sem que tivesse existido, sobre essa utilização, qualquer litígio ou violência, o que aconteceu ininterruptamente com o pai do autor, com o próprio autor e com os referidos trabalhadores rurais, que sempre utilizaram o caminho.
C. Constando ainda como matéria assente que, em 1992/1993, parte do prédio do autor foi expropriado pela Brisa para construção da Auto-Estrada A9 – CREL, construção essa que cortou o caminho supra referido e “separou” o prédio do recorrido em duas novas parcelas autónomas, uma a norte e outra a sul da CREL, sendo que, a partir dessa altura, o recorrido a ter acesso ao seu prédio junto à ponte da CREL, no sentido Norte/Sul, pelo caminho atrás referido até aos portões onde possuía no seu terreno, ou no sentido Sul/Norte através do mesmo caminho, o que apenas deixou de suceder depois de, no início do ano de 2010, a recorrente ter iniciado a construção de um empreendimento destinado a armazéns industriais, num prédio contíguo ao prédio do recorrido, no âmbito do qual removeu as árvores ali existentes, construiu um muro de suporte de terras que fechou o caminho a sul na totalidade e a norte construiu uma edificação onde foram instalados os contadores de água dos armazéns, sendo que, em Janeiro de 2011, na fase final da obra, retirou o muro de contenção de terras e abriu o caminho, a sul, onde executou o acesso com inclinação, e na entrada Norte removeu os contadores, mas construiu uma zona de estacionamentos, semelhante à construída ao longo de todo o caminho existente entre o Sul e o Norte, e que se situa dentro da área do prédio da interveniente, área que se estende, a norte, até junto da rede de protecção da área da CREL e da ponte da EM 541.
D. A recorrente vem instaurar o presente recurso fundamentado no suposto facto de terem sido criadas não uma, mas duas servidões de passagem a favor do recorrido, à custa do prédio da recorrente, o que desvirtua o regime das servidões legais de passagem, defendendo a sua posição ainda pelo facto de a construção do empreendimento da recorrente ter sido precedida da aprovação de projecto pela entidade administrativa competente, a qual não considerou a existência de qualquer caminho ou caminho público, pelo que a sentença impugnada é contrária à lei, causa prejuízo grave para a recorrente e viola o disposto nos artigos 1543º, 1550º, n.º 1, 1553º, 1565º, n.º 2 e o artigo 334º, todos do Código Civil.
E. No entendimento do recorrido, nenhuma razão assiste à recorrente, na medida em que a Douta Sentença recorrida tomou a única decisão possível, em face da prova produzida e dos factos que foram dados como provados traduzindo-se o presente recurso, e a forma como o mesmo vem formulado, numa tentativa da recorrente de provocar confusão e dúvida no espírito do julgador, e, eventualmente obter uma decisão favorável às suas pretensões, em prejuízo da decisão efectivamente tomada e que, naturalmente, beneficia o recorrido, na medida em que reconhece um seu direito já anteriormente constituído.
F. Basta uma breve análise da fundamentação constante da Douta Sentença recorrida, bem assim como do teor do respectivo dispositivo para compreender que, na verdade, e ao contrário daquilo que vem invocado pela recorrente, não são constituídas duas servidões legais de passagem, ou sequer uma, limitando-se a Douta Sentença a proceder ao mero reconhecimento da existência dessa servidão, já constituída a favor do prédio do Autor há mais de cinquenta anos, adquirida através do instituto da usucapião.
G. Com efeito, dos factos provados, assim considerados com base em relatório pericial, resulta que entre o prédio do recorrido correspondente ao artigo 85º da Secção E da freguesia de Santo Antão do Tojal e concelho de Loures e os prédios dos quais a recorrente é locatária e que correspondem aos artigos urbano 1978º e rústico 130º da Secção E da freguesia de Santo Antão do Tojal e concelho de Loures, até ao número 5 (marco) referido na carta topográfica de fls. 36 (doc. 7, junto com a petição inicial), e dentro do prédio referido da recorrente, a partir do número 5 (marco) até ao número 7 (extrema) e depois deste ao longo da delimitação naquela efectuada até ao número 11 (marco), existia um caminho, há mais de 70 anos, com largura que varia entre os 4 e os 6 metros, embora entre o prédio do recorrido e o rústico do qual a recorrente é locatária terminem num afilamento de 1,80 metros, delimitado nas respectivas bermas e ao longo do mesmo por árvores/oliveiras, entre o lugar de Pintéus (junto ao Chafariz) e Santo Antão do Tojal, por onde se fazia o trânsito de pessoas, animais e veículos.
H. Resulta igualmente provado que nos anos 50, construída que foi a Estrada Municipal n.º 541, o supra aludido caminho deixou de ser utilizado pela população em geral, do lugar de Pintéus, continuando, contudo a ser utilizado pelos proprietários dos terrenos ali existentes e os respectivos trabalhadores rurais, porquanto aquele era o único acesso, situação que era do conhecimento da população, sem que alguma vez tenha existido qualquer litígio sobre essa mesma utilização.
I. Primeiramente o pai do recorrido e depois também este, bem como os respectivos trabalhadores agrícolas ao seu serviço, sempre utilizaram aquele caminho para se deslocar para o prédio rústico do qual são proprietários e supra identificado.
J. Em face da expropriação operada pela Brisa, para construção da CREL, o prédio do recorrido ficou separado em duas novas parcelas autónomas, uma a norte e outra a sul da CREL, passando o recorrido a poder aceder ao seu terreno através de um acesso junto à ponte da CREL, em ambos os sentidos, através do caminho que anteriormente configurava o acesso entre o lugar de Pintéus e Santo Antão do Tojal.
K. Apenas em face das obras realizadas pela recorrente deixou o recorrido de poder aceder ao seu prédio em toda a extensão do referido caminho, que anteriormente se encontrava bem delimitado com oliveiras plantadas em toda a sua extensão, nomeadamente porquanto a mesma construiu uma zona de estacionamento em toda a extensão do empreendimento, que impede a passagem.
L. No caso vertente, a matéria de facto provada não pode levar, como invocado pela recorrente, à aplicação do disposto pelos artigos 1543º, 1550º, n.º 1, 1553º e 1565º, n.º 2, todos do Código Civil, apenas aplicável à constituição de nova servidão legal de passagem.
M. Ora, a circunstância de o empreendimento construído pela recorrente ter sido precedido da competente licença administrativa, que não previa a existência de qualquer caminho não obsta ao reconhecimento da servidão de passagem constituída por usucapião, até porque a entidade administrativa baseia a aprovação de projectos nos elementos que lhe são facultados pelo titular dos mesmos, apenas apreciando os projectos no que se refere à existência de servidões de passagem se as mesmas se encontrarem registadas, improcedendo sem mais este argumento.
N. No entendimento do recorrido, e sem prejuízo de a Douta Sentença recorrida poder ter-lhe sido mais favorável, a legislação foi devidamente aplicada à matéria de facto que foi efectivamente considerada como provada, sendo a única decisão possível à luz ainda da prova produzida.
O. Sem prejuízo do estabelecido no artigo 1550º e 1553º do Código Civil, a servidão de passagem, enquanto encargo imposto ao proprietário do prédio dito serviente, pode ser criada quer de forma legal, em que é imposta coercivamente ao proprietário do prédio serviente a favor do prédio dominante, nos termos do disposto pelo artigos 1553º do Código Civil e pela forma resultar um menor ónus ou prejuízo para os proprietários do prédio serviente, como pela forma voluntária.
P. Da matéria de facto provada resulta que, desde há mais de setenta anos, e até à construção da zona de estacionamento do prédio do qual a recorrente é locatária, passou a existir no local do anterior caminho, uma passagem de pessoas, animais e veículos, utilizada pelos proprietários dos prédios confinantes e dos respectivos trabalhadores rurais, destinada a garantir o acesso aos terrenos ali existentes, sendo tal passagem utilizada em exclusivo pelo pai do recorrido, e depois por este, desde há mais de cinquenta anos, para aceder ao seu prédio, a sul, a norte, e em toda a sua extensão.
Q. A propósito da constituição de servidões prediais, estabelece o artigo 1547º do Código Civil, que as mesmas podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família, sendo que só na falta destas podem ser constituídas por sentença judicial ou decisão administrativa consoante os casos.
R. Dispõe o artigo 1287º do Código Civil que a usucapião equivale à posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo e faculta ao possuidor a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação.
S. A posse adquire-se por via da prática reiterada de actos materiais correspondentes ao direito real em causa, conquanto esses actos sejam praticados com publicidade e mantendo-se enquanto durar essa mesma actuação ou a possibilidade de continuação da mesma, admitindo-se inclusivamente a sucessão na posse.
T. O artigo 1293º, alínea a) do Código Civil apenas exclui do âmbito da aquisição por usucapião as servidões não aparentes, sendo que o mesmo resulta objectivamente do artigo 1548º, nº 1 do mesmo diploma legal, pelo que, a contrário, apenas as servidões prediais aparentes podem ser adquiridas por meio deste título, sendo aparentes as que se revelem por sinais visíveis e permanentes, nomeadamente como no caso dos Autos em que, na servidão em causa, existia toda uma delimitação visível que incluía a plantação de árvores em ambos os lados da servidão constituída, conforme resulta directamente da matéria de facto provada, aliada à fundamentação de facto constante da Douta Sentença.
U. De acordo com o disposto no artigo 1296º do Código Civil, não havendo registo da posse, a usucapião de imóveis dá-se, havendo boa-fé, no prazo de 15 (quinze) anos, e, em caso de má-fé, ao cabo de 20 (vinte) anos contados sobre o início do exercício da posse, sendo que, além de se ter que considerar a posse do recorrido como de boa-fé, certo é que a mesma dura há bem mais de vinte anos.
V. Assim, a utilização pelo recorrido nos termos considerados como provados na Douta Sentença integra, à luz do Direito, o conceito de posse da servidão predial, na medida em que configura a prática de actos materiais pelo recorrido correspondentes ao direito real correspondente à servidão predial sobre uma faixa do terreno alheio, do qual a recorrente é agora locatária, perfeitamente delimitada e visível, comportamento do qual sempre se pôde inferir a intenção de o recorrido criar em seu benefício a aparência da titularidade do direito correspondente à utilização da referida passagem.
W. De onde resulta que, pelo facto de a posse durar há mais de 50 (cinquenta) anos, ter sido sempre pública e pacífica, pois sobre a mesma nunca existiu qualquer litígio ou violência, sendo ainda considerada como servidão de passagem aparente, na medida em que se encontra perfeitamente identificada no prédio, sendo até frequentemente confundida com caminho público, e delimitada por árvores em ambos os lados, o recorrido adquiriu a posse da servidão predial há mais de cinquenta anos, e, consequentemente, atenta a forma como tal posse foi exercida e o prazo decorrido desde o seu início, o recorrido adquiriu essa mesma servidão, em toda a extensão do seu terreno do lado confinante com o da recorrente, por recurso ao mecanismo da usucapião, retroagindo os efeitos da aquisição à data do início da posse.
X. Atendendo à matéria de facto provada e ao quadro legal que lhe é aplicável, resulta de forma clara e evidente que a servidão legal de passagem se encontra constituída, por usucapião, há mais de cinquenta anos e, por conseguinte, nos presentes Autos apenas houve o seu reconhecimento e não a sua constituição, pelo que, ao caso concreto não se aplicam as disposições legais invocadas pela recorrente, nomeadamente o artigo 1553º do Código Civil que obsta à constituição legal, por meio de decisão judicial, de servidão predial que onere o prédio serviente em medida superior àquela que é estritamente necessária, ou que lhe cause maior ónus ou prejuízo do que o necessário, cabendo à recorrente alegar e demonstrar qualquer causa de extinção da servidão, o que não sucedeu nos Autos.
Y. Também quanto e ao abuso de direito invocado pela recorrente quer em sede de primeira instância, quer nesta fase de recurso, nomeadamente para referir que tal questão foi julgada, e bem decidida, na primeira instância, certo é que, ao contrário daquilo que a recorrente parece pretender, não é só o facto de uma posição ser contrária à sua que se pode subsumir à previsão do artigo 334º do Código Civil, justificando que não se reconheça e assegure os direitos de terceiro.
Z. Atendendo à formulação legal, apenas existe abuso de direito quando o comportamento ou actuação do titular do direito, no seu exercício, exceda os limites da boa-fé, ou seja, quando envolve comportamento diferente do das pessoas de bem e honestas, sem correcção e lealdade, desrespeitando os direitos, interesses e expectativas razoáveis e confiança de terceiros, visando este instituto a tutela da confiança e o controlo judicial do exercício de direitos pelos seus titulares de forma adequada e de acordo com as regras sociais e legais em vigor, impedindo a violação de normas jurídicas destinadas a proteger direitos e interesses alheios.
AA. Só existe abuso de direito quando um direito é exercido de forma a ofender o sentimento jurídico socialmente dominante ou a prejudicar interesses e expectativas razoáveis de terceiros, pelo que os pedidos formulados pelo recorrido nestes Autos, e o reconhecimento dos mesmos por decisão judicial não se podem considerar minimamente ofensivos ou abusivos, na medida em que se limita a pedir o reconhecimento da servidão legal de passagem constituída a seu favor por usucapião e a possibilidade de exercer o seu direito sobre a referida servidão de forma justa, adequado, e semelhante à forma como o vem exercendo desde há mais de cinquenta anos.
AB. Caindo assim todos os argumentos agora apresentados pela recorrente nesta fase de recurso.
AC. Na medida em que a douta sentença recorrida se limitou a reconhecer um direito já existente, e não a constituí-lo, ao caso concreto não pode ser aplicada a legislação invocada pela recorrente em sede de recurso, devendo manter-se integralmente a decisão judicial proferida, nos termos constantes da sua fundamentação, nomeadamente no que se refere à condenação da recorrente ao reconhecimento da servidão constituída a favor do prédio do recorrido há mais de cinquenta anos e relativamente à qual não existe qualquer causa extintiva do direito.
AD. Bem como no que se refere à sua condenação nos pedidos acessórios, ou seja, na obrigação de proceder à remoção da área de estacionamento construída junto a acesso norte da servidão que constitui um obstáculo ao exercício do direito pelo recorrido e de abster da prática de qualquer acto que impeça ou diminua a utilização por parte do recorrido da aludida servidão, abstendo-se de colocar quaisquer entraves ou obstáculos à livre utilização da servidão pelo recorrido.».
O recurso foi admitido.
Colhidos os vistos cumpre decidir.
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Questões a decidir:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Tendo em conta as conclusões de recurso formuladas que delimitam o respectivo âmbito de cognição, as questões que importa apreciar são as seguintes:
1ª Saber se a sentença criou duas servidões de passagem sobre o imóvel da ré.
2ª Saber se a constituição, por sentença judicial, de duas servidões prediais, para um mesmo prédio, onerando o mesmo prédio, é ilícita, por constituir inquestionável abuso de direito.
3ª Saber se deve ser mantida a constituição da servidão de passagem, por usucapião, a favor do prédio do autor sobre o prédio vizinho, ou a sua extinção da servidão de passagem, por desnecessidade.
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II. Fundamentação:
 Os elementos fácticos que foram considerados provados na sentença são os seguintes:
a) Na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Loures, consta inscrita, sob a Ap. 50 de 1988/08/19, a aquisição a favor de A… e de AM.., por doação, do prédio misto situado no Casal do Chafariz, freguesia de Santo Antão do Tojal, concelho de Loures, descrito sob o n.º… da dita freguesia e inscrito na matriz predial rústica sob o art. …, secção E, e na matriz predial urbana sob o art. …, da mesma freguesia e concelho.
b) Na descrição predial, o prédio referido em a) confronta a norte, sul e poente, com serventia; e a nascente, com B….
c) Na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Loures, consta inscrita, sob a Ap. 4 de 2008/02/27, e a Ap. 5, de 2008/02/27, a aquisição a favor de C… – Instituição Financeira de Crédito, S.A., por compra, do prédio urbano sito na Estrada de Pintéus, n.º 15, freguesia de Santo Antão do Tojal, concelho de Loures, descrito sob o n.º …, da dita freguesia e inscrito na matriz predial urbana sob o n.º …-P, resultante da anexação dos prédios descritos sob os n.os … (Coração ou Outeirinho) e … (Coração) e inscritos nas respectivas matrizes prediais sob os artigos … e … E.
d) Na descrição predial referente ao n.º … (Coração), consta que este confronta a norte, com CREL, a sul, com CIMAI, a nascente com Estrada municipal n.º 541, a poente, com caminho público e CIMAI desanexado do n.º …
e) Na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Loures, consta inscrita, sob a Ap. 1426 de 2009/04/27, a locação financeira do prédio referido em c), a favor de S…, S.A, com início em 2009/04/17, pelo prazo de 10 anos.
f) Entre o prédio referido em a) e o prédio referido em c), até ao número 5 (marco) referido na carta topográfica de fls. 36 (doc. 7, junto com a petição inicial), e dentro do prédio referido em c), a partir do número 5 (marco) até ao número 7 (estrema) e depois deste ao longo da delimitação naquela efectuada até ao número 11 (marco), existia um caminho, há mais de 70 anos, com largura que varia entre os 4 e os 6 metros, embora entre o prédio referido em a) e o prédio referido em c), 130, termine num afilamento de 1, 80 metros, delimitado nas respectivas bermas e ao longo do mesmo por árvores/oliveiras, entre o lugar de Pintéus (junto ao Chafariz) e Santo Antão do Tojal, por onde se fazia o trânsito de pessoas, animais e veículos.
g) Nos anos 50, foi construída a Estrada Municipal n.º 541 e o caminho referido em f) deixou de ser utilizado pela população do lugar de Pintéus, continuando, porém, a ser usado pelos proprietários dos terrenos ali existentes e os respectivos trabalhadores rurais, por ser este o único acesso às suas propriedades, o que era do conhecimento da população e sem que tivesse existido, sobre essa utilização, qualquer litígio ou violência.
h) Assim aconteceu ininterruptamente com o pai do autor, com o próprio autor e com os referidos trabalhadores rurais, que sempre utilizaram o caminho.
i) Em 1992/1993, parte do prédio do autor foi expropriado pela Brisa para construção da Auto-Estrada A9 – CREL, construção essa que cortou o caminho referido em f) e “separou” o prédio do autor em duas novas parcelas autónomas, uma a norte e outra a sul da CREL.
j) Após a construção da CREL, o autor passou a ter acesso ao seu prédio junto à ponte da CREL, no sentido Norte/Sul, pelo caminho atrás referido até aos portões onde possuía no seu terreno, ou no sentido Sul/Norte através do mesmo caminho.
k) No início do ano de 2010, a ré iniciou a construção de um empreendimento destinado a armazéns industriais, num prédio contíguo ao prédio do autor, o prédio referido em c), em execução de um projecto de construção de armazéns, aprovado pela Câmara Municipal de Loures.
l) Ao momento do início das obras de terraplanagem, as árvores existentes no caminho referido em f) foram removidas.
m) No decorrer da obra, foi construído um muro de suporte de terras que fechou o caminho a sul, na totalidade.
n) A norte, junto à ponte da CREL, a ré construiu uma edificação onde foram instalados os contadores de água dos armazéns.
o) Em Janeiro de 2011, na fase final da obra, a ré replantou as árvores, retirou o muro de contenção de terras e abriu o caminho, a sul, referido em j), onde executou o acesso com inclinação.
p) Igualmente, na entrada Norte, removeu do local a edificação dos contadores, mas nela construiu uma zona de estacionamentos.
q) Ao longo do caminho existente entre o Sul e o Norte, a ré construiu uma zona de estacionamentos, em toda a extensão do empreendimento.
r) A zona de estacionamento edificada situa-se dentro da área do prédio da interveniente, área que se estende, a norte, até junto da rede de protecção da área da CREL e da ponte da EM 541.
s) Para aceder ao seu prédio, o autor pode passar a sul da ponte existente, ao longo e a sul da vedação edificada pela BRISA, com limite e entrada a norte do prédio que constituiu o art. 130.
t) Nesse local e a partir da zona alcatroada, o autor não dispõe de passagem para a sua propriedade.
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Na sentença foram considerados não provados os seguintes factos:
1. Na negociação da expropriação com a Brisa, o A. por possuir um terreno com uma dimensão considerável e atendendo a que detém uma exploração agrícola e bovina no mesmo, solicitou que fosse efectuada uma passagem aérea que permitisse o acesso entre as duas parcelas do terreno, mas atendendo a que tal não seria possível, foi-lhe concedido 120 metros de terreno, para que fosse possível ter acesso da Estrada Municipal 541 à parcela a Sul da CREL.
2. O autor passou a ter acesso ao seu prédio, a sul da ponte da CREL, na área de 120 m2, referida em 1..
3. A edificação de contadores ocorreu nos 120 m2 cedidos pela BRISA, referidos em 1..
4. No início das obras de terraplanagem, foi depositado entulho ao longo do caminho.
5. A ré colocou separadores no local, os quais se aproximavam do prédio do autor e não contemplavam a largura de 4 metros do caminho existente anteriormente.
6. O caminho inclinado referido em o) impede o autor de utilizar o caminho, designadamente, com um tractor agrícola.
7. O caminho referido em f) deixou de ser utilizado após a construção da Estrada Municipal n.º 541 e após a construção da CREL – Circular Regional Exterior de Lisboa.
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III. O Direito:
A questão que se coloca e que é objeto do recurso consiste em saber se é de manter a decisão recorrida, quanto à condenação da ré S…, S.A. e a interveniente principal C… – Instituição Financeira de Crédito, S.A., a reconhecerem a servidão legal de passagem existente entre o prédio referido em c) e o prédio referido em a), dos factos provados, bem como a condenação da ré S…, S.A. a remover a área de estacionamento construída junto ao acesso norte da servidão. E como corolário das demais condenações a condenação da ré e da interveniente principal a absterem-se da prática de qualquer acto que impeça ou diminua a utilização por parte do autor da aludida servidão.
Donde, a questão crucial a dirimir consiste em saber se a decisão ao prever o reconhecimento da servidão entre o prédio referido em c) e o prédio referido em a), leva a que se considerem constituídas duas servidões tal como alega a recorrente, ou ao invés, como defende a recorrida, a sentença limita-se a reconhecer a servidão constituída por usucapião e como tal se deve manter na íntegra.
A apelante começa ainda por referir que tal interpretação advém da remissão feita no segmento decisório para os prédios descritos em a) e c), a saber:
O prédio descrito em a) é o relativo à descrição feita na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Loures, sob a Ap. 50 de 1988/08/19, com a aquisição a favor de A… e de M…, por doação, do prédio misto situado no Casal do Chafariz, freguesia de Santo Antão do Tojal, concelho de Loures, descrito sob o n.º … da dita freguesia e inscrito na matriz predial rústica sob o art. …, secção E, e na matriz predial urbana sob o art. …, da mesma freguesia e concelho.
Quanto ao prédio descrito em c) é o inscrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Loures, sob a Ap. 4 de 2008/02/27, e a Ap. 5, de 2008/02/27, com a aquisição a favor de C… – Instituição Financeira de Crédito, S.A., por compra, do prédio urbano sito na Estrada de Pintéus, n.º…, freguesia de Santo Antão do Tojal, concelho de Loures, descrito sob o n.º…, da dita freguesia e inscrito na matriz predial urbana sob o n.º …, resultante da anexação dos prédios descritos sob os n.os … (Coração ou Outeirinho) e … (Coração) e inscritos nas respectivas matrizes prediais sob os artigos ….
De forma acertada a sentença recorrida começa por abordar da questão da constituição da servidão legal de passagem, por usucapião, a favor do prédio do autor sobre o prédio da interveniente principal.
Com efeito, o fundamento jurídico da pretensão formulada pelo autor encontra o respectivo enquadramento no instituto da servidão predial, que segundo define a lei civil, «é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia» (art. 1543.º do CCivil).
Enquanto encargo, a servidão constitui uma limitação ou restrição ao direito de propriedade do prédio onerado, ao gozo efectivo do dono do prédio, inibindo-o de praticar actos que possam prejudicar o exercício da servidão (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume III, Coimbra Editora, 1987, pág.614).
Trata-se de um direito real de gozo sobre coisa alheia ou direito real limitado, mediante o qual o dono de um prédio tem a faculdade de usufruir ou aproveitar de vantagens ou utilidades de prédio alheio (ius in re aliena) em benefício do seu, o que envolve correspondente restrição ao gozo efectivo do dono do prédio onerado, na medida em que este fica inibido de praticar actos susceptíveis de prejudicar o exercício da servidão.
Podem ser objecto da servidão quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, susceptíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante, mesmo que não aumentem o seu valor (art. 1544.º do CCivil), onde se incluem as servidões de passagem, a serem gozadas pelo seu titular através do prédio dominante.
O critério decisivo diferenciador entre servidões legais e voluntárias reside exclusivamente na circunstância de as primeiras, ao invés do que acontece com as últimas, poderem ser impostas coactivamente, sendo que, pela circunstância destas não terem sido impostas coercivamente, por terem os donos dos prédios servientes aceite voluntariamente a inerente sujeição, não perdem essa natureza.
Em consentâneo, estabelece o art. 1550.º do CCivil, a propósito da servidão legal de passagem, a servidão em benefício de prédio encravado: «1 -Os proprietários de prédios que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio, têm a faculdade de exigir a constituição de servidões de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos. 2- De igual faculdade goza o proprietário que tenha comunicação insuficiente com a via pública, por terreno seu ou alheio».
Constitui prédio encravado, aquele que não tem nenhuma comunicação com a via pública, que tem entre eles e a via pública outro ou outros prédios (alheios) de permeio (encrave absoluto) e aquele que só com excessivo incómodo ou dispêndio teriam comunicação com a via pública e concede igual tratamento jurídico aos prédios que tiverem comunicação insuficiente para as suas necessidades normais com a via pública (encrave relativo).
Via pública, neste caso, será todo o caminho ou recinto por onde a todos seja lícito circular livremente, como estrada, caminho, rua, travessa ou praça pública (Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 637). Neste circunstancialismo do art. 1550.º do CCivil, o dono do prédio serviente pode impor coactivamente a passagem e a servidão daí resultante é considerada legal.
Ora, a sentença começa ainda por afirmar que: «No que concerne ao objecto propriamente dito da servidão invocada, importa, no imediato, afastar eventual qualificação – que não integra a pretensão do autor - do caminho/trilho em causa nos autos, usado pelo autor e pelos restantes proprietários e trabalhadores rurais para aceder exclusivamente às propriedades, há mais de 70 anos, como caminho público. Para que se pudesse qualificar como tal, seria necessário que se tratasse de propriedade de direito público e se encontrasse afecto a fins de utilidade pública, independentemente da duração ou, então, desde tempos imemoriais no uso directo e imediato do público. Esta factualidade não foi alegada, nem se retira da factualidade provada. Provou-se que sobre o prédio da interveniente principal existia uma passagem de pessoas, animais e veículos, por parte de proprietários confinantes e de trabalhadores rurais e com a finalidade de acederem aos seus prédios e aos prédios contíguos e que ela se iniciou há cerca de 70 anos e terminou há oito (a zona do estacionamento foi construída entre 2010/2011), pelo que não pode concluir-se que o caminho é público. E justamente por não ter comunicação com via pública é que o caminho existente no prédio da interveniente servia o prédio do autor, deste modo, um prédio encravado: sendo lógica a conclusão segundo a qual não fora o caminho existente no prédio da interveniente e o réu não poderia aceder ao seu prédio, a sul, a norte e em toda a sua extensão».
Aliás na esteira do Assento do STJ de 19 -04-1989 (DR – I-A de 2 de Junho de 1998 e BMJ 386-121) actualmente com o valor de uniformização de jurisprudência: “são públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público” e o Acórdão do STJ de 19-11-2002, 02A2995, disponível em www.dgsi.pt, veio aditar um terceiro requisito: “a publicidade dos caminhos exigir ainda a sua afectação à utilidade pública” ou seja, que o “uso do caminho vise a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância”. Logo, não está em causa um caminho e tal foi também afastado pelo Tribunal a quo.
Porém, face à factualidade provada a passagem de pessoas e de carros constitui uma servidão predial, conforme definida, a qual pode ser constituída, designadamente, por usucapião (art. 1547.º, n.º 1, do CCivil), ou seja, pela posse de tal direito real de gozo, mantida por certo lapso de tempo, já que a mesma, dispondo de certas características, faculta ao possuidor a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação (art. 1287.º do CCivil). A posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício de um direito real (art. 1251.º CCivil), nela se distinguindo um elemento material – a actuação material praticada sobre a coisa – e um elemento intelectual – a intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos actos praticados, que, em caso de dúvida, se presume naquele que exerce o poder de facto (art. 1252.º, n.º 2, do CCivil) – e adquire-se, nomeadamente, pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito e mantém-se enquanto durar essa actuação ou a possibilidade de a continuar, podendo aquele que houver sucedido na posse de outrem por título diverso da sucessão por morte juntar à sua a posse do antecessor (arts. 1251.º, 1252.º, 1256.º, 1257.º e 1263.º, do CCivil).
Na falta de registo do título ou da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de quinze anos, se a posse for de boa fé, e de vinte anos, se a posse for de má fé (art. 1296.º do CCivil).
A posse não titulada presume-se de má fé (art. 1260.º, n.º 2, do CCivil). Se tiver sido constituída com violência ou tomada ocultamente, os prazos da usucapião só começam a contar-se desde que cesse a violência ou a posse se torne pública (art. 1297.º do CCivil). A posse pública – a que se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados (art. 1262.º do CCivil) – no caso específico da aquisição de servidão de passagem por usucapião é característica imanente, dada a impossibilidade legal de aquisição por este modo das servidões prediais não aparentes, isto é, as que não se revelam por sinais visíveis e permanentes (arts. 1293.º al. a), 1548.º, ambos do CCivil).
No caso específico da aquisição da servidão de passagem por usucapião, é indispensável a existência de sinais visíveis e permanentes reveladores do seu exercício, tais como um caminho, uma porta ou um portal de comunicação entre o prédio dominante e o serviente (Pires de Lima, Antunes Varela, ob.cit., pág. 630), sendo, nos autos evidente a reunião destas características: existência de um caminho, ladeado nas respectivas bermas por árvores/oliveiras.
Como se alude na sentença: «(…) provou-se a existência de um caminho, há mais de 70 anos, com largura que varia entre os 4 e os 6 metros, delimitado nas respectivas bermas e ao longo do mesmo por árvores/oliveiras, entre o lugar de Pintéus (junto ao Chafariz) e Santo Antão do Tojal, por onde se fazia o trânsito de pessoas, animais e veículos, caminho que, nos anos 50, com a construção da Estrada Municipal n.º 541, deixou de ser utilizado pela população do lugar de Pintéus, continuando, porém, a ser usado pelos proprietários dos terrenos ali existentes e os respectivos trabalhadores rurais, por ser este o único acesso às suas propriedades, o que era do conhecimento da população e sem que tivesse existido, sobre essa utilização, qualquer litígio ou violência, o que aconteceu ininterruptamente com o pai do autor, com o próprio autor e com os referidos trabalhadores rurais, que sempre utilizaram o caminho e que mesmo após a construção da CREL e a separação do prédio do autor em duas novas parcelas autónomas, uma a norte e outra a sul da CREL, o autor continuou a ter acesso ao seu prédio, junto à ponte da CREL, no sentido Norte/Sul, pelo caminho atrás referido até aos portões onde possuía no seu terreno, ou no sentido Sul/Norte através do mesmo caminho.
Consubstancia esta, materialidade correspondente ao exercício de um direito real de servidão predial de passagem, sobre um trato de terreno alheio (o caminho), da qual se infere a intenção de criar em seu benefício uma aparência de titularidade correspondente ao referido direito real, presunção que a ré ou a interveniente principal não lograram ilidir, conforme lhes competia nos termos do art. 350.º, n.º 1, do CCivil. O que vale por dizer que o autor adquiriu a posse da servidão predial em proveito exclusivo do seu prédio há, pelo menos, 50 anos e, por conseguinte, a factualidade assente permite concluir que decorreu o período de tempo a que alude o art. 1296.º do CCivil para a aquisição por usucapião dessa servidão, pelo mesmo pretendida, retroagindo os seus efeitos à data do seu início (art. 1288.º do CCivil).»
Entendemos, tal como na sentença recorrida, que efectivamente foi constituída uma servidão de passagem por usucapião, porém, não há que olvidar que da anexação dos prédios da interveniente tal como se encontra descrito na alínea c) dos factos provados, determina que a servidão se considere constituída quer sobre o prédio anteriormente descrito sob o nº 87 (a sul do prédio da ré/interveniente), quer sob o descrito sob o nº 130 (a norte do prédio com a descrição constante na alínea c) dos factos provados). Haverá ainda que salientar que a alteração do acesso do Autor ao seu prédio ocorre primeiramente não pela atuação da ré e interveniente, mas sim pela expropriação para a construção da A9-CREL levada a cabo pela BRISA, em 1992/1993, ou seja, 17 anos decorridos desde as obras efetuadas no terreno serviente e que constitui o busílis da questão.
Com efeito, resulta dos factos que no início do ano de 2010, a ré iniciou a construção de um empreendimento destinado a armazéns industriais, num prédio contíguo ao prédio do autor, o prédio referido em c), em execução de um projecto de construção de armazéns, aprovado pela Câmara Municipal de Loures; ao momento do início das obras de terraplanagem, as árvores existentes no caminho referido em f) foram removidas; no decorrer da obra, foi construído um muro de suporte de terras que fechou o caminho a sul, na totalidade; a norte, junto à ponte da CREL, a ré construiu uma edificação onde foram instalados os contadores de água dos armazéns; em Janeiro de 2011, na fase final da obra, a ré replantou as árvores, retirou o muro de contenção de terras e abriu o caminho, a sul, referido em j), onde executou o acesso com inclinação; igualmente, na entrada Norte, removeu do local a edificação dos contadores, mas nela construiu uma zona de estacionamentos; ao longo do caminho existente entre o Sul e o Norte, a ré construiu uma zona de estacionamentos, em toda a extensão do empreendimento.
Nas suas conclusões e que determinam o fundamento do recurso refere a apelante que a sentença labora em evidente confusão entre o ponto 1 e o ponto 2 da decisão, visto que a designada servidão legal de passagem entre os prédios do Apelado (85 – E) e da Apelante (87 – E e 130 – E) nada têm a ver com o designado acesso norte da servidão, uma vez que este acesso constitui uma outra servidão e não uma mera continuação da outra. Mais dizendo que a primeira das servidões é a que resulta do antigo caminho público entre a entrada a sul do empreendimento da Apelante e a parte norte do mesmo empreendimento, coincidente com a rede de vedação da CREL, colocada pela BRISA. A segunda servidão é a que consiste na passagem a norte do empreendimento da Apelante, entre o prédio do Apelado e a Estrada Municipal nº 541, limitada a norte pela vedação colocada pela BRISA, utilizada ao longo dos tempos pelo Apelado, após construção da CREL e ponte sobre a mesma, na referida Estrada Municipal. Concluindo que são duas passagens completamente distintas e ambas têm ligação à Estrada Municipal nº 541.
Nos seus fundamentos recursórios concluiu a apelante que a referida primeira servidão (que foi o designado caminho público) deixou de ter a sua finalidade com a construção da CREL, há mais de 25 anos. Pois entende que a partir da construção desta infra estrutura viária, o Apelado começou a utilizar uma parcela de terreno a norte do prédio 130 – E, da Apelante e a sul da vedação em rede da CREL, entre o seu prédio e a Estrada Municipal 541. Pelo que, no seu entender, esta é a segunda servidão para o prédio do Apelado que a decisão recorrida confunde com a que constituiu de sul para norte entre os prédios da Apelante e do Apelado. Referindo por fim, que a douta sentença cria duas entradas e saídas para o prédio do Apelado, à custa do prédio do Apelante.
A questão prende-se com a formulação do pedido pelo autor, pois o mesmo enuncia o mesmo da seguinte forma: a) Reconhecer a servidão legal de passagem existente entre o seu prédio e o prédio do autor (constituída por usucapião); b) Remover quaisquer obstáculos que existam, designadamente, a terra existente na zona Sul da servidão para pôr fim à inclinação existente e que obsta à circulação na mesma do tractor agrícola do autor; c) Remover a área de estacionamento que construiu junto ao acesso Norte da servidão, de modo a que o autor possa ter uma comunicação suficiente com a via pública; d) Remover os separadores de parqueamento e vedações existentes em toda a extensão do seu empreendimento, a poente, por forma a repor o caminho de 4 metros de largura que existia anteriormente ao início das obras; e) Plantar oliveiras no local de onde as removeu (em toda a extensão do seu empreendimento, a poente), em número nunca inferior a 20; f) Abster-se da prática de qualquer acto que impeça ou diminua a utilização por parte do autor da aludida servidão (sublinhado nosso).
Ora, dos factos provados resulta que em 1992/1993, parte do prédio do autor foi expropriado pela Brisa para construção da Auto-Estrada A9 – CREL, construção essa que cortou o caminho referido em f) e “separou” o prédio do autor em duas novas parcelas autónomas, uma a norte e outra a sul da CREL. Após a construção da CREL, o autor passou a ter acesso ao seu prédio junto à ponte da CREL, no sentido Norte/Sul, pelo caminho atrás referido até aos portões onde possuía no seu terreno, ou no sentido Sul/Norte através do mesmo caminho.
O caminho a que se alude é o descrito em f) da seguinte forma: Entre o prédio referido em a) e o prédio referido em c), até ao número 5 (marco) referido na carta topográfica de fls. 36 (doc. 7, junto com a petição inicial), e dentro do prédio referido em c), a partir do número 5 (marco) até ao número 7 (estrema) e depois deste ao longo da delimitação naquela efectuada até ao número 11 (marco), existia um caminho, há mais de 70 anos, com largura que varia entre os 4 e os 6 metros, embora entre o prédio referido em a) e o prédio referido em c), 130, termine num afilamento de 1, 80 metros, delimitado nas respectivas bermas e ao longo do mesmo por árvores/oliveiras, entre o lugar de Pintéus (junto ao Chafariz) e Santo Antão do Tojal, por onde se fazia o trânsito de pessoas, animais e veículos.
Insurge-se o recorrente com a decisão pelo facto de com a mesma se conceder ao Apelado o direito a circular a toda a volta e por dentro dos prédios da Apelante, ou seja, desde a parte sul desses prédios, que provêm da Estrada Municipal 541, continuando pelas estremas dos mesmos prédios com o prédio do Apelado até chegar à vedação da BRISA, a norte e virando à direita para a referida EM 541 por terreno pertencente à Apelante. Mais dizendo que a sentença impugnada, criou, não uma, mas duas servidões, destinadas ao prédio do Apelado, dito dominante: uma, com entrada e saída pela parte sul do empreendimento e outra, com entrada e saída a norte do mesmo empreendimento, ambas com ligação e acesso à EM 541.
Tendo por base a definição legal de servidão como o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente, e socorrendo-nos das palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, em anotação ao artigo 1543.º do Código Civil (in Código Civil Anotado, Volume III, pág. 615)u “a servidão incide em princípio sobre o prédio considerado como um todo (…), havendo muitas vezes que distinguir entre o objecto da servidão, que é o prédio, e o local do exercício dela, que pode ser uma parte limitada do prédio. Sempre que se verifique esta última hipótese (vide, por exemplo, o art. 1546.º e o n.º 4 do art. 1567.), tudo se passa como se a servidão incidisse apenas sobre a parte do prédio sujeita ao seu exercício”.
No caso, a servidão onera o prédio do interveniente, mas a parte sobre que incide em concreto não resulta clara face aos pedidos do autor, pois se por um lado pede a remoção dos obstáculos na zona Sul da servidão, por outro lado refere a remoção da área de estacionamento junto do acesso Norte e ainda a remoção de separadores de parqueamento e vedações a poente. Ora, quer a inscrição predial do imóvel do Autor, quer a descrição predial correspondente, não tem em consideração quer a construção da Estrada Municipal nº 541, mas mais importante ainda, quer a construção da A9-CREL, que veio alterar a confrontação do prédio do autor. Acresce que o acesso feito pelo autor ao prédio desde a expropriação passou a fazer-se junto à ponte da CREL, pelo caminho e até aos portões do seu terreno.
Segundo o artigo 1564.º do Código Civil, as servidões são reguladas, no que respeita à sua extensão e exercício, pelo respectivo título; na insuficiência do título observar-se-á o que disposto nos artigos seguintes.
Uma vez que a sentença reconheceu que a servidão havia sido constituída por usucapião, o que face aos factos provados se revela acertado, cabe indagar se a decisão recorrida, na parte em que reconheceu a servidão nos termos amplos em que o fez, ou seja limitando-se a reconhecer a servidão entre o prédio do A. descrito em a) e o prédio da interveniente descrito em c), teve em consideração a extensão da servidão concedida ao prédio dominante, face à configuração actual e o acesso que vem sendo feito desde a construção da A9-CREL em 1992/1993. Entendemos que não. Senão vejamos.
Segundo o n.º 2 do artigo 1565.º do Código Civil, em caso de dúvida quanto à extensão ou modo de exercício das servidões, entender-se-á constituída a servidão por forma a satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante e com o menor prejuízo para o prédio serviente. E tal norma será aplicável, como resulta da sua conjugação com o artigo 1564.º, quando o título for insuficiente para regular a extensão e o exercício da servidão, o que sucede no caso.
Na verdade, poderá não estar em causa a aplicação da norma do artigo 1553.º do Código Civil, cujos termos são os seguintes: “a passagem deve ser concedida através do prédio ou prédios que sofram o menor prejuízo, e pelo modo e lugar menos inconvenientes para os prédios onerados”. Pois esta norma regula a constituição de servidão em benefício de prédio encravado, sendo que in casu resulta dos factos que a servidão se constituiu inicialmente por usucapião. Manifestamente a subsunção dos factos provados determina a constituição de servidão por usucapião, porém, e ainda que tal resulte em termos de constituição da mesma, outrossim resulta dos factos que o prédio do autor era um prédio encravado.
Basta atentar que se provou que para aceder ao seu prédio, o autor pode passar a sul da ponte existente, ao longo e a sul da vedação edificada pela BRISA, com limite e entrada a norte do prédio que constituiu o artº 130. Mas nesse local e a partir da zona alcatroada, o autor não dispõe de passagem para a sua propriedade.
Como ficou decidido no Acórdão da Relação de Coimbra de 25/05/2017 «(…)para a declaração da existência de uma servidão de passagem é imprescindível que quem dela se arroga - o dono do prédio dominante - alegue e prove a sua exacta configuração física e funcional, isto é, o modo e local em que ela se constituiu e exerce, modo e local que, naturalmente, se hão-de posicionar dentro dos limites materiais do suposto prédio serviente.» ( in www.dgsi.pt/jtrc).
Defende Tavarela Lobo ( in “Mudança e Alteração de Servidão”, pág. 152) o entendimento de que o princípio da extinção da servidão por desnecessidade deve estender-se a todas as servidões, seja qual for o seu título de constituição, socorrendo-se, para tanto, dum conceito de “mudança de servidão” que implica a “extinção da servidão originária” e dos termos amplos em que o art. 1568º, n.º1 do C. Civil permite a mudança da servidão para sítio diferente do primitivamente assinado ou para outro prédio, e faz uma interpretação correctiva do art. 1569º, n.º2 do CC.. Tal interpretação contrasta com a letra e ao espírito da lei. O artº 1569º, n.º 2, CC estabelece que “ As servidões constituídas por usucapião serão judicialmente declaradas extintas, a requerimento do proprietário do prédio serviente, desde que se mostrem desnecessárias ao prédio dominante ”, estabelecendo o seu nº. 3 que “O disposto no número anterior é aplicável às servidões legais, qualquer que tenha sido o título da sua constituição (…)”. Logo, a extinção da servidão por desnecessidade só se compreende para as servidões constituídas por usucapião e para as servidões legais.
Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil, Anotado”, Vol. III, 2ª Ed. págs. 676 e 677, há uma diferença entre os encargos constituídos por usucapião e os estabelecidos por acordo das partes, já que os primeiros constituem-se ou extinguem-se com base nos factos que lhes deram origem, ao passo que nas servidões voluntárias há o acordo das partes ou a declaração de vontade do testador a respeitar, e nem sempre são conhecidas em toda a profundidade as razões determinantes desse acordo ou dessa declaração. Como afirmam ainda aqueles autores, “Estender indiscriminadamente a essas servidões o princípio do nº. 2 equivalia, por conseguinte, a abrir a porta a difíceis problemas de interpretação dos negócios jurídicos, com o risco de decisões contrárias à vontade das partes. Havendo para mais a regra da extinção pelo não uso, julgou-se mais prudente não ir além dos limites da solução consagrada em 1930. O regime por que o legislador optou ficou claramente expresso nos nºs. 2 e 3 do art. 1569º, não sendo possível, por isso, defender de jure constituto (…) a extinção das servidões voluntárias com fundamento em desnecessidade”.
No âmbito da sentença recorrida sobre esta questão refere-se que:«A desnecessidade de uma servidão tem de ser posterior à sua constituição e deve resultar de uma alteração sobrevinda no prédio dominante, na sequência da qual a oneração perca a utilidade para este (Ac. do STJ de 26-05-2015, Revista n.º 22/12.9TCFUN.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt). Apenas se torna desnecessária a servidão se, por razões que se prendem com o prédio dominante (no caso, o prédio do autor), o uso do prédio serviente deixou de ter utilidade para aquele.
Esta desnecessidade, apreciada casuisticamente, deve apresentar-se como objectiva, típica e exclusiva caracterizada por uma mudança de situação do prédio dominante – que não do serviente – mercê de alterações ulteriores, não bastando razões subjectivas como a ausência de interesse, vantagens ou conveniências pessoais do onerador (o cit. Ac. do STJ de 26-05-2015).
Reportado este quadro ao caso em apreço, não se perscruta na factualidade alegada e provada que tivessem sobrevindo alterações no prédio dominante determinantes da cessação de utilidade do prédio serviente. Nomeadamente, não se alegou ou provou que as alterações reflectidas no prédio do autor após a expropriação da Brisa determinaram a inutilidade, para o mesmo, do prédio serviente.
Equivale isto a dizer que a interveniente não logrou alegar e/ou demonstrar os factos constitutivos da excepção peremptória de facto extintivo em que se traduz a extinção da servidão por desnecessidade, que, como tal, deve improceder.».
Ainda que concordando com a sentença recorrida, no caso em apreço a questão prende-se com o modo de exercício da servidão e, logo, com a sua extensão, e nesta haverá que considerar a alteração operada no terreno na sequência das construções posteriores, mormente as efectuadas pela BRISA, e, também como consequência destas a forma como o A. passou a aceder à sua propriedade.   
Logo, não está em causa o instituto jurídico do abuso de direito, pois neste também consideramos acertada a posição assumida pela juiz a quo, quanto à ausência de factos que se possam subsumir a uma actuação do A. fora dos limites da boa fé ou de forma desproporcional.
Como ensina Antunes Varela In, RLJ, ano 114º, pág. 75, o abuso de direito pressupõe a existência e a titularidade do poder formal que constitui a verdadeira substância do direito subjectivo e que se designa por abuso de direito o exercício desse poder formal realmente conferido pela ordem jurídica a certa pessoa, mas em aberta contradição, seja com o fim (económico ou social) a que um poder se encontra adstrito, seja com o condicionalismo ético-jurídico (boa fé, agir de boa fé é agir com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte, e ter uma conduta honesta e conscienciosa, uma linha de correcção e probidade, a fim de não prejudicar os legítimos interesses da contraparte, e não proceder de modo a alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável poderia tolerar.
Na determinação dos limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes importa atender ao sentido ético-jurídico imperante na comunidade social.
Assim, ainda que se entenda que não está em causa o abuso de direito, ao contrário do defendido na sentença recorrida, entendemos que haverá que retirar as consequências jurídicas da forma como o A. passou a aceder ao prédio desde 1992/1993, altura em que a configuração do imóvel foi alterada, inclusive quanto às suas confrontações.
Com efeito, alude-se na sentença que o acesso do A. ao terreno era feito, a sul da ponte existente, ao longo e a sul da vedação edificada pela Brisa, no limite e entrada a norte do prédio que constituiu o art. 130, concluindo que tal seria apenas por mera tolerância da ré, visto que provado ficou que nesse local e a partir da zona alcatroada, o autor não dispõe de passagem para a sua propriedade. Ora, tal conclusão não resulta dos factos provados, pois na alínea j) provou-se que desde 92/93 o A. passou a ter acesso ao seu prédio junto à ponte da CREL, no sentido Sul/Norte, pelo caminho até aos portões do seu prédio. E foi nesse local que a ré em 2011, na fase final da obra, retirou um muro de contenção que tinha efectuado e abriu o caminho, mas onde executou o acesso com inclinação.
Neste conspecto, as obras levadas a cabo pela ré determinaram a impossibilidade de passagem do A. para o seu terreno, porém, a pergunta que se impõe é saber se após a construção da CREL como passou o Autor a ter acesso ao seu prédio? E a resposta é a contida na alínea j) dos factos provados, ou seja, o autor passou a ter acesso ao seu prédio junto à ponte da CREL, no sentido Norte/Sul, pelo caminho atrás referido até aos portões que possuía no seu terreno, ou no sentido Sul/Norte através do mesmo caminho.
Acresce que haverá que considerar que a sentença afastou a existência de um caminho, mas ao concluir pela forma ampla de reconhecer a servidão legal de passagem existente entre o prédio referido em c) e o prédio referido em a), e ainda a condenar a ré Sociedade Imobiliária Trindade & Filhos, S.A. a remover a área de estacionamento construída junto ao acesso norte da servidão, leva à indefinição da extensão da servidão, ou a indefinição tendo por base o que ficou provado quanto à forma como o A. acedia ao seu prédio e o que resulta da sentença.
Não se desconhecendo que as servidões prediais de passagem têm um fim económico, ligado à melhor rentabilidade dos prédios e que podem sofrer modificações, quer no seu exercício, quer na sua estrutura, tendo sempre em conta o menor sacrifício para o dono do prédio serviente e um juízo de proporcionalidade moldado no facto de só poderem ser exercidas tais servidões, considerando as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante (art. 1565º, nº2, do Código Civil) (Tavarela Lobo in ob. Cit. Pág. 14).
Tal como se decidiu no Ac. do STJ de 04/04/2002 «I. A palavra extensão, aplicada ao exercício das servidões tem uma significação quantitativa, exprimindo a concretização prática e os limites do respectivo modo de exercício. II - Quer na extensão quer no modo de exercício, as servidões regulam-se pelo título constitutivo, e, na insuficiência deste, pelas normas dos artigos 2565 e seguintes do Código Civil, de que se destaca a do n. 2 daquele último preceito, onde se prescreve, para os casos de dúvida, que a servidão deverá satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante com o menor prejuízo para o serviente». ( in www.dgsi.pt/jstj).
No caso dos autos, a questão da forma como o Autor passou a aceder ao seu prédio desde 1992/1993, determinou um simples exercício do direito à servidão existente, ou estaremos perante uma actividade tendente à sua modificação?
É consabido que o exercício da servidão nem sempre se mantém imutável.
Desde o seu início até à sua extinção, a servidão pode sofrer uma série de modificações no seu próprio conteúdo e que são impostas ou determinadas por circunstâncias várias, nomeadamente, pelo próprio exercício da servidão, pelas alterações estruturais dos prédios, da sua finalidade ou destinação económica, pelas necessidades normais e previsíveis do prédio dominante.
E tais modificações tanto podem ocorrer na extensão da servidão como no seu exercício.
A extensão visa mais o elemento quantitativo que interessa à concretização prática do direito ou à fixação dos seus limites (v.g.; quantidade de água, número e tamanho de janelas, comprimento e largura do caminho).
O exercício indica o elemento qualitativo da servidão que define a fisionomia ou a natureza do encargo (v.g.: na servidão de passagem, exercita-se esta de carro ou a pé; na de aqueduto a hora e modalidade de passagem da água). 
Tal como se decidiu no Acórdão da Relação de Guimarães de 15/01/2003( no seguinte endereço da net blook.pt), numa situação de modificação da servidão «sendo a servidão constituída por usucapião, a extensão e o modo de exercício da servidão aferem-se pela posse do titular, em obediência ao velho brocardo tantum prescriptum quantum possessum: a “posse da servidão” conduzirá, operada a prescrição aquisitiva, à constituição do ónus com o conteúdo e extensão dessa mesma posse.»
Como ensina Tavarela Lobo Ob. cit., p.15., “se uma servidão se inicia com determinado conteúdo (ex.: servidão de vistas apenas com uma janela, servidão de passagem somente a pé) e, posteriormente, tal conteúdo ou extensão sofre um aumento (duas janelas, passagem de carro) é óbvio que o novo conteúdo exigirá o vinténio para se operar a usucapião”. Efectivamente, nos termos do disposto no artº. 1564º do Código Civil, a extensão e o exercício do direito de servidão são regulados pelo respectivo título (in casu, a usucapião).
Porém, definindo o conteúdo da servidão, estabelece o art. 1565º, n.º1 do C. Civil o princípio fundamental de que o direito de servidão compreende tudo o que é necessário para o seu uso e conservação. Segundo Mário Tavarela Lobo In, ob cit. págs. 16 e 17., inserem-se nesta fórmula ampla ”todas as faculdades ou poderes instrumentais acessórios ou complementares, que representam os meios adequados ao pleno aproveitamento da servidão.
Tais meios não constituem, assim, uma actividade supérflua ou gravosa para o prédio serviente e são correntemente designadas por adminicula servitutis.
Não constituem, por outro lado, uma servidão autónoma ainda que acessória e diferente da que se designaria por principal. O conteúdo da servidão é uno e os adminicula são simples faculdades complementares reconhecidas ao titular para exercer a única servidão existente”.
E, em caso de dúvida quanto à extensão ou modo de exercício da servidão, contempla o n.º2 do citado art. 1565º, dois princípios fundamentais a que deve obedecer o intérprete: a)Satisfação das necessidades normais e previsíveis do prédio dominante; e b)Menor prejuízo para o prédio serviente.
A consagração do primeiro dos enunciados princípios, revela que, ao contrário do Código Civil de 1867, inspirado no princípio tradicional da liberdade do prédio serviente, o Código Civil de 1966 inspirou-se essencialmente no princípio de que a servidão deve considerar-se constituída de modo a satisfazer, plenamente, as necessidades do prédio dominante.
No dizer de Tavarela Lobo (in obra citada, págs. 25 e 26) ponderou-se que “a finalidade da servidão é, de facto, servir os fins ou destino económico do prédio dominante, pelo que, visando uma utilidade específica, um escopo determinado, a servidão deverá compreender, no seu conteúdo e extensão, tudo o que é necessário a tal escopo”.
Na análise do exercício da servidão refere José Luís Bonifácio Ramos: «No intuito de aprofundar o alcance deste preceito (artº 1565º nº 2), devemos sublinhar que adoptou as orientações do Código Civil Italiano, como acentua Pires de Lima no seu Anteprojecto, e o confirma mais tarde após a entrada em vigor do CC. (…) Efectivamente o dito princípio pretende aplicar-se em casos de dúvida. Ou por outras palavras, quando o título constitutivo se afigura vago e não permite avaliar o sentido adequado do conteúdo de uma determina servidão. Destarte, cumpre atender na satisfação das necessidades do prédio dominante e ao menor prejuízo do prédio serviente» (in “Manual de Direitos Reais”, pág. 419 e ss. Porém, como bem evidencia o mesmo autor o alcance do preceito mesmo na doutrina italiana, onde vai buscar a sua génese, tem diversas leituras, uma que sustenta que deve ser apurada a vontade dos contraentes e não propriamente aspectos relativos à função social. Ao contrário, autores italianos (v.g. Biondo Biondi citado pelo autor referido) defendem que tal preceito procura um justo equilíbrio entre as necessidades do titular do prédio dominante e os prejuízos do titular do prédio serviente. Volvendo aos ensinamentos do autor aludido «importa compreender que tal problemática se resolve satisfazendo, sempre e de modo obrigatório, as necessidades normais e previsíveis do titular do prédio dominante com o menor prejuízo para o prédio serviente. Porque, como recorda alguma doutrina, o gozo do direito de servidão assenta numa estrita unilateralidade que pode, no entanto, revelar diversas cambiantes. Por esse motivo, importa reconhecer os interesses contraditórios, procurando quando muito, um equilíbrio para lá das pretensões subjectivas dos dois intervenientes. De facto, assumindo esta postura, Menezes Cordeiro alude à emanação de um princípio que seria o de melhor aproveitamento económico possível, quer do prédio dominante, quer do prédio serviente» (in ob. Cit. Pág. 420).
No caso dos autos o recorrente alega que a construção do empreendimento da Apelante teve na sua génese um projeto aprovado, que não considerou a existência de um caminho ou caminho público, no pressuposto de que já não existia, por virtude da construção da CREL e de que a passagem de e para o prédio do Apelado já estava a ser feita na parte mais a norte do prédio 130-E, da Apelante e a sul da vedação da CREL. Mais conclui que nunca faria sentido aprovar-se um empreendimento da envergadura do que pertence à Apelante, num local que contemplasse um caminho público com regular utilização e circulação de pessoas e veículos. Por fim, alega que na altura da aprovação do projeto, já o Apelado havia muito que utilizava a passagem entre o seu prédio e a Estrada Municipal 541, junto à designada vedação da CREL, colocada pela BRISA, a norte do prédio 130-E, da Apelante, sendo que a Apelante nunca se opôs, nem opõe, à circulação do Apelado, de e para o seu prédio, por esta passagem desde a EM 541.
Ora, na aferição da extensão ou até o exercício da servidão em nada releva o eventual licenciamento de uma obra que possa colidir com o direito de servidão. Pois, no licenciamento das operações urbanísticas há uma relação jurídica entre a Administração e os interessados, visando-se o cumprimento das regras urbanísticas, e o controlo da administração não abrange a totalidade do ordenamento jurídico. Por isso, “a licença de construção não é um instrumento adequado para verificar o respeito por situações jurídico-privadas, cuja definição não cabe à Administração Pública, mas sim aos tribunais” (Alves Correia, in “ As grandes linhas da recente Reforma”, pág. 126).
Vigora neste domínio o chamado “princípio da independência das legislações”, do qual resulta que a Administração ao licenciar uma operação urbanística apenas terá que considerar as normas do direito urbanístico, e, uma vez concedido o licenciamento, os direitos privados de terceiros não são afectados. Significa que a Administração não tem de levar em conta as regras civilista dos direitos de servidão, prevendo-se o indeferimento do licenciamento apenas nos casos previstos no artº 24º do DL nº 555/99 de 16/12, sendo a última redacção a operada pelo DL n.º 121/2018, de 28/12, diploma que estabelece o regime Jurídico da urbanização e Edificação, que não contempla tais eventuais direitos (neste sentido, entre outros, Ac. STA de 7/2/2002; Ac STA de 24/9/2009 e Ac STA de 24/3/2011, todos em www dgsi.pt).
Conclui-se assim, que nem a administração pública atende a eventuais direitos de terceiros no licenciamento de obras, nem o licenciamento de uma obra significa que não possam vir a ser declarados direitos de terceiros contrários à forma como a mesma se encontra licenciada.
Donde, o que releva aqui saber é se perante uma indefinição da extensão da servidão de passagem que o A. pretende ver afirmada nesta acção e a realização no prédio serviente de uma obra de um empreendimento que contende com esta servidão, qual será a extensão da servidão que deve ser considerada dentro da procura do equilíbrio exigido pela norma do nº 2 do artº 1565º do CC.
Ora, neste equilíbrio haverá que considerar as necessidades do prédio dominante, mas sem esquecer o segundo dos princípios atrás referidos e consistente no menor prejuízo para o prédio serviente.
As necessidades a satisfazer por meio da servidão são as já existentes no momento da sua constituição e ainda todas aquelas decorrentes das modificações naturais e previsíveis do prédio dominante, com exclusão de certos casos que tornem a servidão mais onerosa. Essencial é que seja sempre respeitada a função da servidão e tais modificações não se traduzam num agravamento do ónus.
Conseguida a conjugação destes dois princípios, fica traçada a linha de fronteira entre uma simples inovação que deve ser consentida por abrangida no conteúdo da servidão e uma alteração proibida por não obedecer ao prescrito na lei.
Ora, de todos os factos a considerar e na procura do equilíbrio pretendido, entendemos que haverá que definir em concreto a extensão da servidão existente, e para que esta fique delimitada haverá que considerar o levantamento sobre a secção cadastral que constituía o doc. 7 plasmado na alínea f) dos factos provados, mas considerando o provado em j) quanto ao acesso do Autor ao seu prédio. Donde, a servidão do A. sobre o prédio da interveniente será fixada tendo por base o Anexo 1 de fls. 326, ou seja a análise da carta topográfica dos terrenos, mas já considerando o acesso quer considerando a Estrada nº 541, quer a construção da CREL.
Assim, a servidão do A. constituída no prédio da interveniente é a situada a Norte do prédio, mais concretamente a parte norte do prédio 130-E, da Apelante e a sul da vedação da CREL, construída pela BRISA, com largura suficiente que permita o acesso do A. a pé e com veículos, desse a estrada nº 541 e até à sua propriedade.
Deste modo será parcialmente procedente a apelação, reconhecendo-se a servidão legal de passagem nestes termos e alterando o dispositivo da sentença, nesta parte. Acresce que se mantem a condenação da ré contida em 2. Porém, circunscrita à condenação da ré a destruir a área de estacionamento construída junto ao acesso norte da servidão que contenda com o acesso do Autor ao seu prédio com os limites supra definidos, considerando a solução preconizada a fls. 326 e 327 dos autos.
A apelação procede assim, parcialmente, mantendo-se no mais a sentença recorrida.
                                              *
IV. Decisão:
Por todo o exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pelo Apelante e, consequentemente altera-se a decisão recorrida quanto aos pontos 1. e 2. do dispositivo da mesma, nos seguinte termos:
a) Condena-se a ré S…, S.A. e a interveniente principal C… – Instituição Financeira de Crédito, S.A., a reconhecerem a servidão legal de passagem situada a Norte do prédio da interveniente, mais concretamente a parte norte do prédio 130-E, da Apelante e a sul da vedação da CREL, construída pela BRISA, com largura suficiente que permita o acesso do A. a pé e com veículos, desde a estrada nº 541 e até à sua propriedade, considerando a solução preconizada a fls. 326 e 327 dos autos;
b) Condena-se a ré S…, S.A. a remover a área de estacionamento construída junto ao acesso norte da servidão na parte que colida com a servidão nos termos definidos na alínea anterior.
 Mantem-se, no mais, a decisão recorrida.
Custas pelo apelado e apelante, na proporção de 80% para o apelado e 20% para o apelante.
Registe e notifique.

Lisboa, 27 de Junho de 2019
Gabriela Fátima Marques
Adeodato Brotas
Gilberto Jorge