Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2537/18.6T8CSC-A.L1-7
Relator: LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA
Descritores: PROCESSO DE MAIOR ACOMPANHADO
MEDIDA DE ACOMPANHAMENTO
DIREITOS DE PERSONALIDADE
LIMITAÇÃO VOLUNTÁRIA
IMPEDIMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/03/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. A limitação voluntária dos direitos de personalidade pode ser exercida livremente pelo maior acompanhado, exceto se a decisão judicial decretar o contrário ou a lei dispuser de outro modo;
II. No atual regime do maior acompanhado, parte-se da ideia de que o acompanhado mantém a sua capacidade de exercício (regra), sem prejuízo da decisão judicial poder modelar ou limitar a capacidade de exercício (exceção);
III. Só em casos excecionais de completa ausência de discernimento é que o tribunal poderá impedir o acompanhado de redigir um testamento vital, atenta a natureza pessoalíssima dessa faculdade;
IV. O regime do maior acompanhado tem de ser interpretado à luz da Convenção de Nova Iorque sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, máxime Artigo 12º, nºs 1 a 3;
V. Um regime que, em decorrência da decretada impossibilidade de testar, comine um efeito legal automático impeditivo da outorga de testamento vital é contrário a tal Convenção, máxime Artigo 12º, nºs 2 e 3, padecendo ainda de inconstitucionalidade material por violação do princípio da igualdade;
VI. O juízo de idoneidade para outorgar um testamento não é equivalente à idoneidade para outorgar um testamento vital, tratando-se ali de um direito pessoal de cariz patrimonial e aqui de um direito pessoalíssimos referente a decisões médicas, sendo que as causas subjacentes à aplicação de uma medida de acompanhamento são muito díspares;
VII. O Artigo 4º, al. b), da Lei nº 25/2012, na redação decorrente da Lei nº 49/2018, de 14.8., não tem em conta a eventual manutenção da capacidade do acompanhado para querer, entender e prestar consentimento informado relativo a cuidados de saúde, sendo que a bitola para aferir a capacidade de testar é diferente da utilizada para avaliar a capacidade para querer e entender sobre a disposição de atos sobre a saúde;
VIII. «A sentença que decreta a medida de acompanhamento a favor do maior carecido não pode decretar uma interdição genérica e muito menos não fundamentada do exercício dos direitos pessoais»;
IX. Sendo alegado pelo maior acompanhado/apelante que se encontrava na posse plena das suas capacidades mentais e apto a demonstrar a sua vontade em 2016 e em 2021, cabia-lhe a prova dessa factualidade nos termos do Artigo 342º, nºs. 3 e 1, do Código Civil. Não tendo logrado fazer essa prova, o tribunal ficciona que se encontra provado o facto contrário e toma-o como fundamento da sua decisão.
(Sumário da responsabilidade do relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
O Ministério Público intentou o processo de maior acompanhado de BB, em 17.8.2018.
Em 27.11.2018, foi nomeada como curadora provisória do requerido a filha DD.
Em 3.10.2019, foi junto relatório pericial elaborado pelo IML.
Em 3.2.2020, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto e decidindo, o Tribunal julga a presente ação procedente, e em consequência declara o acompanhamento do maior BB
Fixa-se o dia 01.01.2018, como data de começo da incapacidade de exercício do Requerido (art.º 900.º CPC).
Nomeia-se como Acompanhante, a filha FF.
Fixa-se o conteúdo do acompanhamento, como representação integral, incluindo administração total de bens (art.º 145.º, n.º 2 Cód. Civil), ficando vedado ao maior acompanhado o exercício de direitos pessoais e celebração de negócios da vida corrente (art.147.º Cód. Civil).
Nomeiam-se vogais do Conselho de Família: DD e GG.
Inexiste procuração de cuidados de saúde.
Sem custas, atento a isenção do maior acompanhado (art.º 4.º, n.º 2, alínea h) RCP).
Registe e Notifique.
Comunique à Conservatória do Registo Civil.
Tome-se o compromisso de honra do acompanhante nomeado, no imediato
Em 23.10.2023, foi proferido despacho a pedir informação sobre a existência de testamento vital ou procuração para cuidados de saúde subscrita pelo beneficiário.
Em 17.11.2023, foi remetido pelo SNS informação dando conta de que, com data de 15.6.2021, BB apresentou “Diretiva Antecipada de Vontade” em que consta, nomeadamente: a nomeação de FF como procuradores de cuidados de saúde;  «Sou testemunha de Jeová e a minha consciência me dita a recusa total de tratamentos com sangue ou seus macro-componentes». Quanto à identificação da situação clínica em que a DAV produz efeitos, foram selecionadas estes itens: «Me ter sido diagnosticadas doença incurável em fase terminal»; «Não existirem expetativas de recuperação na avaliação clínica feita pelos membros da equipa médica responsável pelos cuidados, de acordo com o estado da arte»; «Inconsciência por doença neurológica ou psiquiátrica irreversível, complicada por intercorrência respiratória, renal ou cardíada»; «Minha recusa de sangue aplica-se mesmo que não me encontre em estado terminal.»
Em 28.11.2023, foi proferido o seguinte despacho:
«Na sequência de pedido do Ministério Público no âmbito das suas funções de promoção e defesa dos interesses dos adultos com capacidade diminuída, notifique a acompanhante e os vogais, para no prazo de 10 dias, se pronunciarem sobre o que tiverem por conveniente, designadamente, as circunstâncias que levaram à elaboração do teor da Diretiva Antecipada de Vontade junta aos autos, a qual se mostra subscrita após a sentença proferida.
Notifique.»
Em 15.12.2023, a filha DD apresentou requerimento em que, além do mais, sustenta que a DAV de 15.6.2021 está ferida de ilegalidade e não pode ser considerada válida.
Em 18.1.2024, foi proferido o seguinte despacho [impugnado] no tribunal a quo:
«Req.ref.ª 247725331, Promoção ref.ª 148452000:
Por ofício do ACES de (...) – Serviço Nacional de Saúde de 05.11.2023 foi junto aos autos diretiva antecipada de vontade (DAV) subscrita em 15.06.2021, por intermédio da qual se nomeou como procurador de cuidados de saúde, FF, e autorizou/rejeitou um conjunto de cuidados de saúde.
O Digno Procurador do Ministério Público suscitou a questão de saber, se tendo a sentença que declarou o acompanhamento, proferida a 31.01.2020 e transitada em 17.04.2020, fixado a data de começo da incapacidade a 01.01.2018, se a mesma deve ser considerada válida.
A acompanhante notificada para esclarecer a circunstância de a DAV ser posterior à sentença proferida, veio responder alegando que o beneficiário já anteriormente em 28.06.2016 tinha subscrito idêntico documento, tendo subscrito novo documento em 2021, apenas porque o anterior estava prestes a caducar, tendo o beneficiário manifestado assentimento ao mesmo.
Na verdade, durante o processo, ninguém indicou a existência da mesma, em termos de poder ser analisada a questão, motivo pelo qual a sentença é omissa a este respeito, desconhecendo-se as partes ou a indigitada acompanhante atuaram com dolo ou negligência nesta omissão.
Apenas cumpre analisar a questão suscitada, sendo que a este respeito, cumpre salientar que o art.º 4.º da Lei n.º 25/2021, de 17 de julho de 2012 dispõe que não podem subscrever a diretiva antecipada de vontade, a pessoa que esteja numa situação de acompanhamento, quando a sentença que a haja decretado vede o exercício do direito pessoal de testar.
No caso vertente, a sentença proferida vedou ao Requerido o exercício de direitos pessoas e a celebração de negócios da vida corrente, onde se inclui o direito pessoal de testar (art.º 147.º do Cód.Civil)
Logo, atento os efeitos da sentença proferida e que os mesmos retroagem a 01.01.2018, dúvidas não restam que a declaração antecipada de vontade que constituiu o mandato de procurador para cuidados de saúde, não tendo sido ressalvada na sentença proferida (art.º 900.º, n.º 3 CPC), caducou com a decisão proferida, nos termos do art.º 1174.º, alínea b) do Cód.Civil.
Por conseguinte, a DAV de 2021 não é, infelizmente, válida para efeitos de revalidação da DAV de 2016 e não podendo a vontade do beneficiário ser tida em conta atento as limitações decorrentes da sentença proferida.
Pelo supra exposto, declaro a DAV inválida e de nenhum efeito.
Notifique e comunique ao RENTEV.
Quanto à eventual prestação de contas ou eventual exoneração do acompanhante com base no facto da revalidação da DAV, não se tendo apurado o dolo ou negligência da acompanhante, afigura-se-nos antes do mais, que deverão tais questões ser esclarecidas em sede de Conselho de Família, para o qual deverá ser convocada a acompanhante, a fim de prestar esclarecimentos no âmbito do normal poder de fiscalização desse órgão, a fim de evitar mal entendidos que poderão crispar a família e prejudicar o fim comum do auxílio ao beneficiário.
No que tange ao pedido de certidão de peças processuais, desde já se autoriza a passagem das certidões pretendidas, as quais deverão ser entregues ao Digno Procurador do Ministério Público para os efeitos tidos por convenientes.
Notifique.»
Em 15.2.2024, veio o maior acompanhado BB, representado pela sua acompanhante, interpor recurso  formulando as seguintes CONCLUSÕES:
A. O presente recurso é interposto da Decisão proferida a 18.01.2024 que determinou a Declaração Antecipada de Vontade do Maior Acompanhado, devidamente registada no RENTEV, como inválida e de nenhum efeito.
B. Em 2018, o Ministério Público intentou uma ação especial de interdição, pedindo que se declare interdito por anomalia psíquica o seu Recorrente.
C. A sentença dos presentes autos proferida a 03.02.2020, declarou o acompanhamento do Maior e nomeou a Acompanhante.
D. Em momento prévio aos efeitos da decisão e do início do seu quadro psicopatológico, em 28.06.2016, o Maior Acompanhado subscreveu um Testamento Vital, validamente registado junto do RENTEV, que refletia as suas convicções pessoais com dimensão religiosa (designadamente, o de não receber transfusões de sangue por ser Testemunha de Jeová), outras numa dimensão para-religiosa, intrinsecamente pessoais, especificamente para que vigorassem num quadro de perda de capacidade neurológica, como o que se verifica.
E. Sucede, que a Sentença que decretou o Acompanhamento do Maior fez constar que “inexiste procuração de cuidados de saúde", um manifesto erro material.
F. O Maior Acompanhado deslocou-se ao RENTEV em Junho de 2021, expressou as suas convicções pessoais junto do respetivo funcionário no sentido de manter o conteúdo do Testamento Vital de 2016, promovendo a sua renovação formal.
G. Importa referir que o Testamento Vital de 2021 é ipsis verbis idêntico ao de 2016, pelo que não estamos perante um “novo" Testamento Vital ou mesmo uma “renovação", mas, efetivamente, a sua manutenção formal.
H. A 31.07.2023, a Vogal Sra. DD escreveu ao Ministério Público, solicitando a convocação de um Conselho de Família de Maior Acompanhado, por um conjunto alargado de razões pessoais, mas, sobretudo, patrimoniais. Nessa comunicação, menciona especifica que “enquanto estava lúcido e se converteu às Testemunhas de Jeová, o Maior Acompanhado partilhava dessa crença (...)", confirmando assim a consciência do Maior Acompanhado quando subscreveu o Testamento Vital em 2016, enquanto expressão da sua vontade.
I. Na sequência de resposta da Acompanhante, posteriormente, o Tribunal a quo veio notificar a Acompanhante para "dizer o que tiver por conveniente, designadamente, as circunstâncias que levaram à elaboração do teor da Diretiva Antecipada de Vontade, a qual se mostra subscrita após a sentença proferida", conforme o despacho com a referência n.º 147962076, de 07.12.2023.
J. Na sequência de nova resposta da Acompanhante, a 18.01.2024, é proferida a Decisão de que ora se recorre, que veio determinar a DAV subscrita "inválida e de nenhum efeito".
Ora,
K. Em primeiro lugar e como se afirmará a seguir, esta é uma decisão-surpresa, visto que se tratou de uma decisão relativamente à qual as Partes nada requereram, não tinham a obrigação de prever, nem foram Notificadas a prestar o devido contraditório.
L. Em segundo lugar, esta decisão envolve uma má aplicação do Direito, já que, objetivamente, é a que pior acautela os interesses do Maior Acompanhado.
M. Por fim, viola um conjunto alargado de normas legais, designadamente o artigo 3.º, n.º 3 do CPC, o artigo 900.º, n.º 3 do CPC, o artigo 140.º do Código Civil e o disposto na Lei n.º 25/2012.
Com efeito,
N. Em 28.06.2016, na plena posse das suas capacidades mentais e apto a demonstrar a sua vontade, o Maior Acompanhado subscreveu um Testamento Vital;
O. Em 03.02.2020, o Tribunal a quo expressamente declarou que "inexistia procuração de cuidados de saúde" na Sentença que decretou o Acompanhamento do Maior, por não ter cumprido a sua obrigação legal de promover uma comunicação ao RENTEV na pendência do processo;
P. Em Junho de 2021, face à omissão do Tribunal a quo, o Maior Acompanhado declarou ao RENTEV a manutenção da sua expressão de vontade proferida em 2016, perante funcionário do RENTEV, com conhecimento de profissionais médicos, sanando assim o erro material da Sentença;
Q. Em 18.01.2024, sem que nenhuma das Partes o tivesse requerido (Maior Acompanhado, Ministério Público, Acompanhante ou Vogais do Conselho de Família), o mesmo Tribunal a quo que não protegeu o Testamento Vital do Maior Acompanhado, revogou a sua expressão de vontade, deixando-o, assim, sem este Direito Fundamental, já que não acautelou o Testamento Vital de 2016 ou a sua manutenção de 2021, nem acautelou, de qualquer outro modo, a sua expressão de vontade em Sentença. Citando o próprio Tribunal a quo – <infelizmente=.
R. O Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão proferido com o n.º 177/15.0T8CPV-A.P1.S1, de 07.12.2018, refere que «a decisão surpresa que a lei pretende afastar com a observância do princípio do contraditório, contende com a solução jurídica que as partes não tinham a obrigação de prever, para evitar que sejam confrontadas com decisões com que não poderiam contar, e não com os fundamentos que não perspetivavam de decisões que já eram esperadas».
S. Em causa está, como se entende, o princípio do contraditório e o disposto no artigo 3.º, n.º 3 do Código do Processo Civil.
T. Os presentes autos terminaram com a prolação da Sentença em 03.02.2020, sendo que o único incidente subsequente foi o pedido para a realização de um Conselho de Família.
U. Reitera-se: nenhuma das Partes – nem Ministério Público, nem Maior Acompanhado, nem Acompanhante, nem Vogal Sra. DD, nem Vogal Sr. GG – requereram que o Testamento Vital do Maior Acompanhado fosse revogado, nem foi notificado a pronunciar-se sobre o assunto.
V. Todas as Partes sabem que o Testamento Vital do Maior Acompanhado reflete as convicções pessoais do Maior Acompanhado antes da perda das suas faculdades cognitivas.
W. A Acompanhante, em concreto, foi notificada especificamente pelo «requerimento com a referência 147962076, de 07.12.2023, a se pronunciar sobre o que tiver por conveniente, designadamente, as circunstâncias que levaram à elaboração do teor da Diretiva Antecipada de Vontade a qual se mostra subscrita após a sentença proferida» e não da intenção de ser revogado o Testamento Vital.
X. Face ao exposto, a decisão do Tribunal a quo é, efetivamente, uma decisão-surpresa e uma violação do disposto do artigo 3.º, n.º 3 do CPC, pela inobservância do princípio do contraditório.
Por outor lado,
Y. O regime jurídico do Testamento Vital encontra-se regulado pela Lei n.º 25/2012, de 16 de Julho e a Portaria n.º 96/2014, de 5 de Maio, nele prevendo-se o seu conteúdo, formalização, requisitos, forma de revogação e confidencialidade.
Z. Complementarmente, o artigo 900.º, n.º 3 do Código do Processo Civil prevê que a "sentença que decretar as medidas de acompanhamento deverá referir expressamente a existência de testamento vital e de procuração para cuidados de saúde e acautelar o respeito pela vontade antecipadamente expressa pelo acompanhado".
AA. A decisão a ser tomada tem de ser regida pelo critério do artigo 140.º, n.º 1 do Código Civil, "o acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença".
BB. A decisão ora recorrida diz que "cumpre salientar que o artigo 4.º da Lei n.º 25/2012 dispõe que não podem subscrever a diretiva antecipada de vontade, a pessoa que esteja numa situação de acompanhamento, quando a sentença que a haja decretado vede o exercício do direito pessoal a testar".
CC. Porém, o Tribunal a quo está a citar uma norma já revogada, porque o artigo 4.º, alínea b) da Lei n.º 25/2012, aqui citado pelo Tribunal a quo, foi revogado na Lei n.º 35/2023, de 21 de Julho.
DD. A revogação justifica-se, desde logo, porque o artigo 900.º, n.º 3 do Código do Processo Civil, menciona que o Testamento Vital tem de ser protegido na sentença que declare o Acompanhamento do Maior.
EE. Além disso, o Tribunal não invoca qualquer norma especial que justifique a revogação do Testamento Vital, nem considerou o facto, objetivamente relevante, de que o Testamento Vital de 2021 corresponde à manutenção integral do conteúdo do Testamento Vital de 2016, pelo que o ato jurídico materialmente relevante é o Testamento Vital de 2016.
FF. Inexiste também um mecanismo legal que confira ao Tribunal poderes para revogar uma Diretiva Antecipada de Vontade, nos termos em que o fez.
GG. E, até, não podia o Tribunal conhecer o conteúdo do Testamento Vital, porquanto invocou, para acesso a essa informação, o artigo 900.º, n.º 3 do CPC, que visa ter o efeito oposto – o de garantir a proteção do Testamento Vital na Sentença.
HH. O Tribunal não tinha poderes para requerer uma informação que apenas é conferida para acautelar o respeito pela vontade antecipadamente expressa pelo Acompanhado precisamente para revogar a vontade antecipadamente expressa pelo Acompanhado.
II. Compreende-se a complexidade jurídica de manter a Diretiva Antecipada de Vontade subscrita em 2021, mas ela teria de ser analisada com o devido contexto, designadamente: (i) o de corresponder exatamente à vontade expressa em 2016; (ii) o erro material da sentença de 2020 e (iii) a necessidade de acautelar o Maior Acompanhado.
JJ. O objetivo fundamental da Lei n.º 25/2012 é manter válida e irrevogável para terceiros a Vontade do Testador, em toda e qualquer circunstância, mesmo com perda da consciência.
KK. Porque, efetivamente, é só para cenários de perda de consciência que o Testamento Vital faz sentido!
LL. No caso concreto, esse objetivo era alcançável por manter o RENTEV atualmente registado.
MM. Ou, se tal não fosse possível – que o era - por proferir Sentença que garantisse a manutenção da vontade do Maior Acompanhado nos exatos moldes em que ela foi manifestada em 2016.
NN. Isso não é possível alcançar com a mera revogação das Diretivas Antecipadas de Vontade do Maior Acompanhado.
OO. Pelo que a Decisão ora tomada constitui uma violação direta do disposto no artigo 900.º, n.º 3 do CPC e do artigo 140.º do Código Civil.
 Termos em que, com a devida vénia e o douto suprimento de V. Exas. deverá:
Proceder-se à revogação da presente decisão e substituída por outra que mantenha o testamento vital celebrado pelo maior acompanhado ou salvaguarde o conteúdo do testamento vital.»
*
Contra-alegou o Ministério Público, formulando as seguintes Conclusões:
1. O douto despacho recorrido determinou que a Diretiva Antecipada de Vontade (DAV), subscrita pelo recorrente a 15 de junho de 2021, não é válida, porquanto, nessa altura, a vontade do mesmo já não podia ser tida em conta devido às limitações decorrentes da sentença proferida nos autos.
2. Inconformado com o despacho proferido, entendeu o beneficiário/recorrente, representado pela acompanhante, FF, levá-lo à censura de V. Ex.as, pedindo, em suma, a sua revogação por outro que mantenha a DAV subscrita a 15 de junho de 2021, ou que salvaguarde o conteúdo desse documento, e alegando que o douto despacho viola os artigos 3.º, n.º 3 e 900.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Civil, o artigo 140.º do Código Civil e, bem assim, a Lei n.º 25/2012, de 16 de julho.
3. A Lei n.º 35/2023, de 21 de julho, que revogou a alínea b) do artigo 4.º da Lei n.º 25/2012, de 16 de julho, só entrou em vigor a 20 de agosto de 2023, pelo que a referida alínea encontrava-se em vigor a 15 de junho de 2021, data em que o recorrente subscreveu a DAV.
4. A DAV subscrita em 2021 não é uma mera manutenção formal da DAV de 2016, tendo sido referido pela acompanhante FF, no e-mail junto aos autos a 9 de janeiro de 2024, que se trata de uma renovação.
5. O despacho recorrido não é uma decisão-surpresa, pois quer a acompanhante do recorrente, quer a vogal DD, foram previamente notificadas para se pronunciar sobre a subscrição da DAV de 2021.
6. No processo de maior acompanhado é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária, o Tribunal pode proferir a decisão que entenda ser mais conveniente e oportuna a fim de salvaguardar os interesses do beneficiário, ainda que essa decisão não tenha sido requerida por nenhuma das partes.
7. A justificação alegada pelo recorrente, de que subscreveu a DAV de 2021 para sanar o erro material contido na sentença proferida nos autos, não colhe, uma vez que a sanação desse erro deveria ter sido feita através de requerimento dirigido aos autos, o que nunca foi feito.
8. O acompanhamento do maior visa necessariamente assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício dos seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, pelo que, atendendo à incapacidade do recorrente, o Tribunal a quo nomeou uma acompanhante e fixou o conteúdo do respetivo acompanhamento, que deveria ter sido sempre norteado pela salvaguarda do interesse imperioso do acompanhado e do seu bem-estar, o que, definitivamente, não ocorreu.
9. A acompanhante levou o beneficiário a subscrever um documento que, nessa altura, já não tinha capacidade para o fazer, sendo do conhecimento da acompanhante o conteúdo da sentença proferida nos autos, que declarou a incapacidade do recorrente e determinou que ao mesmo ficava vedado o exercício de direitos pessoais e a celebração de negócios da vida corrente.
10. O Tribunal a quo não poderia ter deixado de intervir, a fim de acautelar os interesses do recorrente que foram colocados em causa e, bem assim, restabelecer a ordem jurídica com a declaração de invalidade do documento subscrito.
11. O despacho proferido não merece, assim, nenhum reparo e deve ser mantido na íntegra.
Termos em que deverá ser negado provimento ao recurso a que se responde, não merecendo a decisão ora recorrida qualquer censura.
Vossas Excelências não deixarão, porém, de fazer a habitual JUSTIÇA!»
*
Em 4.4.2024, foi proferido despacho que não admitiu o recurso por extemporaneidade, do qual foi formulada reclamação nos termos do Artigo 643º do Código de Processo Civil.
Em 10.9.2024, foi proferido acórdão que julgou parcialmente procedente a reclamação, ordenando-se que a secretaria do Tribunal a quo cumpra o disposto no Artigo 139º, nº6, do Código de Processo Civil, e que, sendo a multa paga, sejam remetidos os autos a este Tribunal da Relação ao mesmo relator para apreciação da apelação.
O processo foi remetido à 1ª instância e paga a multa, sendo reenviado a este Tribunal da Relação.
Não se mostram juntas contra-alegações.
QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Artigos 635º, nº4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso, v.g., abuso de direito.[2]
Nestes termos, as questões a decidir são as seguintes:
i. Existência de erro material na sentença (conclusões E) e P));
ii. A decisão impugnada é uma decisão surpresa (conclusões F) a K), R) a X));
iii. Validade da diretiva antecipada de vontade (conclusões L) a Q), Y) a OO)).
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
A jurisprudência citada neste acórdão sem menção da origem encontra-se publicada em www.dgsi.pt.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A matéria de facto relevante para a apreciação de mérito é a que consta do relatório, cujo teor se dá por reproduzido.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Existência de erro material na sentença (conclusões E) e P)).
O apelante sustenta que a sentença proferida e que decretou o acompanhamento padece de manifesto erro material no segmento em que refere que “inexiste procuração de cuidados de saúde”.
Apreciando.
Conforme se refere em Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, I Vol., 2022, 3ª ed., Almedina, p. 791:
«O erro material só pode ser retificado se for ostensivo, evidente e devido a lapso manifesto: é preciso que, ao ler o texto, se veja que há erro e logo se entenda o que se queria dizer (STJ 13-10-20, 5957/20, RG 22-11-18, 56/18). A correção constitui complemento e parte integrante da sentença, por aplicação analógica do art.º 617º, nº 2.»
Não é o caso porquanto, à data em que foi proferida a sentença, inexistia informação nos autos sobre a existência de uma Declaração Antecipada de Vontade por parte do requerido. O erro teria que ser revelado pelo contexto dos próprios autos, sendo que nada constava a tal propósito.
A decisão impugnada é uma decisão surpresa (conclusões F) a K), R) a X)).
O apelante sustenta que a decisão impugnada é uma decisão-surpresa porquanto: as partes nada requereram, não tinham a obrigação de a prever nem foram notificadas para prestar o contraditório; a acompanhante não foi notificada da intenção de ser revogado o testamento vital.
Apreciando.
O processo de maior acompanhado culminou com a prolação da sentença de 3.2.2020, em que foi declarado o acompanhamento do maior BB. Na sentença ficou mencionado que “Inexiste procuração de cuidados de saúde”.
Só em 17.11.2023 é que foi remetido pelo SNS informação dando conta de que, com data de 15.6.2021, BB apresentou Diretiva Antecipada de vontade em que consta, nomeadamente, «Minha recusa de sangue aplica-se mesmo que não me encontre em estado terminal.»
Em 28.11.2023, foi proferido o seguinte despacho:
«Na sequência de pedido do Ministério Público no âmbito das suas funções de promoção e defesa dos interesses dos adultos com capacidade diminuída, notifique a acompanhante e os vogais, para no prazo de 10 dias, se pronunciarem sobre o que tiverem por conveniente, designadamente, as circunstâncias que levaram à elaboração do teor da Diretiva Antecipada de Vontade junta aos autos, a qual se mostra subscrita após a sentença proferida.
Notifique
Em 18.1.2024, foi proferida a decisão impugnada nos termos da qual se asseverou que:
«No caso vertente, a sentença proferida vedou ao Requerido o exercício de direitos pessoas e a celebração de negócios da vida corrente, onde se inclui o direito pessoal de testar (art.º 147.º do Cód. Civil)
Logo, atento os efeitos da sentença proferida e que os mesmos retroagem a 01.01.2018, dúvidas não restam que a declaração antecipada de vontade que constituiu o mandato de procurador para cuidados de saúde, não tendo sido ressalvada na sentença proferida (art.º 900.º, n.º 3 CPC), caducou com a decisão proferida, nos termos do art.º 1174.º, alínea b) do Cód.Civil.
Por conseguinte, a DAV de 2021 não é, infelizmente, válida para efeitos de revalidação da DAV de 2016 e não podendo a vontade do beneficiário ser tida em conta atento as limitações decorrentes da sentença proferida.
Pelo supra exposto, declaro a DAV inválida e de nenhum efeito.»
Ao contrário do que argumenta o apelante, não foi proferida uma decisão-surpresa.
A atuação do Tribunal a quo no sentido de indagar sobre a existência de testamento vital ou procuração para cuidados de saúde foi suscitada pelo Ministério Público, no âmbito das competências próprias deste (cf.: Artigo 141º, nº 1, do Código Civil, Artigo 904º, nº 2, do Código de Processo Civil, Artigo 4º, nº 1, al. i), da Lei nº 68/2019, de 27.8).
Antes de proferir a decisão impugnada, o Tribunal a quo ordenou a notificação da acompanhante e dos vogais para, em dez dias, se pronunciarem «sobre o que tiverem por conveniente, designadamente, as circunstâncias que levaram à elaboração do teor da Diretiva Antecipada de Vontade junta aos autos, a qual se mostra subscrita após a sentença proferida.»
A filha DD veio pronunciar-se para o efeito, nada tendo sido dito pela acompanhante, sendo que esta reconhece na conclusão W) que foi notificada nesses termos.
A notificação em causa, nos termos determinados e efetuados, é suficientemente reveladora que o Tribunal a quo se propunha pronunciar sobre a atendibilidade da diretiva antecipada de vontade subscrita após a sentença de 3.2.2020, tanto mais que a sentença havia determinado que ficava vedado ao maior acompanhado o exercício de direitos pessoais.
Conforme se refere no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 11.1.2024, Prazeres Beleza, 0205/22:
III- O princípio do contraditório tem um significado material, que se reconduz ao princípio da igualdade das partes perante a lei e o tribunal e se traduz no reconhecimento do direito das partes a que a sua posição sobre as questões em litígio possa ser considerada pelo tribunal quando as vai decidir.
IV - É este sentido material do contraditório que o n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil traduz, ao revelar, na sua parte final, que o que o respeito do contraditório impõe é que, antes de o juiz decidir “questões”, as partes devem ter disposto “da possibilidade de sobre elas se pronunciarem
Ora, foi conferido ao maior acompanhado, mediante notificação feita à apelante, a possibilidade de vir pronunciar-se/argumentar quanto à atendibilidade da diretiva antecipada de vontade datada de 15.6.2021. O maior optou por nada vir dizer aos autos.
Não ocorre, portanto, qualquer violação do princípio do contraditório, gerador de decisão-surpresa.
Validade da diretiva antecipada de vontade (conclusões L) a Q), Y) a OO)).
O apelante pugna pela validade da diretiva antecipada de vontade com esta argumentação:
a) Em 28.6.2016, na plena posse das suas capacidades mentais e apto a demonstrar a sua vontade, o (futuro) maior acompanhado subscreveu um testamento vital;
b) Na pendência do processo, o tribunal devia ter promovido uma comunicação ao RENTEV, o que não fez;
c) Em 21.6.2021, o maior acompanhado declarou ao RENTEV a manutenção da sua expressão de vontade proferida em 2016 pelo que o ato jurídico materialmente relevante é o testamento vital de 2016;
d) O Artigo 4º, al. b), da Lei nº 25/2012 foi revogado pela Lei nº 35/2023, de 21.7;
e) Inexiste mecanismo legal que confira ao Tribunal poderes para revogar uma diretiva antecipada de vontade;
f) O objetivo fundamental da Lei nº 25/2012 é manter válida e irrevogável para terceiros a vontade do testador, mesmo com a perda de consciência.
Apreciando.
No que tange à outorga de diretiva antecipada de vontade, com referência a 21.6.2021, encontrava-se em vigor a Lei nº 25/2012, de 16.7, com a seguinte redação:
Artigo 2.º
Definição e conteúdo do documento
1 - As diretivas antecipadas de vontade, designadamente sob a forma de testamento vital, são o documento unilateral e livremente revogável a qualquer momento pelo próprio, no qual uma pessoa maior de idade e capaz, que não se encontre interdita ou inabilitada por anomalia psíquica, manifesta antecipadamente a sua vontade consciente, livre e esclarecida, no que concerne aos cuidados de saúde que deseja receber, ou não deseja receber, no caso de, por qualquer razão, se encontrar incapaz de expressar a sua vontade pessoal e autonomamente.
(…)
Artigo 3.º
Forma do documento
1 - As diretivas antecipadas de vontade são formalizadas através de documento escrito, assinado presencialmente perante funcionário devidamente habilitado do Registo Nacional do Testamento Vital ou notário, do qual conste:
a) A identificação completa do outorgante;
b) O lugar, a data e a hora da sua assinatura;
c) As situações clínicas em que as diretivas antecipadas de vontade produzem efeitos;
d) As opções e instruções relativas a cuidados de saúde que o outorgante deseja ou não receber, no caso de se encontrar em alguma das situações referidas na alínea anterior;
e) As declarações de renovação, alteração ou revogação das diretivas antecipadas de vontade, caso existam.
(…)
Artigo 4.º
Requisitos de capacidade
Podem outorgar um documento de diretivas antecipadas de vontade as pessoas que, cumulativamente:
a) Sejam maiores de idade;
b) Não estejam em situação de acompanhamento, caso a sentença que a haja decretado vede o exercício do direito pessoal de testar;
c) Se encontrem capazes de dar o seu consentimento consciente, livre e esclarecido.
Artigo 5.º
Limites das diretivas antecipadas de vontade
São juridicamente inexistentes, não produzindo qualquer efeito, as diretivas antecipadas de vontade:
a) Que sejam contrárias à lei, à ordem pública ou determinem uma atuação contrária às boas práticas;
b) Cujo cumprimento possa provocar deliberadamente a morte não natural e evitável, tal como prevista nos artigos 134.º e 135.º do Código Penal;
c) Em que o outorgante não tenha expressado, clara e inequivocamente, a sua vontade (sublinhados nossos).
A Lei nº 35/2023, de 21.7 (Lei da Saúde Mental) alterou a redação do Artigo 2º, nº1, da Lei nº 25/2012 para:
«As diretivas antecipadas de vontade, designadamente sob a forma de testamento vital, são o documento unilateral e livremente revogável a qualquer momento pelo próprio, no qual uma pessoa maior de idade e capaz manifesta antecipadamente a sua vontade consciente, livre e esclarecida no que concerne aos cuidados de saúde que deseja receber ou não deseja receber, no caso de, por qualquer razão, se encontrar incapaz de expressar a sua vontade pessoal e autonomamente
A Lei nº 35/2023 revogou a alínea b) do Artigo 4º da lei nº 25/2012, de 16.7 (cf. Artigo 54º, al. c)), sendo que a Lei nº 35/2023 entrou em vigor em 21.8.2023 (cf. Artigo 55º).
No que tange à determinação da lei aplicável à capacidade do outorgante de declaração antecipada de vontade, esta afere-se segundo a lei vigente à data da outorga da declaração antecipada de vontade porquanto estão em causa as condições de validade substancial de tal ato. Com efeito, quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se em caso de dúvida, que só visa os factos novos (Artigo 12º, nº 2, 1ª parte, do Código Civil). A contrario, a lei antiga subsiste vigente para regular factos ou efeitos jurídicos relacionados com as condições de validade substancial ou formal de situações jurídicas em execução (cf. Pedro Romano Martinez, Introdução ao Estudo do Direito, AAFDL, 2022, p. 366).
Deste modo, a capacidade pessoal do outorgante da declaração antecipada de vontade afere-se pela lei vigente à data da outorga. Situação absolutamente similar ocorre com a aferição da capacidade pessoal do testador, a qual se rege pela lei vigente ao tempo da realização do ato (cf. Baptista Machado, Sobre a Aplicação no Tempo do Novo Código Civil, p. 186).
Aqui chegados, cumpre perguntar: a diretiva antecipada de vontade outorgada pelo maior acompanhado, em 21.6.2021, é válida e atendível?
Na sentença proferida em 3.2.2020 explicitou-se que fica «vedado ao maior acompanhado o exercício de direitos pessoais e celebração de negócios da vida corrente (art.º 147º Código Civil)».
Nos termos do Artigo 147º do Código Civil:
1 - O exercício pelo acompanhado de direitos pessoais e a celebração de negócios da vida corrente são livres, salvo disposição da lei ou decisão judicial em contrário.
2 - São pessoais, entre outros, os direitos de casar ou de constituir situações de união, de procriar, de perfilhar ou de adotar, de cuidar e de educar os filhos ou os adotados, de escolher profissão, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência, de estabelecer relações com quem entender e de testar (sublinhado nosso).
Os direitos pessoais elencados no nº 2 são exemplificativos, havendo que acrescentar aos mesmos os direitos de personalidade na área da saúde (cf. Nuno Andrade Pissarra, Processo Especial de Acompanhamento de Maiores, AAFDL, 2023, p. 201).
Mafalda Miranda Barbosa, Maiores Acompanhados, Gestlegal, 2018, p. 65, afirma que «Em rigor, todos os direitos de personalidade podem ser qualificados como direitos pessoais, o que significa que, por norma, a limitação voluntária destes direitos pode ser exercida livremente pelo acompanhado, exceto se a decisão judicial decretar o contrário o a lei dispuser de outro modo».
Mafalda Miranda Barbosa, “Dificuldades resultantes da Lei nº 49/2018, de 14 de agosto”, in RJLB, Ano 5º (2019), nº1, p. 1470, precisa que:
«Para além destes negócios, o acompanhado mantém, em regra, a sua capacidade para o exercício de direitos pessoais. Como também já tivemos oportunidade de referir, o n.º2 do artigo 147º CC oferece um elenco exemplificativo de direitos pessoais: direito de casar, de constituir uma união de facto, de procriar, de perfilhar, de adotar, de cuidar e de educar os filhos ou os adotados, de escolher a profissão, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência, de estabelecer relações com quem entender e de testar.
A aparente simplicidade enunciativa requer mais esclarecimentos.
Desde logo, importa frisar que há, efetivamente, mais direitos pessoais do que aqueles que são referidos pelo legislador. Em rigor, todos os direitos de personalidade podem ser qualificados como direitos pessoais, o que significa que, por norma, a limitação voluntária destes direitos pode ser exercida livremente pelo acompanhado, exceto se a decisão judicial decretar o contrário ou a lei dispuser de outro modo.
 (…)
Nos termos do artigo 2189º CC, são incapazes de testar os maiores acompanhados, nos casos em que a sentença de acompanhamento assim o determine, sendo nulo o testamento feito pelo incapaz, de acordo com o artigo 2190º CC. Entende-se tradicionalmente que estes três preceitos – o artigo 1601º, 1850º e 2189º CC – lidam com a capacidade de gozo (prevendo, como exceção à regra da plenitude da capacidade de gozo das pessoas singulares, hipóteses de incapacidades de gozo) e não com a capacidade de exercício34. E com razão. Estamos, na verdade, diante de situações em que os atos não podem ser concluídos por outra pessoa em nome do titular do direito, nem por este com autorização de um terceiro. No fundo, não há forma de suprimento da incapacidade. Ora, o que se conclui, então, é que o novo regime do acompanhamento de maiores alarga a capacidade de gozo dos sujeitos. É que, enquanto no anterior regime a previsão era, genericamente, a da incapacidade para testar dos interditos por anomalia psíquica, da incapacidade para perfilhar dos interditos por anomalia psíquica, e a incapacidade para casar dos interditos e inabilitados por anomalia psíquica, agora a incapacidade fica dependente de ser decretada na sentença que estabelece o acompanhamento, isto é, fica dependente da concreta perturbação (e da específica valoração que o juiz dela faça) do acompanhado.
 Vistas as coisas, o acompanhado pode sofrer uma restrição tão ampla da sua capacidade que, na prática, fica equiparado a um interdito. Simplesmente, tal só acontece quando as circunstâncias concretas do sujeito o imponham. O que antes era a regra, hoje é a exceção.” (pp 1472-1473).
André Dias Pereira, “A Convenção de Nova Iorque, o regime jurídico do maior acompanhado e o consentimento para atos em saúde em Portugal”, in Revista Faculdade de Direito, 2021, vol. 45, https://doi.org/10.5216/rfd.v45i3.68898 afirma que: «Parece-nos que só em casos excecionais, de completa ausência de discernimento, poderá o tribunal impedir a pessoa de redigir um testamento vital ou de nomear um procurador de cuidados de saúde, dada a natureza pessoalíssima destas faculdades
Nos termos do Artigo 12º da Convenção de Nova Iorque sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, vigente em Portugal desde 23.10.2009 (cf. Resolução da AR nº 56/2009, de 30.7, ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 71/2009, de 30.7.):
Artigo 12.º
Reconhecimento igual perante a lei
1 - Os Estados Partes reafirmam que as pessoas com deficiência têm o direito ao reconhecimento perante a lei da sua personalidade jurídica em qualquer lugar.
2 - Os Estados Partes reconhecem que as pessoas com deficiências têm capacidade jurídica, em condições de igualdade com as outras, em todos os aspetos da vida.
3 - Os Estados Partes tomam medidas apropriadas para providenciar acesso às pessoas com deficiência ao apoio que possam necessitar no exercício da sua capacidade jurídica.
(…)
Geraldo Rocha Ribeiro, “O instituto do maior acompanhado à luz da Convenção de Nova Iorque e dos direitos fundamentais”, in Julgar Online, maio de 2020, pp. 46-47, https://julgar.pt/wp-content/uploads/2020/05/2020503-JULGAR-O-Instituto-do-Acompanhamento-%C3%A0-luz-da-Conven%C3%A7%C3%A3o-de-Nova-Iorque-e-direitos-fundamentais-GRR.pdf afirma a este propósito que:
«No caso da incapacidade para testar, o legislador conduziu ao limite a incompreensão do artigo 12.º, n.ºs 2 e 3 da Convenção. Não só prevê a possibilidade de restringir ex ante a aptidão para uma disposição mortis causa, como acopla um efeito legal automático de incapacidade jurídica de gozo para outorgar um testamento vital. Já não é a mera incapacidade de agir autonomamente que está em causa, é retirar a possibilidade de o beneficiário se autodeterminar. Esta incapacidade não é função da ausência de um elemento essencial à perfeição e eficácia do testamento vital ou procuração, mas da discriminação da pessoa no acesso a instrumentos de autonomia prospetiva para situações em que os mesmos cumprem o desiderato de garantir uma solução representativa da vontade autêntica do beneficiário.
Tirando a coincidência do radical testamento não vislumbramos como a autodeterminação da esfera pessoal seja equivalente ao ato de disposição mortis causa. Estamos em querer que, pressupondo que o legislador foi razoável, não se leve à letra a referência a testamento, porquanto o mesmo vai muito além da afirmação do momento em que se descontinuam os cuidados de saúde. É uma expressão da individualidade e autonomia prospetiva cujos efeitos em nada bulem com as exigências patrimoniais e, fundamental, cujas consequências não se repercutem no património dos sucessíveis, antes decorre da afirmação da pessoalidade do outorgante enquanto expressão da sua autenticidade.
Daí que a extensão ex lege — e dizemos efeito legal porque o juízo da idoneidade para celebrar um testamento não é equivalente à idoneidade para outorgar um testamento vital e nomear procurador para cuidados de saúde (artigo 11.º da Lei n.º 5/2012, 16-07) –seja inadmissível. Aliás, é na incapacidade para nomear procurador que nos deparamos com o efeito mais perverso da correspondência entre estes dois juízos. A pessoa, mesmo que com capacidade diminuída, tem o direito de participar e escolher a pessoa que pretende que assuma o poder de decisão em situação de incapacidade. Aqui chocam o princípio da subsidiariedade atinente ao afastamento de instrumentos voluntários e o da proporcionalidade, no que tange ao juízo de adequação e necessidade entre o instrumento de salvaguarda e a recusa de efeitos à vontade manifestada pelo beneficiário. Esta a ser objeto de sindicância, será na modelação da medida de acompanhamento e não na exclusão de soberania ab initio sobre a sua esfera de interesses.»
Também Lucas Nóbrega Ribeiro, “O maior acompanhado e as diretivas antecipadas de vontade”, in Lex Medicinae, Ano 16, nº 31-32 (2019), pp. 51-75, https://www.centrodedireitobiomedico.org/data/publicacoes/PUB2024826192049.pdf,  analisa e critica o regime aplicável ao caso em apreço, decorrente da redação do Artigo 4º, al. b) da Lei nº 25/2012, à luz desta Convenção.
Começa por enfatizar que a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência comete aos Estados-Membros o apoio às pessoas com deficiência a tomarem as suas próprias decisões, «formadas de acordo com o que for importante para estas.» O novo regime do maior acompanhado pretende que o maior seja ajudado “sem que para isso tenha de perder a sua capacidade de exercício” (p. 57). « (…) o Direito não pode fechar a porta às “prerrogativas próprias de cada ser humano”, que estão visceralmente ligadas à dignidade da pessoa humana, sobretudo se tivermos em consideração o seu relevo nos cuidados de saúde, que não depende da verificação de um determinado conjunto de atributos, tais como “a racionalidade ou a potencialidade de desenvolver a capacidade de razão”» (pp. 61-62). «A proteção de pessoas com deficiência implica a convocação do princípio da igualdade e da proibição de discriminação, pelo que não devem estes cidadãos “serem vítimas de uma capitis diminutio”, nem se admitindo a privação ou restrição de direitos “para além daquilo que seja consequência forçosa da deficiência» (p. 62).
Prosseguindo:
«Esta nova formulação da alínea b) do art.º 4.º da Lei n.º 25/2012 levanta sérias dúvidas. Deixa transparecer uma (ligeira) confusão entre o direito de testar (direito pessoal, mas de cariz patrimonial) e o direito de outorgar um testamento vital (de cariz pessoalíssimo e referente a decisões médicas). Ora, o facto de um sujeito ver coartado o seu direito (patrimonial) de testar, em nada deve obstaculizar à sua capacidade para elaborar um testamento vital (t.v.) ou uma procuração de cuidados de saúde (p.c.s.), porquanto são campos de atuação diametralmente distintos e sobretudo porque as causas que podem originar a aplicação de uma medida de acompanhamento são muito diversas, podendo estas não ser impeditivas de tomada de decisões a nível médico. Da mesma forma, a construção frásica não foi a mais feliz, por conta da conjunção condicional “caso”: veda, em primeiro lugar, a capacidade outorgante a todos os maiores acompanhados, para logo a seguir especificar que depende do teor da sentença que a haja decretado, voltando a conferir capacidade aos outros maiores acompanhados cuja sentença não vede o direito a testar» (p. 64).
Concluindo adiante:
«Nos casos em que a sentença de acompanhamento não vede o direito pessoal de testar (art.º 2189.º do Cód. Civil), todos os maiores acompanhados poderão redigir um documento de d.a.v. e outorgar um testamento(128). Atente-se que a redação deste artigo 2189.º do Cód. Civil também não é compaginável com o entendimento de que a regra é a capacidade, e não a incapacidade — e se um incapaz de testar outorgar um testamento, este será nulo (art.º 2190.ºdo Cód. Civil).
Com base nestes argumentos, parece resultar inconstitucional, porque violadora do princípio da igualdade (art.º 13.º da CRP) mas também do art.º 12.º da CDPD, a leitura que se faz da norma do art.º 4.º/b) da Lei n.º 25/2012 no sentido de impedir um maior acompanhado de redigir um documento de d.a.v. apenas porque está impedido de testar, isto é, porque não pode testar ou dispor do seu património. Esta norma não tem em conta a eventual manutenção da capacidade para querer e entender e prestar consentimento informado relativamente a cuidados de saúde, no caso, prestados antecipadamente. O legislador nada disse a este respeito, ainda que se tenha pronunciado relativamente às d.a.v. que já tenham sido redigidas (veja-se a redação do art.º 900.º/3 do CPC).
A capacidade para testar, para praticar atos que impliquem disposições patrimoniais, nada tem que ver com a capacidade para manifestar “antecipadamente a sua vontade consciente, no que concerne aos cuidados de saúde que deseja receber, ou não deseja receber” (redação do art.º 2.º/1 da Lei n.º 25/2012) e para prestar “consentimento consciente, livre e esclarecido” (art.º 4.º/1 da mesma Lei), pois a bitola pela qual se avalia a capacidade para testar, não pode ser a mesma utilizada para avaliar a capacidade para querer e entender sobre atos de saúde.
(…)
A redação deste artigo 4.º/b) da Lei n.º 25/2012 terá de ser alvo de interpretação ab-rogante, com fundamento na evidente contradição entre normas vigentes, que geram consequências jurídicas incompatíveis entre si (ou no mínimo corretiva) por parte do julgador, por forma a adaptar a sua aplicação ao escopo da Lei n.º 49/2018.»
No acórdão do STJ de 19.1.2023, Fátima Gomes, 4060/19, foi expresso o entendimento de que o regime jurídico do maior acompanhado deve ser interpretado á luz da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.
Sintetizando este excurso legal e doutrinário, temos que:
i. A limitação voluntária dos direitos de personalidade pode ser exercida livremente pelo acompanhado, exceto se a decisão judicial decretar o contrário ou a lei dispuser de outro modo;
ii. No atual regime do maior acompanhado, parte-se da ideia de que o acompanhado mantém a sua capacidade de exercício (regra), sem prejuízo da decisão judicial poder modelar ou limitar a capacidade de exercício (exceção);
iii. Só em casos excecionais de completa ausência de discernimento é que o tribunal poderá impedir o acompanhado de redigir um testamento vital, atenta a natureza pessoalíssima dessa faculdade;
iv. O regime do maior acompanhado tem de ser interpretado à luz da Convenção de Nova Iorque sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, máxime Artigo 12º, nºs 1 a 3;
v. Um regime que, em decorrência da decretada impossibilidade de testar, comine um efeito legal automático impeditivo da outorga de testamento vital é contrário a tal Convenção, máxime Artigo 12º, nºs 2 e 3;
vi. O juízo de idoneidade para outorgar um testamento não é equivalente à idoneidade para outorgar um testamento vital, tratando-se ali de um direito pessoal de cariz patrimonial e aqui de um direito pessoalíssimos referente a decisões médicas, sendo que as causas subjacentes à aplicação de uma medida de acompanhamento são muito díspares;
vii. O Artigo 4º, al. b), da Lei nº 25/2012, na redação aplicável ao caso, não tem em conta a eventual manutenção da capacidade do acompanhado para querer, entender e prestar consentimento informado relativo a cuidados de saúde, sendo que a bitola para aferir a capacidade de testar é diferente da utilizada para avaliar a capacidade para querer e entender sobre a disposição de atos sobre a saúde.
No que tange ao vício de que padece o Artigo 4º, al. b), da Lei nº 25/2012, na redação aplicável ao caso, afigura-se-nos que a mesma padece de inconstitucionalidade material por violação do princípio da igualdada consagrado no Artigo 13º, nºs 1 e 2, da Constituição. Note-se que os fatores enunciados no nº 2 do Artigo 13º são meramente exemplificativos, estando aí abarcados outros como a idade, estatuto familiar ou deficiência (cf. Jorge Reis Novais, Princípios Estruturantes do Estado de Direito, 2ª ed., p. 93 e Jorge Miranda/Rui Medeiros,  Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2ª ed., p. 230).
O Artigo 14º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos também proíbe a discriminação no gozo dos direitos e liberdades reconhecidas na Convenção por motivos atinentes ao sexo, raça, cor, língua, religião, opiniões políticas ou outras, a origem nacional ou social, a pertença a uma minoria nacional, a riqueza, o nascimento ou qualquer outra situação.
 O TEDH decide os casos de discriminação, aplicando o seguinte teste:
1. Houve uma diferença de tratamento entre pessoas em situações análogas ou relevantemente semelhantes - ou uma falta de tratamento diferente de pessoas em situações relevantemente diferentes?
2. Em caso afirmativo, essa diferença - ou ausência de diferença - é objetivamente justificada? Em particular,
a. Visa um objetivo legítimo?
b. Os meios utilizados são razoavelmente proporcionais ao objetivo prosseguido?
O TEDH afirmou que o âmbito de aplicação do artigo 14º da Convenção e do artigo 1º do Protocolo nº 12 inclui a discriminação baseada na deficiência, em condições médicas ou em caraterísticas genéticas (Glor c. Suíça, 2009, § 80; G.N. e outros c. Itália, 2009, § 126; Kiyutin c. Rússia, 2011, § 57). Nos casos relativos à deficiência, precisou que a margem de apreciação dos Estados para estabelecer um tratamento jurídico diferente para as pessoas com deficiência é consideravelmente reduzida (Glor v. Suíça, 2009, § 84).
No Artigo 4º, al. b), da Lei nº 25/2012, o legislador ordinário estabelece uma desigualdade ao privar o maior acompanhado da possibilidade de outorgar uma declaração antecipada de vontade/testamento vital em razão de ser portador de deficiência ou outra patologia, estabelecendo essa restrição de forma automática sem efetiva aferição da manutenção da capacidade para entender e prestar consentimento informado relativamente a cuidados de saúde. Esse automatismo legal não passa no teste da justificação da diferenciação de tratamento face aos demais cidadãos não acompanhados, extrapolando uma incapacidade sem mais. Dito de outra forma, a sujeição de um cidadão ao estatuto de maior acompanhado pode fundar-se em fatores de múltipla ordem, os quais podem coexistir com a manutenção da capacidade para entender e prestar consentimento informado quanto a cuidados de saúde antecipadamente. A lei ordinária ao associar ao estatuto de maior acompanhado, de forma automática, a privação de tal direito, fá-lo sem fundamento substancial bastante. Em suma, aplicando o teste do TEDH, não há justificação objetiva suficiente para esse tratamento diferenciado.
No que tange à densificação do princípio da igualdade, conforme se refere no Acórdão nº 362/2016 do Tribunal Constitucional:
«Numa perspetiva de igualdade material ou substantiva – aquela que subjaz ao artigo 13.º, n.º 1, da Constituição e que se traduz na igualdade através da lei –, a igualdade jurídica corresponde a um conceito relativo e valorativo assente numa comparação de situações: estas, na medida em que sejam consideradas iguais, devem ser tratadas igualmente; e, na medida em que sejam desiguais, devem ser tratadas desigualmente, segundo a medida da desigualdade. Tal implica a determinação prévia da igualdade ou desigualdade das situações em causa, porquanto no plano da realidade factual não existem situações absolutamente iguais. Para tanto, é necessário comparar situações em função de um certo ponto de vista. Por isso, a comparação indispensável ao juízo de igualdade exige pelo menos três elementos: duas situações ou objetos que se comparam em função de um aspeto que se destaca do todo e que serve de termo de comparação (tertium comparationis). Este termo – o «terceiro (elemento) da comparação» – corresponde à qualidade ou característica que é comum às situações ou objetos a comparar; é o pressuposto da respetiva comparabilidade. Assim, o juízo de igualdade significa fazer sobressair ou destacar elementos comuns a dois ou mais objetos diferentes, de modo a permitir a sua integração num conjunto ou conceito comum (genus proximum).
Porém, a Constituição não proíbe todo e qualquer tratamento diferenciado. Proíbe, isso sim, as discriminações negativas atentatórias da (igual) dignidade da pessoa humana e as diferenças de tratamento sem uma qualquer razão justificativa e, como tal, arbitrárias. Nesse sentido, afirmou-se no Acórdão n.º 39/88:
«A igualdade não é, porém, igualitarismo. É, antes, igualdade proporcional. Exige que se tratem por igual as situações substancialmente iguais e que, a situações substancialmente desiguais, se dê tratamento desigual, mas proporcionado: a justiça, como princípio objetivo, “reconduz-se, na sua essência, a uma ideia de igualdade, no sentido de proporcionalidade” – acentua Rui de Alarcão (Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, lições policopiadas de 1972, p. 29).
O princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objetivo, constitucionalmente relevantes. Proíbe também que se tratem por igual situações essencialmente desiguais. E proíbe ainda a discriminação; ou seja: as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjetivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13º.
Respeitados estes limites, o legislador goza de inteira liberdade para estabelecer tratamentos diferenciados.
O princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio e da discriminação, só é, assim, violado quando as medidas legislativas contendo diferenciações de tratamento se apresentem como arbitrárias, por carecerem de fundamento material bastante.»»
Assim, pugnamos pela inconstitucionalidade material da norma (Artigo 4º, al. b), da Lei nº 25/2012, na redação vigente em 21.6.2021, norma essa que foi aplicada pelo tribunal a quo.
Não será caso de fazer uma interpretação ab-rogante de tal norma porquanto não tem justificação falar de interpretação ab-rogante a propósito de conflitos normativos que devam ser resolvidos pela prevalência das regras do sistema superior (cf. Teixeira de Sousa, Introdução ao Direito, Almedina, pp. 381-382 e 262-265).
Note-se que a sentença proferida em 3.2.2020 (que decretou o acompanhamento) padece de ilegalidade porquanto determinou, genericamente, «ficando vedado ao maior acompanhado o exercício de direitos pessoais e celebração de negócios da vida corrente (art.147.º Cód.Civil)».
Ora, «A sentença que decreta a medida de acompanhamento a favor do maior carecido não pode decretar uma interdição genérica e muito menos não fundamentada do exercício dos direitos pessoais» (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7.10.2021, Vaz Gomes, 668/70, acessível em www.colectaneadejurisprudencia.com).
Conforme refere Nuno Andrade Pissarra, Processo Especial de Acompanhamento de Maiores, AAFDL, 2023, pp. 199-200:
«Do princípio de liberdade de exercício dos direitos pessoais depreende-se, recta via, que qualquer decisão deles limitativa tem de ser:
a) Determinada, isto é, hão de ser individualizados cada um dos direitos restringidos ou coartados: uma decisão genérica do tipo “o beneficiário fica impedido do exercício de direitos pessoais” é ilegal;
b) Fundamentada, no sentido mais exigente de que cada uma das limitações ou restrições deve ser autonomamente justificada.»
No caso em apreço, a sentença em causa não cumpriu estes dois requisitos, sendo certo que a mesma transitou em julgado, não sendo objeto direto desta apelação.
Havendo que desaplicar o Artigo 4º, al. b), da Lei nº 25/2012 com fundamento em inconstitucionalidade material,  o tribunal deve julgar o caso como se não existisse a norma declarada inconstitucional, aplicando, se for caso disso, em vez dela, as normas anteriores que elas tenham vindo revogar ou substituir - cf. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª Ed., Coimbra Editora, p. 1028. Nos acórdãos nºs 490/89 e 175/90, o Tribunal Constitucional entendeu que a repristinação no âmbito do controle judicial concreto de constitucionalidade é possível.
Não pode ser aplicada a norma anterior porquanto, na redação precedente, era erigido como requisito da capacidade para outorgar um documento de diretivas antecipadas de vontade a circunstância (cumulativa) de não se encontrar interdita ou inabilitada por anomalia psíquica (cf. al. b), do Artigo 4º da Lei nº 25/2012, na redação originária), o que suscita o mesmo raciocínio de inconstitucionalidade material, mutatis mutandis.
Assim, resta atender como requisitos da capacidade para outorgar declaração antecipada de vontade os enunciados nas alíneas a) (maioridade) e c) (encontrar-se capaz de dar o seu consentimento livre e esclarecido) (Artigo 4ºda Lei nº 25/2012, na redação vigente à data da outorga de 21.6.2021).
Ora, não foi produzida prova (nem foi sequer requerida no tribunal a quo, cf. designadamente requerimento da filha DD de 15.12.2023) sobre se, com referência a 21.6.2021, o maior acompanhado estava capaz de dar o seu consentimento livre e esclarecido quanto à declaração antecipada de vontade que subscreveu. Não está, assim, demonstrado que dispunha de tal capacidade nem o seu contrário.
Nos termos do Artigo 342º, nº 3, do Código Civil, em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito.
Conforme refere Teixeira de Sousa, CPC Online, CPC: art.º 410º a 422º, Versão de 2024/04, p. 24:
«Atualmente, em função do que se dispõe nos art.º 342.º a 344.º CC é questionável que haja alguma dúvida sobre a distribuição do ónus da prova pelas partes da ação. Aliás, o que se encontra no art.º 342.º, n.º 3, CC, ao estabelecer que “em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito”, deixa pouca margem para alguma dúvida sobre a repartição do ónus da prova. Resolvida essa dúvida através do critério constante do art.º 342.º, n.º 3, CC, o facto deve ser provado pela parte que alega o direito (art.º 342.º, n.º 1, CC). (c) Em todo o caso, perante alguma eventual dúvida sobre a qual das partes incumbe a prova de um facto, essa dúvida resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita. Desta regra pode inferir-se que, nessa situação de dúvida, a prova do facto cabe à parte beneficiada com essa prova.
(…)
O disposto no art.º 8.º, n.º 1, CC proíbe o tribunal de se abster de julgar “alegando dúvida insanável acerca dos factos em litígio”. Isto significa que, apesar de se verificar uma situação de non liquet, o tribunal não pode abster-se de julgar e tem de proferir uma decisão de mérito. O estabelecido no artigo [414º do Código de Processo Civil] possibilita que o tribunal, apesar de ter ficado em dúvida sobre a verdade (“realidade”) de um facto, profira uma decisão a favor de uma das partes e contra a outra parte. (b) A solução é a seguinte: a dúvida sobre a verdade de um facto “resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita”, ou seja, resolve-se contra a parte que teria beneficiado com a prova do facto. Mais em concreto: perante a dúvida sobre a verdade de um facto, o tribunal ficciona como provado o facto contrário do facto que não foi provado. O facto contrário do facto probando é a negação (interna) deste facto: a parte tem o ónus de provar x; o tribunal ficciona ~x. (c) P. ex.: (i) o autor alegou que celebrou um contrato de mútuo com o réu; cabia ao autor a prova da celebração do contrato (facto constitutivo: art.º 342.º, n.º 1, CC); o autor não fez prova convincente dessa celebração; o tribunal ficciona que o contrato não foi celebrado e, nessa base, profere uma decisão absolutória do réu (---)»
Assim, sendo alegado pelo maior acompanhado/apelante que se encontrava na posse plena das suas capacidades mentais e apto a demonstrar a sua vontade em 2016 e em 2021 (cf. supra), cabia-lhe a prova dessa factualidade nos termos do Artigo 342º, nºs. 3 e 1, do Código Civil. Não tendo logrado fazer essa prova, o tribunal ficciona que se encontra provado o facto contrário e toma-o como fundamento da sua decisão (cf. Luis Filipe Pires de Sousa, Direito Probatório Material Comentado, 3ª ed., p. 14). O que, no caso em apreço, significa que se tem como provado que o apelante não se encontrava na posse plena das suas capacidades mentais e apto a demonstrar a sua vontade em 2016 e em 2021, razão suficiente e necessária da improcedência da apelação.
Caso fosse de aplicar-se o disposto no Artigo 414º do Código de Processo Civil, o resultado final seria o mesmo.
A fundamentação autónoma da condenação em custas só se tornará necessária se existir controvérsia no processo a esse propósito (cf. art.º 154º, nº1, do Código de Processo Civil; Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 303/2010, de 14.7.2010, Vítor Gomes, e 708/2013, de 15.10.2013, Maria João Antunes).
DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em:
a) Recusar aplicar o disposto no Artigo 4º, al. b), da Lei nº 25/2012, de 16.7, na redação da Lei nº 49/2018, de 14.8., com fundamento em inconstitucionalidade material da mesma por violação do princípio da igualdade;
b) Julgar improcedente a apelação, mantendo-se a decisão impugnada de 18.1.2024 que julgou inválida a declaração antecipada de vontade do apelante, formulada em 21.6.2021.
Notifique o Ministério Público, nos termos e para os efeitos dos Artigos 70º, nº 1, al. a), 72º, nº1, al. a) da Lei nº 28/82, de 15.11
Custas pela apelante na vertente de custas de parte (Artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº6 e 663º, nº2, do Código de Processo Civil).

Lisboa, 3.12.2024
Luís Filipe Pires de Sousa
Diogo Ravara
Ana Cristina Maximiano
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[1] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª ed., 2022, p. 186.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., pp. 139-140.
Neste sentido, cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13, de 10.12.2015, Melo Lima, 677/12, de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, de 17.11.2016, Ana Luísa Geraldes, 861/13, de 22.2.2017, Ribeiro Cardoso, 1519/15, de 25.10.2018, Hélder Almeida, 3788/14, de 18.3.2021, Oliveira Abreu, 214/18, de 15.12.2022, Graça Trigo, 125/20, de 11.5.2023, Oliveira Abreu, 26881/15, de 25.5.2023, Sousa Pinto, 1864/21, de 11.7.2023, Jorge  Leal, 331/21, de 11.6.2024, Leonel Serôdio, 7778/21, de 29.10.2024, Pinto Oliveira, 5295/22. O tribunal de recurso não pode conhecer de questões novas sob pena de violação do contraditório e do direito de defesa da parte contrária (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2014, Fonseca Ramos, 971/12).