Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | MARIA JOSÉ MACHADO | ||
Descritores: | PRISÃO PREVENTIVA DECISÃO CONDENATÓRIA NÃO TRANSITADA | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 09/19/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
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Sumário: | I.– O princípio rebus sic stantibus, presente no artigo 212.º do Código de Processo Penal, normalmente invocado para se indeferir pedido de substituição da prisão preventiva por medida mais favorável, é também de aplicar nas situações em que está em causa a aplicação ao arguido de medida mais gravosa que a anterior, o que impedirá qualquer alteração para situação mais desfavorável, sem alteração superveniente das circunstâncias tidas em conta no despacho anterior transitado em julgado. II.– A prisão preventiva decretada na sequência de decisão condenatória não pode surgir como uma antecipação da pena, no respeito pela presunção de inocência com assento nos artigos 27.º, nº 2 e 32.º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa. III.– Ainda que do acórdão condenatório resulte uma maior previsibilidade e proximidade temporal de os arguidos terem de cumprir penas privativas da liberdade, não tendo havido um agravamento dos perigos que, durante o inquérito, determinaram a aplicação de medidas de coação não detentivas, não deve ser determinada a prisão preventiva após a leitura da decisão, em obediência ao rebus sic stantibus e ao principio da presunção de inocência. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam em, conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I–Relatório 1.–No âmbito do acórdão condenatório proferido no processo supra identificado foi decidido que os arguidos AA e BB, com os sinais dos autos, aguardassem os ulteriores termos do processo na situação de prisão preventiva. 2.–Inconformados com essa decisão, os arguidos interpuseram recurso da mesma nos termos da motivação que cada um deles juntou aos autos, da qual extraem as seguintes conclusões: 2.1.– Conclusões do recurso do arguido AA: 1.–O presente recurso vem interposto da decisão proferida em 26 de Maio de 2023, em sede de prolação de acórdão e por via do qual, ao abrigo do disposto no artigo 375.° n.° 4 do CPP, o tribunal se determinou no sentido de o arguido AA aguardar os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coação de prisão preventiva. Porém e pelas razões que adiante melhor passaremos a explicitar, com o mesmo e com toda argumentação que fundamenta, não pode a defesa do arguido de todo concordar. 2.–Em síntese, somos a crer que os motivos que justificaram no entender do tribunal, aquando da prolação da decisão condenatória em pena de prisão efetiva, a agravação a medida de coação ao arguido AA, sujeitando-o a prisão preventiva, enquanto decorrem os ulteriores termos do processo, não é nem proporcional nem adequada ao caso em concreto. E ainda que se entendesse, que as necessidades cautelares justificariam uma compressão da liberdade ambulatória, a mesma poderia ser assegurada de um modo mais proporcional e adequado mediante a aplicação da medida de coação de OPHV, considerando o caracter de ultima ratio da prisão preventiva, conforme resulta do disposto no artigo 193.º do CPP e 28.° n.° 2 da CRP. Daí que a defesa do arguido AA, por via de recurso, apela a V.Exas. no sentido da revogação da decisão que sujeitou o arguido a prisão preventiva, substituindo-a pela medida de coação de OPHV, por se considerar por adequada e proporcional às necessidades cautelares que a decisão do tribunal reclama. 3.– O regime legal da aplicação das medidas de coação, tem como sua peculiar característica, a sua natureza "rebus sic stantibus", isto é, as medidas podem ser alteradas e revistas sempre que se justifique, seja em razão de apreciação de pressupostos de legalidade formal, seja devido à reponderação de fundamentos que as determinaram. Pelo que não existindo objetivamente em dois anos de processo, qualquer elemento novo que indicie o agravamento do perigo de fuga, uma vez que em concreto nada se alterou para o arguido, não pode a defesa do arguido de todo se conformar que o tribunal considere que, por via da condenação em pena de prisão efetiva, ainda não transitada em julgado, o perigo de fuga automaticamente se eleve. O que significa que não basta a mera probabilidade de fuga deduzida de abstratas e genéricas presunções, mas que se deve fundamentar sobre elementos de facto que indiciem concretamente aquele perigo, nomeadamente porque revelam a preparação para a fuga ou pelo menos uma intenção de o fazer. 4.–Donde, se a única circunstância que objetivamente mudou foi a prolação da decisão condenatória em pena de prisão efetiva ainda não transitada em julgado, mantendo-se no mais tudo, não se pode retirar como inferência das regras da experiencia, que alguém que vive e trabalha desde 2001 em Portugal, que está inserido na comunidade como o prova a ligação à Igreja Evangélica, que tem o seu passaporte apreendido nos autos e impedido de se deslocar para o estrangeiro desde 24 de Agosto de 2021, que o seu contexto de mobilidade geográfica é insular, de onde não existe ligação aérea ou marítima para o Brasil e considerando de ter sido prontamente comunicadas às autoridades regionais e nacionais a decisão de condenação em pena de prisão efetiva, tudo em ordem a impedi-lo de sair da Ilha do Pico, onde reside e trabalha, que esta pessoa aqui arguida, dotada de parcos recursos financeiros, somente porque tem dupla nacionalidade e família no Brasil (o que sempre verificou desde o início do processo)... pura e simplesmente vá fugir. Até porque foge quem pode, não quem quer fugir. 5.– Em síntese, somos a apelar a V.Exa. no sentido de que a decisão condenatória em pena de prisão efetiva, não transitada em julgado, não permite só por si, inferir pelo agravamento do perigo de fuga, em ordem a sujeitar o arguido a prisão preventiva, visto que se mantem por inalteradas, em matéria de necessidades cautelares, todas as circunstâncias que desde o inicio do processo objetivamente se verificaram. Pelo que apelamos a V.Exa. pela revogação da decisão que sujeitou o arguido AA a prisão preventiva, restituindo-o à liberdade, mantendo-se as medidas de coação anteriormente aplicadas. 2.2.–Conclusões do recurso do arguido BB: 1.–O presente recurso vem interposto do segmento do acórdão condenatório constante de fls. 74 a 79, proferido em 26 de Maio de 2023, por via do qual, ao abrigo do disposto no artigo 375.° n.° 4 do CPP, o tribunal determinou o agravamento do estatuto processual do arguido BBs, no sentido de o mesmo aguardar os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coação de prisão preventiva. Porém e pelas razões que adiante melhor passaremos a explicitar, com o mesmo e com toda argumentação que o sustenta, não pode a defesa do arguido BB, de todo concordar. Dai a razão de ser da interposição do presente recurso. 2.– Da Nulidade do artigo 379° n'l alínea a) do CPP, por omissão de fundamentação quanto à não suficiência da medida de Obrigação de Permanência na Habitação para a satisfação das necessidades cautelares (artigo 193.° n.° 3 do CPP e artigo 28.° n.'2 da CRP). Consabidamente, as medidas cautelares são impostas em função da situação pessoal de cada arguido. O que resulta por rectas contas que, a sua substituição, mormente no sentido do seu agravamento, carece de um juízo concreto e fundamentado sobre as circunstâncias especificas que a tanto determinam. Neste sentido, e atendendo ao artigo 193.°, podemos em síntese concluir que, enquanto for proporcional e adequado impor a um sujeito processual, a quem haja sido imputado um facto criminoso, urna das medidas de coação elencadas no ordenamento jurídico-processual (ainda que também privativa da liberdade), não pode ser lançada mão da prisão preventiva. Trata-se da plena assunção da dupla subsidiariedade da aplicação da prisão preventiva. Assim, esta dupla subsidiariedade consagrada nos números 2.° e 3.° do artigo 193.° do CPP, com respaldo constitucional no artigo 28.° n.°2 da CRP, impõe no cotejo, quer quanto às medidas de coação em geral, quer quanto a obrigação de permanência na habitação em particular, sempre que quanto a esta ultima não se dê preferência, o juiz deve elencar de modo claro as razões pelas quais ela não se revela suficiente para satisfazer as exigências cautelares, de modo a que, se assegurem as garantias de defesa e a decisão possa ser sindicável (António Gama in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, pag.74). 3.–Devendo tal posição (a de preterir a obrigação de permanência na habitação a favor da prisão preventiva), ser devidamente fundamentada, porquanto o impõe o caracter de ultima ratio de tal medida. O que no caso em concreto não sucedeu, senão vejamos... Ora neste ponto, o segmento da decisão condenatória refere a fls. 77 o seguinte: “Afigura-se-nos, em face da grande mobilidade geográfica dos arguidos e da forte ligação que têm com o Brasil, pais de onde são naturais e nacionais e onde residem todos os seus familiares, que a obrigação de permanência na habitação não será suficiente para afastar o perigo de fuga dos arguidos, nem nenhuma outra medida de coação menos gravosa “.Ora, a defesa perante tal argumentação fica sem conseguir alcançar em que medida concreta e porque razão entendeu o tribunal, que estando em causa a necessidade de aplicação de uma medida de coação privativa da liberdade, de que forma a obrigação de permanência na habitação, enquanto medida restritiva da liberdade ambulatória e consequentemente apta a impedir o arguido de se mover geograficamente... não é tida por suficiente para acautelar o perigo de fuga reclamado nesta decisão. 4.–Donde, atento o exposto, somos muito respeitosamente a invocar que o segmento do acórdão condenatório constante de fls. 74 a 79, por via do qual, ao abrigo do disposto no artigo 375.° n.° 4 do CPP, o tribunal determinou o agravamento do estatuto processual do arguido BB (...) no sentido de o mesmo aguardar os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coação de prisão preventiva, sem todavia explicar em que medida concreta e porque razão entendeu o tribunal, que estando em causa a necessidade de aplicação de urna medida de coação privativa da liberdade, de que forma a obrigação de permanência na habitação, enquanto medida restritiva da liberdade ambulatória e consequentemente impeditiva para o arguido de se mover geograficamente, não é suficiente para acautelar o perigo de fuga reclamado na decisão.... é nulo, por falta de fundamentação nos termos das disposições conjugadas nos artigos 379° n° 1 alínea a) e 193.° n.° 3, todos do CPP, nulidade esta, que vem a defesa do arguido BB, prontamente arguir para os devidos e legais efeitos. 5.–Destarte, mais entende a defesa que é inconstitucional, por violação do caracter excecional da prisão preventiva previsto no n.° 2 do artigo 28.° e por violação das garantias de defesa previstas no n.° 1 do artigo 32.°, todos da CRP, a interpretação normativa do artigo 193.° n.° 3 do CPP (e que foi acolhida na presente decisão que determinou a sujeição do arguido a prisão preventiva), sempre que aplicada no sentido de que, quando ao caso couber a aplicação de medida de coação privativa da liberdade, o juiz não dando preferência à obrigação de permanência na habitação, não especificar de modo claro as razões pelas quais ela não se revela suficiente para satisfazer as exigências cautelares, de modo a que, se assegurem as garantias de defesa e a decisão possa ser sindicável. Inconstitucionalidade esta que vem a defesa do arguido BB, prontamente invocar para os devidos e legais efeitos. 6.–Do agravamento do Perigo de Fuga, com a prolação da decisão condenatória enquanto fator de aplicação da Prisão Preventiva. O tribunal a quo determinou o agravamento do estatuto processual do arguido BB, no sentido de o mesmo aguardar os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coação de prisão preventiva, com base no raciocínio de que o perigo de fuga dos arguidos agravou-se de forma evidente com a prolação da presente decisão condenatória e resulta da conjugação dos factos seguintes: as penas efetivas de prisão em concreto aplicadas aos arguidos e a falta de reconhecimento pelos arguidos da prática dos factos dados como provados e que consubstanciam crimes de índole sexual, não tendo formulado nenhum juízo de auto-censura ou crítico relativamente aos factos provados, nem revelado arrependimento sincero, conforme decisão condenatória supra proferida e que aqui se dá por integralmente reproduzida; os arguidos têm dupla nacionalidade, brasileira e portuguesa, e são naturais do Brasil, país onde nasceram e onde residem todos os seus familiares (não têm nenhum familiar a residir em Portugal), tendo imigrado para Portugal em 2001; o arguido BB é empresário no ramo da construção civil e é gerente da sociedade ……. — Unipessoal, Lda., com sede no ……; os arguidos exercem funções de facto como pastores da Igreja Evangélica; os arguidos partilham a mesma habitação sita na ………, não residindo com nenhum familiar. Considerando os argumentos aduzidos em sede de agravamento da medida de coação, quer no plano dos factos, quer ainda no plano das conclusões de direito retiradas dos mesmos, e que, ampla e frontalmente ousamos discordar, cumpre começar por analisar o seguinte. 7.–No que concerne à componente do perigo, o mesmo deve ser real e iminente, em face das regras da experiência comum, não meramente hipotético, virtual ou longínquo, como resulta evidente no caso concreto. O que significa que não basta a mera probabilidade de fuga deduzida de abstratas e genéricas presunções, mas que se deve fundamentar sobre elementos de facto que indiciem concretamente aquele perigo, nomeadamente porque revelam a preparação para a fuga ou porque potenciam esse perigo. 8.–Assim e em primeiro lugar, não se nos afigura aceitável, do ponto de vista do principio da presunção de inocência que a interpretação acolhida na presente decisão, no sentido de que a com a prolação da presente decisão condenatória em penas efetivas de prisão, permite concluir pela existência de um muito elevado perigo de fuga, tal inferência não se pode aceitar. Acresce que, menos será ainda de aceitar o argumento de que, a falta de reconhecimento pelos arguidos da prática dos factos dados como provados e que consubstanciam crimes de índole sexual, não tendo formulado nenhum juízo de auto-censura ou crítico relativamente aos factos provados, nem revelado arrependimento sincero, seja adequada para fundamentar o agravamento de uma medida de coação, sobremaneira a prisão preventiva. E sustentamos tal posição, porquanto, não é essa a finalidade da aplicação da toda e qualquer medida de coação, menos ainda da prisão preventiva, posto que a prisão preventiva não tem em si mesma uma função retributiva, apenas e tão só visa salvaguardar exigências cautelares, pelo que também neste ponto ousamos discordar dos fundamentos que conduziram ao agravamento da medida de coação. 9.– Em segundo lugar, quanto ao facto de os arguidos terem dupla nacionalidade, serem naturais do Brasil, país onde nasceram e onde residem todos os seus familiares (não têm nenhum familiar a residir em Portugal), tendo imigrado para Portugal em 2001, de facto, o arguido BB, de … anos de idade e natural do Brasil, estabeleceu-se em Portugal desde 2001. Sendo que o único familiar vivo que tem, é um filho de 31 anos, com o qual não tem contato (uma vez que os pais já faleceram). O arguido BB, estabeleceu-se no arquipélago dos Açores desde 2006, assumindo residência e trabalho, sendo que obteve dupla nacionalidade em 2007, fazendo do arquipélago a sua terra, a sua casa e o seu local de trabalho, razão pela qual não se alcança o fundamento para se dizer que o arguido não tem uma forte ligação ao território português. Quanto ao facto de o arguido possuir dupla nacionalidade, beneficiando de liberdade de movimentos no espaço Shengen, em ordem a facilitar a fuga para o estrangeiro, designadamente para o Brasil (oferecendo o tribunal como exemplo de referência o mediático caso do padre Frederico Cunha!), e que traduz em seu entender, um muito elevado perigo de fuga intensificado com a prolação da decisão condenatória em penas efetivas de prisão, cumpre também aqui esclarecer o seguinte: que em 24/8/2021, na sequência da sua detenção e constituição de arguido, o arguido BB, procedeu voluntariamente á entrega do seu passaporte, obrigando-se também voluntariamente, a não se deslocar para fora da Ilha do Pico; que em 24/8/2021, considerando a entrega voluntária do passaporte por parte do arguido, o MP considerou que o perigo de fuga ficava "completamente esbatido", atendendo ainda "que os últimos factos ocorreram há pelo menos um ano", determinou a libertação do arguido, e prontamente notificou-o para comparecer no dia seguinte para interrogatório complementar; que em 25/8/2021, o passaporte do arguido foi apensado aos autos; que em 25/8/2021, o arguido apresentou-se a interrogatório complementar no DIAP de São Roque do Pico, e perante magistrado, o arguido em declarações comprometeu-se a não se aproximar das ofendidas, nem a contactar com estas por qualquer meio; que em 25/8/2021, o magistrado do MP determinou que "atendendo a que os factos ocorreram à cerca de um ano, e que os arguidos procederam à entrega dos seus passaportes, não existem assim elementos que nos permitam fundamentar com segurança a continuação da atividade criminosa ou o perigo de fuga, bem como a perturbação do inquérito"; que em 9/6/2022, (dez meses depois) o magistrado do MP entendeu que seria necessário promover a aplicação de outra medida de coação, para além do TIR, atento o que, "com a dedução de acusação se agrava de forma evidente o perigo de fuga dos arguidos"; que volvidos dez meses sobre a entrega voluntária dos passaportes pelo arguido e sem se aproximar ou contatar com as ofendidas por qualquer meio, conforme voluntariamente assumido, veio o MP promover, em função de o arguido ter dupla nacionalidade, ser empresário e o seu local de trabalho ser o "arquipélago dos Açores", o que implica que tenha grande mobilidade geográfica, etc ... promoveu que, porque se verifica o perigo de fuga, a aplicação da medida de coação de proibição e imposição da conduta de não se ausentar para o estrangeiro e em consequência determinar a apreensão do seu passaporte; que em 13/6/2022, sufragando o promovido, o meritíssimo juiz determinou a aplicação das medidas de coação; que em 26/5/2023, o tribunal proferiu decisão condenatória contra o arguido BB, tendo agravado a medida de coação para prisão preventiva, em virtude de considerar que com a mesma, e reproduzindo as razoes que sempre estiveram subjacentes no quadro dos actos processuais anteriormente elencados, o perigo de fuga agravou-se de forma evidente. 10.–É de salientar por linhas rectas, que desde a data de 24/8/2021 até aos dias de hoje o passaporte do arguido sempre esteve juntos aos autos, tendo sido por si voluntariamente entregue. É também de salientar que, em quase dois anos do processo, i.e. desde 24/8/2021, o arguido cumpriu voluntariamente (durante dez meses) com o que se comprometeu - não se aproximar das ofendidas, nem contactar com estas por qualquer meio — e, desde 13/6/2022 até 26/5/2023, não foram registados quaisquer incumprimentos das medidas de coação decretadas (sendo certo que foram sempre as mesmas medidas a que o arguido esteve sujeito... . 11.–Cumpre também salientar que, ao longo deste tempo todo, i.e., entre a detenção e a acusação, e entre esta e a condenação, o arguido residiu sempre na Ilha Pico, não se tendo ausentado para parte incerta, assegurando o labor da sua empresa e cumprindo com as suas obrigações, donde a sua alegada mobilidade geográfica, decorrente da sua dupla nacionalidade, nunca foi em concreto, fator potenciador da agravação do perigo de fuga. A que acresce, que a própria decisão condenatória, foi devidamente comunicada ao SEF do aeroporto da Ilha do Pico e de todos os aeroportos nacionais, solicitando que não permitam a saída do arguido, bem como, foi comunicada à Sata Air Açores, Azorairlines e à TAP, tal como a todas as companhias áreas que operam nos Açores, solicitando que não permitam a saída/viagem do arguido. 12.–Em terceiro lugar, o arguido BB, é empresário no ramo da construção civil, tendo constituído a empresa ………., Lda, (NIPC ……..) em 2015, inicialmente sociedade unipessoal, com o capital social de 12.500,00 e sede nas Velas, na Ilha de São Jorge, acontece que em 2021, fruto aumento da carteira de clientes e volume de obras, alterou a natureza jurídica da mesma para sociedade por quotas, procedeu a um aumento de capital social por via da entrada de um novo socio, transferindo a sua sede para a Criação Velha, na Ilha do Pico, onde reside. A empresa …….., Lda., à data de prisão preventiva do arguido BB, tinha 12 trabalhadores assalariados e 7 obras em curso na Ilha do Pico (tendo ficado duas obras em suspenso pela circunstância de em 26 de Maio de 2023, ter ficado privado da sua liberdade). O arguido BB assumia a direção das obras, supervisão e acompanhamento, e inclusive era o único responsável pela aquisição do material. Pelo que resulta cristalino, que são mais fortes os vínculos ao território português, mormente, ao arquipélago dos Açores, do que ao seu pais de origem, posto que aqui reside e trabalha desde 2006, aqui constituiu a sua empresa desde 2015, aqui gera emprego e riqueza e paga os seus impostos, pelo que não se alcança de que forma não considerou o tribunal que o arguido pela profissão indicada, não tenha uma forte ligação a Portugal. 13.–Em quarto lugar, considera o tribunal que, o facto de exercerem funções de facto na Igreja Evangélica, permite considerar que caso optassem por sair do território nacional, encontrariam apoio na comunidade religiosa evangélica. Neste particular e corno é bom de ver, esta afirmação desgarrada traduz de per si, um juízo conclusivo e abstrato, e não um facto concreto fortemente indiciador de um efetivo perigo de fuga. Não obstante cumpre esclarecer, que o arguido BB não é pastor da Igreja Evangélica, mas ainda que assim fosse, na perspetiva da defesa, este facto é revelador, da inserção do arguido na comunidade onde vive e onde trabalha (na Ilha do Pico), reforçando os laços com o território português, e não um motivo descontextualizado para putativamente justificar um agravamento do perigo de fuga. 14.–Em quinto lugar, quanto a este ponto, em concreto, é verdade que o arguido acolhe em sua casa, o coarguido AA e que não reside com nenhum familiar, mas tal como já foi pela defesa referido, os pais do arguido BB já faleceram, e apenas tem um filho com 31 anos, com quem não mantem qualquer contacto ou relacionamento. Uma vez mais, não alcança a defesa do arguido, em que medida tal facto é suscetível de agravar o perigo de fuga, posto que o mesmo sempre se verificou desde o início do processo e nunca foi, em momento anterior, justificação para a privação da liberdade. 15.–Em suma, a medida de coação, nomeadamente a prisão preventiva, não pode funcionar como uma antecipação da decisão final, impondo-se desde logo a sanção reclamada pela sociedade. Assim, tal interpretação e que foi acolhida no segmento da decisão ora recorrida, por via da qual foi agravada a medida de coação do arguido BB, para a prisão preventiva, é inconstitucional por violação do principio da presunção de inocência, plasmado no artigo 32.° da CRP, o que vem a defesa desde já invocar para os devidos e legais efeitos. 16.–Assim, para se afirmar o perigo de fuga importa que se concretize essa intencionalidade do arguido em indícios objetivos que possam suportar essa afirmação. Na ponderação do perigo de fuga importa, fazer uso adequado das regras da experiência comum sem sobrevalorizar os perigos, nem desvalorizar os indícios objetivos do risco de fuga. O juízo concreto sobre a existência de perigo de fuga deve assentar em factos ou informações que permitam, a um observador objetivo, concluir que há um sério risco ou mesmo o propósito do arguido se ausentar. Ora, segundo as regras da experiência e o senso comum, não se verificam, sobretudo ao nível da sua personalidade e postura anterior e ao longo do todo o processo, qualquer razão não em concreto, de que modo a se justificar o agravamento do perigo de fuga. 17.– Dai que, o perigo em causa tem de ser real e não presumido, não se bastando com a existência de condenação numa pena de prisão, mesmo que pesada, pois só desse modo se salvaguardarão as garantias de defesa e, mormente, a excecionalidade da prisão preventiva na sua compatibilização com a presunção da inocência. 18.–Assim, salvo melhor opinião e saber, não temos por verificado um agravamento do perigo de fuga, que determinou concomitantemente, o agravamento do estatuto processual do arguido BB, no sentido de o mesmo aguardar os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coação de prisão preventiva. Razão pela qual apelamos, que com base nos argumentos acima aduzidos pela defesa, seja revogada a decisão de sujeitar o arguido BB, a aguardar os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coação de prisão preventiva. Ou caso assim não se entenda, que a medida de coação de prisão preventiva, seja substituída pela medida de obrigação de permanência na habitação. 3.–Os recursos foram admitidos e mandados instruir em separado dos autos principais, no mesmo apenso, com efeito devolutivo. 4.–O Ministério Público junto da 1ª instância respondeu aos recursos pedindo a sua improcedência, conforme resposta junta aos autos, na qual não formulou conclusões. 5.–Remetidos os autos a este tribunal da Relação, foram os mesmos com vista ao Ministério Público, nos termos do artigo 416.º do Código de Processo Penal, que deles tomou conhecimento e neles apôs o seu visto. 6.–A 23.08.2023 foi determinado pelo Sr. Juiz relator de turno que os autos fossem conclusos após férias judiciais de Verão e a 7.09.2023 foram os autos objecto de redistribuição (por entretanto ter ocorrido a transferência da Sra. Juíza relatora para outro tribunal) e, uma vez conclusos, foi efectuado exame preliminar e ordenada a realização da conferência, nos termos do artigo 419º, nº 3, al. b) do Código de Processo Penal, após vistos legais, cumprindo agora decidir. II–Fundamentação 1.–Objecto dos recursos É pacífico o entendimento de que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso ou das nulidades que não devam considerar-se sanadas, o âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, as quais devem ser uma síntese da motivação, nos termos do n.º 1 do artigo 412.º do Código de Processo Penal. No caso, tendo presente as conclusões de cada um dos recursos, importa apreciar se a medida de prisão preventiva que foi aplicada a ambos os recorrentes deve ser revogada e serem mantidas as medidas de coação anteriormente aplicadas ou, em última análise, se deve ser substituída pela medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica. 2.–Apreciação A decisão recorrida que é objecto de recurso é do seguinte teor: «Do estatuto processual dos arguidos BB e AA (cfr. art.° 375.°, n° 4, do Código de Processo Penal). Por despacho de 13 de junho de 2022, foram aplicadas aos arguidos as medidas de coação de proibição e imposição da conduta de não se ausentarem para o estrangeiro, nos termos dos art.°s 191.°, n.° 1, 192.°, 103.°, 196.°, 200.°, n.° 1 b) e 204.°, a), todos do Código de Processo Penal e 18.°, n.° 2, da Constituição da República Portuguesa, e de apreensão dos passaportes (portugueses), com base na existência de perigo de fuga. Cumpre apreciar se o perigo de fuga se intensificou com a prolação da decisão condenatória, em face das características e das circunstâncias de vida dos arguidos. A respeito do perigo de fuga, veja-se o Acórdão da Relação de Évora de 13/11/2012, relatado pela Exma. Juíza Desembargadora Dr.ª Ana Barata Brito, proferido no Processo n° 148/12.9JBLSB-C.E1, disponível em www.dgsi.pt, que aponta como facto indiciador de perigo de fuga «a forte ligação do recorrido a outro país». No que concerne à aplicação da prisão preventiva nos crimes de índole sexual em caso em que o arguido era nacional da Alemanha, pode ler-se o Acórdão da Relação de Lisboa de 03/03/2021, relatado pelo Exmo. Juiz Desembargador Dr. Rui Teixeira, proferido no Processo n° 320/19.0JGLSB-A.L1-3, disponível em www.dgsi.pt, cujo sumário se transcreve: «I- A prisão preventiva é uma medida de última ratio; II- Tal significa que só é de aplicar caso nenhuma outra medida, por si ou conjugada com outra, seja suficiente para afastar os perigos enunciados; III- No caso dos crimes de índole sexual o aspeto de proteção da vítima assume particular relevância como factor de decisão no que respeita à escolha da medida de coação a impor». Ainda a respeito do perigo de fuga, veja-se o Acórdão da Relação do Porto de 09/10/2013, relatado pelo Exmo. Juiz Desembargador Dr. Ernesto Nascimento, proferido no Processo n° 1250/13.5JAPRT-A.P1, disponível em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário: «I- Para que seja decretada a prisão preventiva de um arguido é necessário que se verifiquem os perigos a que alude o art.° 204° do CPP. II- Todos os perigos têm de se extrair de factos concretos, evidenciados no processo. III- O perigo de fuga tem por base o risco do arguido se subtrair ao exercício da acção penal, mediante a existência de certas circunstâncias, que, de modo consistente, possam favorecer a fuga ou potenciar a mesma. IV- Existirá esse perigo, sempre que subsistam elementos objectivos, donde se possa aferir que o arguido em liberdade se ausentará para parte incerta, no país ou no estrangeiro, com o propósito de se eximir à acção penal. V- Para o efeito não é necessário que esse temor seja particularmente intenso, bastando apenas que subsista uma razoável probabilidade de que essa fuga venha a ocorrer». Por se revelar pertinente, ainda a respeito do perigo de fuga, veja-se o Acórdão da Relação de Lisboa de 26/01/2022, relatado pela Exma. Juíza Desembargadora Dr.ª Graça Santos Silva, proferido no Processo n° 39/21.2JBLSB-A.L1-3, disponível em www.dgdsi.pt, com o seguinte sumário: «Para que se considere se existe perigo de fuga, ou não, não é necessário que dos autos resulte que o arguido tenha praticado actos ou que, de alguma forma, tenha manifestado a intenção de fugir à acção da justiça, ou seja, não é necessário que se tenha detectado execução de actos próprios da fuga. A tónica da norma coloca-se no perigo e não na execução da acção. O perigo de fuga, concreto, é sempre o resultado da avaliação de uma realidade hipotética, configurável a partir das manifestações e/ou dados de facto que se puderam colher, relativos à personalidade do arguido, a que acrescem dados do senso comum, sobre qual o comportamento esperado de uma pessoa com aquelas precisas características, colocada naquela precisa situação. A injunção, relativa a cada caso concreto, implica que a formulação de um juízo que deve tomar em conta, por um lado, toda a factualidade pertinente à integração do ilícito e à gravidade de que se reveste e, por outro, todos os elementos que forem possíveis apurar quanto à situação psicológica, pessoal, familiar, social e económica do agente. De entre estes devem, necessariamente, ponderar-se: a idade, as condições de saúde mental e física, os meios económicos aos seus dispor, a estabilidade da sua situação profissional e social, a sua inserção familiar e tudo aquilo que de interesse se mostre para a previsibilidade da sua conduta processual, incluindo o seu passado criminal. Primordial é averiguar, em face do circunstancialismo concreto do caso, se a pessoa em causa tem, ou não, ao seu dispor, meios ou condições, designadamente a nível psicológico, económico e social, para se subtrair à acção da justiça e às suas responsabilidades criminais ou se existe um sério perigo os venha a adquirir». Afigura-se-nos que o perigo de fuga dos arguidos agravou-se de forma evidente com a prolação da presente decisão condenatória e resulta da conjugação dos factos seguintes: 1.– as penas efetivas de prisão em concreto aplicadas aos arguidos e a falta de reconhecimento pelos arguidos da prática dos factos dados como provados e que consubstanciam crimes de índole sexual, não tendo formulado nenhum iuízo de auto-censura ou crítico relativamente aos factos provados, nem revelado arrependimento sincero, conforme decisão condenatória supra proferida e que aqui se dá por integralmente reproduzida; 2.– os arguidos têm dupla nacionalidade, brasileira e portuguesa, e são naturais do Brasil, país onde nasceram e onde residem todos os seus familiares (não têm nenhum familiar a residir em Portugal), tendo imigrado para Portugal em 2001; 3.–o arguido BB é empresário no ramo da construção civil e é gerente da sociedade ……, Ld.ª, com sede no ………., ilha de S. Jorge; 4.–o arguido AA trabalha para a sociedade referida em 3, executando trabalhos de construção civil; 5.–os arguidos exercem funções de facto como pastores da Igreja Evangélica; 6.–os arguidos partilham a mesma habitação sita na …………………….ilha do Pico, não residindo com nenhum familiar. Os factos supra elencados apontam para a existência de grande mobilidade geográfica da parte dos arguidos. O facto de exercerem funções de facto na Igreja Evangélica permite considerar que, caso optassem por sair do território nacional, encontrariam apoio na comunidade religiosa evangélica. Nenhuma das profissões ou funções indicadas leva a que se considere que os arguidos tenham uma ligação forte a Portugal, de tal forma que não se mostre viável uma eventual opção pela saída para o estrangeiro, designadamente para o Brasil, país de onde são naturais e nacionais, onde viveram a maior parte das suas vidas e onde têm as suas famílias. Antes pelo contrário, nada prende os arguidos ao território nacional, sendo que partilham a mesma habitação sita na ilha do Pico, sem que nenhum deles tenha qualquer familiar em Portugal, residindo todos os familiares dos arguidos no Brasil. Os arguidos são naturais e nacionais do Brasil e têm, ainda, nacionalidade portuguesa e, como tal, beneficiam de liberdade de movimento no espaço Schengen. Os arguidos têm nacionalidade brasileira e não têm nenhuma ligação forte ao território português. Os factos supra enunciados, conjugados entre si, permitem concluir pela existência de um muito elevado perigo de fuga dos arguidos, intensificado com a prolação da presente decisão condenatória em penas efetivas de prisão, que poderia passar pela sua saída do território nacional via terrestre (atenta a inexistência de controlo fronteiriço terrestre no espaço Schengen) e com a sua ida para o Brasil (recorde-se, a título de exemplo, da fuga do padre Frederico Cunha, condenado pela prática de crime de natureza sexual, sem nunca ter reconhecido a prática dos factos por que foi condenado, que facilmente saiu de Portugal de carro até Madrid e viajou de avião para o Brasil, país de onde era natural e nacional, tendo usado uma segunda via do passaporte brasileiro, subtraindo-se à ação da justiça portuguesa, uma vez que não foi possível proceder à sua extradição). Afigura-se-nos, em face da grande mobilidade geográfica dos arguidos e da forte ligação que têm com o Brasil, país de onde são naturais e nacionais e onde residem todos os seus familiares, que a obrigação de permanência na habitação não será suficiente para afastar o perigo de fuga dos arguidos, nem nenhuma outra medida de coação menos gravosa. Atento o exposto, atenta a existência de um muito elevado perigo concreto e real de fuga dos arguidos, concretamente de se ausentarem para o Brasil e de se furtarem à ação da justiça portuguesa, perante a presente condenação em penas efetivas de prisão, a eminência do seu cumprimento e o não reconhecimento da prática dos factos provados, pelo facto de os arguidos serem naturais e nacionais do Brasil, país onde estão todos os seus familiares, para além de serem nacionais de Portugal, país onde não têm uma ligação forte e não têm familiares, para onde imigraram em 2001, e por considerar que, atento o exposto, apenas a prisão preventiva é adequada e necessária à satisfação das exigências cautelares requeridas no caso em apreço e é proporcional à gravidade dos crimes e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas, determina-se, ao abrigo do disposto nos art.°s 191.°, n° 1, 193.°, nos 1 e 2, 194.°, 202.°, n° 1, al. a) e 204.°, n° 1, al. a), e 375.°, n° 4, do Código de Processo Penal do Código de Processo Penal, que os arguidos BB e AA aguardem os ulteriores termos do processo sujeitos à medida de coação de prisão preventiva.» Está em causa a medida de prisão preventiva que foi aplicada aos arguidos na sequência da prolação de acórdão condenatório, ao abrigo do n.º 4 do artigo 375º do Código de Processo Penal, em que expressamente se atribui competência ao tribunal para, após a leitura da decisão condenatória, proceder ao reexame da situação do arguido, sujeitando-o às medidas de coacção admissíveis e adequadas às exigências cautelares que o caso requer, sempre que tal for necessário. Não resulta desta norma que a sentença condenatória tem como efeito imediato ou automático a necessidade de agravar a(s) medida(s) de coacção fixada(s) ao arguido na pendência do processo, nem mesmo quando a condenação o seja em pena de prisão, o que se traduziria numa antecipação da pena, quando esse agravamento se traduzisse na aplicação da medida de prisão preventiva, finalidade que esta medida não tem e que afrontaria o princípio da presunção de inocência do arguido, com assento na Constituição da República Portuguesa (artigos 27.º, n.º2 e 32.º, n.º2). Neste sentido cf., entre outros, os acórdãos da Relação de Lisboa de 14/02/2006, processo n.º 1133/2006-5[1] e de 26/11/2009, processo n.º 108/06.9SHLSB-AC.L1-9[2] (ambos acessíveis em www.dgsi.pt). O reexame da situação do arguido não dispensa, também neste caso, a ponderação sobre as exigências cautelares e a necessidade, adequação e proporcionalidade das medidas de coacção, princípios que subjazem à aplicação de qualquer medida, para além do termo de identidade e residência, bem como a natureza excepcional e subsidiaria da prisão preventiva, enquanto medida privativa da liberdade (artigo 193.º do Código de Processo Penal e 28.º da Constituição). Por outro lado, consagrando este artigo (375.º, n.º4 do C.P.P.) a possibilidade de alterar as medidas de coação a que o arguido está sujeito, importa ainda ter presente o artigo 212.º do C.P.P., que consagra o principio de que as medidas de coação só subsistem enquanto se mantiverem as circunstâncias que as determinaram (condição “rebus sic stantibus”) o qual, sendo normalmente utilizado para indeferir o pedido de substituição da prisão preventiva por medida menos gravosa, também se aplica nas situações em que está em causa a aplicação de medida mais gravosa que a anterior, no sentido de que, sem alteração das circunstâncias tidas em conta no despacho anterior que determinou a aplicação de uma determinada medida de coação não deverá haver alteração para a aplicação de uma medida mais desfavorável (neste sentido cf. acórdão do TRL já referido de 14/02/2006, em que é relator Vieira Lamim). No caso em apreciação os arguidos foram sujeitos inicialmente apenas a TIR e, posteriormente, vieram a ser sujeitos às medidas de proibição de não se ausentarem para o estrangeiro e de apreensão dos respectivos passaportes, nos termos dos artigos 191.°, n.° 1, 192.°, 103.°, 196.°, 200.°, n.° 1 b) e 204.°, a), todos do Código de Processo Penal e 18.°, n.° 2, da Constituição da República Portuguesa, com fundamento na existência de perigo de fuga. Conforme resulta do despacho junto aos autos, que determinou a aplicação de tais medidas, o perigo de fuga assentou, então, no facto de os arguidos terem dupla nacionalidade (brasileira e portuguesa), o que permite de modo mais facilitado saírem do país e dificultarem o normal andamento do inquérito; revelarem ter mobilidade geográfica, em virtude de terem locais de residência diferentes do local de trabalho (o local de trabalho indicado pelo arguido BB é “Arquipélago dos Açores” e o arguido AA trabalha na Ilha de São Jorge, apesar de residir na ilha do Pico); terem os arguidos escassas ligações à ilha do Pico e a possibilidade de poderem viajar em todo o espaço Schengen sem necessidade de passaporte. Na sequência do julgamento foram os arguidos condenados nas seguintes penas e crimes: - o arguido BB, na pena única de 10 (dez) anos de prisão, pela prática de seis crimes de abuso sexual de crianças p. e p. pelo artigo 171.º, nº1 do Código Penal, um crime de abuso sexual p. e p. pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal e um crime de actos sexuais de adolescentes p. e pelo artigo 173.º, n.º2 do Código Penal (estava acusado da prática de 854 crimes de coação sexual agravada e três crimes de violação agravada, sendo um deles na forma tentada, qualificação jurídica que foi alterada no decurso do julgamento), além da condenação em penas acessórias. - o arguido AA, na pena única de 6 (seis) anos de prisão, pela prática de três crimes de abuso sexual de crianças p. e p. pelo artigo 171.º, nº1 do Código Penal e dois crimes de actos sexuais de adolescentes p. e pelo artigo 173.º, n.º2 do Código Penal (estava acusado pela prática de 16 crimes de coação sexual agravada e de um crime de violação agravada na forma tentada, qualificação jurídica que foi alterada no decurso do julgamento), além da condenação em penas acessórias. Em face dessa condenação decidiu o tribunal alterar aquele estatuto coactivo dos arguidos e determinar a aplicação da medida de prisão preventiva por considerar que com a prolação do acórdão se intensificou o perigo de fuga e a prisão preventiva ser a única medida necessária para acautelar esse perigo, apontando para o efeito as seguintes razões: - terem sido aplicadas penas efetivas de prisão aos arguidos e não terem os mesmos reconhecido a prática dos factos dados como provados, nem formulado, quanto a eles, nenhum juízo critico ou de auto-censura, nem revelado arrependimento sincero conforme decisão condenatória; - terem os arguidos grande mobilidade geográfica pelo facto de partilharem ambos a mesma habitação na ilha do Pico, o arguido BB ter uma empresa de construção civil com sede em Velas, ilha de S. Jorge e o arguido AA trabalhar para essa sociedade a executar trabalhos de construção civil; - exercerem ambos os arguidos funções de facto na Igreja Evangélica, o que permite considerar que encontrariam apoio nessa comunidade religiosa, caso optassem por saírem do território nacional; - não terem os arguidos uma forte ligação a Portugal, país para onde emigraram em 2001, mas onde não têm familiares, que residem no Brasil; - serem os arguidos naturais e nacionais do Brasil e terem ainda nacionalidade portuguesa e como tal beneficiarem de liberdade de movimentos no espaço Schengen. Ambos os recorrentes se insurgem contra o juízo feito pelo tribunal recorrido quanto ao aumento do perigo de fuga e à alteração das exigências cautelares defendendo a manutenção das medidas anteriormente aplicadas, por entenderem, no essencial, que não houve qualquer incumprimento das medidas aplicadas, antes pelo contrário, não ter ocorrido qualquer facto novo revelador de um maior perigo de fuga, o agravamento da medida resultar apenas e tão só da condenação em penas de prisão efectivas e a medida aplicada não ser proporcional nem adequada. O recorrente BB invoca ainda a falta de fundamentação da decisão quanto à não suficiência da medida de obrigação de permanência na habitação em substituição da prisão preventiva e a inconstitucionalidade que no seu entender resulta dessa não fundamentação. É inquestionável que, com a condenação, ainda que esta não tenha transitado em julgado, houve um reforço dos já fortes indícios dos factos imputados aos arguidos, ainda que, face aos termos da condenação por comparação com o número de crimes que eram imputados aos arguidos na acusação, tenha diminuído, e muito, a gravidade global da ilicitude que lhes era imputada e foi essa global ilicitude que foi tida em conta quando foi definido o estatuto coativo dos arguidos antes da realização do julgamento. É também mais provável, em face da condenação em penas efectivas de prisão, que possa ter aumentado o impulso dos arguidos, que é próprio da natureza humana, de evitarem a privação da sua liberdade. Isso não significa, porém, que o perigo de fuga tenha efectivamente se intensificado pelas razões que o tribunal indica nem que as exigências cautelares imponham a necessidade de revisão das medidas de coação antes impostas aos arguidos. Para a avaliação quanto ao perigo de fuga previsto na alínea a) do artigo 204.º do C.P.P., importa considerar “a gravidade da pena cominada para o crime imputado e todas as circunstâncias que possam revelar a vontade, capacidade ou facilidade para o arguido se pôr em fuga, como por exemplo, a sua situação financeira, profissional e social, a sua personalidade e as ligações em países estrangeiros” (cf. Código de Processo Penal Comentado, 2014, p.880). As circunstâncias tidas como relevantes a esse propósito na decisão recorrida, para concluir quanto à intensificação desse perigo são, no essencial, as mesmas que o tribunal ponderou quando determinou a aplicação aos arguidos das medidas de proibição de não se ausentarem para o estrangeiro e de procederem à entrega dos seus passaportes - facto de terem mobilidade geográfica (por residirem juntos numa ilha e trabalharam noutra), terem nacionalidade brasileira e portuguesa e esta lhes conferir a possibilidade de se movimentarem no espaço Schengen sem necessidade de passaporte e não terem fortes ligações a Portugal por apenas aqui trabalharem e terem os seus familiares no Brasil. Apenas se acrescenta no despacho recorrido a circunstância de os arguidos terem sido condenados em penas efectivas de prisão e não terem reconhecido os factos dados como provados nem terem feito sobre eles um juízo crítico de censura, bem como o facto de os arguidos exercerem funções de facto como pastores da Igreja Evangélica e isso permitir considerar que encontrariam apoio nessa comunidade caso optassem por sair do território nacional. A circunstância de terem sido aplicadas penas efectivas de prisão apenas torna mais iminente a possibilidade de os arguidos virem a cumprir pena de prisão, mas essa possibilidade já existia quando os arguidos foram acusados pela prática de muitos mais crimes do que aqueles pelos quais foram condenados e quando lhes foram aplicadas as medidas de coacção com vista a prevenir o perigo de fuga. Como se entendeu no aresto deste tribunal de 14-02-2006, já citado, a condenação não transitada só tem a virtualidade de tornar essa iminência temporalmente mais próxima uma vez que o principio constitucional da presunção de inocência não permite atribuir outro valor àquela condenação, continuando o arguido a presumir-se, até ao trânsito em julgado da mesma, tão inocente como no início do procedimento criminal, pois que, constitucionalmente a inocência e a presunção desta não admitem graduação. O facto de os arguidos terem sido condenados em penas de prisão efectiva, sem mais, não pode, assim, servir de argumento para considerar mais intenso o perigo de fuga, nem as considerações quanto à culpa dos arguidos, designadamente quanto à sua postura face aos factos, constituem fundamento legal para a aplicação das medidas de coação. Por outro lado, o eventual apoio de que os arguidos podem beneficiar por parte da Igreja Evangélica para saírem do país (argumento já invocado pelo Ministério Público na sua promoção quanto às medidas de coação anteriormente aplicadas aos arguidos mas não considerado, então, pelo Sr. Juiz de instrução) é uma mera conjuntura, uma hipótese meramente abstracta, sem qualquer suporte. De todo o modo, pretendendo acautelar-se com o perigo de fuga também a acção ou intenção de o arguido impedir a acção da Justiça[3] e estando em causa, após o julgamento, a execução da sentença e o receio de que o arguido se possa furtar ao cumprimento da pena enquanto não ocorre o trânsito em julgado daquela, existindo já no caso dos autos uma previsibilidade mais séria, do que antes da realização do julgamento, de que os arguidos irão ter de cumprir pena de prisão, não se pode ainda assim considerar, em face do que resulta dos autos, uma maior intensificação desse perigo a justificar a alteração do estatuto coactivo dos arguidos. Os arguidos estiveram sempre em liberdade a aguardar o julgamento e tanto quanto resulta dos autos e do acórdão condenatório estiveram presentes na audiência, inclusive na leitura da decisão, cumpriram as medidas de coação que lhes foram aplicadas, tendo inclusive entregado os respectivos passaportes ainda antes de ter sido ordenada a sua apreensão, e, apesar de terem tenham dupla nacionalidade (brasileira e portuguesa) é em Portugal que residem e trabalham desde 2001, em especial nos Açores onde o arguido BB tem sedeada uma empresa na área da construção civil para a qual o arguido AA. Os arguidos continuam a manter familiares no Brasil, mais o arguido AA do que o arguido BB, é certo, mas daí não resulta que tenham escassas ligações a Portugal, onde vivem e trabalham há mais de 20 anos. Se os arguidos cumpriram até ao julgamento todas as medidas de coação que lhes foram aplicadas para acautelar precisamente o perigo de fuga e estiveram presentes em julgamento, porquê alterar esse estatuto coactivo, se não é invocada uma circunstância ou facto novo de onde resulte, ainda que em termos de probabilidade séria, a intenção de que os arguidos, conhecedores que são agora da decisão, se pretendem eximir à acção da Justiça e ao cumprimento das penas? É certo que do acórdão condenatório resulta uma maior previsibilidade e proximidade temporal de os arguidos terem de cumprir penas privativas da liberdade, mas não se vislumbra um agravamento do perigo de fuga, que está acautelado pelas medidas de coação já anteriormente aplicadas. Não tem razão de ser nos dias de hoje o exemplo da fuga do Padre Frederico para o Brasil, há já longos anos, uma vez que existem hoje mecanismos de cooperação internacional que permitem a execução da pena que vier a ser aplicada aos arguidos, ainda que os mesmos se possam pôr em fuga para o Brasil[4]. Assim, não tendo existido qualquer alteração das circunstâncias que determinaram a aplicação aos arguidos de um estatuto coactivo mais gravoso do que aquele que antes lhes havia sido aplicado, a não ser a circunstância de ter sido proferida sentença condenatória que condenou os arguidos a penas de prisão efectiva, não pode deixar de se considerar a prisão preventiva aplicada como uma antecipação da pena, finalidade que a mesma não tem e que afronta a presunção de inocência e, até mesmo, citando o aresto deste tribunal, já referido, de 14/02/2006, «o direito a um processo leal que permita aos seus intervenientes ter confiança em quem o conduz, por forma que seja legítima a expectativa de quem está sujeito a uma medida de coacção de que, caso cumpra as obrigações dela derivadas e não haja alteração superveniente das circunstâncias que a determinaram, a sua situação coactiva não será agravada». Termos em que, se conclui no sentido da procedência dos recursos e consequente revogação da medida de prisão preventiva que foi aplicada aos arguidos/recorrentes, impondo-se a sua restituição à liberdade, com sujeição às anteriores medidas de coação. III–Decisão. Pelo exposto, acordam, os Juízes, na 5ª Secção deste Tribunal da Relação, em conceder provimento aos recursos interpostos pelos arguidos e, em consequência, em determinar a imediata libertação dos arguidos, que aguardarão os ulteriores termos do processo em liberdade, mediante as medidas de coacção a que foram sujeitos nos autos ainda no decurso do inquérito. Sem custas. * Passe os competentes mandados de libertação dos arguidos. * Comunique-se, de imediato, o teor do presente acórdão à 1ª instância e ao processo de recurso do acórdão condenatório que, entretanto, deu entrada neste tribunal (9ª secção). Lisboa, 19 de Setembro de 2023 (Texto processado e revisto pela relatora – art.º 94.º, n.º 2 do C.P.P.) (Maria José Costa Machado– relatora) (Carla Francisco – 1.ª Adjunta) (Paulo Barreto – 2.º Adjunta) [1]Em cujo sumário se pode ler: I. (…) II- No regime legal instituído, a sentença condenatória não tem como efeito imediato a necessidade de agravar a(s) medida(s) de coacção fixadas aos arguidos na pendência do processo, nem mesmo quando a condenação o seja em pena de prisão. III. (….) IV- A prisão preventiva não pode surgir como uma antecipação da pena no respeito pela presunção de inocência com assento na nossa Lei Fundamental (arts. 27.º, nº 2 e 32.º, nº 2, da CRP). V. (…..) VI- À luz do nosso ordenamento jurídico-constitucional, é insustentável decretar a prisão preventiva como mera consequência da condenação em pena de prisão. [2]Em cujo sumário se diz: I – O princípio da presunção de inocência não permite atribuir à condenação não transitada valor superior que o de comprovação de fortes indícios da prática do crime por que o agente foi condenado, pois a inocência e a presunção desta não admitem graduação. (….). [3]Segundo Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, edição de 2008, vol. II, p. 285/286,« as medidas de coacção são meios processuais de limitação da liberdade pessoal dos arguidos que têm por fim acautelar a eficácia do procedimento, quer quanto ao seu desenvolvimento, quer quanto à execução das decisões condenatórias. [4]Designadamente a CONVENÇÃO SOBRE A TRANSFERÊNCIA DE PESSOAS CONDENADAS ENTRE OS ESTADOS MEMBROS DA CPLP., , de 23 de Novembro de 2005, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 48/2008. |