Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
795/24.6PBOER-B.L1-3
Relator: CRISTINA ALMEIDA E SOUSA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
MEDIDAS CAUTELARES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: Estando indiciada a prática de crimes de violência doméstica, a Lei 112/2009 de 16 de Setembro permite, no seu art.º 31º, a aplicação de certas medidas cautelares, que se incluem no domínio da tutela reforçada às vítimas deste tipo de criminalidade.
Com efeito, o citado art.º 31º da Lei 112/2009 estabelece um conjunto de medidas aptas a acautelar o acréscimo de vulnerabilidade da vítima, de entre as quais se destaca a possibilidade de aplicação de medidas urgentes adequadas a providenciar o afastamento e a proibição de contactos entre o agressor e a vítima, como é o caso da proibição de adquirir, de usar ou da imposição de entregar, de forma imediata, armas ou outros objetos e utensílios que detiver, capazes de facilitar a continuação da atividade criminosa; de sujeição do agressor, mediante consentimento prévio, a frequência de programa para arguidos em crimes no contexto da violência doméstica; de não permanecer na residência onde o crime tenha sido cometido ou onde habite a vítima, assim como a de não contactar com a vítima, com determinadas pessoas ou frequentar certos lugares ou certos meios, medidas estas que são cumuláveis com qualquer uma das medidas de coacção previstas, no CPP, tal como previsto no art.º 31º nº 1 als. a) a d) e nº 3, embora só se possam aplicar, caso se verifique algum dos perigos previstos no art.º 204º do CPP (de fuga, de perturbação do decurso do inquérito, quanto à obtenção e conservação dos meios de prova; de continuação da actividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas) e depois de garantido o efectivo cumprimento dos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade às exigências cautelares de prevenção da revitimização, da obtenção de prova cabal dos factos em investigação e de assegurar a comparência do arguido aos actos processuais.
Entre as medidas de coacção classicamente previstas no CPP, no domínio da violência doméstica, assume particular eficácia a medida de coacção de afastamento e de proibição de contactos ao arguido, nos termos do artigo 200º nº 1, alíneas a) e d), do Código de Processo Penal, para evitar a vitimização secundária da vítima, decorrente da retirada da residência/da família ou da institucionalização em casa abrigo ou, no caso das crianças, em regime de acolhimento residência.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
Por decisão proferida em Primeiro Interrogatório Judicial de arguido detido, realizado em 9 de Maio de 2024, no Juízo de Instrução Criminal de Cascais - Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, no âmbito do inquérito nº 795/24.6PBOER, foram impostas ao arguido AA, as seguintes medidas de coacção:
- TIR, já prestado;
- proibição de contactos com as ofendidas, diretamente ou por interposta pessoa, ou por qualquer meio;
- proibição de permanecer na residência das ofendidas, local de trabalho da ofendida BB e da escola da ofendida CC e de se aproximar das ditas residência, local de trabalho e escola, medidas a serem sujeitas a fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, por tal se mostrar imprescindível para a proteção da vítima BB;
- proibição de adquirir usar ou deter, seja a que titulo for qualquer arma de fogo, - art.ºs 191.º, 193.º, 194.º, 202.º, n.º 1, als. a), d) e e) e 204.º al. b) e c) todos do CPP, e 31º, n.º 1, als. a), c) e d), 35º, n.º 1 e 36º, n.º 7 da Lei 112/2009, de 16/09.
Estas medidas de coacção foram aplicadas, por se mostrar fortemente indiciada a prática, pelo mesmo arguido, em concurso real de infracções de um crime de violência doméstica contra a companheira, BB, p. e p. nos termos do artigo 152º nº 1 al. b), nº 2 al. a), nº 4 e nº 5, do Código Penal, de um crime de violência doméstica contra a filha menor da companheira, CC, p. e p. nos termos do artigo 152º nº 1 al. e), nº 2 al. a), nº 4 e nº 5, do Código Penal e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. nos termos do artigo 86º nº 1 alíneas c) e d) da Lei nº 5/2006 de 08-11, alterada pela Lei n.º 50/2019, de 24 de Julho e por se ter entendido que estavam verificados os perigos de perturbação do decurso do inquérito na vertente de perigo para conservação ou veracidade da prova (art.º 204º al. b) do CPP), uma vez que o arguido poderá vir a pressionar as ofendidas para não prestar ulteriores declarações nos autos ou alterar as declarações já prestadas, de continuação da actividade criminosa e de perturbação grave da ordem e tranquilidades públicas (conforme o citado no art.º 204º al. c), parte final do CPP).
O arguido AA interpôs recurso desta decisão, tendo, para o efeito, apresentado as seguintes conclusões:
1. No momento da aplicação da medida de coação, o acervo probatório não permite determinar, com segurança, as circunstâncias em que o facto imputado ao arguido ocorreu, se ocorreu e como ocorreu.
2. A prova junta aos autos, mormente os autos de inquirição da ofendida BB permitem imputar ao arguido uma única conduta praticada em 01.05.2024, ainda que sem qualquer suporte probatório além da versão da ofendida.
3. O arguido negou os factos e apresentou uma versão distinta e com suporte probatório desde 22.05.2024.
4. Partindo do artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (doravante “CRP”), todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação.
5. Está provado que o arguido reside actualmente e desde 10.05.2024 a cerca de 381,9Km de Oeiras e a cerca de 361,6Km, onde, alegadamente, a ofendida e ofendida menor residem (cfr. Auto de inquirição de testemunha n.º 1).
6. As imputações conclusivas, genéricas, abrangentes e difusas, sem qualquer especificação das condutas em que se concretizou o mau trato físico e/ou psíquico, com menção do tempo e lugar em que tal aconteceu, por não serem passíveis de um efectivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado, devem ter-se como não escritas, não podendo servir de suporte à qualificação da conduta do agente, cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo 304/20.6PAVLG.P1, de 24.11.2021, relator João Pedro Pereira Cardoso.
7. Em dois anos a ofendida imputa uma única conduta criminosa ao arguido, como aliás refere no auto de inquirição de testemunha n.º 2, na página 1 e no auto de inquirição n.º 1.
8. O caso vertente é este: ao arguido é imputada uma única conduta, num único dia determinado, e da qual não é provocada qualquer agressão resultando ferimentos físicos objetivos e de 5 dias de afetação como no caso do aresto comparativo referido nas motivações de recurso.
9. O JIC desconsidera a versão apresentada no auto de notícia por detenção onde a ofendida BB refere que há 3 meses a esta parte tem andado com um comportamento fora do normal, o arguido, sem nunca referir agressões passadas, ao contrário da indiciação que vem a imputar no despacho recorrido.
10. O JIC considera indiciados factos no despacho recorrido sem qualquer base de sustentação probatória, designadamente prova documental e pericial, sendo que, entre a alegada agressão em 01.05.2024 e o dia 08.05.2024 haveria tempo para documentar as agressões denunciadas o que não ocorreu.
11. O arguido está munido da necessária licença para adquirir todos os objetos apreendidos tendo justificado a posse dos mesmos, tendo a ofendida garantido que estavam todos devidamente acondicionados, nunca tendo usado armas para com a ofendida, estando licenciado para aquisição de armas e munições, como consta da abundante prova documental junta.
12. A apreensão deve ser levantada e todas as armas licitamente detidas e adquiridas pelo arguido, incluindo munições, devem a este ser devolvidas.
13. As medidas impostas ao arguido violam o artigo 193.º do CPP.
14. Em função da residência da arguida declarada nos autos, desde os autos de inquirição e autos de notícia, da residência do arguido, a mais de 300 km de distância, da ausência de fortes indícios, da não verificação de fatos que permitam imputar ao arguido os crimes de que vem acusado, devem as medidas de coação serem alteradas para o TIR (a prestar na residência atual do arguido) e proibição de contactos com as ofendidas, sem imposição de quaisquer medidas adicionais.
Admitido o recurso, o Mº. Pº. apresentou resposta, na qual concluiu pela improcedência do recurso e consequente confirmação integral da decisão recorrida, assente nas seguintes conclusões:
1 - Por douto despacho proferido em 09.05.2024 (ref.ª 150905109) foi aplicado ao arguido/recorrente AA as medidas de coação, para além do TIR, - proibição de contactos com as ofendidas, diretamente ou por interposta pessoa, ou por qualquer meio; - proibição de permanecer na residência das ofendidas, local de trabalho da ofendida BB e da escola da ofendida CC e de se aproximar das ditas residência, local de trabalho e escola, medidas a serem sujeitas a fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, por tal se mostrar imprescindível para a proteção da vítima BB; - proibição de adquirir usar ou deter, seja a que titulo for qualquer arma de fogo, — arts. 191º, 193º, 194º, 202º, nº 1, als. a), d) e e) e 204º al. b) e c) todos do CPP, e 31º, n.º 1, als. a), c) e d), 35º, n.º 1 e 36º, n.º 7 da Lei 112/2009, de 16/09.
2 - Por se encontrar indiciado da prática, como autor material, na forma consumada e em concurso efectivo:
a) um crime de violência doméstica contra a companheira, BB, previsto e punido nos termos do artigo 152º nº l al. , nº 2 al. a), nº 4 e nº 5, do Código Pena, b) um crime de violência doméstica contra a filha menor da companheira, CC, previsto e punido nos termos do artigo 152º nº l al. e), nº 2 al. a), nº 4 e nº 5, do Código Penal, e c) um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido nos termos do artigo 86º nº l alíneas c) e d) da Lei nº 5/2006 de 08-11, alterada pela Lei n.º 50/2019, de 24 de Julho.
3 - Entende que o acervo provatório não permite determinar, com segurança, as circunstâncias em que o facto que lhe é imputado ocorreu, se ocorreu e como ocorreu.
4 - Por outro lado, encontrando-se munido de licença para adquirir todos os objectos apreendidos tendo justificado a posse dos mesmos, tendo a ofendida garantido que estavam todos devidamente acondicionados, nunca tendo usado armas para com a ofendida, estando licenciado para aquisição de armas e munições, como consta da abundante prova documental junta, pelo que, as apreensões devem ser levantadas e todas as armas licitamente detidas e adquiridas pelo arguido, incluindo munições, devem a este ser devolvidas.
5- Demais, deverão ser alteradas as medidas de coação impostas para o TIR e proibição de contactos com as ofendidas sem imposição de quaisquer medidas.
6 - Conforme resulta da decisão recorrida os factos ali dados como indiciados resultam dos seguintes elementos probatórios: Auto de notícia de fls. 2 a 7, Auto de inquirição da vítima, BB, de fls. 28 e 84, Auto de notícia por detenção de fls. 32 a 41, Termo de autorização de busca a viatura de fls. 46, Termo de autorização de busca domiciliária de fls. 47, pelo que, contrariamente à versão ora apresentada, estes mantém, sustentação probatória.
7 - A existência de (...) indícios não significa a exigência de uma comprovação categórica e sem dúvida razoável, portanto, da formação do grau de convicção exigível para a condenação, antes impõe que os elementos de prova disponíveis no momento da aplicação da medida, suportem a convicção, objetivável, de ser maior a probabilidade de futura condenação do arguido, do que a da sua absolvição.
8 - Numa outra formulação, os indícios serão, para este efeito, suficientes, quando deles seja possível inferir como altamente provável a futura condenação do arguido ou, pelo menos, como mais provável, a condenação do que a absolvição ou, ainda, quando impliquem a existência de uma base factual consistente que permita seriamente inferir a possibilidade da condenação.
9 - Ora, a prova já recolhida, permite, do nosso ponto de vista, alicerçar a forte suspeita da prática dos crimes em investigação por parte do arguido/recorrente, e sob as quais, foram-lhe aplicadas as referidas medidas de coação.
10 - Dos factos indiciados resulta que o arguido/recorrente tem vindo a agredir fisicamente ambas as ofendidas durante a coabitação e ainda a injuriar repetidamente a ofendida BB.
11 - Prevê o art.º 107 nº 1 al. b) da Lei nº 5/2006 de 23/02 (RJAM) que “O agente ou autoridade policial procede à apreensão da ou das armas de fogo, munições e respetivas licenças e manifestos, emitindo documento de apreensão com a descrição da ou das armas, munições e documentação, quando: b) Houver indícios da prática pelo suspeito de crime de maus tratos a cônjuge, a quem com ele viva em condições análogas às dos cônjuges, a progenitor de descendente comum em l.º grau, aos filhos, a pessoa menor ou particularmente indefesa em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez e que esteja a seu cuidado, à sua guarda ou sob a sua responsabilidade de direção ou educação e, perante a queixa, denúncia ou a constatação de flagrante, verificarem probabilidade na sua utilização”.
12 - No caso concreto, as armas foram apreendidas ao arguido/recorrente não sequência de busca domiciliária ao abrigo da referida norma, por fundadas suspeitas que tivessem sido utilizadas na prática do crime de violência doméstica em investigação, ou que fosse provável que viessem a ser utilizadas contra as ofendidas.
13 - Por outro lado, encontra-se fortemente indiciado pela prática do crime de detenção de arma proibida, guardando tais armas na sua habitação, impondo-se, assim cuidados acrescidos de prevenção.
14 - Os factos pelos quais se encontra indiciado assumem gravidade, porquanto não se coibiu de praticar maus tratos à ofendida BB na presença de outras pessoas, como seja, a sua filha menor, ela também ofendida nestes autos, refletindo uma personalidade agressiva e violenta, não se coibindo de, perante uma situação de conflito recorrer ao uso da força física, quer perante (à altura dos factos) sua companheira quer ainda perante a sua filha menor de idade, podendo de igual modo, tendo ao seu dispor armas de fogo, recorrer a estas, impondo-se por isso, que cautelarmente se impossibilite o arguido/recorrente de as usar.
15 - Uma medida de coação é idónea ou adequada se com a sua aplicação se realiza ou facilita a realização do fim pretendido, que será o perigo com a mesma se pretende acautelar.
16 - O princípio de proporcionalidade impõe que a medida de coação a aplicar apresente proporcionalidade à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
17 - O perigo de continuação da atividade criminosa decorrerá de um juízo de prognose de perigosidade social do agente, a efetuar a partir de circunstâncias anteriores ou contemporâneas à conduta que se encontra indiciada e sempre relacionada com esta.
18 - Por sua vez, no que se refere à perturbação, esta condição - que deve igualmente ser concretizada - tem em vista a salvaguarda futura da paz social, que foi afectada com a conduta criminosa revelada pela recorrente considerando que tem potencialidades, objectivas (natureza e circunstâncias) ou subjectivas (personalidade), para continuar a alarmar ou mesmo para manter essa actividade delituosa.
19 - Diga-se que tal juízo de perigosidade social deverá estar sempre conexionado com a existência dessa conduta ilícita e não com quaisquer preocupações genéricas de defesa social, que sejam jurídico-penalmente neutras.
20 - O perigo de continuação da actividade criminosa há-de resultar das circunstâncias do crime imputado ao arguido ou da sua personalidade. Atentas as circunstâncias do crime ou a personalidade do arguido pode ser de recear a continuação da actividade criminosa, o que importa evitar e a lei permite que para tal sejam aplicadas medidas de coacção. Assim, por ex., se atentas as circunstâncias do crime e a personalidade do arguido for de presumir a continuação da actividade criminosa pode justificar-se a prisão preventiva.
21 - A aplicação de uma medida de coacção não pode servir para acautelar a prática de qualquer crime pelo arguido, mas tão-só a continuação da actividade criminosa pela qual o arguido está indiciado. É que nem a lei substantiva permite aplicação de medidas de segurança a qualquer pessoa com o fim de prevenir a sua eventual actividade criminosa, mas apenas medidas cautelares para prevenir a continuação da actividade criminosa pela qual o arguido está já indiciado”.
22 - Em termos gerais, as medidas de coacção, devem ser adequadas às exigências cautelares que o caso requer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas - sem que tal co-envolva ou implique qualquer violação do princípio constitucional da presunção da inocência, previsto no artigo 32º/2 da CRP, pois que estamos perante dimensões e implicações processuais distintas, tendo-se o seu conteúdo adequado e significante — que em última análise, poderia conduzir à proibição de antecipação de medidas de investigação e cautelares e mesmo de suspeitas sobre a culpabilidade - de resto, ao tradicional princípio in dúbio pro reo.
23 - O arguido/recorrente veio alegar que desde 10.05.2024 reside a cerca de 381,9Km de Oeiras e a cerca de 361,6Km, onde, alegadamente, a ofendida e ofendida menor residem.
24 - O facto do arguido/recorrente ter alterado a sua residência, por si só, não é impeditivo que volte a cometer os crimes aqui em causa.
25 - Conhecendo o local onde residem as vítimas bem como as suas rotinas e o local de trabalho da sua companheira, poderá procurá-las, exercendo sob estas pressões para que alterem depoimentos, ou vir a perpetuar sob estas violência física como resulta fortes indícios que o fez em diversas ocasiões.
26 - Impondo-se que seja judicialmente (como foi) impostas as medidas de coação de proibição de permanecer na residência das ofendidas, local de trabalho da ofendida BB e da escola da ofendida CC e de se aproximar das ditas residência, local de trabalho e escola, sujeitas a fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, por tal se mostrar imprescindível para a proteção da vítima BB.
27 - E apenas com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância é possível aferir pelo cumprimento desta medida.
28 - Ademais, os factos pelos quais o arguido/recorrente encontra-se indiciado são igualmente geradores de grande insegurança social, verificando-se também um sério perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidades públicas.
29 - Neste tipo de criminalidade, as pressões sobre as vítimas para alterarem em julgamento os depoimentos que prestaram nos autos e o condicionamento de eventuais testemunhas para não deporem contra si são uma realidade a considerar no exercício da ação penal mesmo numa fase embrionária do processo como é aquela que nos encontramos.
30 - Assim, para obstar que o arguido/recorrente venha a persistir na prática de crime de natureza análoga àquele que se encontra em investigação e como forma de o dissuadir dessa eventual prática, corroboramos que será a única medida adequada, necessária e proporcional.
31 - O arguido/recorrente não trouxe aos autos quaisquer factos novos que permitam concluir pela diminuição das exigências cautelares que determinaram a aplicação das referidas medidas de coação em causa.
32 - Entendemos que as medidas de coação aplicadas ao arguido AA se mostram necessárias e proporcionais ao caso corneto, sendo adequada à remoção dos perigos mencionados, defendemos ser irrepreensível o despacho recorrido o qual deve ser mantido, nos seus precisos termos, não tendo violado qualquer norma jurídica, não merecendo o Recurso apresentado procedência”.
Remetido o processo a este Tribunal, na vista a que se refere o art.º 416º do CPP, a Exma. Sra. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer, subscrevendo «na íntegra a posição do Ministério Público em 1ª. Instância, atenta a completude, pertinência, correção jurídica e clareza da sua fundamentação, a realçar, com profundidade e total acerto, todos os fundamentos de facto e de direito determinantes do entendimento de que não deve ser procedente o recurso, aqui sopesando não só a reiteração no próprio dia 8-5-2024 da prática de atos suscetíveis de integrar o crime de violência doméstica, como a manifesta corroboração que os autos de notícia e de busca apresentam relativamente a alguns dos factos considerados fortemente indiciados.»
Cumprido o disposto no art.º 417º nº 2 do CPP, não houve resposta.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, nos termos e para os efeitos previstos nos arts. 418º e 419º nº 3 al. c) do CPP, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
2.1. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E IDENTIFICAÇÃO DAS QUESTÕES A DECIDIR:
De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem o recorrente, nos termos dos arts. 379º nº 2 e 410º nº 3 do CPP e dos vícios previstos no art.º 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995 e o AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005).
Umas e outras definem, pois, o objecto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061).
Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º por remissão do art.º 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art.º 412º do CPP, a que se seguem os vícios enumerados no art.º 410º nº 2 do mesmo diploma;
Finalmente, as questões relativas à matéria de Direito.
De acordo com este iter sequencial, no confronto com as conclusões, as questões a decidir são as seguintes:
Ausência de indícios da prática dos crimes de violência doméstica e de detenção de arma proibida;
Violação do art.º 193º do CPP;
Inexistência de pressupostos, concretamente dos perigos de perturbação do decurso do inquérito e para a conservação da prova e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas determinantes da aplicação das medidas de coacção aplicadas e se o arguido deverá aguardar os ulteriores termos do processo apenas sujeito ao TIR (a prestar na residência atual do arguido) e proibição de contactos com as ofendidas, sem imposição de quaisquer medidas adicionais.
2. 2. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Antes da apreciação do mérito do recurso, importa considerar a seguinte factualidade:
Por decisão proferida em Primeiro Interrogatório Judicial de arguido detido, realizado em 9 de Maio de 2024, no Juízo de Instrução Criminal de Cascais - Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, no âmbito do inquérito nº 795/24.6PBOER-B.L1, foram impostas ao arguido AA, as seguintes medidas de coacção:
- TIR, já prestado;
- proibição de contactos com as ofendidas, diretamente ou por interposta pessoa, ou por qualquer meio;
- proibição de permanecer na residência das ofendidas, local de trabalho da ofendida BB e da escola da ofendida CC e de se aproximar das ditas residência, local de trabalho e escola, medidas a serem sujeitas a fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, por tal se mostrar imprescindível para a proteção da vítima BB;
- proibição de adquirir usar ou deter, seja a que titulo for qualquer arma de fogo, - art.ºs 191.º, 193.º, 194.º, 202.º, n.º 1, als. a), d) e e) e 204.º al. b) e c) todos do CPP, e 31º, n.º 1, als. a), c) e d), 35º, n.º 1 e 36º, n.º 7 da Lei 112/2009, de 16/09 (Auto de Primeiro Interrogatório Judicial de Arguido Detido realizado em 9 de Maio de 2024, com a referência Citius 150905109);
Estas medidas de coacção foram aplicadas, por se mostrar fortemente indiciada a prática, pelo mesmo arguido, em concurso real de infracções de um crime de violência doméstica contra a companheira, BB, p. e p. nos termos do artigo 152º nº 1 al. b), nº 2 al. a), nº 4 e nº5, do Código Penal, de um crime de violência doméstica contra a filha menor da companheira, CC, p. e p. nos termos do artigo 152º nº 1 al. e), nº 2 al. a), nº 4 e nº 5, do Código Penal e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. nos termos do artigo 86º nº 1 alíneas c) e d) da Lei nº 5/2006 de 08-11, alterada pela Lei n.º 50/2019, de 24 de Julho e por se ter entendido que estavam verificados os perigos de perturbação do decurso do inquérito na vertente de perigo para conservação ou veracidade da prova (art.º 204º al. b) do CPP), uma vez que o arguido poderá vir a pressionar as ofendidas para não prestar ulteriores declarações nos autos ou alterar as declarações já prestadas, de continuação da actividade criminosa e de perturbação grave da ordem e tranquilidades públicas (conforme o citado no art.º 204º al. c), parte final do CPP) (Auto de Primeiro Interrogatório Judicial de Arguido Detido realizado em 9 de Maio de 2024, com a referência Citius 150905109);
Para este efeito, o JIC considerou fortemente indiciada a seguinte factualidade:
1- O arguido, AA, e BB, começaram um relacionamento de namoro, sem coabitação, há cerca de quatro anos, em meados de 2020, mantendo a vítima a sua residência, e o arguido a sua habitação na Avenida das Descobertas, lote 51, em Oeiras.
2- Há cerca de dois anos, em meados de 2022, o arguido e a ofendida começaram a viver juntos como marido e mulher, na morada sita na Avenida …, nº …, R/C …, em Oeiras.
3- Com o arguido e a vítima residia também a filha desta, também ofendida nos autos, CC, nascida em 08-11-2012, de 11 anos de idade.
4- BB dependia economicamente do arguido e este usava esse factor para discutir com ela e humilhá-la com as expressões “louca, maluca, a culpa de estarmos a discutir é tua, nem licenciada és, andas a limpar o cu aos velhos”, deixando-a triste de ser assim tratada em frente à filha.
5- Para além de a denegrir, no decurso de algumas discussões o arguido também agredia a companheira com empurrões, dentro de casa e em frente à menor.
6- No dia 1 de Maio de 2024, na residência do casal, quando o arguido acordou, BB perguntou-lhe sobre a razão de a televisão não estar a funcionar, tendo o arguido retorquido em tom agressivo “mas custa-te muito levantar o cu do sofá?”, começando imediatamente a discutir com ela.
7- Quando BB lhe pediu novamente para resolver o problema da televisão, o arguido puxou-a para dentro da cozinha, empurrou-a contra uma bancada e apertou-lhe o pescoço com as duas mãos, estrangulando-a enquanto lhe gritava “és um cancro na minha vida, vai-te embora”.
8- De seguida, o arguido tirou os óculos à companheira e pegou uma embalagem de gás pimenta que tinha no bolso para a atingir com esse gás nos olhos, altura em que entra a filha da vítima na cozinha e vê a mãe a ser agredida.
9- Nesse momento, o arguido larga a companheira, e começou a agredir a menor, CC, com bofetadas na cara, agarrou-a pelo braço e atirou-a contra a parede da cozinha, enquanto lhe gritava “SAI DAQUI”.
10- Alertados pelo barulho, os vizinhos do casal chamaram a polícia ao local, tendo nesse momento o arguido parado de agredir a companheira e a filha.
11- Aproveitando esse facto, BB saiu com a filha de casa, pediu a umas vizinhas para tomarem conta dela, e foi-se embora para não estar com o arguido.
12- Ainda nesse dia 01-05-2024, pela tarde, quando BB regressou a casa para recolher alguns dos seus pertences, deparou-se novamente com o arguido à sua espera no hall de entrada do prédio, o qual imediatamente a agrediu de novo, estrangulando-a com ambas as mãos, apertando-lhe o pescoço contra a parede.
13- De seguida, o arguido pegou novamente na embalagem de gás pimenta que tinha consigo e aspergiu o gás contra o rosto da companheira, causando-lhe muitas dores nos olhos e a perda temporária da vista.
14- Alertados pelos gritos de BB, ao ser atingida com o gás pimenta, surgiram no local dois rapazes não identificados, que obrigaram o arguido a cessar com as agressões contra a companheira.
15- A polícia foi novamente chamada ao local, mas deparou-se com o arguido magoado pelos rapazes que intervieram em defesa da ofendida e, assumindo que AA era ofendido, transportaram-no ao hospital.
16- Depois deste episódio de 01-05-2024, BB abandonou definitivamente a casa do arguido com a filha, CC, buscando refúgio em casa de uma amiga.
17- Contudo, nos dias que se seguiram, nomeadamente no dia 05 de Maio de 2024, BB tentou regressar à casa, onde viveu os últimos dois anos com a filha, mas o arguido trocara a fechadura e impediu-lhe o acesso à casa, impedindo-a de reaver os seus pertences e da sua filha, incluindo a medicação desta última.
18 - A vítima ainda contactou o arguido, por intermédio de uma amiga, para que o mesmo lhe devolvesse os seus bens e a medicação da filha, mas o arguido recusou, mantendo BB e a filha privada dos seus bens pessoais.
19 - Ao praticar os factos supra descritos, insultando e ameaçando a companheira, BB, no interior da sua habitação em Oeiras, agredindo-a em frente à filha menor da mesma, estrangulando-a e atingindo-a com gás pimenta na vista, o arguido agiu com o propósito conseguido de denegrir, intimidar, atormentar e molestar a saúde física e mental da sua companheira, com desprezo pela sua dignidade pessoal, o que conseguiu realizar.
20- Ao praticar os factos supra descritos, agredindo a sua enteada menor, CC, de 11 anos, desferindo-lhe chapadas, empurrando-a contra a parede, o arguido agiu com o propósito conseguido de agredir, intimidar, atormentar e molestar a saúde física e mental da filha menor da sua companheira que consigo coabitava, e de afectar o seu desenvolvimento psicológico e o seu crescimento, com desprezo pela sua dignidade pessoal, o que conseguiu realizar.
21- No dia 08-05-2024 pelas 13:00, foi realizada busca à habitação do arguido, na Avenida …, nº …, R/C …, em Oeiras, onde foram encontradas e apreendidas as seguintes armas e munições:
a) Uma carabina de calibre 6.5 Creedmoor, no corredor, dentro de um cofre;
b) Uma pistola de calibre 9 mm, no corredor, dentro de um cofre;
c) Um kit de montagem de aparelho de pontaria telescópica, num armário junto ao cofre;
d) Uma mira telescópica de cor preta, num armário junto ao cofre;
e) Um punho para carabina, num armário junto ao cofre;
f) Uma caixa contendo 20 munições de calibre 6.5 Creedmoor, no interior de um saco junto ao cofre;
g) Uma caixa com 2 pontas de caça para arco e flecha, no interior de um saco junto ao cofre;
h) Uma caixa contendo 20 munições de calibre .308 Winchester, no interior de um saco junto ao cofre;
i) Um saco de transporte de cor preta, contendo no seu interior, um arco, 12 flechas, 1 funda para flechas, 3 pontas de caça, 1 stick de camuflagem e 1 stick de lubrificante para armas, bem como diversos acessórios alusivos ao arco, na varanda do quarto;
j) Uma prensa para recarga de munições de cor vermelha, na varanda do quarto;
k) Um saco de transporte de cor verde, contendo no seu interior uma besta, 4 virotões na respetiva funda, dois acessórios camuflados e 1 fio tensor, na varanda do quarto;
l) Cinco carregadores para munições de calibre 9 mm, da marca CZ, na varanda do quarto;
m) Um municiador de carregadores, na varanda do quarto;
n) Um estojo contendo óculos de atirador e respectivas lentes, de marca Wiley X, na varanda do quarto;
o) Um cinturão com 4 porta carregadores, próprios para a prática de tiro desportivo (modalidade de IPSC), na varanda do quarto;
p) Um estojo com 9 virotões para besta, na varanda do quarto;
q) Um estojo com 2 facas de caça, uma com 26 cm de comprimento total e 13 cm de comprimento de lâmina, outra com 30 cm de comprimento total e 15 cm comprimento de lâmina e respetivo afiador, na varanda do quarto;
r) Um saco plástico contendo 305 projéteis de munição de calibre 9 mm, na varanda do quarto;
s) Três caixas de fulminantes de marca Fiocchi e duas varetas para prensa de recarga de fulminantes, na varanda do quarto;
t) Um engenho para recarga de munições (artigo que devido à sua dimensão e montagem ficou no local, sendo o visado nomeado com seu fiel depositário), na varanda do quarto;
u) Um aparelho de limpeza e polimento de invólucros (artigo que devido à sua dimensão e montagem ficou no local, sendo o visado nomeado com seu fiel depositário), na varanda do quarto;
v) Uma caixa em plástico contendo 78 munições de calibre 9 mm, e 1 também de calibre 9 mm, com projétil revestido em cera de cor verde, na varanda do quarto;
w) Um chassis de carabina composto por grupo do punho e coronha, na varanda do quarto;
x) Três quilos de pólvora separado por 3 embalagem de 1 Kg cada, na varanda do quarto;
y) Uma caixa transparente em plástico, contendo cerca de 70 Kg de invólucros deflagrados, na varanda do quarto;
z) Uma prensa manual para recarga de fulminantes e acessórios, na varanda do quarto;
aa) Uma caixa de plástico contendo 3 pontas para flecha ou virotão, na varanda do quarto;
ab) Um saco de plástico contendo 4 pontas para flecha ou virotão, na varanda do quarto;
ac) Uma ponta de flecha ou virotão, na varanda do quarto;
ad) 18 munições de salva de calibre 5.56 x 45 mm, dentro de uma caixa de cartão no quarto;
ae) 22 munições de salva de calibre 7.62 x 51 mm, dentro de uma caixa de cartão no quarto;
af) 7 munições de calibre 7.62 x 39 mm, dentro de uma caixa de cartão no quarto;
ag)7 munições de calibre 7.62 x 51 mm, dentro de uma caixa de cartão no quarto;
ah)1 munição de calibre 7.65 mm, dentro de uma caixa de cartão no quarto;
ai) 1 munição de calibre 9 mm browning, dentro de uma caixa de cartão no quarto;
aj) 1 munição de calibre 9 x 19 mm, dentro de uma caixa de cartão no quarto;
ak)1 munição de calibre .32, dentro de uma caixa de cartão no quarto;
al) 1 munição de calibre .38 special, dentro de uma caixa de cartão no quarto;
am) 1 munição de calibre .45 ACP, dentro de uma caixa de cartão no quarto;
an) 1 munição de calibre .38 super, dentro de uma caixa de cartão no quarto;
ao) 1 munição de calibre .357 magnum, dentro de uma caixa de cartão no quarto;
ap) 1 munição de calibre .22, dentro de uma caixa de cartão no quarto;
aq) 6 munições de calibre .22 LR, dentro de uma caixa de cartão no quarto;
ar) 1 munição de alarme de calibres 8mm, dentro de uma caixa de cartão no quarto;
as) 2 munições de calibre 12.7 x 99 mm (. 50) [exclusivo para uso militar], dentro de uma caixa de cartão no quarto;
at) 1 munição de calibre 20 mm [uso exclusivo militar], dentro de uma caixa de cartão no quarto;
au) 1 granada de lança granadas deflagrada de calibre 40 mm [uso exclusivo militar], dentro de uma caixa de cartão no quarto;
av) 16 munições de calibre 5.56 x 45 mm, dentro de uma caixa de cartão no quarto;
aw) 2 invólucros deflagrados de calibre 12.7 x 99 mm (. 50), dentro de uma caixa de cartão no quarto;
ax) 3 invólucros deflagrados de calibre 30-06 Springfield, dentro de uma caixa de cartão no quarto;
ay) 1 invólucro deflagrado de calibre .300 winchester, dentro de uma caixa de cartão no quarto;
az) 2 invólucros deflagrados de calibre 5.56 x 45 mm, dentro de uma caixa de cartão no quarto;
ba) 1 invólucro deflagrado de calibre 7.62 x 39 mm, dentro de uma caixa de cartão no quarto;
bb) 1 cartucho deflagrado de calibre 12 gauge, dentro de uma caixa de cartão no quarto;
bc) 2 invólucros deflagrados de calibre .45 ACP, dentro de uma caixa de cartão no quarto;
bd) 11 invólucros deflagrados de calibre .40 SW, dentro de uma caixa de cartão no quarto;
be) 3 invólucros deflagrados de calibre 9 mm, dentro de uma caixa de cartão no quarto;
bf) 1 invólucro deflagrado de calibre .32, dentro de uma caixa de cartão no quarto;
bg) 3 invólucros deflagrados de calibre 7.65, dentro de uma caixa de cartão no quarto;
bh)7 cavilhas próprias para granada de mão, dentro de uma caixa de cartão no quarto;
bi) 1 invólucro deflagrado de calibre .308 winchester, dentro de uma caixa de cartão no quarto.
22 - No dia 08-05-2024 pelas 13:00, foi realizada busca ao automóvel do arguido, um Toyota Auris com a matrícula ..-RD-.., que circulava na Avenida de Moçambique em Oeiras, conduzido pelo arguido, que foi revistado pela polícia, sendo encontrada na sua posse, acondicionada junto ao cinto das calças, a embalagem de gás pimenta que o arguido usara dias antes para agredir a companheira, um aerossol de defesa de marca Curds Police, FOG, e o respectivo suporte, arma que foi imediatamente apreendida.
23 - O arguido não tem licença de uso e porte de arma que o habilite a deter muitas das armas e munições supra descritas, nomeadamente as armas e munições de uso exclusivo militar (uma granada e várias munições, por exemplo).
24 - O arguido não tinha qualquer uso definido para as duas armas brancas apreendidas (duas facas com lâminas de 13 cm e de 15 cm de comprimento), armas que apenas poderiam ser usadas como instrumento de agressão, nada justificando a sua posse.
25 - O arguido sabia que não podia deter ou utilizar esses tipos de arma, por tal ser proibido por lei e penalmente punido, não obstante, ao deter todas as armas e munições apreendias, agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
26 - Em toda a actuação supra descrita, o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei (Auto de Primeiro Interrogatório Judicial de Arguido Detido realizado em 9 de Maio de 2024, com a referência Citius 150905109);
Esta indiciação sustentou-se nos seguintes meios de prova:
Os factos enunciados resultam dos seguintes elementos probatórios:
Auto de notícia de fls. 2 a 7,
Auto de inquirição da vítima, BB, de fls. 28 e 84,
Auto de notícia por detenção de fls. 32 a 41,
Termo de autorização de busca a viatura de fls. 46,
Termo de autorização de busca domiciliária de fls. 47,
Auto de busca à viatura e de apreensão do Gás Pimenta de fls. 48 a 49,
Auto de busca domiciliária de apreensão do armamento de fls. 50 a 53,
Reportagem fotográfica relativa à busca domiciliária realizada de fls. 54 a 80,
Informação da PSP relativa à habilitação do arguido para detenção de armas de fls. 91,
Reportagem fotográfica relativa à busca à viatura automóvel do arguido de fls. 92 a 99,
Certificado de Registo Criminal de fls. 103 (Auto de Primeiro Interrogatório Judicial de Arguido Detido realizado em 9 de Maio de 2024, com a referência Citius 150905109);
A decisão recorrida discorreu assim, sobre a qualificação jurídica dos indícios, acerca dos perigos previstos no art.º 204º do CPP e sobre as medidas de coacção:
Tal factualidade é susceptível de integrar a prática por parte do arguido, como autor material, na forma consumada e em concurso efectivo:
a) um crime de violência doméstica contra a companheira, BB, previsto e punido nos termos do artigo 152º nº1 al. b), nº 2 al. a), nº4 e nº5, do Código Penal.
b) um crime de violência doméstica contra a filha menor da companheira, CC, previsto e punido nos termos do artigo 152º nº 1 al. e), nº 2 al. a), nº 4 e nº 5, do Código Penal.
c) um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido nos termos do artigo 86º nº 1 alíneas c) e d) da Lei nº 5/2006 de 08-11, alterada pela Lei n.º 50/2019, de 24 de Julho.
O arguido prestou declarações, negando ter cometido os factos que lhe são imputados, referindo, nomeadamente, que nunca agrediu fisicamente nenhuma das ofendidas nem insultou a companheira com os nomes referidos no requerimento em apreço e também nunca atirou gás pimenta contra a mesma.
Perguntado porque razão a ofendida BB veio invocar os factos dos autos, respondeu que se trata de uma vingança da mesma porque sabe que ele quer concorrer para a polícia judiciária e, portanto, quer destruir a sua vida, dado que é uma pessoa muito possessiva e ciumenta.
Quanto às armas e munições encontradas em sua casa há algumas que não reconhece, nomeadamente munições e acha que foi a BB que as deixou em sua casa para o incriminar.
Referiu ainda o arguido que ele próprio já foi vítima de violência doméstica por parte da BB que foi vista a por umas pessoas a agredi-lo em abril de 2023 e nessa sequência essas pessoas apresentaram queixa por violência doméstica contra a referida BB.
Constam dos autos duas versões opostas quanto aos factos, sendo imperioso a realização de mais diligências de investigação.
No entanto, em face dos elementos probatórios constantes dos autos com relevo para o exarado pela entidade policial nos autos de notícia, autos de busca domiciliária e à viatura do arguido, informação da PSP relativa à habilitação do arguido para detenção de armas, bem como o depoimento circunstanciado e detalhado prestado pela ofendida BB, julgo fortemente indiciados os factos que são imputados ao arguido.
Dos factos indiciados resulta ainda que o arguido tem vindo a agredir fisicamente ambas as ofendidas durante a coabitação e ainda a injuriar repetidamente a ofendida BB.
Assim sendo, considero verificado um concreto e sério perigo de continuação da atividade criminosa (art.º 204 º al. c) do CPP).
No caso dos autos, existe ainda um sério perigo de perturbação do decurso do inquérito na vertente de perigo para conservação ou veracidade da prova (art.º 204, al. b) do CPP), uma vez que o arguido poderá vir a pressionar as ofendidas para não prestar ulteriores declarações nos autos ou alterar as declarações já prestadas.
Os factos praticados pelo arguido assumem gravidade, porquanto o mesmo não se coibiu de praticar maus tratos à ofendida BB na presença de outras pessoas, como seja, a sua filha menor, ela também ofendida nestes autos.
Tais factos são igualmente geradores de grande insegurança social, verificando-se um sério perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidades públicas (conforme o citado no art.º 204. al. c), parte final do CPP).
Porém, considerando que o arguido se encontra inserido quer a nível profissional quer a nível social, entendemos que a aplicação ao mesmo de medida não privativa de liberdade satisfaz as exigências cautelares que o caso requer.
Assim sendo, deverá o arguido aguardar os ulteriores termos do processo, sujeito às seguintes medidas que se entender serem necessárias, adequadas e proporcionais ao caso concreto:
- TIR, já prestado;
- proibição de contactos com as ofendidas, diretamente ou por interposta pessoa, ou por qualquer meio;
- proibição de permanecer na residência das ofendidas, local de trabalho da ofendida BB e da escola da ofendida CC e de se aproximar das ditas residência, local de trabalho e escola, medidas a serem sujeitas a fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, por tal se mostrar imprescindível para a proteção da vítima BB;
- proibição de adquirir usar ou deter, seja a que titulo for qualquer arma de fogo, – art.ºs 191.º, 193.º, 194.º, 202.º, n.º 1, als. a), d) e e) e 204.º al. b) e c) todos do CPP, e 31º, n.º 1, als. a), c) e d), 35º, n.º 1 e 36º, n.º 7 da Lei 112/2009, de 16/09.
Notifique.
Solicite à DGRSP a informação a que alude o art.º 35º, n.º 4 da Lei n.º 112/2009, 16/09 e bem assim o recolher do consentimento da vítima nos termos do n.º 5 do art.º 36º da mesma Lei.
Dê conhecimento da medida ora imposta às vítimas.
Comunique à direção nacional da PSP para os fins tidos por convenientes.
Restitua o arguido à liberdade.
2.3. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
Quanto à primeira questão:
Sendo a ocorrência de indícios da prática de um crime uma condição «sine qua non» da aplicação de todas as medidas de coacção, para além do TIR previsto no art.º 196º do CPP, com uma especial intensidade, quanto se trate da aplicação das medidas de coacção de proibição ou imposição de condutas, de obrigação de permanência na habitação e de prisão preventiva, por efeito do disposto nos arts. 200º nº 1, 201º nº 1 e 202º nº 1 do CPP, respectivamente, importa sublinhar que indícios são vestígios, sinais ou presunções, indicações ou circunstâncias e, em geral, todos os factos conhecidos e devidamente comprovados, susceptíveis de levar, por via da inferência, ao conhecimento de outro facto desconhecido.
O indício constitui a premissa menor do silogismo que, associado a um princípio empírico ou a uma regra da experiência, ou a um dado de informação científica, permite alcançar uma convicção sobre o facto a provar.
Não estando em causa a aplicação da proibição ou imposição de condutas, da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, basta que esses indícios correspondam ao conceito de «indícios suficientes», quanto à probabilidade da condenação.
Assim, estes devem ter-se por verificados, quando, com base neles, a probabilidade de condenação é, pelo menos, maior do que a de absolvição, reportada à fase da audiência de discussão e julgamento (Germano Marques da Silva Curso de Processo Penal, Vol. II, 3ª Edição, Editorial Verbo, 2002, p. 261).
Isto, à luz do princípio da livre apreciação da prova previsto no art.º 127º do CPP e confrontado com o princípio constitucional da presunção de inocência do arguido que, aplicado à análise e exame crítico da prova, se converte no princípio de prova «in dubio pro reo», bem como com as proibições de prova estabelecidas no art.º 126º do CPP, princípios estes, que têm aplicação em todas as fases do processo penal e, naturalmente, segundo uma avaliação da prova necessariamente provisória, reportada ao momento da aplicação da medida de coacção e condicionada por eventuais futuras alterações decorrentes da subsequente actividade investigatória.
O art.º 283º nº 2 do CPP concretiza o conceito de indícios suficientes como aqueles que envolvam uma possibilidade razoável de vir a ser imposta ao arguido, no julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.
Esta norma é aplicável à instrução, ex vi do art.º 308º nº 2 do CPP, pelo que a decisão instrutória será de pronúncia e, consequentemente, a causa só será submetida a julgamento se, face aos indícios probatórios carreados aos autos e de acordo com um juízo de prognose em relação à fase da discussão e julgamento, for possível concluir pela existência da probabilidade de se demonstrarem os elementos constitutivos da infracção e, consequentemente, de ao arguido vir a ser imposta uma pena ou medida de segurança.
Não sendo o grau de certeza emergente de prova e da correspondente convicção probatória que é exigida para a decisão de pronúncia (ou para a acusação), equiparável ao que é exigido para a fase da discussão e julgamento da causa, considerando a natureza e efeitos jurídicos visados por cada uma destas fases do processo, a «probabilidade razoável de condenação» enunciada no nº 2 do art.º 283º do CPP, não pode ser interpretada como certeza, para além de toda a dúvida razoável, como sucede no julgamento.
As provas obtidas nas fases do inquérito e da instrução não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas, tão só, da decisão processual quanto à prossecução da causa para a fase de julgamento.
Neste contexto, o grau de «possibilidade razoável» de condenação mencionado nos arts. 283º nº 2 e 308º nº 2 do CPP, tem de ser interpretado como «uma possibilidade mais positiva que negativa: o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido ou, os indícios são os suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição» (Acs. da Relação de Coimbra de 28.06.2017, proc. 1772/10.3T9LRA.C1. No mesmo sentido, Ac. da Relação do Porto de 07.12.2016, proc. 866/14.7PDVNG.P1; Acs. da Relação de Coimbra de 23.00.2018, proc. 80/16.7GBFVN.C1 e de 26.06.2019, proc. 303/18.8JALRA.C1; Ac. da Relação de Guimarães de 27.00.2019, processo 134/17.2T9TMC.G1; Ac. da Relação de Lisboa de 04.07.2019, proc. 324/17.8PASNT.L1, in http://www.dgsi.pt).
«Os indícios só são suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente possível a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a sua absolvição» (Figueiredo Dias Direito Processual Penal, volume I, Coimbra Editora, 1974, pág. 133).
Esta é a solução que melhor se compatibiliza com a distinção legal entre indícios suficientes e indícios fortes, com as diferentes finalidades legalmente atribuídas a cada uma das diferentes fases do processo penal e com o princípio constitucional da presunção de inocência do arguido, na vertente «in dubio pro reo», que é aplicável em qualquer fase do processo.
Consequentemente, de entre o «catálogo» de medidas de coacção contido no CPP (termo de identidade e residência; caução; obrigação de apresentação periódica; suspensão do exercício de funções, de profissão e de direitos; proibição de permanência, de ausência e contactos; obrigação de permanência na habitação e prisão preventiva), com excepção do TIR, por um lado, e das medidas previstas nos arts. 200º a 202º inclusive, por outro (e por razões diferentes), a aplicação das restantes medidas de coacção assenta na suficiência de indícios com este enquadramento referente à probabilidade de condenação futura.
O arguido insurge-se contra a indiciação dos factos integradores dos crimes de violência doméstica e de detenção de arma proibida feita na decisão recorrida, mas sem razão.
Desde logo, porque da circunstância de o arguido ter negado a autoria dos factos, não significa que não os tenha cometido.
É a própria decisão recorrida que salienta a existência de duas versões contraditórias acerca dos factos – a negação da sua verificação feita pelo arguido e a afirmação do cometimento dos mesmos e sua imputação feita ao arguido, pela vítima BB.
O arguido não desenvolveu qualquer esforço argumentativo ou análise crítica aos meios de prova em que a decisão recorrida se sustentou para considerar indiciados os factos descritos na decisão, nem ao processo cognitivo de valoração desses meios de prova desenvolvido pela Mma. JIC, sendo certo que a explicação que o recorrente apresentou para a circunstância de a vítima BB ter feito o relato que fez sobre as agressões físicas, ameaças, insultos e agressões com gás pimenta que imputou ao arguido – um suposto intuito de vingança para lhe obstaculizar o ingresso na Polícia Judiciária é totalmente inverosímil e contrária a qualquer regra de lógica ou de razoabilidade humana.
Acresce que a versão dos factos apresentada pela vítima é consistente, quer com o teor do auto de notícia, quer com o de busca domiciliária e de busca no interior da viatura do arguido e com as apreensões que se lhes seguiram, especialmente, no que se refere ao gás pimenta utilizado em momento anterior para agredir BB.
Basta ler o Auto de notícia de fls. 2 a 7, o Auto de inquirição da vítima, BB, de fls. 28 e 84, o Auto de notícia por detenção de fls. 32 a 41, o Termo de autorização de busca a viatura de fls. 46, Termo de autorização de busca domiciliária de fls. 47, para constatar que a descrição factual contida no juízo indiciário exarado na decisão recorrida está em total linha de conformidade e coerência, com o conteúdo de tais meios de prova e de obtenção de prova.
Ora, a Mma. JIC credibilizou o testemunho da vítima BB e explicou os motivos dessa tomada de posição, explicação esta que, longe de ser uma impossibilidade lógica, uma arbitrariedade, ou uma ilegalidade, é um exercício pleno, fundamentado e objectivo do princípio da livre convicção do julgador consagrado no art.º 127º do CPP.
Por fim, do que o recorrente invocou na conclusão 10 sobre a inexistência de prova documental ou pericial destinada a comprovar as lesões sofridas no corpo e na saúde das ofendidas em resultado das agressões que dizem ter-lhes sido infligidas pelo arguido, nem resulta a demonstração do contrário, nem tem respaldo no elenco de provas admissíveis pelo CPP.
Com efeito, o princípio da livre apreciação da prova genericamente consagrado no artigo 127º do CPP, assenta na inexistência de regras legais que atribuam valor específico, pré-determinado às provas, ou que estabeleçam alguma hierarquia entre elas e na admissibilidade de todos os meios de prova, em geral, desde que não incluídos nas proibições contidas no art.º 126º do CPP, em sintonia com o princípio consagrado no art.º 32º nº 8 da Constituição.
E precisamente por isso é que da circunstância de o arguido ter negado a autoria dos factos também não resulta qualquer afronta ao princípio da presunção de inocência consagrado no art.º 32º nº 2, da Constituição da República Portuguesa, especialmente, quando, como sucede, na decisão recorrida, são explicadas as razões com base nas quais, a versão do arguido não se apresenta fidedigna à realidade histórica, o que, de resto, está perfeitamente ilustrado na invocação de que tem licença de uso e porte de arma para todas as armas e munições que foram encontradas na sua posse, entre as quais se contam várias de uso exclusivamente militar, portanto, que jamais poderiam estar na posse do arguido de forma legalmente admissível.
Assim sendo, sem prejuízo da natureza necessariamente precária, em face da fase processual actual, do juízo de indiciação e respectivo enquadramento jurídico-penal, o mesmo afigura-se correcto, porque alicerçado na informação relevante que é possível extrair dos meios de prova e de obtenção de prova já produzidos e nas regras de experiência comum, de lógica e razoabilidade humana, bem como no princípio da livre apreciação da prova.
Nesta parte, o recurso improcede.
Quanto à segunda questão e à terceira questão: por estarem interligadas, serão apreciadas em conjunto.
Convocam os critérios da necessidade, adequação e proporcionalidade e a verificação dos perigos de que o art.º 204º do CPP faz depender a possibilidade de aplicação de medidas de coacção, no caso vertente, os perigos de perturbação do decurso do inquérito e para a obtenção e conservação da prova, de continuação da actividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas.
As medidas de coacção visam satisfazer exigências cautelares, exclusivamente processuais, que resultem da concreta verificação, isolada ou cumulativa, de qualquer dos perigos previstos no art.º 204º do CPP.
Essas exigências cautelares reportam-se, à necessidade geral de garantir a normalidade do desenvolvimento do processo penal, quanto a efeitos, como sejam o da descoberta da verdade, logo, da aquisição e integridade das provas, de assegurar a presença do arguido, seja nas diligências probatórias (art.º 61º nº 3 al. d) do CPP), seja na audiência de discussão e julgamento (artigo 332º do CPP), de criação das condições adequadas à exequibilidade da decisão final do processo, especialmente, se envolver a condenação em pena de prisão efectiva, assim como alguns tipos de sanções acessórias (v.g., a medida de coacção prevista no art.º 199º do CPP, em correlação com a sanção acessória prevista no art.º 66º do CP).
As medidas de coacção são, justamente, meios processuais de limitação da liberdade pessoal que têm por função acautelar a eficácia do procedimento penal, quer no que respeita ao seu desenvolvimento quer quanto à execução das decisões condenatórias (Germano Marques da Silva, “Curso de processo Penal”, vol. II, pág. 254).
«As medidas de coação emergem como condição indispensável, embora num quadro de excecionalidade, à realização da justiça» (Frederico Isasca, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, 2004 – p. 103).
A «aplicação de qualquer das medidas de coação se deve ter em linha de conta a gravidade do crime, a sanção aplicável e não deve prejudicar o exercício de direitos fundamentais que não forem incompatíveis com as exigências cautelares que o caso requer» (Código de Processo Penal – Comentários e Notas Práticas, Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, Coimbra Editora).
Devem, igualmente, com excepção do Termo de Identidade e Residência, ser proporcionais à gravidade do crime e às sanções que, num juízo de prognose em relação ao julgamento, virão, possivelmente, a ser aplicadas.
Assim o impõem as normas contidas nos arts. 191º nº 1; 193º e 204º do CPP, de acordo, aliás, com o princípio constitucional consagrado no art.º 18º nº 2 da Constituição da República Portuguesa.
O art.º 193º do CPP alude aos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade.
O princípio da necessidade tem subjacente uma ideia de exigibilidade, no sentido de que só através da aplicação daquela concreta medida de coacção se consegue assegurar a prossecução das exigências cautelares do caso e não de outra qualquer ou da não aplicação de qualquer delas.
O princípio da adequação das medidas de coacção exprime a exigência de que exista uma correspondência entre os interesses cautelares a tutelar no caso concreto e a concreta medida de coacção imposta ou a impor. Afere-se por um critério de eficiência, partindo da comparação entre o perigo que justifica a imposição da medida de coacção e a previsível capacidade de esta o neutralizar ou conter.
O princípio da proporcionalidade assenta num conceito de justa medida ou proibição do excesso entre os perigos que se pretendem evitar e a aplicação da medida de coacção escolhida.
O art.º 18º nº 2 da CRP prevê que a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos e, tal como em todos os demais campos de aplicação, em matéria de aplicação das medidas de coacção o princípio da proporcionalidade também terá de ser decomposto «em três subprincípios constitutivos: o princípio da conformidade ou da adequação; o princípio da exigibilidade ou da necessidade e o princípio da justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito» (Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 264).
Assim, no que respeita ao princípio da proporcionalidade, é imperioso que, em cada fase do processo, exista uma relação de idoneidade entre a medida aplicada ou a aplicar e a importância do facto imputado, bem assim, a sanção que se julga que pode vir a ser imposta, ou seja, tem de existir uma correlação entre a privação da liberdade individual que a medida de coacção implica, a gravidade do crime e a natureza e medida da pena que, previsivelmente, virá a ser aplicada ao arguido.
Ora, estes princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade que regem a sua aplicação são uma emanação do princípio jurídico-constitucional da presunção de inocência constante no art.º 32º nº 2 da CRP.
A aplicação das medidas de coacção em geral, terá, pois, necessariamente, de obedecer a estes princípios constitucionais da necessidade, da adequação e da proporcionalidade, consagrados nos arts. 18º; 27º e 28º nº 2 da CRP (José António Barreiros, "As medidas de Coacção e de Garantia Patrimonial no Novo Código de Processo Penal", Tolda Pinto, in “A Tramitação Processual Penal”, 2ª edição, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, 2a edição, volume II, pág. 250; Leal Henriques e Simas Santos, “Código de Processo Penal Anotado”, vol. 1, 3ª edição, pág. 1270).
É no ponto de equilíbrio entre os direitos em confronto – o direito fundamental à liberdade individual e o da realização da justiça penal (na medida em que a aplicação da prisão preventiva, como de qualquer outra medida de coacção, apenas serve para garantir o normal desenvolvimento do procedimento criminal e obstar a que o arguido se exima à execução da previsível condenação), que se garante o respeito pelos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade e se impede o livre arbítrio.
«Respeitar o princípio da adequação significa escolher a medida que poderá constituir o melhor instrumento para garantir as exigências cautelares do caso (…). Para respeitar o princípio da proporcionalidade, a medida de coacção escolhida deverá manter uma relação directa com a gravidade dos crimes e da sanção previsível, cabendo ponderar elementos como o juízo de censurabilidade da conduta, o modo de execução, a importância dos bens jurídicos atingidos.» (Ac. da Relação de Lisboa de 16.09.2019, processo 207/18.4PDBRR.L1-3, in http://www.dgsi.pt).
Os perigos a que se referem as alíneas a) a c) do art.º 204º do CPP têm de se traduzir numa probabilidade real e iminente de verificação e não meramente hipotética, virtual ou mais ou menos próxima, a qual deve ser extraída casuisticamente da natureza do crime indiciado, da respectiva moldura penal abstracta, das circunstâncias em que o mesmo foi cometido, ou que rodearam a execução, da personalidade do arguido, quer a revelada nas circunstâncias referentes à consumação do ilícito penal imputado, quer as que resultem de outros elementos de informação recolhidos acerca das suas condições de vida, inserção familiar, social e laboral, habilitações académicas, dos seus antecedentes criminais, em suma, dos elementos factuais disponíveis no processo, globalmente analisados e avaliados de acordo com as regras da experiência comum.
Deste modo, a decisão que aplique uma medida de coacção «(…) com referência ao periculum libertatis, deve conter indicações detalhadas, não podendo basear-se sobre o perigo para a aquisição, conservação ou veracidade de provas de modo genérico, mas deve indicar necessariamente quais as específicas fontes de prova e quais as inderrogáveis exigências instrutórias que se visam acautelar. Não pode reportar-se a um genérico perigo de fuga do arguido, mas deve referir-se a um concreto perigo de fuga ou à fuga, como de modo análogo não pode referir um perigo abstracto de perturbação da ordem e tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa, devendo ser especificados os factos em que assenta o juízo de perigosidade» (Germano Marques da Silva (“Sobre a Liberdade no Processo Penal ou do Culto da Liberdade como Componente Essencial da Prática Democrática”, in “Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias”, Coimbra Editora, 2003, pág. 1378. No mesmo sentido, Frederico Isasca, A prisão preventiva e restantes medidas de coacção, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, 2004).
O perigo de continuação da actividade criminosa há-de aferir-se em função das circunstâncias referentes ao crime indiciado em concreto e dos elementos da personalidade do arguido e implica a formulação de um juízo de prognose sobre o comportamento futuro do arguido, conjugando elementos tão díspares como os sentimentos manifestados na prática dos factos indiciados, a preparação escolar, o relacionamento e estruturação familiar e afectiva, os meios económicos disponíveis, a existência e natureza de vínculos referentes à actividade profissional, os antecedentes por factos desta natureza e, eventualmente, outros.
No que concerne aos perigos de continuação da actividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, são os que mais facilmente poderão extrapolar da sua vertente estritamente cautelar e processual, pelo que a forma de os conciliar com a natureza cautelar das medidas de coacção, expressamente afirmada no art.º 191º do CPP e com a presunção de inocência do arguido, terá de ser desligá-los de considerações de antecipação da sanção penal, ou de alarme social, próprias dos fins de prevenção geral e especial positiva, associados à aplicação das penas e centrar a sua verificação num juízo de prognose acerca do comportamento futuro do arguido e da reacção que a notícia do crime indiciado pode desencadear nos cidadãos em geral (Exposição de motivos da Proposta de Lei nº 109/X que deu lugar à Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, que aditou a exigência de que a perturbação seja imputável ao arguido, com a inserção na al. c) do art.º 204º de que o perigo de continuação da actividade criminosa ou de perturbação da ordem e tranquilidade públicas resultem «da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido». No mesmo sentido, Alexandra Vilela, in «Considerações acerca da presunção de inocência em direito processual penal», Coimbra Editora, Coimbra, 2000, e Maia Costa, in «A presunção de inocência do arguido na fase de inquérito», in Revista do Ministério Público», nº 92, p. 65 e segs; Vítor Sequinho dos Santos, Medidas de Coacção, Revista do CEJ, 2008, nº 9 especial, pág. 131; Ac. da Relação de Guimarães de 18.04.2026, proc. 1131/15.PBGMR.G1; Ac. da Relação de Évora de 02.05.2017, proc. 39/14.9GDSTC-B.E1; Ac. da Relação de Lisboa de 12.02.2019, proc. 165/18.5PGSXL-A.L1, in http://www.dgsi.pt).
«O perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas devia ser entendido como reportando-se ao previsível comportamento do arguido e não ao crime por ele indiciariamente cometido e à reacção que o mesmo pudesse gerar na comunidade. A nova redacção da al. c) do art.º 204º veio afastar qualquer possível dúvida sobre este aspecto, apontando claramente no sentido que já antes era correcto» (Vítor Sequinho dos Santos, Medidas de Coacção, Revista do CEJ, 2008, nº 9 especial, pág. 131).
O perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, refere-se aos riscos de adulteração dos meios de prova e aos prejuízos para a descoberta da verdade material e à aptidão da medida de coacção para neutralizar esses riscos.
Visa evitar o perigo de entorpecimento com base na forte suspeita de que o arguido «destrua, modifique, oculte, suprima ou falsifique meios de prova», «influa de maneira desleal nos co-arguidos, testemunhas ou peritos» ou «induza outros a realizar tais comportamentos» (Roxin, «Derecho Procesal Penal», tradução da 25ª edição alemã, Editores del Puerto, Buenos Aires, 2000, p. 260).
«É necessário evitar o risco de que com tal pretexto se confunda e prejudique a legítima actividade defensiva do arguido, traduzida nomeadamente na investigação e recolha de meios de prova para a sua defesa, actividade que o arguido deve poder exercer com a maior liberdade e amplitude [...] Deve ainda considerar-se que, em geral, o perigo de perturbação da instrução do processo é maior nas fases preliminares do processo e nestas sobretudo na fase do inquérito e ainda quando são poucos os meios de prova que indiciem a responsabilidade do arguido. Será, em regra, mais difícil ao arguido perturbar a instrução do processo quando dos autos constem já os meios de prova que indiciem fortemente a sua responsabilidade, o que não significa que, em razão da natureza do crime e dos meios de prova recolhidos, essa perturbação não possa verificar-se em fases posteriores; o perigo tem, pois, de ser apreciado perante as circunstâncias concretas de cada processo» (Germano Marques da Silva Curso de Processo Penal, II, 2ª ed., p. 245).
Há evidência científica de que violência doméstica tem um ciclo trifásico:
Tensão crescente, que é um primeiro momento em que o agressor se mostra tenso e irritado por coisas insignificantes, adoptando comportamentos de crescente hostilidade, como acessos de raiva, humilhações à vítima, ameaças e destruição de objectos, enquanto que a vítima tenta acalmar o agressor, fica aflita e evita qualquer conduta que possa ser interpretada como «uma provocação», acompanhada de sensações de tristeza, angústia, ansiedade, medo e desilusão, mas ao mesmo tempo, negação e encobrimento perante terceiros;
Acto de violência, que representa o culminar da fase de tensão e agressividade crescentes, que corresponde à explosão do agressor, materializada em violência verbal, física, psicológica, sexual, moral ou patrimonial, enquanto que a vítima adquire real consciência do poder destrutivo que o agressor tem em relação à sua vida, sendo acometida de sentimentos de paralisia e impossibilidade de reacção, sofrimento de intensa tensão psicológica (insónias, perda de peso, fadiga constante, ansiedade) e sentimentos de medo, ódio, solidão, pena de si mesma, vergonha, confusão e dor. Muitas vezes, ainda, a vítima acha que fez algo de errado para justificar o comportamento violento do agressor.
Fase de reconciliação e apaziguamento, também denominada de «Lua de Mel», a qual se caracteriza pelo arrependimento do agressor, que se torna amável para conseguir a reconciliação. A vítima sente-se confusa e pressionada a manter o seu relacionamento diante da sociedade, sobretudo quando o casal tem filhos. Por isso, abdica dos seus direitos perante as promessas de mudança de comportamento do agressor. Há um período relativamente calmo, em que a vítima se sente feliz por constatar os esforços e as mudanças de atitude, lembrando também os momentos bons que tiveram juntos. Como há demonstrações de remorso, a vítima tende e sentir-se responsável pelo seu agressor, o que estreita a relação de dependência entre vítima e agressor e a consequente manipulação e subjugação da primeira pelo segundo. Um misto de medo, confusão, culpa e ilusão fazem parte dos sentimentos da vítima.
Por fim, a tensão volta, com ela, as agressões da primeira fase e assim sucessivamente, sendo que a renovação deste ciclo envolve períodos de apaziguamento cada vez mais curtos e actos de violência cada vez mais intensos e perigosos para a saúde física e mental da vítima e, por vezes, até para a própria vida (Lenore Walker, Battered Woman Syndrome, Harper & Row, New York, 1979; https://www.institutomariadapenha.org.br/violencia-domestica/ciclo-da-violencia.html; https://apav.pt/lgbt/menudom.htm).
A Lei 112/2009 de 16 de Setembro introduziu na ordem jurídica portuguesa formas de tutela reforçada das vítimas de violência doméstica, precisamente em face da constatação de que se trata de um tipo de criminalidade que provoca graves prejuízos pessoais para quem é vitimizado por esse crime, assim como elevados custos sociais e económicos decorrentes dos chamados efeitos de longo prazo, na saúde física e mental das vítimas e da consequente necessidade de o processo penal conter actos e procedimentos adequados a assegurar a descoberta da verdade material e, por via desta, a eficácia no combate e repressão desta forma de criminalidade e, em simultâneo, prevenir a vitimização secundária e impedir o agravamento da vulnerabilidade da vítima.
Por isso é que, por exemplo, nos arts. 14º a 21º da Lei 112/2009 estão consagradas várias medidas de proteção das vítimas de violência doméstica, com particular relevância, para a reavaliação do regime de visitas do agressor, os direitos à informação, audição e prestação de provas, garantias de comunicação, o direito à proteção sempre que exista ameaça séria de represálias, o evitamento do contacto com o arguido, a possibilidade de apoio psicossocial e o direito à indemnização e restituição de bens.
Os arts. 22º e seguintes contemplam várias medidas para a «prevenção da vitimização secundária»:
Prestação dos depoimentos das vítimas, em ambiente informal e reservado, devendo ser criadas condições adequadas para evitar que sofra pressões e a consagração, no nº 2, do direito a dispor de adequado atendimento psicológico e psiquiátrico, sempre que possível.
O diploma prevê ainda o estabelecimento de gabinetes de atendimento à vítima, dotados de condições adequadas de proteção da privacidade e concretizado, sempre que possível, nas instalações dos departamentos de investigação penal (artigo 27º).
Os artigos 32º e 33º regulam as condições específicas de depoimento e declarações das vítimas, através do recurso à videoconferência ou teleconferência (artigo 32º) e à possibilidade de prestação de declarações para memória futura (artigo 33º), bem como o eventual acompanhamento das vítimas por técnico especializado.
Ademais, estando indiciada a prática de crimes de violência doméstica, a Lei 112/2009 de 16 de Setembro permite, no seu art.º 31º, a aplicação de certas medidas cautelares.
Com efeito, o citado art.º 31º da Lei 112/2009 estabelece um conjunto de medidas aptas a acautelar o acréscimo de vulnerabilidade da vítima, de entre as quais se destaca a possibilidade de aplicação de medidas urgentes adequadas a providenciar o afastamento e a proibição de contactos entre o agressor e a vítima, como é o caso da proibição de adquirir, de usar ou da imposição de entregar, de forma imediata, armas ou outros objetos e utensílios que detiver, capazes de facilitar a continuação da atividade criminosa; de sujeição do agressor, mediante consentimento prévio, a frequência de programa para arguidos em crimes no contexto da violência doméstica; de não permanecer na residência onde o crime tenha sido cometido ou onde habite a vítima, assim como a de não contactar com a vítima, com determinadas pessoas ou frequentar certos lugares ou certos meios, medidas estas que são cumuláveis com qualquer uma das medidas de coacção previstas, no CPP, tal como previsto no art.º 31º nº 1 als. a) a d) e nº 3, embora só se possam aplicar, caso se verifique algum dos perigos previstos no art.º 204º do CPP (de fuga, de perturbação do decurso do inquérito, quanto à obtenção e conservação dos meios de prova; de continuação da actividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas) e depois de garantido o efectivo cumprimento dos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade às exigências cautelares de prevenção da revitimização, da obtenção de prova cabal dos factos em investigação e de assegurar a comparência do arguido aos actos processuais.
Ora, entre as medidas de coacção classicamente previstas no CPP, no domínio da violência doméstica, assume particular eficácia a medida de coacção de afastamento e de proibição de contactos ao arguido, nos termos do artigo 200º nº 1, alíneas a) e d), do Código de Processo Penal, para evitar a vitimização secundária da vítima, decorrente da retirada da residência/da família ou da institucionalização em casa abrigo ou, no caso das crianças, em regime de acolhimento residencial.
Dito isto, constata-se que, se por um lado, a decisão recorrida explicou em que que circunstâncias concretas do caso, relacionadas com o modo de execução dos crimes e com as características da personalidade do arguido, reveladas nos factos, se consubstanciam os perigos de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, de perturbação do inquérito no que se refere à conservação da prova e de continuação da actividade criminosa, a argumentação desenvolvida no recurso é inapta para afastar esses perigos e os juízos de necessidade, adequação e proporcionalidade subjacentes à aplicação das medidas de coacção aplicadas.
Contrariamente ao que o arguido pretende, não existe nada de vago ou genérico no juízo de indiciação. Muito pelo contrário: as circunstâncias de tempo, modo e lugar, a espécie de maus tratos físicos e psicológicos cuja autoria lhe é imputada, a identificação das pessoas ofendidas.
O arguido confunde imputações vagas e genéricas com a reiteração de actos típicos de violência doméstica como, por exemplo, os descritos em 4 e 5 do juízo de indiciação, que a única falta de concretude de que padecem é serem referidos a datas precisas ou a número de vezes em que foram praticados, o que não lhes confere a tal natureza imprecisa impeditiva dos direitos de defesa e ao contraditório, até porque o tipo concreto de ofensas está devidamente concretizado.
E precisamente, por efeito dessa reiteração é que, como muito bem refere a decisão recorrida, existe continuação da actividade criminosa, sendo certo que o que o juízo de indiciação ilustra é que os abusos e a violência física e psicológica exercidas sobre as ofendidas perdurou durante cerca de dois anos é só findou quando a vítima BB, depois de ter sido agredida na cara com gás pimenta, saiu com a filha da casa onde até então, havia vivido em união de facto com o arguido e se refugiou em casa de uma amiga.
Nem serve de argumento válido para neutralizar o perigo de continuação da actividade criminosa a argumentação do arguido de que vive a uma distância das ofendidas superior a 300 kms, porquanto essa circunstância, por si só não neutraliza em nada a possibilidade de o arguido voltar a cometer abusos da mesma natureza dos descritos no juízo de indiciação, nas pessoas das ofendidas.
Tal como resulta da busca domiciliária e da que foi realizada no interior do veículo automóvel do arguido, o mesmo revela uma tendência acentuada para acumular armas das mais diversas espécies e munições, o que representa um factor acrescido de perigosidade, considerando que o acto de violência que desencadeou a saída de casa foi precisamente o uso de gás pimenta, o que revela o à vontade e a naturalidade com que o arguido usa armas e recorre a formas extremas de violência contra outras pessoas o que, consequentemente, gera sentimentos de medo e insegurança nas comunidades onde há notícia destas práticas, tanto mais, que até foram os vizinhos quem chamou a PSP à residência do arguido, naquele dia 1 de Maio de 2024.
Daí, também, o acerto da apreensão das armas e da proibição de adquirir usar ou deter, seja a que titulo for qualquer arma de fogo, - art.ºs 191.º, 193.º, 194.º, 202.º, n.º 1, als. a), d) e e) e 204.º al. b) e c) todos do CPP, e 31º, n.º 1, als. a), c) e d), 35º, n.º 1 e 36º, n.º 7 da Lei 112/2009, de 16/09, aplicada.
É preciso sublinhar que o crime de violência doméstica é sobre abuso físico, sexual, emocional e mental e é sobre poder e controlo sobre a vítima em todos os aspectos da sua vida.
A vulnerabilidade da vítima, advém, entre outros factores, dessa dinâmica de manipulação e abuso de poder, que a leva, em função dos ciclos da violência doméstica ora a denunciar o seu agressor, ora a encobri-lo ou a adulterar a verdade dos factos, ao sabor das promessas de mudança de comportamento, ou de actos de intimidação.
Desta constatação emerge, no caso, a verificação do perigo de perturbação do inquérito, ademais, atenta a fase processual actual, em pleno decurso da investigação e em face do perfil deste tipo de agressores em que o arguido se integra, o que postula um risco sério de que este tente adulterar a prova e obstaculizar a verdade material.
E emerge, também, a adequação, a necessidade e proporcionalidade das medidas de proibição de contactos com as ofendidas, diretamente ou por interposta pessoa, ou por qualquer meio e de proibição de permanecer na residência das ofendidas, local de trabalho da ofendida BB e da escola da ofendida CC e de se aproximar das ditas residência, local de trabalho e escola, medidas a serem sujeitas a fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, pois que, tal como se diz, na decisão recorrida, tal mostra-se imprescindível para a proteção da vítima BB, especialmente das potenciais investidas do arguido, no sentido de a convencer a adulterar ou encobrir os factos e de lhe permitir restabelecer-se física e emocionalmente da experiência traumática de abuso.
O recurso improcede, pois, na totalidade.
III - DECISÃO
Termos em que decidem:
Negar provimento ao recurso, confirmando integralmente a decisão recorrida.
Custas pelo arguido, fixando a Taxa de Justiça em 3 UCs – art.º 513º do CPP.
Notifique.
*
Acórdão elaborado pela primeira signatária em processador de texto que o reviu integralmente (art.º 94º nº 2 do CPP), sendo assinado pela própria e pelas Juízas Adjuntas.
*
Tribunal da Relação de Lisboa, 18 de Dezembro de 2024
Cristina Almeida e Sousa
Hermengarda do Valle-Frias
Ana Rita Loja