Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
157/21.7PGCSC.L1-9
Relator: MARIA DO ROSÁRIO SILVA MARTINS
Descritores: POLICIA MUNICIPAL DE CASCAIS
COMPETÊNCIAS LEGAIS
CONDUÇÃO DE VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
TESTE QUANTITATIVO
MEIO DE OBTENÇÃO DE PROVA PROIBIDA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I–A prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez apenas pode ser provada através de prova pericial, mais propriamente, um teste quantitativo -, pois apenas desse modo se obtém, com a clareza e certeza necessárias, o valor real da taxa de álcool no sangue do condutor e agente infractor;
II–Como resulta do artigo 4º, alínea b), da aludida Lei nº 19/2004, a Polícia Municipal tem competência para a fiscalização do cumprimento das normas de estacionamento de veículos e de circulação rodoviária, mas está excluída a participação de acidentes de viação que envolvam procedimento criminal, logo as Polícias Municipais são serviços municipais especialmente vocacionados para o exercício de funções de polícia administrativa, sendo vedado às polícias municipais o exercício de competências próprias dos órgãos de polícia criminal;
III–Assim e uma vez que está vedado às polícias municipais o exercício de competências próprias dos órgãos de polícia criminal, esta não tinha competência para determinar à arguida a realização do exame para quantificação da taxa de álcool no sangue através do ar expirado, que se traduz indubitávelmente numa recolha de prova em ordem à sua apresentação a julgamento pela prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, com observância das formalidades previstas no artigo 153º, do Código da Estrada e que nestas se incluem, manifestamente a sobredita;
III– O teste quantitativo faz prova plena em Tribunal, pelo que a sua recolha deve respeitar os direitos do arguido. Assim, o que a Polícia Municipal deverá fazer, assim que detecte a existência de álcool no sangue de um/a arguido/a com valor apto a levar a uma incriminação em termos penais era, ou levar o/a arguido/a até à PSP territorialmente competente, de imediato, ou, melhor ainda, ter chamado a PSP até ao local para o visado ser, por esta, levado até à competente esquadra a fim de realizar o teste quantitativo, a Polícia Municipal não pode continuar a deter um arguido para o submeter a um segundo teste, agora o quantitativo, tendo ao invés que o entregar de imediato, ou no mais curto espaço de tempo possível à PSP. Logo ao levar o visado do local onde o mesmo fora detido em flagrante delito, para lugar diverso do da autoridade policial competente, ao proceder à obtenção de uma prova cuja recolha não lhe competia e que excedia as suas competências legais, pois que tal segunda prova não era necessária para se constatar a existência de indícios de crime, e ao continuar a restringir a liberdade constitucionalmente consagrada do arguido para efectuar um segundo teste que não competia à Polícia Municipal efectuar, dúvidas não temos de que a respectiva prova daí resultante, a leitura da TAS proveniente do teste quantitativo, é nula nos termos do disposto no artº 126º nºs 1 e 2 al.s. a) e c) do Código de Processo Penal;
IV– Em abono da reintegração do direito a uma polícia que actue no quadro constitucional e legal vigentes, e no respeito pela liberdade e segurança de todos os cidadãos, impõe-se a adopção de mecanismos, tendentes ao respeito pela vinculação funcional (artigos 237.º, n.º 3 e 272.º, n.º 2, 32.º, n.º 1 e 8 da C.R.P) que simultaneamente comportam o princípio da tipicidade das medidas de polícia e, por outro, proíbem o excesso, espelhado nos autos e, através do qual foi obtida prova ilícita a qual, por motivos de ordem e aplicação do regime constitucional do Estado de Direito e das proibições de prova em processo penal, tem de ser desconsiderada, e não podendo ser utilizada (artigos. 161.º, n.º 1 e 2 al. d) do C.P.A e 126.º, n.º 1 e 2 do C.P.P).


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordaram, em conferência, os Juízes Desembargadores da 9ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:


I–RELATÓRIO


I.1.Por sentença proferida em 17.11.2021 foi a arguida AA absolvida da prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, nº1 do Código Penal.
*

I.2. Recurso da decisão

O Ministério Público interpôs recurso da decisão, apresentando as seguintes conclusões (transcrição parcial):

“(…)
5.-Existe, assim, uma manifesta insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do disposto no artigo 410.°, n.° 2, al. a), do Código de Processo Penal, porquanto o Tribunal a quo decidiu dar como provado o “facto 3.”, não fazendo alusão ou identificação do elemento probatório que terá conduzido o Tribunal a quo à decisão de dar como provado que a arguida interceptada pela Polícia Municipal de Cascais realizou teste de álcool através do analisador do ar expirado (de despiste qualitativo), e acusou o resultado aproximado identificado no “facto 3”.
6.-Porquanto, cremos não ter sido com base em prova testemunhal, já que a testemunha inquirida, BB – agente da polícia municipal, não indicou qualquer valor, tendo referido que não se recordava do resultado obtido, em instâncias do Mmo. Juiz e na confissão da arguida, não certamente, uma vez que a mesma não mencionou qualquer resultado no teor das suas declarações.
7.-A par, cremos também não ter sido com base em prova pericial, porquanto como se antecipou e como resulta inclusivamente do esclarecimento do Mmo. Juiz, do primeiro teste, melhor dizendo, do teste qualitativo não sai qualquer talão.
8.-Existe contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, nos termos do artigo 410.°, n.° 2 al.) b, do Código de Processo Penal porquanto se verifica uma contradição entre os factos provados (mormente o facto 3.) e os factos não provados (mormente facto I), já que
9.-O Tribunal a quo deu, simultaneamente, como provado que a arguida, interceptada pela Polícia Municipal de Cascais realizou teste de pesquisa de álcool no sangue através de analisador qualitativo, dando como provado que o mesmo tinha uma taxa 1,55 g/l de sangue, e, simultaneamente, deu como não provado que: “A Arguida, nas circunstâncias indicadas em 1, conduzia com uma TAS de 1,90 g/l de álcool no  sangue, a que corresponde uma TAS de 2,07g/l de valor apurado, deduzido o erro máximo admissível”
10.-Em suma, o Tribunal deu como provado, simultaneamente, que a arguida foi submetida a teste de álcool através do analisador do ar expirado e acusou o indicado resultado de 1,55g/l e que a arguida não conduzia com uma taxa de álcool no sangue superior à taxa crime de 1.2 g/l de sangue, e ao fazê-lo
11.-Faz enfermar a sentença de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão porquanto o Tribunal a quo deu como provado, simultaneamente, um facto e o seu contrário.
12.-Enferma ainda a sentença de Contradição na decisão da fundamentação da matéria facto, porque ao que se presume (atento o supra exposto), o Tribunal a quo, presume-se, terá decidido considerar qualquer elemento – como se disse, desconhecido - da lavra dos agentes da polícia municipal para dar como provado uma taxa de álcool no sangue registada por aparelho de despiste quantitativo, já que no processo não existe qualquer talão ou outro elemento de prova pericial ou documental que ateste o resultado de tal teste.
13.-E não existe, porque não deveria existir, porque se trata somente de um teste qualitativo – e não quantitativo – que não é inteiramente válido e fidedigno para apurar o resultado quantitativo de teor de álcool por litro de sangue, já que «Essa determinação ou quantificação, para aquele efeito só pode validamente resultar, como decorre do mencionado regulamento, de teste efectuado por analisador quantitativo ou por método biológico, através de análise ao sangue» (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, processo 413/16.6GEALR, disponível em www.dgsi.pt).
14.-Ora, se não existe qualquer prova documental do resultado do teste qualitativo, então, para se dar como provado o facto «3–Os elementos da Polícia Municipal determinaram à Arguida a exibição dos seus documentos e dos documentos da viatura, assim como a realização de teste de álcool, através de analisador qualitativo, que deu o resultado de 1,55g/l de sangue», só poderá o tribunal ter-se recorrido de algum elemento documental que se desconhece – mas como tribunal também refere na sua sentença «a prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez apenas pode ser provada através de prova pericial»;
15.-Ou de eventual prova testemunhal – mas como o Tribunal a quo disse, e bem, a prova testemunhal não pode servir para dar como provado facto decorrente de análise realizada por aparelhos técnicos de medida.
16.-Ora, se a prova testemunhal não vale para o resultado do teste quantitativo por maioria de razão não vale para o resultado do teste qualitativo e, no nosso entender, não se pode admitir prova testemunhal para dar como provado um resultado de um teste qualitativo e não admitir essa mesma prova para dar como provado outro resultado de um teste quantitativo.
17.-E, mais se «a prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez Apenas pode ser provada através de prova pericial mais propriamente, um teste quantitativo», contesta-se como pôde o tribunal a quo dar como provado que a arguida conduzia com uma taxa de álcool de 1,55 g/l de sangue, se esse resultado é o resultado obtido através do teste qualitativo (não pericial)
18.-Já que, veja-se, mais à frente, na motivação, o mesmo tribunal a quo refere «Ora, no caso os elementos da Polícia Municipal surpreenderam a Arguida na prática de um crime condução sob efeito do álcool ), havendo indícios claros da  prática do mesmo (acusou 1, 55 g/l no teste qualitativo). E nem se diga que o flagrante delito que justifica a detenção ocorre apenas com a realização  do teste quantitativo do álcool. De facto, nesse caso estamos já perante diligências de prova que visam provar (através de prova pericial) que a Arguida conduzia com taxa de álcool no sangue superior a 1,2 g/l.»
19.-Parece-nos existir manifesta contradição, porquanto, ou se admite ambos os resultados através de prova testemunhal / confessional e teste qualitativo, ou se rejeita ambos os resultados dos testes de pesquisa de álcool no sangue por não estarem assentes num teste quantitativo.
20.-Ao decidir como decidiu, o tribunal a quo faz enfermar a sentença proferida uma contradição insanável na fundamentação sobre os factos considerados provados (artigo 410.° n.° 1 al. b) do CPP).
21.-Existe erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 410.°, n.° 2, al. c), do Código de Processo Penal, porquanto o Tribunal a quo valorou de forma errada o resultado obtido pelo teste de pesquisa de álcool no sangue por ar expirado – teste qualitativo – o primeiro teste realizado pelo condutor arguido.
22.-O Tribunal permitiu-se valorar e considerar o valor de alcoolemia que resultou desse teste para efeitos de verificação de uma taxa de alcoolemia no sangue, para efeitos de flagrante delito, para eventual detenção, contudo tal teste serve, apenas, para aferir se o condutor acusa ou não álcool no sangue, mas é totalmente juridicamente irrelevante o valor que o aparelho exibe.
23.-O Tribunal a quo entendeu que, perante um resultado positivo no teste qualitativo – o valor de alcoolemia concretamente registado e indicado pelo aparelho deveria ser valorado, mormente caso o aparelho “acuse” um valor superior a 1,2 g/l de sangue, havendo, no entender do Tribunal, logo nesse momento um flagrante delito.
24.-Em nosso entender, tal conclusão está incorrecta, porquanto se assim fosse, jamais haveria lugar à prática do crime de desobediência por recusa de submissão ao teste quantitativo de pesquisa de álcool no sangue, bastaria o resultado do teste qualitativo, conforme esclarece no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, processo 413/16.6GEALR,
Na verdade, a detecção da presença de álcool no sangue pode ser feita por meio de analisador qualitativo ou quantitativo de ar expirado, mas a determinação ou quantificação da taxa de álcool no sangue só pode ser validamente efectuada por analisador quantitativo de ar expirado ou por métodos biológicos. Uma coisa é detecção da presença de álcool no sangue e outra é determinação ou  quantificação da taxa de álcool no sangue.
Ora, para o preenchimento do tipo legal de crime do art.292°, do Código Penal, não basta qualquer indício de presença ou influência de álcool na condução, sendo necessária uma determinação concreta, através de valores exactos de montante igual ou superior a 1, 2 g/l TAS, sendo que a conversão dos valores de teor de álcool no ar expirado [TAE] em teor de álcool no sangue [TAS] é baseada no princípio de que 1 mg de álcool por litro de ar expirado é equivalente a 2,3 gramas de álcool por litro de sangue (art.81°, n°4 do Código da Estrada).
É, assim, necessária a determinação do teor de álcool no sangue para efeitos da consumação do crime de condução em estado de embriaguez tipificado naquele preceito. Essa determinação ou quantificação, para aquele efeito só pode validamente resultar, como decorre do mencionado regulamento, de teste efectuado por analisador quantitativo ou por método biológico, através de análise ao sangue»,
25.-Porquanto, perante um resultado positivo no teste qualitativo não seria exigível a realização do teste quantitativo, pois o primeiro valeria como prova.
26.-Daqui se retira que está incorrecta a conclusão extraída pela Tribunal a quo na sentença, de que “Ora, no caso os elementos da Polícia Municipal surpreenderam a Arguida na prática de um crime condução sob efeito do álcool ), havendo indícios claros da prática do mesmo (acusou 1,55 g/l no teste qualitativo). E nem se diga que o flagrante delito que justifica a detenção ocorre apenas com a realização do teste quantitativo do álcool. De facto, nesse caso estamos já perante diligências de prova que visam provar (através de prova pericial) que a Arguida conduzia com taxa de álcool no sangue superior a 1,2 g/l. ”,
27.-É que, no entender do Tribunal a quo, após a realização do teste qualitativo, o deveria ter havido, logo de imediato, lugar a uma detenção em flagrante delito por se ter verificado logo a consumação do crime – motivo pelo qual, na motivação da sentença, é referido que, após a obtenção de resultado positivo (e superior a 1,2 gramas/litro de sangue), o visado deve ser entregue ao órgão de polícia criminal, na respectiva esquadra, e não transportado ao departamento desta polícia municipal.
28.-O flagrante delito apenas se verifica após realização do teste quantitativo em aparelho técnico especificamente homologado para esse efeito – como aliás até refere o tribunal a quo, num primeiro momento, da sua sentença,
29.-E, só então, perante uma taxa superior a 1.2 g/l, se encontra verificada a prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez. Antes disso, caso o condutor se recuse efectuar o teste quantitativo, incorrerá o mesmo na prática do crime de desobediência, mas não no crime de condução de veiculo em estado de embriaguez.
30.-No que concerne à errada interpretação e aplicação da lei, cabe esclarecer que o tribunal a quo considera que a Polícia Municipal não tem competência para realizar a recolha de prova pericial, consubstanciada na realização de testes quantitativos de despistagem de álcool no sangue, a um condutor mantido sob detenção, o implica que esses testes deverão ser considerados prova proibida.
31.-O Tribunal a quo entendeu, erradamente, que a Policia Municipal, perante um resultado positivo de álcool no sangue do condutor, não pode transportar o condutor em viatura policial até ao Departamento da Polícia Municipal.
32.-Resulta precisamente o contrário do artigo 2°, n.s 1 e 2, da Lei n.° 18/2007, de 17 de Maio, que aprovou o Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, que estabelece que “Quando o teste realizado em analisador qualitativo indicie a presença de álcool no sangue, o examinando é submetido a novo teste, a realizar em analisador quantitativo” (...) sendo que ”o agente da entidade fiscalizadora acompanha o examinando ao local em que o teste possa ser efectuado, assegurando o seu transporte, quando necessário.”
33.-O princípio é que a entidade fiscalizadora efectua transporte do visado para submissão a teste em analisador quantitativo, pelo que não se pode afirmar que o condutor está detido, pois não há qualquer situação de detenção até que uma de duas situações ocorra: ou se recuse a submeter-se ao teste quantitativo (caso em que haverá flagrante delito de desobediência), ou, submetendo-se a teste quantitativo, acuse uma TAS superior a 1.2 g/l.
34.-Não colhe o argumento de que o transporte da arguida equivale materialmente a uma detenção – como é referido na sentença – porque, no seu dizer, após intercepção a arguida é reencaminhado ao carro de patrulha da polícia municipal e coligida a acompanhar os agentes,
35.-Porquanto tal argumento levaria – no limite – a idêntico raciocínio no que concerne ao acto de colocação de algemas de qualquer indivíduo (detido, preso ou condenado), no sentido de configurar – e servindo-nos de exemplo desproporcionado para ilustrar o desmesurado raciocínio -, então (no limite) um crime de evasão, na forma tentada (artigo 352.° do Código Penal) ou um crime de resistência e coacção sobre funcionário, na forma tentada (artigo 347.° do Código Penal), quando a arguida simplesmente não coopera no momento de colocação de algemas, por exemplo, ocultando ou não estendendo os pulsos para o efeito, quando tal lhe é solicitado pela autoridade policial.
36.-O Tribunal a quo, entendeu que a Polícia Municipal não tem competência para submeter os condutores ao teste do alcoolímetro quantitativo, contudo, em processo análogo, o Tribunal da Relação de Lisboa no Acórdão proferido a 29 de Julho de 2020, no proc. n.° 34/20.9PBCSC, entendeu precisamente o oposto, assim como se nos afigura legal e enquadrada a actuação da polícia municipal atento o quadro legal vigente.
37.-Porquanto, preceitua o art. 1.°, n.° 1 da Lei n.° 19/2004, de 20 de Maio [Lei da Polícia Municipal] queas polícias municipais são serviços municipais especialmente vocacionados para o exercício de funções de polícia administrativa, com as competências, poderes de autoridade e inserção hierárquica definidos na presente lei”, sendo que, nos termos do n° 2 do art. 3.° da citada Lei «as polícias municipais cooperam com as forças de segurança na manutenção da tranquilidade pública e na protecção das comunidades locais».
38.-E, pese embora lhes seja vedado o exercício de competências próprias dos órgãos de polícia criminal e fiscalização de circulação rodoviária, nos casos de acidentes de viação que envolvam procedimento criminal, “As polícias municipais, na prossecução das suas atribuições próprias, são competentes em matéria de detenção e entrega imediata, a autoridade judiciária ou a entidade policial, de suspeitos de crime punível com pena de prisão, em caso de flagrante delito, nos termos da lei processual penal.” (artigo 4.° n.° 1 al. b) e e) da citada lei).
39.-Não obstante a Polícia Municipal ser expressamente qualificada como Polícia Administrativa, entendemos, face ao quadro legal vigente, que a mesma não está privada de competências próprias de órgãos de polícia criminal, nomeadamente, competência para regulação e fiscalização do trânsito rodoviário, o que compreende a competência para a fiscalização da condução sob a influência do álcool, podendo realizar os meios de pesquisa de álcool no sangue incluindo, pois, o teste quantitativo (neste sentido, como já se referiu supra, Rui Cardoso, na Revista do Ministério Público 161, “Órgãos de Polícia Criminal: o que são, os que são e os que não são”:
«(...) São, pois, entidades fiscalizadoras para efeitos do disposto no artigo 153.° do Código da Estrada (e da Lei n.º 18/2007 - Aprova o Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas);
Nisso, podem utilizar todas as formas de realização de exame de pesquisa de álcool no sangue (incluindo, pois, o quantitativo e até a colheita de sangue). Recorde-se que a lei não faz qualquer distinção – nem podia – entre prova da contra-ordenação e prova do crime: só após o resultado final é que se saberá se se está perante uma ou outra infracção. Assim, as polícias municipais podem realizar exames quantitativos. Sendo a taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, podem fazer a detenção (em flagrante delito) e levantar auto de notícia»
40.-Como doutamente se defendeu no já citado Acórdão da Relação de Lisboa de 29 de Julho de 2020, (proc. n.° 34/20.9PBCSC):
«(...) o artigo 4° n° 1 alínea e) da Lei n.° 19/2004, inclui entre as competências próprias da polícia municipal, a detenção e entrega imediata, a autoridade judiciária ou a entidade policial, de suspeitos de crime punível com pena de prisão, em caso de flagrante delito, nos termos da lei processual penal. Pese embora não deva usar do prazo de 48 horas previsto no art. 254° n° 1 al. a) do CPP, a alusão a entrega  imediata reforça a necessidade de o detido ser entregue com urgência, no mais curto espaço de tempo possível, mas é compatível com a elaboração do auto de notícia pela polícia municipal, o qual não prescinde da realização prévia do teste quantitativo do álcool e, uma vez realizado este e obtida uma TAS superior a 1,20 gr/litro está perfeitamente consolidado o flagrante delito (...)
Os agentes das polícias municipais somente podem deter suspeitos no caso de crime público ou semi-público punível com pena de prisão, em flagrante delito, cabendo-lhes proceder à elaboração do respectivo auto de notícia e detenção e à entrega do detido, de imediato, à autoridade judiciária, ou ao órgão de polícia criminal.
Os mesmos agentes podem e devem, uma vez detectada a existência de álcool no  sangue, no teste qualitativo, proceder também ao teste quantitativo.
Daí que a detenção da pessoa visada, para o efeito de ser sujeita àqueles dois testes, não é ilegal, desde que seja entregue ao OPC competente, no mais breve tempo possível. (...)»
E conclui dizendo que: «Ora, no caso vertente, estando ou não detido, estando detido de forma lícita ou ilícita, a arguida sempre teria de ser submetido ao teste quantitativo do álcool e este teste sempre acusaria a taxa de 1,24 gr/litro, deduzido o erro máximo admissível, dada a natureza obrigatória do exame e em face dos critérios estritamente técnicos e científicos em que assenta este tipo de prova.
Não se trata, em rigor, de obter uma prova à custa da privação da liberdade da arguida de forma abusiva e fora das condições legais em que são admissíveis restrições à sua liberdade individual. É um exame objectivo, realizado por um dispositivo que sempre teria de ser levado a cabo, não tendo a detenção qualquer influência no resultado.
Tudo isto para concluir que há contradição insanável entre a matéria de facto e da decisão e erro notório na consideração da detenção como ilegal e na atribuição de efeito remoto ao teste quantitativo de pesquisa do álcool que é plenamente válido e eficaz, pelo que a factualidade apurada e fixada na sentença recorrida jamais poderia ter alicerçado a absolvição da arguida, como alicerçou. (...) Anular a decisão proferida nos autos por contradição insanável entre a matéria de facto e a decisão e erro notório na  apreciação da prova.»
41.-A questão de fundo apreciada no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa mencionado é precisamente a mesma em discussão nestes autos.
42.-O Tribunal a quo deveria ter valorado o resultado da prova pericial (resultado do teste quantitativo de pesquisa de álcool no sangue) e, face à demais prova produzida, deveria ter condenado a arguida pela prática do crime de condução de veiculo em estado de embriaguez.
43.-No caso dos autos, os Agentes da Polícia Municipal presenciaram, no exercício das suas funções, a arguida a conduzir um veículo automóvel numa via pública e solicitaram-lhe que realizasse o teste qualitativo de álcool no sangue.
44.-Tendo procedido à sua detenção, após a confirmação de que a arguida incorria na efectiva prática do crime em apreço (isto é, após obtenção de resultado superior a 1,2 gramas/litro de sangue, através de teste quantitativo), e em observância do pressuposto a ocorrência de um crime público ou semi-público, punível com pena de prisão e em situação de flagrante delito.
45.-O Agente da Polícia Municipal, no exercício das suas funções, fiscaliza um arguido, condutor de um veículo automóvel na via pública, submete-o a teste qualitativo de pesquisa de álcool no sangue e, obtendo uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admissível, tem, seguidamente, de realizar o necessário teste quantitativo (o que se insere no âmbito das competências da Polícia Municipal), e só depois deste teste é que se obtém prova segura de que o visado conduz com uma taxa de álcool superior à legalmente admitida, pelo que só neste momento é que pode elaborar o competente auto de notícia e deter o infractor em flagrante delito.
46.-Ora é entendimento do Tribunal a quo que se o primeiro teste (qualitativo) apresentar, desde logo, resultado superior a 1,2 g/l, os Agentes da polícia municipal estão diante de um flagrante delito da prática de um crime, e está legitimada uma detenção, o que poderá ser confirmado, depois, com o resultado a obter através do teste quantitativo (exame de índole pericial), a realizar pelos órgãos de polícia criminal, na respectiva esquadra.
47.-Ora, a conclusão lógica será precisamente a inversa da conclusão extraída pelo Tribunal a quo, ou seja, só após a realização de teste quantitativo (que é o único com valor probatório) só então se saberá se estamos perante um flagrante delito da prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez e só, então, poderá haver lugar a uma detenção em flagrante delito.
48.-Reforçando e esclarecendo o entendimento do MINISTÉRIO PÚBLICO, evidencia-se o Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República, no seu Parecer PGRP0002971 de 08.05.2008, formulou as conclusões que supra se plasmaram, e para cuja leitura se remete, salientando-se somente a seguinte conclusão
13.ª – De acordo com o disposto no artigo 4.°, n.° 1, alínea f), da Lei n.° 19/2004, e do artigo 249.°, n.os 1 e 2, alínea c), do CPP, os órgãos de polícia municipal devem, perante os crimes de que tiverem conhecimento no exercício das suas funções,  praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova, até à chegada do órgão de polícia criminal competente, competindo-lhes, nomeadamente, proceder à apreensão dos objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime, os que constituírem o seu produto, lucro, preço ou recompensa, e bem assim todos os objectos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros susceptíveis de servir a prova (artigo 178.°, n.° 1, do CPP).
49.-Também não colhe o argumento de a realização de teste de pesquisa de álcool em ar expirado não poder ser realizada pelos agentes da Polícia Municipal, uma vez que os mesmos não têm competência para diligenciar pela realização deste meio de prova, por configurar este uma diligência de investigação criminal, mormente um meio de prova pericial,
50.-Considerando que nos encontramos perante uma questão não líquida, com decisões díspares nos nossos tribunais sobre a questão (vejam-se no sentido de que não se trata de prova pericial, Paula Melo, Condução sob influência do álcool – Apreciação dos meios de prova, Maia Jurídica, Revista de Direito, Ano II, n.º 2, Julho-Dezembro de 2004 e, em sentido inverso, no sentido de que os métodos alcoolímetros consistem em actos de prova preconstituída, de carácter pericial, Benjamim Rodrigues, Da prova penal, Tomo I, Coimbra 2008, p. 117.).
51.-Considerando que o teste de pesquisa em ar expirado não é realizado sobre prévia determinação (ou autorização) da autoridade judiciária, encontrando-se os órgãos de polícia criminal completamente habilitados a realizá-lo, sem que, para isso, tenha de intervir ou controlar o MINISTÉRIO PÚBLICO ou o Juiz de Instrução e que o resultado obtido de tal teste não configura uma apreciação crítica de um técnico habilitado para o efeito sobre os dados obtidos junto do visado, mas antes uma análise química realizada por um aparelho preparado para o efeito,
52.-afigura-se-nos que o talão de alcoolímetro se aproxima mais de uma mera constatação dos elementos clínicos e biológicos do visado, e menos de uma interpretação de elementos passível de ser analisada, concluída e esclarecida exclusivamente por um perito, pelo que,
53.-Sempre se dirá que, não só não é líquido o entendimento sobre tal exame se tratar de uma prova pericial – podendo constituir o talão de alcoolímetro prova documental – como, ademais, caso a polícia administrativa não pudesse levar a cabo prova pericial, também não o podiam os órgãos de polícia criminal sem o prévio despacho da autoridade judiciária.
54.-A sentença recorrida funda-se, ainda, no argumento de que a ilegalidade da manutenção da detenção da arguida gera a nulidade do teste quantitativo efectuado ao mesmo, considerando que tal ilegalidade contamina a validade desse teste.
55.-Como já referido, a prova resultante da realização do teste quantitativo não foi obtida à custa da privação da liberdade da arguida de forma abusiva ou fora das condições legais em que sãos admissíveis restrições à sua liberdade individual.
56.-Em todo o caso, a nosso ver, essa situação em nada influencia a obrigatoriedade de o mesmo ser submetido ao teste quantitativo de pesquisa de álcool no sangue, que é obrigatório nos termos dos artigos 152.° e 153.° do Código da Estrada.
57.-Assim, quer em liberdade, quer detido licita ou ilicitamente, sempre a arguida teria de ser submetida a tal teste, já que o mesmo é obrigatório.
58.-O que equivale a dizer que o facto de estar detido mantido sob detenção em nada influencia, nem influenciou a realização do teste quantitativo, sobretudo, mais considerando, que no caso dos autos, os factos em análise (abordagem da arguida, sua submissão ao teste qualitativo e posterior submissão ao teste quantitativo) decorreram de forma pacífica, sem qualquer uso (por manifestamente desnecessário) de força ou de intimidação.
59.-Ao decidir como decidiu, o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 374.° n.° 2 do Código de Processo Penal, incorrendo nos vícios da sentença previstos nos artigos 410.° n.° 2 al. a) b) e c) do Código de Processo Penal e na incorrecta interpretação e aplicação da lei, mormente nos artigos 3.° e 4.° da Lei n.° 19/2004, de 20 de Maio.
60.-Em suma, deve a Sentença proferida anulada e substituída por outra que decida dar como provados todos os factos constantes da acusação, dos quais decorre o preenchimento dos pressupostos do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292.°, n.° 1 e 69.°, n.° 1, alínea a) do Código Penal,
61.-Em suma, devem ser dados como provados todos os factos constantes da acusação e, designadamente, os indicados na sentença como não provados, dos quais decorre o preenchimento dos pressupostos do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292.°, n.° 1 e 69.°, n.° 1, alínea a) do Código Penal, devendo a arguida ser condenada pelo crime pelo qual veio indiciada.”
Pugna pela revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que condene a arguida pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, nº1 do Código Penal.
*

I.3. Resposta da Arguida
A arguida na resposta ao recurso, pugnou pela improcedência do recurso, concluindo que “a Polícia Municipal não tem competência legal para realizar ela própria testes quantitativos de pesquisa de álcool no sangue, sendo os resultados assim obtidos prova proibida em processo penal, não podendo ser valorada, o que determina a absolvição da arguida.”
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1.4. Parecer do Ministério Público
Nesta Relação o Ministério Público emitiu parecer favorável ao provimento do recurso, aderindo aos fundamentos elencados no recurso do Ministério junto do tribunal recorrido.
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1.5.Resposta da Recorrente
Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, n.º 2 do CPP, tendo sido apresentada resposta ao parecer do Ministério Público.
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1.6.Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.
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IIFUNDAMENTAÇÃO

1- Questões a decidir
Conforme jurisprudência constante e assente, é pelas conclusões apresentadas pelo recorrente que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior (cfr. Acórdão do STJ, de 15/04/2010, in http://www.dgsi.pt: “Como decorre do artigo 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões (…)”, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95).
Assim, face às conclusões extraídas pelo recorrente as questões a apreciar e decidir são as seguintes:
1ª-Saber se a decisão recorrida enferma dos vícios constantes nas als. a), b) e c) do n.º 1 do artigo 410º do C.P.P.;
2ª-Saber se a decisão recorrida incorreu numa incorrecta interpretação e aplicação da lei, mormente nos artigos 3º e 4º da lei 19/2004, de 20.05.
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2- Sentença Recorrida (transcrição dos segmentos com interesse para a apreciação do recurso)

“III.FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:

a)- Factos provados:

Com importância para a presente decisão, o Tribunal considerou provados os seguintes factos:
i) Da Acusação:
1–No dia 15 de Abril de 2021, cerca das 23h00, a Arguida conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros “………….”, de matrícula XXXXXX, na Rua …………., em Carcavelos.
2–Nessa sequência, a Arguida foi mandada parar por elementos da Polícia Municipal de Cascais que se encontravam no local.
3–Os elementos da Polícia Municipal determinaram à Arguida a exibição dos seus documentos e dos documentos da viatura, assim como a realização de teste de álcool, através de analisador qualitativo, que deu o resultado de 1,55 g/l de sangue.
4–Após, os elementos da Polícia Municipal conduziram a Arguida às instalações do Departamento de Polícia da Câmara Municipal de Cascais, onde realizaram teste de pesquisa de álcool no sangue através de analisador quantitativo.
5–Consta dos autos, a fls. 13, documento elaborado e assinado por um elemento da Polícia Municipal de Cascais, e assinado por um agente da Polícia de Segurança Pública da Esquadra de Cascais, denominado “Guia de Entrega de Cidadão Detido”, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, e do qual consta, entre o mais, o seguinte:
Nos termos do Art. 255.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (CPP), e em cumprimento do disposto no Art. 4.º, n.º 1, alínea e), da Lei n.º 19/2004, de 20.05, vai ser entregue com a presente guia o detido abaixo identificado ao Órgão de Polícia Criminal territorialmente competente, a fim de por este ser dado cumprimento ao disposto no Art. 259º do CPP (...)”.
6Consta ainda dos autos, a fls. 4 e seguintes, documento lavrado pela PSP de Cascais, designado
Auto de Notícia por Detenção”, datado de 16/04/2021, 01:30h, o qual aqui se dá por integralmente reproduzido, e do qual consta, entre o mais, o seguinte:
Por na data hora acima mencionados, quando me encontrava no exercício das minhas funções de Graduado de Serviço da EIFP da Divisão de Cascais, compareceu nesta esquadra o Agente BB, (Responsável pela intercepção do suspeito) e o Agente CC, ambos da polícia Municipal de Cascais, os quais efectuaram a entrega sob detenção de AA, devidamente identificada em item suspeito, afim de ser submetido a constituição de arguido e TIR, conforme Auto de Notícia elaborado pelos Agente da Polícia Municipal de Cascais, que se anexa. O Detido após ter sido submetida ao teste de álcool uma taxa de pelo menos, 1,90. g/l TAS, conforme taxa registada de 2,07 g/l, no talão n.º 1140 (...)”.
Mais se provou,
7–Do CRC da Arguida não consta averbada qualquer condenação.
8–A Arguida padece de Fibromialgia.
9–Antes da pandemia de COVID-19 dava aulas de piano particulares.
10–Em virtude da pandemia, desde Março/Abril de 2020, não dá aulas, estando sem actividade profissional desde então.
11–Vive com o marido e a filha de 12 anos de idade.
12–Residem em casa própria, que já se encontra paga.
13–O marido sofre de problemas cardíacos e ataques de ansiedade.
14–O rendimento familiar, actualmente, é constituído pelos montantes auferidos pelo marido a título profissional e pelo abono de família, sendo, em média, no valor de € 550,00 mensais.
15–Em média gastam € 180,00 mensais em despesas fixas.
16–Tem o curso superior de publicidade e marketing.
17–A Arguida utiliza o seu veículo automóvel para transportar a mãe (com 88 anos) e o seu marido a consultas e tratamentos médicos, assim como para levar a filha à escola e fazer compras.
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b) Factos não provados:
Com importância para a presente decisão resultaram não provados os seguintes factos:
I–A Arguida, nas circunstâncias indicadas em 1, conduzia com uma TAS de 1,90 g/l de álcool no sangue, a que corresponde uma TAS de 2,07 g/l de valor apurado, deduzido o erro máximo admissível.
II–A Arguida sabia que a qualidade e a quantidade de bebidas alcoólicas que ingeriu até momentos antes de iniciar a dita condução lhe determinariam necessariamente uma TAS superior aos limites legais permitidos e, não obstante, não se absteve de conduzir o seu veículo na via pública.
III–Agiu a Arguida de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
*

Toda a restante matéria constante dos autos não foi relevada por constituir matéria conclusiva e/ou de direito ou não ter relevância para a presente decisão.
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c)Motivação de facto:
Para formar a sua convicção, o Tribunal tomou em consideração os seguintes meios de prova: documentos juntos aos autos; declarações da Arguida em audiência de discussão e julgamento; depoimento testemunhal de BB.
Na análise da prova procedeu-se a uma análise crítica, objectiva e conjugada de todos os meios de prova ao alcance do Tribunal, tendo como fim a descoberta da verdade material, tudo conforme ao princípio da livre apreciação da prova e no respeito pelas regras e princípios constitucionais e processuais que norteiam a produção e valoração da prova em Processo Penal.
Constam dos autos os seguintes meios de prova:
- Auto de Notícia por Detenção” da PSP, de 16/04/2021, 01h30;
- “Auto de Notícia por Detenção” da Polícia Municipal de Cascais, de 15/04/2021, 23h00;
- “Guia de entrega de cidadão detido” da Polícia Municipal de Cascais, de 16/04/2021, 00h40;
- “Folha de suporte”;
- “Notificação” da Polícia Municipal de Cascais, de 15/04/2021;
- “Certificado de Matrícula”;
- Print Cartão de Cidadão;
- Fotocópia Carta de Condução;
- CRC da Arguida;
- Declarações da Arguida prestadas em audiência de julgamento em juízo manteve uma postura cordata e adequada, sendo o seu depoimento espontâneo e objectivo.
Começou por confirmar que no dia indicado no facto provado 1 efectivamente estava a conduzir o veículo automóvel com a matrícula XXXXXX em Carcavelos. Referiu que nessa semana estava a passar por momentos difíceis devido à doença do marido (que se havia agravado) e ao facto de estarem a passar por problemas económicos, tendo bebido algum vinho em casa.
Nesse seguimento, ligou a um amigo, que vive na zona de Carcavelos, e decidiu vir ter com ele. Parou numa bomba de gasolina para que ele lhe desse as indicações e foi nesse seguimento que foi mandada parar pela Polícia (não soube indicar que polícia a havia mandado parar, mas admitiu que tivesse sido a Polícia Municipal).
Os elementos da Polícia Municipal abordaram-na, pediram-lhe os documentos e perguntaram se havia estado a beber, ao que respondeu que sim. Questionada, com algumas hesitações, disse ter feito dois testes de álcool na rua e depois foi “detida” (nas suas próprias palavras) e levada para a esquadra.

Reside com o marido (que também tem problemas de saúde – cardíacos e ataques de ansiedade) e a filha de 12 anos, em casa própria queQuanto às condições pessoais disse ter um problema de saúde crónico – fibromialgia – e estar desempregada desde Março/Abril de 2020, devido ao COVID-19 (antes dava aulas particulares de piano). já se encontra paga. A nível de rendimentos familiares, a família apenas tem disponíveis os montantes que o marido recebe e o abono de família, num total de cerca de € 550,00. A nível de despesas fixas, gastam cerca de € 180,00 mensais.
Mais indicou ter um curso superior de publicidade e marketing e que usa o veículo automóvel para levar a mãe (que tem 88 anos) e o marido a consultas e tratamentos, para ir às compras e por vezes para levar a filha à escola.
- Depoimento testemunhal de BB – elemento da Polícia Municipal de Cascais. Teve um depoimento tranquilo, objectivo e escorreito.
Começou por indicar não se recordar exactamente do dia em que tudo ocorreu – situando em Fevereiro de 2021 -, mas lembrando-se que se foi durante a noite. Interceptaram a Arguida em Carcavelos, pois a mesma estava a falar ao telemóvel enquanto conduzia. Durante a fiscalização sentiram um “forte odor a álcool” e informaram-na de que tinha de fazer o teste de álcool.
Fizeram então o teste qualitativo que deu taxa crime (apesar de o mesmo não se recordar exactamente da taxa) e então conduziram a Arguida, no carro da Polícia Municipal, para o Departamento de Polícia da Câmara de Cascais, onde fizeram o teste quantitativo – que deu também taxa crime (confrontado com o talão do alcoolímetro, confirmou ser esse o teste) - e que, após fazerem todo o expediente, perguntarem se queria fazer contra-prova, levaram-na para a PSP.
Confrontado com o teor do “Auto de Notícia por Detenção” de fls. 14 e seguintes confirmou o seu teor, admitindo que os factos possam ter ocorrido em Abril e não em Fevereiro, e indicando que com esta Arguida apenas teve uma interacção que é a aqui em análise.
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Como ponto prévio é necessário efectuar uma ressalva. Como consta da Acta de Audiência de Discussão e julgamento o Tribunal não considerou que a confissão da Arguida pudesse ser considerada livre, integral e sem reservas.
É que, como se verá, por um lado, a Arguida não tem a capacidade para confessar a concreta taxa de álcool com que conduzia, apenas podendo afirmar que nas circunstâncias descritas na acusação se encontrava a conduzir um veículo automóvel e que foi abordada pela Polícia Municipal. A concreta taxa de álcool apenas pode ser provada por prova pericial, consistente no talão retirado do alcoolímetro quantitativo.
Por outro lado, e como também já se referiu, ao Tribunal levantam-se dúvidas sobre a (i)legalidade e (in)constitucionalidade da actuação da Polícia Municipal, que exigiam que o mesmo tomasse conhecimento da concreta actuação dos elementos da Polícia Municipal de Cascais que intervieram no caso concreto.
Deste modo, resta explicar o raciocínio empreendido pelo Tribunal para considerar provados os factos supra indicados. Deste modo:
- Quanto ao facto 7, o mesmo resulta provado da análise do CRC da Arguida, documento autêntico cujo teor não existem razões para colocar em causa.
-Relativamente aos factos 8 a 17, o Tribunal tomou em consideração as declarações da Arguida, prestadas em julgamento, que se nos afiguraram objectivas, escorreitas e espontâneas, não havendo qualquer motivo para duvidar da sua veracidade, por serem também consonantes com os conhecimentos da experiência comum e da normalidade.
-No que tange aos factos 1, 2, 3, 4, 5 e 6, assim foram considerados tendo em atenção a conjugação entre o teor dos documentos juntos aos autos, nomeadamente os designados “Guia de Entrega de Cidadão Detido”, de fls. 13, “Auto de Notícia por Detenção” de fls. 4 e seguintes e “Auto de Notícia por detenção” de fls. 14 e seguintes, com as declarações da Arguida e o depoimento testemunhal do elemento da Polícia Municipal BB.
De facto, e não obstante tais declarações não terem sido totalmente consonantes entre si (veja-se que a testemunha indicou que tudo se teria passado em Fevereiro; e a Arguida disse ter feito dois testes de álcool na rua), a verdade é que tais divergências se podem dever, quanto à Arguida, a toda a situação em si, portadora de um elevado grau de stress e que podem tê-la feito esquecer todos os pormenores do que se passou, e quanto à testemunha, à circunstância destes factos terem ocorrido há praticamente 7 meses, sendo situações algo habituais nas funções desempenhadas.
Todavia, no essencial, as declarações da Arguida e o depoimento da testemunha são compatíveis com a prova documental recolhida – designadamente, a Arguida confirmou ser ela quem conduzia o veículo automóvel e explicou as circunstâncias em que tudo ocorreu, o que foi confirmado pela testemunha (com excepção do facto de ter o teste quantitativo sido realizado no Departamento da Polícia Municipal de Cascais – o que se nos afigura ter sido o que aconteceu, por ser o que consta do “Auto de Notícia Por Detenção” da Polícia Municipal e ser o que sucede em situações do género).
Assim, conjugando toda a prova, afigura-se-nos que no dia 15/04/2021, por volta das 23h00 (e não das 00h45 de 16/04/2021 como indicado na acusação – que terá tido em conta o referido no “Auto de Notícia” da PSP, mas que não corresponde ao que sucedeu efectivamente, pois nessas circunstâncias de tempo e lugar foi quando a Arguida deu entrada na Esquadra da PSP, sendo evidente que não podia estar nessa altura a conduzir), na Rua …………. foi mandado parar um veículo automóvel ligeiro de passageiros …………. de matrícula XXXXXX, em virtude de a condutora (a Arguida) ter sido vista a utilizar o telemóvel enquanto conduzia. A Arguida confirmou esta situação, indicando ser ela quem ia a conduzir e que estava ao telemóvel.
Após os elementos da Polícia Municipal terem solicitado àquela que mostrasse os seus documentos e os da viatura sentiram um “odor a álcool” e decidiram ordenar a realização do teste qualitativo. Como este teste apresentou um valor de 1,55g/l, levaram-na para o Departamento de Polícia da Câmara Municipal de Cascais, onde fizeram o teste de pesquisa de álcool através de analisador quantitativo (que daria o resultado de 1,90 g/l). Depois de fazerem o expediente levaram-na até às instalações da PSP. Isto não só consta do “Auto de Notícia” da Polícia Municipal como foi confirmado pela testemunha.
Diga-se que todos estes depoimentos são perfeitamente conformes ao que consta dos documentos a que se fez menção supra, não havendo dúvidas para considerar, como se fez, provada a factualidade descrita.
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Resta agora explicar as razões que levaram o Tribunal a dar como não provados os factos indicados em I a III.
Como já se adiantou, a actuação empreendida pelos elementos da Polícia Municipal – em particular, o facto de, após terem detectado que a Arguida conduzia e apresentava indícios de estar sob o efeito de álcool (o teste qualitativo deu taxa crime -1,55 g/l), terem conduzido a mesma ao Departamento de Polícia da Câmara Municipal de Cascais, para aí realizarem o teste quantitativo de álcool, ao invés de procederem à entrega imediata ao OPC competente – levantam a este Tribunal dúvidas quanto à legalidade e validade da prova recolhida.
Afigura-se-nos que esta actuação poderá, pelas razões que se irão adiantar infra, violar princípios e normas constitucionais e legais, cuja consequência será a consideração da prova obtida pela Polícia Municipal (mais propriamente o teste quantitativo) como prova proibida.
*

Como sabemos, a prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez apenas pode ser provada através de prova pericial – mais propriamente, um teste quantitativo -, pois apenas desse modo se obtém, com a clareza e certeza necessárias, o valor real da taxa de álcool no sangue do condutor e agente infractor.
É aliás entendimento unânime na jurisprudência que mesmo que o Arguido em juízo confesse tudo quanto se encontra vertido na acusação pública, a concreta taxa de álcool no sangue, apenas pode ser provada pelo talão retirado do teste quantitativo, pela simples razão de que os seres humanos não se encontram ainda equipados de alcoolímetros, pelo que não têm razão de ciência quanto à taxa de álcool com que conduzem.
Neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 04/05/2011, relatora Brízida Martins, processo n.º 332/10.0 GCPBL.C1, disponível em www.dgsi.pt, “Sendo a taxa de alcoolémia determinável pelo alcoolímetro ou por meio de análise ao sangue, a confissão do arguido, feita na audiência de julgamento, não pode abranger tal taxa, pois falta-lhe, para o efeito, razão de ciência.”.
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Em breve resumo, a nossa posição é a de que as Polícias Municipais não têm competência para realizar a recolha de prova pericial, consubstanciada na realização de testes quantitativos de despistagem de álcool no sangue. Assim, o simples facto de estenderem injustificadamente no tempo a detenção realizada, com o único fito de realizarem tais testes, implica que os mesmos deverão ser considerados prova proibida, não podendo ser valorados pelo Tribunal para efeitos de taxa de álcool no sangue.
Quanto à questão da possibilidade ou não de as Polícias Municipais efectuarem testes quantitativos de despiste de álcool no sangue – que, como se disse, constitui prova pericial – há que ter em atenção que a investigação e a recolha de prova judiciária está sujeita a regras substantivas e ao iter procedimental tal qual prescrito na C.R.P e melhor densificado, designadamente no C.P.P, na Lei de segurança interna (Lei n.º 53/2008, de 29/08) e na Lei de Organização da Investigação Criminal (Lei n.º 49/2008, de 27/08).
A lei não defere aos municípios – dos quais as Polícias Municipais são um dos seus ramos - a fiscalização da condução sob efeito de álcool ou substâncias psicotrópicas e muito menos a investigação e recolha de prova, enquanto actos materiais tendentes ao inquérito e investigação dos tipos criminais, como aquele que se ajuíza nesta sede.
É do nosso entendimento que vivemos num Estado de Direito e não num estado de polícia, pelo que tanto os órgãos policiais como os administrativos, ou quaisquer outros órgãos públicos, têm de atuar sob a égide da lei e não podem empreender os actos materiais que bem entendem. E, neste caso, a Polícia Municipal tem de observar e coadunar a sua conduta ao prescrito na sua lei habilitante.
Cabe ainda ter em conta que a detenção desta Arguida tinha de orientar-se à entrega, no prazo mais curto possível, ao OPC ou à força de segurança competente (artigos 3.º, n.º 4 da Lei 19/2004, de 20/05 e 255.º, n.º 1 al. b) do C.P.P).
Ora, no caso os elementos da Polícia Municipal surpreenderam a Arguida na prática de um crime (condução sob efeito do álcool), havendo indícios claros da prática do mesmo (acusou 1,55 g/l no teste qualitativo). E nem se diga que o flagrante delito que justifica a detenção ocorre apenas com a realização do teste quantitativo do álcool. De facto, nesse caso estamos já perante diligências de prova que visam provar (através de prova pericial) que a Arguida conduzia com taxa de álcool no sangue superior a 1,2 g/l.
E aliás, nesse momento em que a Arguida faz o teste quantitativo é evidente que já não se encontra em flagrante delito do crime, pelo simples facto de que deixou de conduzir o veículo em questão há vários minutos.
Por isso, cabia aos Polícias Municipais ter deslocado a Arguida no seu carro de patrulha para a esquadra ou posto policial mais próximos, e não seguir com a mesma para o “seu” departamento camarário (tal atuação não está prevista no artigo 3.º, n.º 4 da Lei n.º 19/2004, de 20/05).
Não o tendo feito quando a lei não confere à polícia municipal competência para a realização de quaisquer perícias ou exames específicos, mormente no que à investigação de crimes de delito comum diz respeito, não pode valorar-se a prova obtida na sequência da manutenção ilegal de uma detenção (porque orientada à investigação criminal para que o órgão retentor não tem competência) e mediante a prática de um acto administrativo nulo (já que a Polícia Municipal não tem competência legal para recolha de prova em crimes de delito comum nem tão pouco para a extracção de exames periciais, cometidos somente às forças de segurança - artigos. 1.º e 2.º da Lei n.º 18/2007, de 17/05 e artigos 151.º e 163.º do C.P.P).
Não se diga ainda que a Arguida quando fez o teste quantitativo não se encontrava já detida. Não só a própria disse que foi “detida” após a realização do teste de álcool na rua, como o facto de a mesma ser conduzida no veículo da Polícia Municipal é sinal evidente dessa detenção. Aliás, teria sido permitido à Arguida deixar o local (uma vez que não se encontrava detida) e seguir a condução, ou recusar-se a seguir com os elementos da Polícia Municipal? A resposta é evidente.
Por isso, a partir do momento em que a mesma é conduzida pelos elementos da Polícia Municipal, no respectivo carro desta instituição, para as instalações do Departamento de Polícia da Câmara Municipal, onde vem a fazer o teste quantitativo, tem de se considerar que estava já sob detenção.
Sublinhe-se que o teste quantitativo de álcool é um exame pericial, de comprovação do indiciado na intercepção do suspeito, com a virtualidade de consubstanciar prova subtraída à cognição do Tribunal. Por isso, tem de respeitar os direitos fundamentais e de civilidade dos cidadãos. Num direito penal e processual penal que respeita os direitos, liberdades e garantias e os direitos de civilidade análogos, tem o cidadão o direito a que a polícia actue estritamente vinculada a padrões de constitucionalidade e legalidade, no âmbito das competências que lhe são conferidas (sem as extrapolar) e a garantia de que a recolha de prova criminal se empreende no respeito pelos direitos pessoais e sem perturbação da capacidade de avaliação, nem da utilização da força.
Um órgão incompetente para a recolha de prova criminal, que procede à realização de perícia através da manutenção de uma detenção ilegal (porque fora das condições e limites estabelecidos expressamente para a mesma), mediante o recurso à sua força (se não física pelo menos persuasiva, pela ostentação de distintivos e de material estritamente policial: fardamento, cinturão, algemas e arma regulamentar, evidenciador, tudo, do monopólio da força estadual efectiva sobre o cidadão), pratica um acto administrativo nulo, violador de direitos, liberdades e garantias e de nenhum efeito e o resultado do acto configura, pois, e do que se disse, prova proibida em processo penal (artigo 161.º, n.º 1 e 2 al. a), d), f), g) e l) e 162.º, n.º 1 do C.P.A e artigo 126.º, n.º 1, 2 al. b) e c) do C.P.P).
Finalmente, observe-se que a prova criminal obtida por esta via é, aliás, a “prova rainha” única e principal, para comprovação do elemento essencial da prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez – taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l. Por isso, não é possível “desligar-se” a mesma da forma e modo como foi obtida. A sua fonte é a do órgão incompetente e nenhuma outra, não se autonomiza substancialmente nem é susceptível de julgar-se validada a posteriori, recorrendo a um raciocínio analógico no sentido que, se tivesse sido obtida pelo órgão competente, no respeito pelo iter procedimental legalmente previsto e de acordo com padrões de civilidade comummente aceites: “o resultado seria sempre o mesmo”.
Na verdade, o signatário considera que tal asserção inevitavelmente conduziria a permitir um julgamento de facto baseado em presunções e em demasiadas premissas conjuntivas, que não se coaduna com o grau de certeza prática e possível a que está sujeita a formação da convicção judicial, motivável por recurso a elementos objectiváveis e demonstráveis, e que não se admite, por assente em situações puramente hipotéticas e não comprováveis através da realidade dada a observar directamente em juízo (cf. artigos 25.º a 27.º, 266.º, n.º 1 e 2 e 272.º, n.º 2 e 4 conjugados com o regime dos artigos 17.º, 18.º e seguintes, 32.º e 202.º, n.º 1 e 2, todos da C.R.P, tal como os artigos 125.º a 127.º, 151.º e 163.º, todos do C.P.P).
Como bem diz Jorge Miranda (MIRANDA, Jorge, in Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Direitos Fundamentais, Coimbra Editora, 2008, pp. 194-197),Se houvesse de facto a possibilidade, ainda que remota, de obtenção de um meio de prova secundário, (...) respeitando, portanto, os direitos fundamentais do arguido, então as autoridades formais de controlo, podiam e deviam ter utilizado esse meio alternativo. Não podemos aceitar a violação dos mais elementares direitos fundamentais (...), para, em busca de uma pretensa verdade material, aniquilar tudo aquilo que demorou décadas a construir. É a própria CRP que confere uma unidade de sentido, de valor e concordância prática ao sistema de direitos fundamentais (...) A concordância prática do sistema (...) só poderá funcionar plenamente se (...) o próprio Estado der esse mesmo exemplo, não violando, portanto, os direitos fundamentais, e não encontrando subterfúgios para alcançar uma verdade material que não é a verdade processualmente válida.
Concluímos, pois, esperando ter tido a capacidade de melhor explanar e resumir os motivos que nos levam a não considerar demonstrado o resultado do “exame pericial” extraído, em detenção ilegal da Arguida e mediante a prática de acto administrativo nulo.
Subsequentemente, e para que dúvidas não se suscitem das premissas em que assentou tal raciocínio, o mesmo surge expendido de forma exaustiva.
Aqui deixamos tão-só, antes de mais, o exposto no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 23/03/2021, relator Artur Vargues, processo n.º 244/20.9PCCSC.L1-5, disponível em www.dgsi.pt, cuja doutrina perfilhamos (e foi já seguida em vários outros arestos da mesma Relação, como por exemplo, no mais recente Acórdão de 09/09/2021, relatora Maria da Luz Batista, processo n.º 756/20.4PBCSC.L1-9, disponível também na DGSI):
Como resulta do artigo 4º, alínea b), da aludida Lei nº 19/2004, a Polícia Municipal tem competência para a fiscalização do cumprimento das normas de estacionamento de veículos e de circulação rodoviária, mas está excluída a participação de acidentes de viação que envolvam procedimento criminal.
- Porque assim é, estando vedado às polícias municipais o exercício de competências próprias dos órgãos de polícia criminal, não podemos deixar de concluir que lhe faltava competência para determinar ao arguido a realização do exame para quantificação da taxa de álcool no sangue através do ar expirado, que se traduz numa recolha de prova em ordem à sua apresentação a julgamento pela prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, com observância das formalidades previstas no artigo 153º, do Código da Estrada e que nestas se incluem, manifestamente”
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Passemos, então, a explicar – com maior detalhe - o porquê de, em nossa perspectiva, a actuação dos elementos da Polícia Municipal provocar uma proibição de prova, relativamente à prova recolhida nas Instalações do Departamento de Polícia (vide, teste quantitativo).
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a)-A visão constitucional de direitos, liberdades e garantias em conjugação com a actuação dos órgãos da administração pública:
Com o surgimento da figura do Estado, e com a criação de leis que regem a forma de actuação das pessoas na sociedade, o indivíduo perdeu alguma da sua liberdade. De facto, actuações contra a lei vigente terão sempre as suas consequências mais ou menos positivas. Mas se enquanto sociedade admitimos essas leis e essas limitações é porque esperamos receber algo em troca – mais segurança, mais estabilidade, mais confiança.
Não são apenas as pessoas individuais que sofrem limitações na sua liberdade. Também o próprio Estado, e por inerência os seus órgãos, está limitado por essas mesmas leis. As maiores limitações à actuação da máquina do Estado são os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, de todos os cidadãos, desde o recém-nascido ao idoso, desde a vítima, ao suspeito, e até o criminoso.
E é no artigo 2.º da C.R.P que encontramos as primeiras referências aos direitos fundamentais, quando aí se indica que a República Portuguesa é um Estado de Direito Democrático, baseada no respeito e garantia da efectivação dos direitos e liberdades fundamentais, sendo tarefa fundamental do Estado garantir os direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de Direito Democrático, como determina o artigo 9.º, b) do mesmo normativo.
Já no artigo 18.º do dispositivo constitucional pode ler-se que os preceitos constitucionais relativos a direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis, vinculando entidades públicas e privadas. Ou seja, todos têm o direito a que os seus direitos, liberdades e garantias sejam respeitados e todos (pessoas públicas ou privadas) têm o dever de os respeitar. Sendo que apenas a lei pode restringir os direitos, liberdades e garantias, e só nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo também essas restrições limitarem-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
É no Título II da C.R.P que se encontram previstos alguns dos direitos, liberdades e garantias, sendo que logo no artigo 25.º se estatui que a integridade moral e física das pessoas é inviolável. Também a liberdade individual é um bem superior, cuja defesa deve ser considerada prioritária num Estado de Direito democrático. Por isso, no artigo 27.º, n.º 1 da C.R.P se determina que todos têm direito à liberdade, e no seu n.º 2 se estipula que ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em casos específicos, pelo tempo e nas condições que a lei determinar.
Diga-se, também, que nos termos do artigo 32.º, n.º 2 da C.R.P, todo o arguido – e logicamente todo o mero suspeito – se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença condenatória. Sendo que, segundo o n.º 8 do mesmo normativo, são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral das pessoas, abusiva intromissão na vida privada, domicílio, correspondência ou telecomunicações.
Note-se ainda que aos Tribunais, no desempenho das suas funções, cabe assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos (de todos, sem excepção) e reprimir a violação da legalidade democrática (cf. Artigo 202.º da C.R.P).
Já no campo particular da administração pública, e dos órgãos estaduais, diz o artigo 237.º, n.º 1 da C.R.P que as atribuições e organização das autarquias locais, e a competência dos seus órgãos, são reguladas por lei. Daqui resulta, sem dúvida, que as autarquias locais – e todos os seus órgãos – terão apenas as atribuições e as competências que resultem da lei. E quanto às polícias municipais diz expressamente o n.º 3 daquela norma que elas cooperam na manutenção da tranquilidade pública e na protecção das comunidades locais.
Note-se, porém, que as polícias municipais, ao contrário das forças de segurança, são serviços administrativos do respectivo município, com eminentes funções em áreas específicas de actuação, no quadro do cumprimento de normativos administrativos emanados pela edilidade, ou cujo cumprimento e fiscalização a lei defira aos municípios (não são forças de segurança e muito menos órgãos de polícia criminal - cf. artigo. 25.º da Lei n.º 53/2008, de 29/08 e artigo 3.º, n.º 1 e 5 da Lei n.º 19/2004, de 20/05).
Como se teve a oportunidade de referir, todas pessoas, singulares ou colectivas, de Direito público ou Direito privado estão adstritas ao respeito pelos direitos, liberdades e garantias. Isso mesmo é confirmado pelo artigo 266.º da C.R.P que, no seu n.º 1, determina que a Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos. Sendo que, de acordo o n.º 2, os órgãos e agentes administrativos, estão subordinado à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, proporcionalidade, justiça, imparcialidade e boa-fé.
E, em particular, quanto ao papel das Polícias, determina o artigo 272.º, n.º 1 da C.R.P, que cabe às polícias o papel de defender a legalidade democrática e garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos. Sendo que as medidas de polícia são as previstas na lei, não devendo ser utilizadas para além do estritamente necessário (cf. Artigo 272.º, n.º 2). Por fim, de acordo com o n.º 3 da mesma disposição, a prevenção dos crimes só pode fazer-se com observância das regras gerais sobre polícia e com respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Daqui se retira que a Constituição atribui poderes muito específicos aos órgãos policiais – judiciais, de segurança ou administrativos –, cuja acção implica necessariamente a restrição de direitos, liberdade e garantias individuais. Por isso, como de resto resulta de várias normas constitucionais, toda a actuação policial deve ser dirigida à defesa da legalidade democrática, mas tendo em vista a segurança dos cidadãos e dos seus direitos, apenas podendo actuar dentro do quadro legalmente definido, dentro das suas próprias atribuições e competências e só podendo tomar as medidas previstas na lei.
*

b)-A Polícia Municipal em particular, os seus poderes e atribuições:
Como vimos, a actuação policial apenas se pode desenvolver no âmbito dos poderes e atribuições previstas e atribuídas pela Constituição e pela lei. Ou seja, a actuação de uma certa entidade policial depende do previsto na respectiva lei habilitante, pois as suas actuações impõem a restrição de direitos fundamentais (cf. Artigo 18.º, n.º 2 da C.R.P).
No caso das Polícias Municipais essa lei é a Lei n.º 19/2004, de 20/05. De acordo com o seu artigo 1.º, as polícias municipais são serviços municipais especialmente vocacionados para o exercício de funções de polícia administrativa, com as competências, poderes de autoridade e inserção hierárquica definidos na lei.
Segundo o artigo 2.º, n.º 1, no exercício de funções de polícia administrativa, é atribuição prioritária dos municípios, fiscalizar, na área da sua jurisdição, o cumprimento das leis e regulamentos que disciplinem matérias relativas às atribuições das autarquias e à competência dos seus órgãos. Diz também o n.º 2 que as polícias municipais cooperam com as forças de segurança na manutenção da tranquilidade pública e na protecção das comunidades locais. Sendo que essa cooperação se exerce no respeito recíproco pelas esferas de actuação próprias (cf. Artigo 2.º, n.º 3). Diz-se ainda no n.º 4 da mesma norma que as atribuições dos municípios, previstas na lei, são prosseguidas sem prejuízo do disposto na legislação sobre segurança interna e nas leis orgânicas das forças de segurança.
É no artigo 3.º da Lei n.º 19/2004, de 20/05, que estão previstas as funções da Polícia Municipal. Assim, as polícias municipais exercem funções de polícia administrativa, prioritariamente, nos seguintes domínios:
a)-Fiscalização do cumprimento das normas regulamentares municipais;
d)-Fiscalização do cumprimento das normas de âmbito nacional ou regional cuja competência de aplicação ou de fiscalização caiba ao município;
c)-Aplicação efectiva das decisões das autoridades municipais.
E segundo o n.º 2 da mesma disposição, as polícias municipais exercem ainda funções na:
a)-Vigilância de espaços públicos ou abertos ao público, designadamente de áreas circundantes de escolas, em coordenação com as forças de segurança;
b)-Vigilância nos transportes urbanos locais, em coordenação com as forças de segurança;
c)-Intervenção em programas destinados à acção das polícias junto das escolas ou de grupos específicos de cidadãos;
d)-Guarda de edifícios e equipamentos públicos municipais, ou outros temporariamente à sua responsabilidade;
e)-Regulação e fiscalização do trânsito rodoviário e pedonal na área de jurisdição municipal.
Também segundo o artigo 3.º, n.º 3, para efeitos do disposto no n.º 1, os órgãos de polícia municipal têm competência para levantamento de auto ou desenvolvimento de inquérito por ilícito de mera ordenação social, transgressão ou criminal por factos estritamente conexos com violação de lei ou recusa de acto legalmente devido no âmbito das relações administrativas.
Diga-se, ainda, que, de acordo com o n.º 4, quando, devido ao exercício dos poderes de autoridade previstos no n.º 1 e 2, os órgãos de polícia municipal directamente verifiquem o cometimento de qualquer crime podem proceder à identificação e revista dos suspeitos no local do cometimento do ilícito e à sua imediata condução à autoridade judiciária ou ao órgão de polícia criminal competente. E, por fim, o n.º 5 da norma estatui que é vedado às polícias municipais o exercício de competências próprias dos órgãos de polícia criminal.
Como se referiu, as entidades policiais apenas detêm as competências atribuídas por lei. Por isso, o artigo 4.º da Lei n.º 19/2004, de 20/05, determina que as polícias municipais, na prossecução das suas atribuições próprias, são competentes em matéria de:
a)-Fiscalização do cumprimento dos regulamentos municipais e da aplicação das normas legais, designadamente nos domínios do urbanismo, da construção, da defesa e protecção da natureza e do ambiente, do património cultural e dos recursos cinegéticos;
b)-Fiscalização do cumprimento das normas de estacionamento de veículos e de circulação  rodoviária, incluindo a participação de acidentes de viação que não envolvam procedimento criminal;
c)-Execução coerciva, nos termos da lei, dos actos administrativos das autoridades municipais;
d)-Adopção das providências organizativas apropriadas aquando da realização de eventos na via pública que impliquem restrições à circulação, em coordenação com as forças de segurança competentes, quando necessário;
e)-Detenção e entrega imediata, a autoridade judiciária ou a entidade policial, de suspeitos de crime punível com pena de prisão, em caso de flagrante delito, nos termos da lei processual penal;
f)-Denúncia dos crimes de que tiverem conhecimento no exercício das suas funções, e por causa delas, e competente levantamento de auto, bem como a prática dos actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova, nos termos da lei processual penal, até à chegada do órgão de polícia criminal competente;
g)-Elaboração dos autos de notícia, autos de contra-ordenação ou transgressão por infracções às normas referidas no artigo 3.º;
h)-Elaboração dos autos de notícia, com remessa à autoridade competente, por infracções cuja fiscalização não seja da competência do município, nos casos em que a lei o imponha ou permita;
i)-Instrução dos processos de contra-ordenação e de transgressão da respectiva competência;
j)-Acções de polícia ambiental;
l)-Acções de polícia mortuária;
m)-Garantia do cumprimento das leis e regulamentos que envolvam competências municipais de fiscalização.
Cabe ainda recordar que a Polícia Municipal se encontra inserida no âmbito dos órgãos municipais sendo organizada na dependência hierárquica do presidente da câmara respectiva (cf. Artigo 6.º, n.º 1 da Lei n.º 19/2004, de 20/05).
Aliás, esta lei empreende um claro esforço na distinção entre a Polícia Municipal e as forças de segurança, sendo um desses exemplos o disposto no artigo 7.º, quanto ao modelo de uniforme. Assim, segundo o n.º 1, o uniforme do pessoal das polícias municipais é único para todo o território nacional, devendo ser concebido de forma a não só permitir a sua identificação enquanto tal, mas também a distingui-los dos agentes das forças de segurança. O mesmo quanto aos distintivos heráldicos e gráficos (cf. Artigo 7.º, n.º 2).
Este intuito de clara distinção entre Polícia Municipal e forças de segurança está ainda expresso no artigo 19.º da mesma lei onde se estatui que as denominações das categorias que integrarem a carreira dos agentes da polícia municipal não podem, em caso algum, ser iguais ou semelhantes às adoptadas pelas forças de segurança.
Resulta assim evidente que o legislador não quis que as Polícias Municipais fossem equiparadas às forças de segurança, querendo manifestamente restringir a sua actuação a situações muito específicas, visando afastar expressamente a sua actuação nas vestes de polícia de segurança ou judiciária.
Por fim, refira-se o disposto no artigo 16.º da Lei n.º 19/2004, de 20/05, onde se determina que os agentes da polícia municipal só podem usar os meios coercivos previstos na lei que tenham sido superiormente colocados à sua disposição, na estrita medida das necessidades decorrentes do exercício das suas funções, da sua legítima defesa ou de terceiros. E por fim, quando o interesse público determinar a indispensabilidade do uso de meios coercivos não autorizados ou não disponíveis para a polícia municipal, os agentes devem solicitar a intervenção das forças de segurança territorialmente competentes.
Perante as normas que deixámos referidas podemos já concluir, tendo até como farol o Parecer do Conselho Consultivo da P.G.R, de 08/05/2008, de Manuel Matos, n.º P000282008, disponível em www.dgsi.pt, que as polícias municipais:
- São serviços municipais especialmente vocacionados para o exercício de funções de polícia administrativa no espaço territorial do respectivo município;
- Exercem funções no âmbito das atribuições dos municípios, actuando sobretudo na fiscalização do cumprimento de normas regulamentares municipais, mas também de normas de âmbito nacional cuja competência de aplicação ou fiscalização está entregue ao município e também na aplicação das decisões de autoridades municipais;
- Não são forças de segurança, sendo até evidente o objectivo de fazer uma clara distinção, estando-lhes vedado o exercício de competências próprias de órgãos de polícia criminal, com excepção dos casos previstos no artigo 3.º, n.º 3 e 4 da Lei n.º 19/2004, de 20/05 (ou seja, actuações no âmbito das relações administrativas, situações em que verifiquem directamente o cometimento de crimes (flagrante delito), podendo proceder à identificação e revista de suspeitos no local do crime, e à sua imediata condução à autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal competente).
No entanto, a construção do conceito de Polícia Municipal exige que se vá ao âmago do conceito de polícia.
Marcelo Caetano (CAETANO, Marcelo, in Manual de Direito Administrativo, Tomo II, 10.ª Edição, 6.ª Reimpressão, Almedina, p. 1150) definia polícia como, “(...) o modo de actuar da autoridade administrativa que consiste em intervir no exercício das actividades individuais susceptíveis de fazer perigar interesses gerais, tendo por objectivo evitar que se produzam, ampliem ou generalizem os danos sociais que as leis procuram prevenir”.
Já Sérvulo Correia (CORREIA, Sérvulo, in Polícia, Dicionário Jurídico da Administração  Pública, Volume VI, Lisboa, 1994, pp. 393 e seguintes) define a polícia como, “(...) actividade da Administração Pública que consiste na emissão de regulamentos e na prática de actos administrativos materiais que controlam condutas perigosas dos particulares com o fim de evitar que estas venham a ou continuem a lesar bens sociais cuja defesa preventiva através de actos de autoridade seja consentida pela Ordem Jurídica”.
Como se indica no Parecer do Conselho Consultivo da P.G.R citado, “No modelo traicional, vigente até à Constituição de 1976, a função da polícia encontrava-se muito associada a dois traços característicos. Ela apresentava-se como actividade administrativa autoritária, impositiva de restrições aos direitos dos particulares e, ao mesmo tempo, «destinada a prevenir e afastar os perigos de lesão para os bens sociais gerais que pudessem resultar do exercício de actividades individuais»”.
Com o advento do Estado democrático, a partir de Abril de 1974, a concepção de polícia acabou por tomar novos contornos. Novamente seguindo aquele Parecer diremos que, “A noção de polícia não se confina já a uma actividade de cariz negativo, de restrição de direitos, antes se alarga a intervenções vinculadas de protecção dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.”.
Como de resto afirmam Gomes Canotilho e Vital Moreira (GOMES CANOTILHO, José; MOREIRA, Vital, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª Edição Revista, Coimbra Editora, 1993, pp. 955-956), existe também uma obrigação de protecção dos direitos fundamentais que funcionam não só como limite, mas também como fim da própria actuação policial.
Como também já tivemos oportunidade de referir, não existe um só conceito de polícia. Há, na verdade, várias concepções de polícia, o que levou ao surgimento de diferentes perfis policiais – polícias judiciárias, de segurança, administrativas.
Podemos dizer que a polícia administrativa em sentido estrito se configurará mais com uma polícia que visa garantir a segurança das pessoas e bens, a ordem pública e os direitos dos cidadãos, numa visão mais preventiva e não tanto numa vertente de investigação criminal. Ao lado de uma polícia administrativa geral, de ordem e segurança, podem ainda surgir polícias administrativas especiais, com poderes mais específicos, direccionados à protecção de certos bens ou interesses sociais especialmente previstos e definidos na lei.

Tomando certamente em conta tais ensinamentos, veio o legislador, através da Lei n.º 53/2008, de 29/08, estatuir que exercem funções de segurança interna:
a)-A Guarda Nacional Republicana;
b)-A Polícia de Segurança Pública;
c)-A Polícia Judiciária;
d)-O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras;
e)-O Serviço de Informações de Segurança.
Sendo também que, nos casos e termos previstos na respectiva legislação, exercem ainda estas funções:
a)-Os órgãos da Autoridade Marítima Nacional;
b)-Os órgãos do Sistema da Autoridade Aeronáutica.
Note-se que aquela enumeração é taxativa, não permitindo abranger outros órgãos dentro do conceito de força de segurança. Enumeração da qual não constam as Polícias Municipais, como de resto nunca poderiam constar tendo em conta a sua própria inserção no Título do Poder Local da Constituição da República.
Como indicam os professores Jorge Miranda e Rui Medeiros (MIRANDA, Jorge; MEDEIROS, Rui, in Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra Editora, p. 458) as polícias municipais, “(...) são complementares, e não substitutivas da polícia e das forças de segurança (artigo 272.º), cujas competências não podem afectar (artigo 6.º, n.º 3, da Lei n.º 19/2004, de 20 de Maio)”.
Também se diga que, como estatui o artigo 272.º, n.º 4 da C.R.P, as forças de segurança têm uma organização única para todo o território nacional, sendo o seu regime matéria da reserva absoluta da Assembleia da República, daí resultando que as forças de segurança têm de ser taxativamente delimitadas por lei.
Assim, podemos concluir que a Polícia Municipal é uma polícia administrativa especial, limitada geograficamente à área do respectivo município, e que tem como incumbência a cooperação na manutenção da tranquilidade pública e na protecção das comunidades locais, estando a sua actuação, e a dos seus agentes, subordinada à Constituição e à lei, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
Como vimos também, a actividade policial operacionaliza-se através da tomada de medidas de polícia.
Como dizia Marcello Caetano (op. cit., p. 1170), as medidas de polícia são(...) providências limitativas da liberdade de certa pessoa ou do direito de propriedade de determinada entidade, aplicadas pelas autoridades administrativas independentemente da verificação e julgamento de transgressão ou contravenção ou da produção de outro acto concretamente delituoso, com o fim de evitar a produção de danos sociais cuja prevenção caiba no âmbito das atribuições da polícia”.
Mas como vivemos em Democracia, o próprio Estado impôs limites a si próprio e à sua actuação, como sempre resultaria do disposto no artigo 18.º, n.º 2 da C.R.P. Achou por bem o legislador constitucional reforçar essa imposição no artigo 272.º, n.º 2 da C.R.P, onde se estatui que as medidas de polícia são as previstas na lei, não devendo ser utilizadas além do estritamente necessário.
Ou seja, consagraram-se expressamente dois princípios fundamentais no âmbito das medidas de policia: o princípio da tipicidade (só podem ser tomadas as medidas previstas na lei) e o princípio da proibição do excesso (só podem ser usadas dentro do estritamente necessário).
Diga-se, apenas, que estes princípios vinculam todas as polícias, sejam elas judiciárias, de segurança ou administrativas, pois a norma não faz qualquer distinção.
Consequentemente, inexiste legitimidade, em nosso entendimento, para que a polícia (leia-se, qualquer corpo ou departamento de polícia) restrinja, por sua emanação própria, direitos fundamentais, tais como a liberdade de decisão ou de determinação ou quaisquer outros direitos pessoais, sob pena de violação do princípio da legalidade da sua actuação e da tipicidade nas medidas de que pode lançar mão.
A expressa tipicidade legal das medidas de polícia significa que as entidades com poderes de polícia estão proibidas, sem consentimento legal, de conformar e concretizar os direitos liberdades e garantias.
Para que não restem dúvidas quanto às definições de tipicidade e proibição do excesso, citamos Gomes Canotilho e Vital Moreira (op. cit., p. 956), “(...) o princípio da tipicidade legal significa que os actos de polícia, além de terem um fundamento necessário na lei, devem ser medidas ou procedimentos individualizados e com conteúdo suficientemente definido na lei, independentemente da natureza dessas medidas: quer sejam regulamentos gerais emanados das autoridades de polícia, decisões concretas e particulares (autorizações, proibições, ordens), medidas de coerção (utilização da força, emprego de armas) ou operações de vigilância, todos os procedimentos de polícia estão sujeitos ao princípio da precedência da lei e da tipicidade legal”.
Quanto ao princípio da proibição do excesso é a tradução da subordinação destas medidas aos requisitos da necessidade, adequação e proporcionalidade. Assim, tais medidas “(...) só devem ir até onde seja imprescindível para assegurar o interesse público em causa, sacrificando no mínimo os direitos dos cidadãos (...)”, pelo que “(...) o emprego de medidas de polícia deve ser sempre justificado pela estrita necessidade e que não devem nunca utilizar-se medidas gravosas quando medidas mais brandas seriam suficientes para cumprir a tarefa” (idem).

Também a Lei n.º 53/2008, de 29/08, no seu artigo 2.º, n.º 2 determina que as medidas de polícia são as previstas na lei, não podendo ser usadas além do estritamente necessário e obedecendo às exigências de adequação e proporcionalidade. Mais desenvolvimentos surgem no artigo 28.º do mesmo normativo onde se refere, que são medidas de polícia:
a)-A identificação de pessoas suspeitas que se encontrem ou circulem em lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial;
b)-A interdição temporária de acesso e circulação de pessoas e meios de transporte a local, via terrestre, fluvial, marítima ou aérea;
c)-A evacuação ou abandono temporários de locais ou meios de transporte.
E ainda, no n.º 2 do mesmo artigo, a remoção de objectos, veículos ou outros obstáculos colocados em locais públicos sem autorização que impeçam ou condicionem a passagem para garantir a liberdade de circulação em condições de segurança.

E no artigo 29.º preveem-se as medidas especiais de polícia:
a)-A realização, em viatura, lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial, de buscas e revistas para detectar a presença de armas, substâncias ou engenhos explosivos ou pirotécnicos, objectos proibidos ou susceptíveis de possibilitar actos de violência e pessoas procuradas ou em situação irregular no território nacional ou privadas da sua liberdade;
b)-A apreensão temporária de armas, munições, explosivos e substâncias ou objectos proibidos, perigosos ou sujeitos a licenciamento administrativo prévio;
c)-A realização de acções de fiscalização em estabelecimentos e outros locais públicos ou abertos ao público;
d)-As acções de vistoria ou instalação de equipamentos de segurança;
e)-O encerramento temporário de paióis, depósitos ou fábricas de armamento ou explosivos e respectivos componentes;
f)-A revogação ou suspensão de autorizações aos titulares dos estabelecimentos referidos na alínea anterior;
g)-O encerramento temporário de estabelecimentos destinados à venda de armas ou explosivos;
h)-A cessação da actividade de empresas, grupos, organizações ou associações que se dediquem ao terrorismo ou à criminalidade violenta ou altamente organizada;
i)-A inibição da difusão a partir de sistemas de radiocomunicações, públicos ou privados, e o isolamento electromagnético ou o barramento do serviço telefónico em determinados espaços.
Ainda sobre tais medidas, diz o artigo 30.º do mesmo dispositivo que, com excepção do caso previsto no n.º 2 do artigo 28.º, as medidas de polícia só são aplicáveis nos termos e condições previstos na Constituição e na lei, sempre que tal se revele necessário, pelo período de tempo estritamente indispensável para garantir a segurança e a protecção de pessoas e bens e desde que haja indícios fundados de preparação de actividade criminosa ou de perturbação séria ou violenta da ordem pública.
E, por fim, há que referir o disposto no artigo 32.º da Lei n.º 53/2008, onde se refere, no n.º 1, que, no desenvolvimento da sua actividade de segurança interna, as autoridades de polícia podem determinar a aplicação de medidas de polícia, no âmbito das respectivas competências.
Face a este elenco de normas, há que notar que são impostos limites à actuação policial. Tais limites, transpostos para o caso que apreciamos, podem sumariar-se, consoante se verá adiante, numa vinculação quanto à competência cometida a cada órgão de polícia, aos fins (de cooperação na manutenção da tranquilidade pública ou de garantia da segurança interna), e aos modos de actuar (consoante as medidas atributivas de cada polícia).
Mas, como verificámos, a Polícia Municipal não integra o conceito de forças de segurança dado pela Lei n.º 53/2008, de 29/08, não se podendo considerar que os seus agentes sejam dotados das competências atribuídas por tal dispositivo legal, designadamente os artigos 28.º e 29.º. Aliás se esta lei elenca taxativamente quais as forças que se consideram de segurança, é porque se quis apenas atribuir tais competências a essas forças de segurança e não a outras entidades, sob pena de a definição taxativa se tornar manifestamente inútil

Conforme indica o Parecer do Conselho Consultivo da P.G.R já referido,As polícias municipais intervêm na manutenção da tranquilidade pública e da protecção das comunidades locais, em cooperação com as forças de segurança, não dispondo, em regra, de competências no domínio da prevenção e da investigação criminal.”. Não cabe, senão nos casos previstos na sua lei habilitante, às Polícia Municipal realizar diligências de investigação criminal e de recolha de prova. E as Polícias Municipais não são órgãos de polícia criminal, como o artigo 3.º, n.º 5 da sua Lei habilitante faz questão de referir expressamente.
Quais são então as competências atribuídas à Polícia Municipal? Como vimos, os seus poderes são sobretudo dirigidos à aplicação, execução e fiscalização de normas municipais ou cuja fiscalização do cumprimento esteja deferida aos municípios – sobretudo matérias de urbanismo, ambiente,  tratamento de resíduos, estacionamento, etc.
É dentro deste quadro legal que a Polícia Municipal “se pode movimentar” elaborando autos, instruindo procedimentos administrativos, exigindo o cumprimento de posturas e decisões municipais, desenvolvendo inquéritos por ilícitos de mera ordenação social, transgressão ou criminal, mas só por factos estritamente conexos com violação de lei ou recusa da prática de acto devido no âmbito das relações administrativas, nunca podendo, porém, exercer competências próprias dos órgãos de polícia criminal. Veja-se que as P.M nem têm competência para participar acidentes de viacção quando envolvam procedimento criminal (cf. Artigo 4.º, n.º 1, b) a contrario da Lei n.º 19/2004, de 20/05).
E refira-se que até são conferidas às polícias municipais algumas medidas de polícia – lembrando sempre que tais medidas se regem pelos princípios da tipicidade e da proibição do excesso. Ou seja, os agentes daquela instituição só podem praticar as medidas de polícia que lhes são conferidas expressamente pela sua lei habilitante.
Cabem nessas medidas a possibilidade de, quando directamente verifiquem o cometimento de qualquer crime, proceder à identificação e revista dos suspeitos no local do cometimento do ilícito, e ainda a sua imediata condução à autoridade judiciária ou ao órgão de polícia criminal competente. Podendo ainda, de acordo com o artigo 4.º, n.º 1, e) da Lei n.º 19/2004, de 20/05, proceder à detenção e entrega mediata, a autoridade judiciária ou a entidade policial, de suspeitos de crime punível com pena de prisão, em caso de flagrante delito, nos termos da lei processual penal.
E diga-se, ainda, que, segundo o artigo 4.º, n.º 1, f) desta lei, as polícias municipais são competentes para a denúncia dos crimes de que tenham conhecimento no exercício de funções e por causa delas, podendo levantar auto, e praticar também actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova até à chegada do órgão de polícia criminal competente.
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Daqui retiramos várias ilacções que importa ter em conta:
-A Polícia Municipal não é um órgão de polícia criminal, mas apenas um serviço municipal de polícia administrativa;
-Estão-lhe cometidas funções prioritárias atinentes à aplicação das posturas municipais e às regras jurídicas cuja lei defira ao município respectivo executar e fiscalizar;
-Podem ainda, em cooperação com as forças de segurança, que não integram, e finalisticamente orientadas à manutenção da tranquilidade pública e protecção das comunidades locais, guardar espaços municipais, promover a segurança nas escolas, disciplinar o trânsito, fiscalizando o estacionamento de viaturas e o trânsito rodoviário e pedonal;
-No desenvolvimento da sua missão, a lei confere-lhes os poderes que o legislador considerou suficientes e adequados ao eficiente desempenho da sua actividade, onde se integra a possibilidade de elaborar aos de notícia por contra-ordenação (por violação das relações administrativas – artigo 3.º, n.º 3, in fine da Lei n.º 19/2004, de 20/05);
-Ordenar a identificação de suspeitos, executar medidas cautelares de polícia, no local do facto típico, empreender detenções em flagrante delito e entregar no imediato o suspeito ao OPC competente.
*

c)A Fiscalização da condução sob o efeito do álcool:
De acordo com o artigo 292.º, n.º 1 do C.P, quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
Para verificar da existência de álcool no sangue tem de se proceder à realização de exames de despistagem da presença do álcool. O Código da Estada prevê o modo de realização dos mesmos.

Assim, segundo o seu artigo 153.º, o exame de pesquisa de álcool no ar expirado é realizado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito. E de acordo com o n.º 2, se o resultado do exame previsto no número anterior for positivo, a autoridade ou o agente de autoridade deve notificar o examinando, por escrito ou, se tal não for possível, verbalmente:
a)-Do resultado do exame;
b)-Das sanções legais decorrentes do resultado do exame;
c)-De que pode, de imediato, requerer a realização de contraprova e que o resultado desta prevalece sobre o do exame inicial; e
d)-De que deve suportar todas as despesas originadas pela contraprova, no caso de resultado positivo.

Também a Lei n.º 18/2007, de 17/05, que regula a fiscalização da condução sob influência do álcool ou substâncias psicotrópicas, determina no seu artigo 1.º, n.º 1 que a presença de álcool no sangue é indiciada por meio de teste no ar expirado, efectuado em analisador qualitativo. Sendo que a quantificação da taxa de álcool no sangue é feita por teste no ar expirado, efectuado em analisador quantitativo, ou por análise de sangue.

Diz ainda o artigo 2.º, n.º 1 que quando o teste realizado em analisador qualitativo indicie a presença de álcool no sangue, o examinando é submetido a novo teste, a realizar em analisador quantitativo, devendo, sempre que possível, o intervalo entre os dois testes não ser superior a trinta minutos. E segundo o n.º 2, para efeitos do disposto no número anterior, o agente da entidade fiscalizadora acompanha o examinando ao local em que o teste possa ser efectuado, assegurando o seu transporte, quando necessário.

Resulta assim, da conjugação de tais normas, que a fiscalização do consumo de álcool se desenrola em 2 actos. O primeiro: realização de um teste qualitativo, destituído do rigor científico exigível para que valha em juízo, mas que serve para despistar a presença de álcool no sangue dando um valor numérico efectivo que, simplesmente, não é dotado da certeza necessária para fundamentar uma condenação criminal. Sendo indiciada a presença de álcool no sangue, será realizado um segundo teste, este sim quantitativo e dotado do exigível rigor científico – sendo uma prova pericial.

Veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 05/03/2008, relator Gabriel Catarino, processo n.º 404/05.2GTLRA.C1, disponível em www.dgsi.pt,I- O resultado do exame de álcool no sangue realizado por expiração do ar, através de aparelho utilizado pelas autoridades de fiscalização e aprovado pelo pela entidade competente, constitui-se como prova pericial (lato sensu) preconstituida – cfr. Climent, Carlos Durán, “La Prueba Penal”, Tomo II, Tirant lo Blanch, Valência, 2005, 2183 a 2195”.

Em termos gerais, poderia admitir-se que, a partir do momento em que a lei n.º 19/2004, na redacção actual, admite a regulação e fiscalização do trânsito rodoviário pela Polícia Municipal, está a permitir que, no âmbito dessa mesma fiscalização, esta entidade possa empreender os exames de pesquisa de álcool no sangue.

Sucede, porém, que não se concebe tal interpretação, seja por não ter a mais pequena ancoragem constitucional, seja porquanto importa a aplicação analógica para um serviço municipalizado de um poder funcional manifestamente concorrente com o das forças de segurança e inerente à execução de acções de fiscalização dos condutores (e não estritamente do trânsito rodoviário, do que não é sinonímia - e neste âmbito de direito sancionatório é primordial que sejamos rigorosos na interpretação, literal, mas também consoante acima se adiantou, teleológica e sistemática dos preceitos legais) e cujo conteúdo e finalidades vai muito para além das acções administrativas (funções de fiscalização e elaboração de autos) para que são competentes, enquadrando-se claramente no quadro de funções de repressão policial, as quais, devidamente analisado o diploma atributivo de competências às Polícias Municipais, apenas podem exercer em cooperação (e jamais em concorrência) com as forças de segurança.

Mais, não nos parece que se possa entender aqui a Polícia Municipal como autoridade ou agente de autoridade (veja-se que, na citada Lei de Segurança Interna, as Polícias Municipais não são tidas como autoridades de polícia – artigos 25.º e 26.º da Lei 53/2008, de 29/08).

E nem se diga que o mero facto de no n.º 2 do citado artigo 2.º se fazer referência apenas a “entidade fiscalizadora” se abrangerá a Polícia Municipal. Na verdade, essa subsunção não é possível atento o quadro legal em que a Polícia Municipal se move, em especial o disposto no artigo 3.º, n.º 4 e 5 da Lei nº 19/2004 de 20-05. É que a Lei n.º 18/2007, de 17/05 não tem a virtualidade de atribuir funções à Polícia Municipal que esta não tenha por força do regime legal que a rege em especial.

Mas, ainda que pudéssemos conceber que, a partir do momento em que são atribuídas funções de fiscalização do trânsito rodoviário às Polícias Municipais, se possa considerar que estas são “autoridades” para os efeitos do disposto no C.E, sucede que o limite da sua actuação terá de estabelecer-se, precisamente, quando no decorrer de tal fiscalização se verifique a prática de um crime.

Aliás, este entendimento sustenta-se na clareza meridiana com que a Lei n.º 19/2004, de 20/05, impõe a insusceptibilidade dos agentes da Polícia Municipal praticarem actos próprios dos OPC (designadamente recolha e produção de prova), conferindo-lhes somente, e face à verificação do flagrante delito, a detenção com entrega imediata (leia-se, no mais curto espaço de tempo possível) às forças de segurança ou ao órgão judicial competente.

Permite-se, é certo, que a Polícia Municipal acautele no local do facto típico as medidas cautelares necessárias e adequadas, mas a lei em lugar algum permite que a Polícia Municipal detenha (ou retenha, de qualquer forma suprimindo claramente a liberdade nas suas múltiplas e constitucionais vertentes), suspeitos identificados e, em detrimento de os conduzir ao OPC competente, decida levá-los para o próprio Departamento de Polícia, proceda às diligências de (recolha de) prova que tem por necessárias à instrução do caso, elabore todo o expediente substancial processual penal atinente e, terminado este, então, contacte o OPC para que este elabor o expediente meramente formal que está vedado ao órgão administrativo (já que a factualidade substantiva foi previamente recolhida e em auto transcrita pela Polícia Municipal).

Observe-se que no caso de acidente de viação se discrimina que, podendo tomar conta das ocorrências, se se estiver diante de acidente com relevância jurídico penal, não pode a Polícia Municipal intervir (cf. artigo 4.º, n.º 1 al. b) da Lei n.º 19/2004, de 20/05).

Ora, se a lei habilitante da actuação da Polícia Municipal não lhe permite acudir a qualquer circunstância que possa ter inerente a prática de um crime, poderá aquela entidade administrativa, fora dos casos em que a lei expressamente o permite, diante da verificação do flagrante delito (neste caso, a condução em estado de embriaguez) deter o agente e continuar activamente a recolha de prova e a instrução do caso e apenas contactar a Força de Segurança quando todo o expediente necessário à sua apresentação judicial (com excepção dos autos de constituição formal de arguido e de tomada de TIR) já estiver completo? A resposta é quanto a nós clara e tem de ser negativa.

Não nos parece que no âmbito do C.E (ou no Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas – Lei n.º 18/2017, de 17/05) se pretenda conferir uma maior amplitude de funções à Polícia Municipal do que aquelas que lhe estão constitucionalmente cometidas e concretizadas pela lei própria habilitante.

Nem tão pouco se julga legítimo que se considere que, neste enquadramento do C.E, o mesmo se operacionaliza atribuindo mais poderes à Polícia Municipal do que aqueles que lhe são deferidos em estatuto próprio e que a distingue claramente dos OPC.

Somos, pois, de crer que, embora a Polícia Municipal detenha expressamente competência para a fiscalização do trânsito rodoviário e pedonal, quando os condutores (ou os peões) possam com a sua conduta perpetrar crimes (que os agentes presenciem em flagrante delito) as suas competências cingem-se ao previsto na Lei n.º 19/2004, de 20/05, não abrangendo quaisquer outras e não sendo, por isso, passível a interpretação extensiva (ou mesmo analógica) do C.E, em moldes que importem o conferir à Polícia Municipal competências que, por natureza e finalidade, são exclusivas dos OPC.
*

d)A actuação da Polícia Municipal no caso concreto:
No caso sub judice, verificamos que os elementos da Polícia Municipal, após mandarem parar o veículo conduzido pela Arguida, e sentirem “um odor a álcool”, determinaram que fizesse teste qualitativo ao ar expirado para apurar da existência de álcool no sangue.
Após realizar este teste, verificaram que a Arguida apresentava uma taxa de álcool no sangue de 1,55 g/l. Determinaram então que os acompanhasse até ao interior do Departamento Policial da Câmara Municipal com vista a realizar teste quantitativo. Nesse departamento, faria um teste de álcool que daria um resultado de 2,07 g/l, que corresponderia a uma TAS de 1,90 g/l de sangue.
A pergunta que se faz é se os agentes da Polícia Municipal detinham competência para, após deterem a Arguida que conduzia em estado de embriaguez, a conduzirem para o Departamento de Polícia da CM Cascais para fazerem teste quantitativo.
Como vimos, o artigo 3.º, n.º 2, e) da Lei n.º 19/2004, de 20/05, confere às polícias municipais as funções de regulação e fiscalização do trânsito rodoviário e pedonal na área da jurisdição do município. Neste sentido, não choca que a Polícia Municipal possa realizar testes de despistagem de álcool. Todavia, essa realização só será de admitir em situações circunstanciadas.
Ou seja, por exemplo, não será possível às Polícias Municipais realizarem “Operações STOP” – tais acções de prevenção de criminalidade estão totalmente fora das suas competências -, mas já se afigura aceitável que, no âmbito das suas competências, possam realizar testes de despistagem do álcool (testes qualitativos).
Por exemplo, por caber à Polícia Municipal fiscalizar as normas de circulação rodoviária, e ainda a participação de acidentes de viacção (cf. Artigo 4.º, n.º 1 da Lei n.º 19/2004, de 20/05), não choca que mandem parar um condutor que circula erraticamente, passando várias linhas contínuas, ou circulando aos ziguezagues e lhe determinem a realização do teste qualitativo de álcool no sangue. Não nos choca porque a lei atribui competências dentro desse âmbito às Polícias Municipais.
Todavia, é também a lei que expressamente refere que, a nível criminal, de investigação criminal, a Polícia Municipal é totalmente destituída de competência para sinistros automóveis (artigo 4.º, n.º 1, b) in fine), e que não exerce as competências próprias dos órgãos de polícia criminal (cf. Artigo 3.º, n.º 5).
Ou seja, se é de admitir a realização de testes de despistagem – vulgos testes qualitativos -, a partir do momento em que existam indícios manifestos da prática de um crime, a competência da Polícia Municipal esfuma-se, cessa imediatamente. Assim, a partir do momento em que surjam indícios claros de que o fiscalizado pratica um crime, a Polícia Municipal tem apenas um caminho: entregar o cidadão ao órgão de polícia criminal territorialmente competente, conduzindo-o a esse órgão ou pedindo que este o venha recolher ao local.
É isto que resulta, em nossa opinião, do disposto no artigo 3.º, n.º 4 da Lei n.º 19/2004, de 20/05, quando estatui que a identificação e revista dos suspeitos acontece no local do cometimento do ilícito e que a condução à autoridade judiciária ou ao órgão de polícia criminal competente é imediata. O mesmo resulta também do artigo 4.º, n.º 1, e) que fala de detenção e entrega imediata do detido.
A utilização do conceito de “entrega imediata” evidencia um claro paralelismo com o disposto no artigo 255.º, n.º 2 do C.P.P. Interpretando a norma, diríamos que a entrega imediata será a realizada no mais curto espaço possível tendo em conta a situação concreta – ou seja, o tempo que uma pessoa média, na mesma situação, levaria até conseguir entregar o detido ao órgão competente.

Como refere Paulo Pinto de Albuquerque (PINTO DE ALBUQUERQUE, Paulo, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª Edição Actualizada Reimpressão, Universidade Católica Editora, 2018, p. 702), A detenção deve cessar o mais depressa possível, sendo o detido entregue imediatamente à autoridade judiciária ou à entidade policial mais próxima (...)”.
O que a lei não determina, nestes casos, é que a Polícia Municipal, munida de manifestos indícios da prática de um crime, em vez de entregar o suspeito imediatamente ao OPC competente, decida retê-lo para o interior das suas instalações para proceder à realização de diligências de prova que considere necessárias para o caso (por exemplo, um teste quantitativo) e para proceder à realização do expediente e só depois decida contactar o OPC competente.
Sempre se dirá que o facto de os agentes da força de segurança (neste o agente da PSP) lavrarem um “auto de detenção”, que mais não é do que um pro forma, não serve para “conferir legalidade” à actuação da Polícia Municipal, pois toda a factualidade substantiva foi recolhida e investigada por um órgão sem poderes para tal.
Aliás este pro forma levanta questões bastante delicadas. Quase se diria que o OPC se limita a ratificar um acto praticado por uma entidade destituída de poderes e competência para os realizar, numa quase delegação tácita de poderes, apenas para conferir aparência de legalidade a um acto ilegal.
Na verdade, o OPC que era competente nada fez, não participou em qualquer diligência de prova. Temos, então, uma clara inversão de papéis, com a Polícia Municipal a realizar a investigação criminal, a proceder à recolha de prova pericial, e o OPC que detinha a competência para a investigação a tornar-se num autêntico agente administrativo que se limita a elaborar expediente.
Mal se perceberia também que a Lei Habilitante da Polícia Municipal lhe restringisse a actuação em acidentes de viacção em que exista a prática de um crime (fechando a porta), mas depois se permitisse (entrando pela janela) que os agentes da Polícia Municipal, diante da verificação de um flagrante delito de condução sob influência de álcool pudessem proceder a uma detenção, continuassem activamente a recolher prova, e só contactassem a competente força de segurança quando todo o expediente necessário à sua apresentação judicial – com excepção do TIR e da constituição de arguido – já estivesse realizado.
Chocar-nos-ia ainda mais que o Código da Estrada ou o Regulamento de Fiscalização de condução sob o efeito de álcool tivessem o condão de atribuir um maior número de poderes e funções à Polícia Municipal que aqueles que lhe são conferidos pela sua Lei Habilitante e até pela Constituição. Teríamos, então, dispositivos legais (como o C.E) a atribuírem mais poderes à Polícia Municipal do que a própria lei habilitante.
Não se pense que esta é uma questão meramente formal. Não, na verdade este é um tema que tem de ser analisado com todo o cuidado, pois estamos perante limitações à liberdade de cidadãos que só podem ser levadas a cabo nos termos previstos na lei.
Como vimos, a Constituição admite a restrição da liberdade individual em casos de detenção em flagrante delito (cf. Artigo 27.º, n.º 3, a) da C.R.P).
De acordo com o disposto no artigo 254.º, n.º 1, a) do C.P.P, a detenção é efectuada para, no prazo máximo de 48 horas, o detido ser apresentado a julgamento sob forma sumária ou presente a juiz competente para primeiro interrogatório judicial ou aplicação de medida de coacção. Também se disse que a detenção efectuada pela Polícia Municipal deve ser equiparada àquela que é realizada por um qualquer cidadão, nos termos do disposto no artigo 255.º, n.º 1, b) do C.P.P.
Por isso, a questão complica-se quando a detenção se mantém, quando não há uma entrega imediata do detido ao órgão competente para realizar as diligências de prova, e a Polícia Municipal decide tomar medidas para as quais não tem competência.
Tendo procedido à realização de um teste qualitativo e este ter dado o resultado de 1,55 g/l, o que deveria ter a Polícia Municipal feito? O único caminho era entregar a Arguida ao OPC competente, pois é isso que a lei habilitante determina.
Não cabe nas competências da Polícia Municipal levar um cidadão detido para o interior do Departamento Camarário para realizar um teste quantitativo, preencher expediente e só depois proceder à entrega à PSP. Esta é uma entrega que nada tem de imediata.

E nem se fale aqui da tomada de medidas cautelares e de urgência. De acordo com Raúl Gonçalves Taborda (GONÇALVES TABORDA, Raúl, in Da Identificação do Suspeito e Consequências da Recusa de Identificação, disponível em https://portal.oa.pt/upl/%7B7c70731b-7211-4be7-8b7f-d25206021789%7D.pdf, [em linha], consultado em 16/11/2021), “As medidas cautelares de polícia têm como principal funcionalidade agir e reagir em situações que não se compadecem com as habituais delongas de um normal formalismo processual (...).A medida utilizada deve ser necessária, exigível e proporcional. Note-se que estamos perante actuações policiais que são susceptíveis de causar lesões a direitos fundamentais. Exige-se, por isso, que sejam justificadas face à situação em concreto, que se faça um juízo de proporcionalidade entre o prejuízo que se pode provocar e os bens jurídicos que se visam tutelar e que sejam as medidas idóneas a responder à situação fáctica em causa.”

E como refere Anabela Miranda Rodrigues (MIRANDA RODRIGUES, Anabela, in O inquérito no novo Código de Processo Penal, Jornadas de Direito Processual Penal, Centro de Estudos Judiciários, Livraria Almedina, 1993, p. 71), com elas se pretende “(...) acautelar a obtenção de meios de prova que, de outra forma, poderiam irremediavelmente perder-se, provocando danos irreparáveis na obtenção das finalidades do processo. E isto, quer devido à natureza perecível de certos meios de prova, quer ainda dado o carácter urgente dos actos a praticar”.
O que no caso não se verificava. É que na verdade havia uma alternativa à Polícia Municipal que permitia o respeito pela disposição regulamentar de entre os testes qualitativo e quantitativo não mediarem mais de 30 minutos, restringindo-se assim ao mínimo indispensável os direitos, liberdades e garantias do Arguido, e permitindo que o processo legal querido e definido pelo legislador fosse devidamente respeitado. Bastaria que os elementos da Polícia Municipal tivessem contactado imediatamente a PSP e procedido à condução imediata do cidadão até à esquadra daquela polícia (que se localiza a pouco mais de 200 metros do Departamento de Polícia), onde poderia realizar o teste quantitativo.
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A Polícia Municipal está assim limitada aos poderes e funções atribuídos pela lei. Num caso que envolva a prática do crime de condução em estado de embriaguez, a sua actuação deve limitar-se a solicitar ao cidadão - a quem detecte uma taxa de álcool igual ou superior a 1,2 g/l no teste qualitativo - que o acompanhe ao OPC competente ou contactar directamente com este órgão para que se desloque ao local para proceder à entrega. O que não se pode aceitar é que a Polícia Municipal mantenha uma detenção, restringindo, por mote próprio, direitos fundamentais dos cidadãos, como a liberdade de decisão e determinação e o direito à liberdade de movimentos.
É que não se pode deixar de reconhecer a imposição de limites à investigação criminal quando o seu desenvolvimento implique violações a direitos fundamentais dos cidadãos por ela visados, sob pena de o Estado deixar de ter qualquer legitimidade democrática. Aliás, as razões que impõem a verdade material são as mesmas que não podem deixar de proibir actuações totalmente abusivas da autoridade, sob pena do investigador e do criminoso se colocarem no mesmo patamar, quebrando toda a legitimidade do Estado na administração da justiça.
E uma situação de detenção configura certamente uma restrição a direitos fundamentais do cidadão detido pelo que só poderá ser empreendida e mantida nos termos previstos na lei e por entidades competentes, sob pena de a restrição se tornar arbitrária, legitimada por um suposto manto de moralidade, numa ideia de que tudo vale para combater o crime.
Como vimos, a demonstração do nível de álcool no sangue está sujeita a um conjunto de regras imperativas, seja quanto ao procedimento de fiscalização da condução, seja quanto ao seu regime de prova. Também a actuação policial, enquanto actuação administrativa e de autoridade, que pressupõe o exercício de um poder condicionante de actividades e direitos alheios, deve ser exercida nos termos da lei e da Constituição.
Qualquer actuação contra os ditames legais, em contraditoriedade à lei, é violadora da constituição, sendo por isso totalmente ilegítima. E isso acontece não são só quando são tomadas medidas fora do âmbito da competência da polícia, como quando a actuação policial viola direitos fundamentais dos cidadãos (cf. Artigo 272.º, n.º 2 da C.R.P).
Assim, como vimos, a Polícia Municipal é um serviço municipal de polícia administrativa e não um OPC. Os seus elementos são competentes para identificar suspeitos, executar medidas cautelares de polícia, no local do ilícito, proceder a detenções em flagrante delito e entregar de imediato o suspeito ao OPC competente. Não são em caso algum competentes para manter uma detenção, além do tempo necessário, com o fito de realizar investigação criminal e diligências de prova. E nem cabe nas atribuições das autarquias, das quais fazem parte as Polícias Municipais, fiscalizar a condução por condutores sob efeito de álcool.
Assim, se a lei limita expressamente a competência desta polícia no âmbito criminal – excluindo-a totalmente em caso de acidentes de viacção, referindo em várias disposições que as suas actuações e competências não se podem confundir com as dos órgãos de polícia criminal – porque razão se atribuiria competência para a investigação criminal no âmbito da condução sob efeito de álcool?
Ora, se a lei não atribui competências deste calibre à Polícia Municipal há que considerar que neste caso em que foram tomadas medidas que não constam do elenco legal previsto na Lei Habilitante, foi violado o princípio da tipicidade das medidas de polícia, sendo totalmente ilegítima a situação de retenção do Arguido no interior do Departamento da Polícia Municipal para que realizasse teste quantitativo de despiste do álcool.
Não é de admitir que a Polícia Municipal possa, ao abrigo de uma eventual e inverificada urgência cautelar de prova, realizar diligências que extravasam os seus poderes e que vão frontalmente contra o que o legislador pretendeu e não se coibiu de frisar ao longo do texto legal – não cabe à Polícia Municipal a realização de diligências no âmbito de processos crime fora das suas competências definidas pelo artigo 3.º, n.º 3 da Lei n.º 19/2004, de 20/05.
Assim, a manutenção ilegal de uma restrição à liberdade de movimentos da Arguida, como aconteceu, não se pode senão configurar como uma detenção ilegal.
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As consequências da actuação da Polícia Municipal:
O Título V do Livro II do C.P.P é intitulado “Das nulidades”. Cabe olhar, desde logo, para o disposto no artigo 118.º, n.º 3, onde se determina que as disposições desse título não prejudicam as normas do Código quanto a proibições de prova. Como refere Fernando Gama Lobo (GAMA LOBO, Fernando, in Código de Processo Penal Anotado, 3ª Edição, Almedina, 2019, p. 195),A lei declara expressamente que em sede de invalidades, para além do regime das nulidades, existe também um muito relevante regime próprio, autónomo, para as chamadas proibições de prova, que se encontra genericamente previsto no art. 126º (...), os quais obviamente geram também nulidades, sanáveis ou insanáveis, em função da sua concreta gravidade processual.”.
Mais especificamente, quanto aos chamados métodos proibidos de prova, dispõe o artigo 126.º, n.º 1 do C.P.P que, são nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas. E complementa o n.º 2 que são ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante:
a)-Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos;
b)-Perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória ou de avaliação;
c)-Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei;
d)-Ameaça com medida legalmente inadmissível e, bem assim, com denegação ou condicionamento da obtenção de benefício legalmente previsto.

De acordo com Germano Marques da Silva (op. cit., pp. 160 e 161),A verdade processual não é senão o resultado probatório processualmente válido, isto é, a convicção de que certa alegação singular de facto é justificavelmente aceitável como pressuposto da decisão, por ter sido obtida por meios processualmente válidos. A verdade processual não é absoluta ou ontológica, mas uma verdade judicial, prática e, sobretudo, não uma verdade obtida a todo o preço mas processualmente válida.”.
Na verdade, a consagração de meios proibidos de prova tem de ser vista como uma auto-limitação do próprio Estado que, admitindo que “não vale tudo”, para punir criminosos, estabelece verdadeiros limites à prossecução dessa verdade e aos poderes do Estado.

E como diz “Na fundamentação da proibição de métodos probatórios podem ser convocados argumentos de diversa estirpe. Desde logo, a preservação da validade epistemológica da informação obtida – ninguém duvidarJosé Mouraz Lopes (GAMA, António, et. al., in Comentário Judiciário do Código  de Processo Penal – Tomo II, Almedina, 2ª Edição, 2020, pp. 38 e 39),á de que, p. ex., uma confissão ou um testemunho arrancados sob tortura encerram um grave potencial de afastamento da verdade histórica. Por outra banda, o estado está adstrito a critérios de lisura procedimental que por força implicam que não use os mesmos meios – por mais eficazes que se mostrassem – que os delinquentes que visa perseguir e punir, podendo dizer-se que sobre si impende o dever de preservar as “mãos limpas”. No entanto, o fundamento que em definitivo sustenta a proibição é a tutela (a garantia) de direitos e liberdades fundamentais”.

Ancorando-nos também nas palavras de Cláudio Lima Rodrigues (LIMA RODRIGUES, Cláudio, in Das Proibições de prova no âmbito do direito processual penal – o caso específico das proibições de prova no âmbito das escutas telefónicas e da valoração da prova proibida pro reo, Verbo Jurídico) diremos, “(...) é de salientar que o problema das proibições de prova enquadra-se numa encruzilhada em que o próprio Estado pode encontrar-se. De um lado, a necessidade de assegurar um processo penal efectivo, capaz de perseguir e punir os criminosos e, de outro lado, o dever de assegurar um processo penal justo, associado à ideia de fair trial, àquele que por ele se vê envolvido, apresentando assim as proibições de prova, segundo KAI AMBOS, uma dimensão individual de protecção dos direitos fundamentais (protegendo o investigado da utilização de provas ilegalmente obtidas contra si) e uma dimensão colectiva de preservação da integridade constitucional, “particularmente através da realização de um processo justo”. Daí que a temática das proibições de prova se ligue à própria concepção de Estado em vigor a cada momento histórico e em cada local geograficamente delimitado , cabendo a esse mesmo Estado “uma dupla função estabilizadora da norma: o Estado deve estabilizar as normas jurídico penais não só através de uma persecução penal efectiva, mas também, em um mesmo plano, através da garantia dos direitos fundamentais dos investigados por meio do reconhecimento e, principalmente, aplicação das proibições ou vedações de utilização de provas [...] “ (...) tem de se ter presente que o fim de investigar e punir os crimes, embora sendo um valor de elevada importância, não pode ser sempre e sob quaisquer circunstâncias o valor prevalente num Estado de Direito democrático.
O Estado de polícia, com os seus meios ilimitados pode perseguir e punir os criminosos de forma mais eficaz que o Estado liberal, mas naquele surge o perigo de se verem condenados inocentes, mostrando-se assim a finalidade de combate à criminalidade contraproducente, conduzindo a redução da criminalidade privada à “criminalidade de Estado”.
Entendeu, assim, o legislador constitucional que, embora, a realização da justiça seja um valor com dignidade constitucional, é um valor que não pode ser encarado de forma absoluta. Não pode a realização da justiça ser perseguida com um intolerável sacrifício para os direitos fundamentais dos cidadãos.”.
Este longo excurso serve para mostrar que as proibições de valoração de prova devem ser vistas como modos de evitar a perda da autoridade do próprio Estado, já danificada com a produção do método proibido de prova, impedindo que a sua imagem saia ainda mais “danificada” através da prolação de uma sentença que valore a prova já ilegitimamente produzida.
Lembre-se até que a obrigação de desconsiderar toda a prova proibida é uma imposição constitucional. Como determina o artigo 32.º, n.º 8 da C.R.P, são nulas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, domicílio, correspondência ou telecomunicações.

Como refere Fernando Gama Lobo (op. cit. pp 217-219),Na verdade, a tutela da vida e da dignidade humana, impõem desde logo, sem possibilidade de situações de excepção, porque são direitos indisponíveis, que a sua violação seja cominada com a nulidade absoluta ou insanável (...) Seria um atentado à pessoa humana e um retrocesso democrático, que se permitisse como método de prova, a agressão física e moral a seres humanos, como aliás aconteceu no passado (...) gerando uma nulidade absoluta e insanável, todas as provas obtidas mediante (i) tortura (ii) coacção ou (iii) ofensa da integridade física ou moral (...)”
Por isso, e tendo em conta este quadro constitucional e legal, que ilações deveremos tirar de uma actuação da Polícia Municipal fora dos seus poderes?
O que temos, em termos objectivos, é a realização de uma prova pericial (teste quantitativo) por alguém destituído de poderes para a realizar e efectuada durante uma situação de detenção ilegal – porque não foi orientada, como a lei determina, para a entrega imediata do detido ao OPC, mas sim para a realização de diligências probatórias, para as quais a Polícia Municipal é incompetente.
A competência da Polícia Municipal cessou quando, verificando que a Arguida conduzia apresentando uma TAS de 1,55g/l no teste qualitativo, obteve indícios claros da prática de um crime praticado em flagrante delito. O que se impunha era a entrega imediata ao OPC competente para que este, garantindo todos os direitos fundamentais da Arguida, procedesse à realização do teste quantitativo, realizando a competente investigação criminal da sua competência.
Por isso, há que concluir que a realização do teste quantitativo apenas foi conseguida porquanto a Arguida foi mantida ilegalmente numa situação de detenção, visto ter sido mantida fora das condições e situações que a lei habilitante permite.
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Tudo o que se veio de dizer serve para configurarmos a prova pericial obtida (o teste quantitativo realizado), como método proibido de prova por não poder ser desligado da forma como foi conseguido.
Assim, porque obtida com restrição inadmissível da liberdade de acção da Arguida, ofendendo  a sua integridade física e moral e perturbando a vontade de acção e decisão, há que concluir que o teste quantitativo efectuado, que serve para provar a condução sob efeito do álcool, é prova nula (tudo cf. Artigos 32.º, n.º 8 da C.R.P e 126.º, n.º 1 e 2, a), b), c) e d) do C.P.P).
Sendo esta prova nula não pode a mesma ser valorada pelo Tribunal, não podendo ser considerado provado que a Arguida, no dia 15/04/2021, pelas 23h00 conduzia com uma TAS de 1,90 g/l de sangue.

Como diz José Mouraz Lopes, (op. cit., pp. 63 e 64,De pouco valeria o legislador proibir certos métodos probatórios (...) se não acompanhasse a proibição de uma adequada sanção. Só ela concretiza, no fim de contas, o programa constitucional que proscreve certas provas em razão do seu carácter daninho para os direitos fundamentais tutelados no art. 126º (arts. 25º/1, 26º/1, 32º/8 e 34º CRP). De modo que o legislador vedou a valoração das provas obtidas pelos métodos previstos no n.º 1 e 2 do art. 126º e fê-lo expressando “não podendo [as mesmas] ser utilizadas” (n.° 1) e dispondo que é “igualmente” assim para as referidas no n.° 3 (...) as provas proibidas (...) não podem ser consideradas pelo julgador na formação da sua convicção. É como se não existissem (...)”.
Assim, perfilhando a chamada “Doutrina dos frutos da árvore envenenada”, estabelecida pelo Supremo Tribunal dos Estados Unidos no caso Silverthorne Lumber Co. Vs. United States, temos de considerar que tudo quanto foi obtido através da detenção ilegal da Arguida terá de ser desconsiderado, pois outra interpretação importaria o sacrifício intolerável da liberdade e segurança do cidadão com o fraco argumento da constatação da verdade material.
Aliás, admitir a validade do teste pericial, com base no facto de o mesmo ser objectivo e revelar a verdade dos factos independentemente da entidade que o realiza, seria deixar entrar pela janela o que não se quis deixar entrar pela porta. Seria abrir totalmente a possibilidade de violar os mais fundamentais direitos da pessoa em prol de um efémero sentimento de justiça. Uma perspectiva deste jaez abriria a possibilidade de admitir todas as atrocidades imagináveis desde que no fim o meio de prova obtido demonstrasse que aquela pessoa havia efectivamente cometido um crime.
A adopção desta perspectiva permitiria então que um particular se munisse de testes qualitativos e mandasse parar um condutor. Depois, verificando que este apresentava taxa igual ou superior a 1,2 g/l de sangue o detivesse e conduzisse até sua casa onde levaria a cabo um teste quantitativo. Após, o levasse até ao OPC competente para que este fizesse o expediente que está vedado ao particular (constituição de Arguido e TIR).
Uma vez que o resultado do exame seria sempre igual e objectivo também esta conduta acabaria por ser aceite e poder-se-ia considerar como válida a prova realizada nestas circunstâncias.
No seu famoso livro “O Príncipe”, Maquiavel dizia que os fins justificavam os meios. Mas cabe lembrar que o autor desse livro se movimentava em meios que não correspondem exactamente ao nosso conceito actual de Democracia ocidental. Numa democracia como a nossa, os fins – mesmo que altamente beneméritos – não podem justificar os meios.
Não se diga – porque tal nos levaria de volta a caminhos sombrios – que o simples facto de o teste, efectuado durante uma detenção ilegal, apresentar taxa crime servirá para legitimar toda a conduta anterior, porque a detenção não altera o valor do teste. Acharíamos o mesmo se a Arguida tivesse sido torturada, agredida, humilhada para fazer um teste que depois daria essa taxa superior a 1,2 g/l?
Um Estado de Direito não pode considerar que os métodos usados pelos seus agentes, mesmo que contra legem, são aceitáveis para descobrir a verdade. Uma verdadeira sociedade democrática tem de exigir que todos – e em maior medida os agentes do Estado – actuem conforme as leis democraticamente aprovadas. Deve exigir que todos os direitos das pessoas – mesmo as que praticaram crimes – são respeitados.
Assim, e concluindo, a Polícia Municipal num caso como estes, após verificar que a Arguida estava a praticar um crime (condução de veículo automóvel em estado de embriaguez), podia e devia proceder à detenção como fez. Mas a única solução que tinha a seguir era conduzir a Arguida directamente ao OPC competente e não levá-la para o seu Departamento de Polícia com o fim de recolher prova pericial (teste quantitativo) e então só depois o levar ao OPC.
Não há dúvidas de que a Polícia Municipal actuou fora do catálogo das medidas de polícia que lhe são atribuídas, contrariando o princípio constitucional da tipicidade e proibição do excesso. E além disso agiu sem que se verificasse qualquer circunstância que justificasse e exigisse a necessidade daquela actuação urgente e cautelar (a esquadra do OPC competente fica a 200 metros do Departamento de Polícia).
Perante esta actuação, completamente contrária ao à constituição e à lei, só há uma alternativa: considerar a prova recolhida nula e não a valorar. A acção da Polícia Municipal, independentemente do resultado o teste, não pode ser branqueada, devendo ser considerada ilícita nos termos dos artigos  32.º, n.º 8 da C.R.P e 126.º, n.º 1 e 2 do C.P.P.

Como se pode ler no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08/07/2020, relatora Florbela Sebastião e Silva, processo n.º 86/20.1PBCSC, não publicado, mas do qual temos conhecimento funcional:
“(...) o teste quantitativo faz prova plena em Tribunal, pelo que a sua recolha deve respeitar os direitos do arguido. Assim, o que a Polícia Municipal deveria ter feito, assim que detectasse a existência de álcool no sangue do arguido com valor apto a levar a uma incriminação em termos penais era, ou levar o arguido até à PSP territorialmente competente, de imediato, ou, melhor ainda, ter chamado a PSP até ao local para o arguido ser, por esta, levado até à competente esquadra a fim de realizar o teste quantitativo (...) a Polícia Municipal não podia continuar a deter o arguido para o submeter a segundo teste – o quantitativo – tendo antes que o entregar de imediato, ou no mais curto espaço de tempo possível (...) à PSP (...) Ao levar o arguido do local onde o mesmo fora detido em flagrante delito, para lugar diverso do da autoridade policial competente, ao proceder à obtenção de uma prova cuja recolha não lhe competia e que excedia as suas competências legais – pois que tal segunda prova não era necessária para se constatar a existência de indícios de crime – e ao continuar a restringir a liberdade constitucionalmente consagrada do arguido para efectuar um segundo teste que não competia à Polícia Municipal efectuar, dúvidas não temos de que a respectiva prova daí resultante – a leitura da TAS proveniente do teste quantitativo – é nula nos termos do disposto no artº 126º nºs 1 e 2 al.s. a) e c) do Código de Processo Penal.”
A acção da Polícia Municipal não pode, pois, merecer a tutela do Direito, num circunstancialismo em que se impunha, até por configurar legalmente uma autoridade administrativa, que esta polícia, em detrimento de tal atropelo, agisse em cooperação com as forças de segurança.
Assim julgamos em abono da reintegração do direito a uma polícia que actue no quadro constitucional e legal vigentes, e no respeito pela liberdade e segurança de todos os cidadãos, impondo a adopção de mecanismos aqui materializados na pessoa da Arguida, tendentes ao respeito pela vinculação funcional (artigos 237.º, n.º 3 e 272.º, n.º 2, 32.º, n.º 1 e 8 da C.R.P) que simultaneamente comporta o princípio da tipicidade das medidas de polícia e, por outro, proíbe o excesso, aqui verificado e, através do qual foi obtida prova ilícita que, por motivos de ordem e aplicação do regime constitucional do Estado de Direito e das proibições de prova em processo penal, tem de ser desconsiderada, e não podendo ser utilizada (artigos. 161.º, n.º 1 e 2 al. d) do C.P.A e 126.º, n.º 1 e 2 do C.P.P).
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Deste modo, não havendo prova válida de que a Arguida conduzia o veículo indicado com taxa considerada crime (pois a única prova que o poderia demostrar – teste quantitativo - é destituída de valor e também irrepetível) o Tribunal não tem outra opção se não o de considerar não provado o indicado em I.
Quanto aos elementos subjectivos indicados em II e III, não havendo elementos objectivos provados quanto à prática do ilícito penal, evidentemente não podem também ser considerados provados.”
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3Apreciação do recurso
3.1.-Dos vícios decisórios – artigo 410º, n.º 2, als. a), b) e c) do CPP
§1.-O recorrente invoca expressamente no seu requerimento de recurso os seguintes vícios decisórios:
a)-A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b)-A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c)-Erro notório na apreciação da prova.
Nos termos do artigo 410º, n.º 2 do C.P.P. o recurso interposto sobre a matéria de facto de uma sentença proferida em processo-crime pode ter um de três fundamentos: a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e c) o erro notório na apreciação da prova.
Em qualquer um dos apontados fundamentos, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos para o fundamentar, como por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10ª ed., pág. 279; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed. Pág. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., págs. 77 e ss.), tratando-se assim de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser autossuficiente.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício previsto no artigo 410º, n.º 2, al. a), ocorrerá quando a matéria de facto provado seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é sindicável em reexame restrito à matéria de direito (a propósito deste vicio veja-se, entre outros, o Ac. do TRP de 15.11.2018 e o Ac. do TRP de 09.01.2020, ambos acessíveis em www.dgsi.pt).
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, vicio previsto no artigo 410º, n.º 2, al. b), consiste na incompatibilidade, insusceptivel de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. O que ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Finalmente, o erro notório na apreciação da prova, vício previsto no artigo 410º, n.º 2, al. c), verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis. Esse vicio do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotados da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar (cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed. Pág. 341). Trata-se de um erro de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., pág. 74). Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não conduz ao referido vicio (a propósito deste vicio, veja-se, entre outros, o Ac. do TRP de 15.11.2018 e Ac. do STJ de 18.05.2011, ambos acessíveis in www.dgsi.pt).
Quando a este vicio – erro notório na apreciação da prova – importa referir que o tribunal decide, salvo no caso de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção.
Na verdade, dispõe o artigo 127º do C.P.P. que “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Rege, pois, o principio da livre apreciação da prova, significando este principio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminados de valor a atribuir à prova (salvo excepções legalmente previstas, como sucede com a prova pericial) e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre convicção da prova e na sua convicção pessoal.
O que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.
Contudo, a liberdade conferida ao julgador na apreciação da prova não visa criar um poder arbitrário e incontrolável.
A este propósito refere Germano Marques da Silva que “a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas como uma valoração racional e critica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão”. (in Curso de Processo Penal, Verbo, Vol. II, pág. 111).
Tal liberdade está intimamente ligada quer ao dever de tal apreciação assentar em critérios objectivos de motivação, quer ao dever de perseguir a verdade material.
Por isso, quando se refere que a valoração da prova é segundo a livre convicção da entidade competente (in casu, o juiz), a convicção há de ser pessoal, objectivável e motivável, logo, vinculada e, assim, capaz de conseguir a adesão razoável da comunidade pública. Donde resulta que tal existirá quando e só quando o Tribunal se tenha convencido, com base em regras técnicas e de experiência, da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável (cf. Figueiredo Dias in Direito Processual Penal, Vol. I, Coimbra Editora, 1981, págs. 198-207).
Do exposto resulta que o juiz deve apreciar a prova testemunhal segundo os critérios de valoração racional e lógica, tendo em conta as regras normais de experiência, julgando segundo a sua consciência e convicção.
Do exposto, conclui-se que os erros da decisão, para poderem ser apreciados ou mesmo conhecidos oficiosamente, devem detectar-se, sem esforço de análise, a partir do teor da própria sentença, sem recurso a elementos externos como seja o cotejo das provas disponíveis nos autos e/ou produzidas em audiência de julgamento.
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§2.Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
Conforme acima expendido este vício tem que necessariamente decorrer do texto da decisão recorrida e ocorrerá quando os factos provados não permitam uma decisão de direito, necessitando de ser completados.
O recorrente sustenta que em relação ao facto provado sob o ponto 3.– “Os elementos da Polícia Municipal determinaram à Arguida a exibição dos seus documentos e dos documentos da viatura, assim como a realização de teste de álcool, através de analisador qualitativo, que deu o resultado de 1,55 g/l de sangue” – não consta da motivação da matéria de facto provada qualquer menção ou identificação do elemento probatório que conduziu o tribunal a quo a dar como provado no referido ponto 3. o resultado do teste qualitativo de álcool.
A arguida foi acusada pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292º, n.º 1 e 69º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal.
Na decisão recorrida a arguida foi absolvida do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292º, n.º 1 e 69º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal.
Ora, analisado o texto da sentença recorrida temos que concluir que os factos provados permitem o proferimento da decisão de direito absolutória.
De facto, atentos os factos provados e a explicitação plasmada na sentença no segmento destinado à fundamentação de direito acima transcrito a matéria de facto apurada só permite a absolvição da arguida do crime por que vinha acusada.
Confunde, o recorrente, o fundamento invocado com a eventual deficiente fundamentação da matéria de facto provada.
A este respeito, ao contrário do alegado pelo recorrente, da leitura atenta do texto da sentença constatamos que da motivação da matéria de facto o tribunal a quo descriminou os elementos de prova que lhe permitiram dar como provado o referido ponto 3. a saber: a guia de entrega de cidadão detido de fls. 13, o auto de notícia por detenção de fls. 4 e ss., o auto de notícia por detenção de fls. 14 (onde consta expressamente a taxa que resultou da realização do teste qualitativo e que, nesta parte, pode ser valorado), as declarações da arguido e o depoimento da testemunha do elemento da Polícia Municipal Carlos Pereira (que realizou o teste qualitativo).
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§3.Da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão
Conforme supra explanado este vício tem que necessariamente decorrer do texto da decisão recorrida e ocorrerá quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
O recorrente argumenta que da sentença recorrida resulta uma contradição entre os factos provados sob o ponto 3. – “Os elementos da Polícia Municipal determinaram à Arguida a exibição dos seus documentos e dos documentos da viatura, assim como a realização de teste de álcool, através de analisador qualitativo, que deu o resultado de 1,55 g/l de sangue” – e os factos não provados sob o ponto I) – “A arguida, nas circunstâncias indicadas em 1, conduzia com uma TAS de 1,90 g/l de álcool no sangue, a que corresponde uma TAS de 2,07 g/l de valor apurado, deduzido o erro máximo admissível”.
Analisado o texto da sentença não vislumbramos a invocada contradição, porquanto, da matéria de facto apurada no ponto 3. não se pode concluir, ao contrário do propugnado pelo recorrente, que a arguida tinha um resultado superior a 1.2g/l de álcool no sangue.
Aliás, contradição encontramos nós na motivação do recorrente, uma vez que, por um lado, sustenta uma contradição entre os factos provados sob o ponto 3. e os factos não provados sob o ponto I) por entender que o tribunal a quo não poderia deixar de dar como provado que a arguida conduzia com taxa superior a 1.2g/ de álcool no sangue e, por outro lado, defende que o teste qualitativo não faz qualquer prova em juízo da taxa de alcoolemia no sangue (cfr. pág. 13 do requerimento de interposição de recurso) e que só com a realização do teste quantitativo se encontra verificada a prática do crime de condução de veiculo em estado de embriaguez perante uma taxa superior a 1.2g/l (cfr. pág. 17 do requerimento de interposição de recurso).
O recorrente sustenta ainda que existe uma contradição entre a decisão da fundamentação da matéria de facto – “É que, como se verá, por um lado, a Arguida não tem a capacidade para confessar a concreta taxa de álcool com que conduzia, apenas podendo afirmar que nas circunstâncias descritas na acusação se encontrava a conduzir um veículo automóvel e que foi abordada pela Polícia Municipal. A concreta taxa de álcool apenas pode ser provada por prova pericial, consistente no talão retirado do alcoolímetro quantitativo. (...) Como sabemos, a prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez penas pode ser provada através de prova pericial mais propriamente, um teste quantitativo --, pois apenas desse modo se obtém, com a clareza e certeza necessárias, o valor real da taxa de álcool no sangue do condutor e agente infractor. É aliás entendimento unânime na jurisprudência que mesmo que o Arguido em juízo confesse tudo quanto se encontra vertido na acusação pública, a concreta taxa de álcool no sangue, apenas pode ser provada pelo talão retirado do teste quantitativo , pela simples razão de que os seres humanos não se encontram ainda equipados de alcoolímetros, pelo que não têm razã o de ciência quanto à taxa de álcool com que conduzem.” e o facto provado sob o ponto 3. – “Os elementos da Polícia Municipal determinaram à Arguida a exibição dos seus documentos e dos documentos da viatura, assim como a realização de teste de álcool, através de analisador qualitativo, que deu o resultado de 1,55 g/l de sangue”.
Examinado o texto da sentença voltamos a não vislumbrar a invocada contradição. Com efeito, sendo o teste qualitativo apenas um teste de despistagem, conforme acima explanado, o tribunal a quo socorreu-se designadamente do auto de notícia por detenção de fls. 14 (onde consta expressamente a taxa que resultou da realização do teste qualitativo) para dar como provado o resultado desse mesmo teste.
Aliás, o próprio recorrente alega no seu requerimento de recurso que, ao contrário do teste quantitativo, no teste qualitativo não existe qualquer talão a atestar o resultado de tal teste (cfr. fls. 10 do seu requerimento de interposição de recurso).
E, não se tratando de uma prova pericial (conforme o próprio recorrente admite) o tribunal podia, como fez, fundar-se em outros meios de prova para apurar o resultado do referido teste de despistagem.
Mais. Do facto provado sob o ponto 3. apenas se pode extrair a realização do teste qualitativo de despistagem de álcool no sangue cujo resultado foi de 1,55g/l, o que permite apenas indiciar que a arguida tinha álcool no sangue. E para se apurar qual a real TAS de álcool no sangue, como bem realça o tribunal a quo, seria sempre necessário a realização do teste quantitativo.
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§3. Do erro notório de apreciação da prova
Vigorando no âmbito do processo penal o principio da livre apreciação da prova, a impor, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência comum e a livre convicção do julgador, a mera valoração da prova feita pelo recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador não constitui, por si só, fundamento para se concluir pela errada apreciação e, muito menos, pela verificação do vicio decisório do erro notório na apreciação da prova, tanto mais que sendo a apreciação da prova em 1ª instância enriquecida pela oralidade e pela imediação, o tribunal da 1ª instância está obviamente mais apetrechado para aquilatar da credibilidade das declarações e depoimentos produzidos em audiência, pois teve perante si os intervenientes processuais que os produziram, podendo valorar não apenas o conteúdo das declarações e depoimentos, mas também e sobretudo o modo como estes foram prestados.
Conforme acima referimos, o erro em causa define-se como “erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele dá conta e terá necessariamente que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, o que afasta a possibilidade de, para a sua determinação, aceder a elementos processuais (para além daqueles expressos na peça processual questionada) e extraprocessuais.
A tarefa exigida ao tribunal de recurso é puramente jurídica: trata-se de um vicio de lógica jurídica ao nível da matéria de facto (cf. Ac. do STJ de 11.06.2014, acessível in www.dgsi.pt).
O recorrente alega que o tribunal valorou de forma errada o resultado obtido pelo teste qualitativo de pesquisa de álcool, uma vez que, perante um resultado positivo no teste qualitativo não seria exigível a realização do teste quantitativo, pois o primeiro valeria como prova.
Da leitura da sentença recorrida resulta que o tribunal a quo explica de forma racional e lógica por que motivo não valorou o resultado do teste qualitativo para se apurar a real e concreta taxa de álcool no sangue e por que razão seria exigível a realização do teste quantitativo para se dar como provado tal resultado.
O recorrente alega ainda que o flagrante delito apenas se verificou após a realização do teste quantitativo.
Da leitura da decisão em crise depreendemos que o tribunal a quo também explicitou o seu raciocínio de forma racional e lógica qual o momento em que considerou haver flagrante delito no caso vertente.
Assim, atendendo ao teor da sentença recorrida, teremos que concluir que a mesma não evidencia, por si e no seu texto, o invocado vício previsto na al. c) do n.º 2 do artigo 410º do C.P.P., já que da leitura da sentença recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, aos olhos de um homem médio, não se extrai que o tribunal a quo efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos ou arbitrários e em desacordo com as regras da experiência comum.
Improcede, nesta parte, o recurso em análise.
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3.2. Da incorrecta interpretação e aplicação da lei

O recorrente alega que a decisão recorrida incorreu numa incorrecta interpretação e aplicação da lei, apresentando os seguintes argumentos:
a)-Por força do artigo 2º, n.ºs 1, 2 e 3 da Lei 18/2007, de 17.05 o agente da entidade fiscalizadora acompanha o examinando ao local em que o teste quantitativo possa ser efectuado, assegurando o seu transporte, não estando o condutor detido;
b)-Por força dos artigos 1º, 3º e 4º da Lei 19/2004, de 20.05 e dos artigos 152º, 153º e 158º do Código da Estrada e dos artigos 1º e 2º da Lei 18/2007, de 17.05 os agentes da Policia Municipal podem realizar exames quantitativos:
b1)-O flagrante delito só terá lugar após a realização desses exames perante uma taxa superior a 1.2 g/l;
b2)-A detenção não é ilegal desde que seja entregue ao OPC competente no mais breve tempo possível;
b3)-A realização do teste quantitativo configurando um meio de prova pericial os órgãos de policia criminal só o podiam levar a cabo mediante prévia determinação da autoridade judiciária;
b4)-A detenção mesmo que ilegal jamais contaminaria a validade do teste quantitativo do álcool por não se tratar de obter uma prova à custa da privação da liberdade de forma abusiva ou fora das condições legais em que são admissíveis à sua liberdade individual.
Vejamos se assiste razão ao recorrente.
No caso em concreto, a arguida foi absolvida do crime de condução de veiculo em estado de embriaguez p. e p. pelo artigo 292º, nº1 do Código Penal por não se ter valorado o teste (quantitativo) de pesquisa de álcool no sangue realizado pela policia municipal por ter sido considerado prova nula por ter sido realizado após uma detenção ilegal.
Da factualidade apurada no tribunal a quo acima transcrita resulta que a arguida foi interceptada pela polícia municipal cerca das 23h00 e, após ter realizado teste de álcool (despiste qualitativo) que apresentou o resultado de 1,55 g/l sangue, os agentes da policial municipal determinaram à arguida que a acompanhasse no carro patrulha da Policia Municipal de Cascais até ao Departamento de Policial Municipal, onde aí foi realizado o teste (quantitativo) de pesquisa de álcool no sangue e, após, os agentes de policia municipal entregaram pelas 1.30h a arguida detida na Esquadra da PSP de Cascais para ser constituída arguida e prestar TIR.
Atentos os argumentos apresentados pelo recorrente importa antes de mais fazer uma breve exposição sobre as normas jurídicas que regulam a natureza, as atribuições e as competências da Polícia Municipal.
A Lei 19/2004, de 20.05 (com as alterações introduzidas pela Lei 50/2019, de 24.07) define o regime e a forma de criação das policias municipais.

Atento o objecto do recurso há que transcrever alguns dos seus preceitos legais:
Artigo 1.º
Natureza e âmbito
1-As polícias municipais são serviços municipais especialmente vocacionados para o exercício de funções de polícia administrativa, com as competências, poderes de autoridade e inserção hierárquica definidos na presente lei.
2-As polícias municipais têm âmbito municipal e não são susceptíveis de gestão associada ou federada.”
Artigo 2.º
Atribuições
1-No exercício de funções de polícia administrativa, é atribuição prioritária dos municípios fiscalizar, na área da sua jurisdição, o cumprimento das leis e regulamentos que disciplinem matérias relativas às atribuições das autarquias e à competência dos seus órgãos.
2-As polícias municipais cooperam com as forças de segurança na manutenção da tranquilidade pública e na protecção das comunidades locais.
3-A cooperação referida no número anterior exerce-se no respeito recíproco pelas esferas de actuação próprias, nomeadamente através da partilha da informação relevante e necessária para a prossecução das respectivas atribuições e na satisfação de pedidos de colaboração que legitimamente forem solicitados.
4-As atribuições dos municípios previstas na presente lei são prosseguidas sem prejuízo do disposto na legislação sobre segurança interna e nas leis orgânicas das forças de segurança.”
Artigo 3.º
Funções de polícia
1- As polícias municipais exercem funções de polícia administrativa dos respectivos municípios, prioritariamente nos seguintes domínios:
a)-Fiscalização do cumprimento das normas regulamentares municipais;
b)- Fiscalização do cumprimento das normas de âmbito nacional ou regional cuja competência de aplicação ou de fiscalização caiba ao município;
c)- Aplicação efectiva das decisões das autoridades municipais.
2- As polícias municipais exercem, ainda, funções nos seguintes domínios:
a)-Vigilância de espaços públicos ou abertos ao público, designadamente de áreas circundantes de escolas, em coordenação com as forças de segurança;
b)-Vigilância nos transportes urbanos locais, em coordenação com as forças de segurança;
c)-Intervenção em programas destinados à acção das polícias junto das escolas ou de grupos específicos de cidadãos;
d)-Guarda de edifícios e equipamentos públicos municipais, ou outros temporariamente à sua responsabilidade;
e)-Regulação e fiscalização do trânsito rodoviário e pedonal na área de jurisdição municipal.
3- Para os efeitos referidos no n.º 1, os órgãos de polícia municipal têm competência para o levantamento de auto ou o desenvolvimento de inquérito por ilícito de mera ordenação social, de transgressão ou criminal por factos estritamente conexos com violação de lei ou recusa da prática de acto legalmente devido no âmbito das relações administrativas.
4- Quando, por efeito do exercício dos poderes de autoridade previstos nos n.os 1 e 2, os órgãos de polícia municipal directamente verifiquem o cometimento de qualquer crime podem proceder à identificação e revista dos suspeitos no local do cometimento do ilícito, bem como à sua imediata condução à autoridade judiciária ou ao órgão de polícia criminal competente.
5- Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, é vedado às polícias municipais o exercício de competências próprias dos órgãos de polícia criminal.”
Artigo 4.º
Competências
1-As polícias municipais, na prossecução das suas atribuições próprias, são competentes em matéria de:
a)- Fiscalização do cumprimento dos regulamentos municipais e da aplicação das normas legais, designadamente nos domínios do urbanismo, da construção, da defesa e protecção da natureza e do ambiente, do património cultural e dos recursos cinegéticos;
b)- Fiscalização do cumprimento das normas de estacionamento de veículos e de circulação rodoviária, incluindo a participação de acidentes de viação que não envolvam procedimento criminal;
c)- Execução coerciva, nos termos da lei, dos actos administrativos das autoridades municipais;
d)- Adopção das providências organizativas apropriadas aquando da realização de eventos na via pública que impliquem restrições à circulação, em coordenação com as forças de segurança competentes, quando necessário;
e)- Detenção e entrega imediata, a autoridade judiciária ou a entidade policial, de suspeitos de crime punível com pena de prisão, em caso de flagrante delito, nos termos da lei processual penal;
f)- Denúncia dos crimes de que tiverem conhecimento no exercício das suas funções, e por causa delas, e competente levantamento de auto, bem como a prática dos actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova, nos termos da lei processual penal, até à chegada do órgão de polícia criminal competente;
g)- Elaboração dos autos de notícia, autos de contra-ordenação ou transgressão por infracções às normas referidas no artigo 3.º;
h)- Elaboração dos autos de notícia, com remessa à autoridade competente, por infracções cuja fiscalização não seja da competência do município, nos casos em que a lei o imponha ou permita;
i)- Instrução dos processos de contra-ordenação e de transgressão da respectiva competência;
j)- Acções de polícia ambiental;
l)- Acções de polícia mortuária;
m)- Garantia do cumprimento das leis e regulamentos que envolvam competências municipais de fiscalização.
2- As polícias municipais, por determinação da câmara municipal, promovem, por si ou em colaboração com outras entidades, acções de sensibilização e divulgação de matérias de relevante interesse social no concelho, em especial nos domínios da protecção do ambiente e da utilização dos espaços públicos, e cooperam com outras entidades, nomeadamente as forças de segurança, na prevenção e segurança rodoviária.
3- As polícias municipais procedem ainda à execução de comunicações, notificações e pedidos de averiguações por ordem das autoridades judiciárias e de outras tarefas locais de natureza administrativa, mediante protocolo do Governo com o município.
4- As polícias municipais integram, em situação de crise ou de calamidade pública, os serviços municipais de protecção civil.”
(…)
Artigo 6.º
Dependência orgânica e coordenação
1-A polícia municipal actua no quadro definido pelos órgãos representativos do município e é organizada na dependência hierárquica do presidente da câmara.
2-A coordenação entre a acção da polícia municipal e as forças de segurança é assegurada, em articulação, pelo presidente da câmara e pelos comandantes das forças de segurança com jurisdição na área do município.
3- A aplicação da presente lei não prejudica o exercício de quaisquer competências das forças de segurança.”

Das normas jurídicas ora transcritas conclui-se de forma inequívoca que as Polícias Municipais são serviços municipais especialmente vocacionados para o exercício de funções de polícia administrativa, sendo vedado às polícias municipais o exercício de competências próprias dos órgãos de polícia criminal (cfr. artigo 3º, da Lei 21/200, de 10.08 que define quais são os órgãos de polícia criminal, não estando aí contempladas as policias municipais).
Tal conclusão emana igualmente do Parecer do Conselho Consultivo da PGR de 08.05.2008 (referenciado e transcrito parcialmente na sentença recorrida).
Entendimento idêntico – os agentes das polícias municipais não integram as forças ou serviços de segurança, estando-lhes vedado o exercício de competências próprias dos órgãos de polícia criminal – foi perfilhado, entre outros, no Ac. do TRC de 28.05.2008, acessível in www.dgsi.pt, no Ac. do TRL de 08.07.2020 da 3ª Secção criminal, Processo n.º 86/20.1PBCSC.L1, no Ac. do TRL de 23.03.2021, no Ac. do TRL de 14.10.2021 e no Ac. do TRL de 07.10.2021 (este último por nós proferido), acessíveis in www.dgsi.pt).
Refira-se ainda que as polícias municipais estão constitucionalmente previstas no título VIII intitulado “Poder Local” (cfr. artigo 273º, n.º 3 do C.R.P.), estando subordinadas à Constituição e à Lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé (cfr. artigo 266º, n.º 2 do CRP).
Considerando os preceitos legais acima transcritos e os referidos princípios constitucionais e no seguimento do entendimento por nós já defendido no referido Ac. do TRL de 07.10.2021, temos que concluir que: “fora do âmbito das atribuições administrativas especificadamente acometidas à Policial Municipal, esta só pode, perante crime de delito comum, ou de crimes que caem fora do âmbito administrativo que lhes pertence, e desde que sejam de natureza pública ou semi-pública, e puníveis com pena de prisão, identificar suspeitos, detê-los e proceder à obtenção e preservação cautelar de vestígios de prova se: - o crime for detectado em flagrante delito; a detenção, identificação e preservação da prova também se faça em sede de flagrante delito.”.
Como se referiu no referido Acórdão do TRL de 07.10.2021 por nós proferido: “o conceito de flagrante delito “é um conceito que tem a ver com a actualidade da infracção, isto é, com a captura no decurso da execução da infracção. Não é um conceito que se ligue à prova, pois, como dizem os doutrinadores, não é legítima a captura por prática de crime que tenha sido presenciado, se a captura só se vier a concretizar mais tarde” (Gil Moreira dos Santos, in Noções de Processo Penal, pág. 266).
Cavaleiro Ferreira, assentando o flagrante delito na actualidade da infracção, escreve que “é uma característica temporal do crime, embora não uma qualidade ou requisito constitutivo do próprio crime” (in Curso de Processo Penal, Vol. II, pág. 130).
Na noção legal de flagrante delito “valoriza-se a circunstância de o agente ser surpreendido na prática do crime ou com sinais que evidenciam a sua participação nele (Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. II, pág. 236).

O artigo 256º do C.P.P. define um conjunto de situações configuradas como flagrante delito:
1.- É flagrante delito todo o crime que se está cometendo ou se acabou de cometer.
2- Reputa-se também flagrante delito o caso em que o agente for, logo após o crime, perseguido por qualquer pessoa ou encontrado com objectos ou sinais que mostrem claramente que acabou de o cometer ou de nele participar.
3- Em caso de crime permanente, o estado de flagrante delito só persiste enquanto se mantiverem sinais que mostrem claramente que o crime está a ser cometido e o agente está nele a participar.”

Muito embora o artigo 27º da Constituição expressamente consagre e salvaguarde o direito de todos os cidadãos à liberdade e à segurança, não deixa de contemplar, no seu n.º 3, algumas restrições a esse princípio fundamental.

Uma delas é precisamente a da detenção em flagrante delito contemplada no Artigo 255º do C.P.P.:
1.- Em caso de flagrante delito, por crime punível com pena de prisão:
a)- Qualquer autoridade judiciária ou entidade policial procede à detenção;
b)- Qualquer pessoa pode proceder à detenção, se uma das entidades referidas na alínea anterior não estiver presente nem puder ser chamada em tempo útil.
2.- No caso previsto na alínea b) do número anterior, a pessoa que tiver procedido à detenção entrega imediatamente o detido a uma das entidades referidas na alínea a), a qual redige auto sumário da entrega e procede de acordo com o estabelecido no artigo 259.º”.

Atento o disposto na parte final do n.º 4 do artigo 3º da citada Lei 19/2004 e as considerações acima explanadas, a Polícia Municipal ao deter uma pessoa em flagrante delito perante crime de natureza pública ou semi-pública e punível com pena de prisão fá-lo ao abrigo do disposto na al. b), do n.º 1 do citado artigo 255º do C.P.P.”

Voltando à situação dos autos e, atentos os argumentos enunciados pelo recorrente, importa de seguida ter presente o regime legal previsto no Código da Estrada para a fiscalização da condução sob o efeito de álcool.

Assim, o artigo 152º preceitua que:
1- Devem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas:
aa)- Os condutores;
(…)
3- As pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência.”.

Por sua vez, o artigo 153º estabelece que:
1- O exame de pesquisa de álcool no ar expirado é realizado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito.
2- Se o resultado do exame previsto no número anterior for positivo, a autoridade ou o agente de autoridade deve notificar o examinando, por escrito ou, se tal não for possível, verbalmente:
aa)- Do resultado do exame;
bb)- Das sanções legais decorrentes do resultado do exame;
cc)- De que pode, de imediato, requerer a realização de contraprova e que o resultado desta prevalece sobre o do exame inicial;
e dd)- De que deve suportar todas as despesas originadas pela contraprova, no caso de resultado positivo.
3- A contraprova referida no número anterior deve ser realizada por um dos seguintes meios, de acordo com a vontade do examinando:
aa)- Novo exame, a efetuar através de aparelho aprovado;
bb)- Análise de sangue.”

Por seu turno, a Lei 18/2007, de 17.05, que aprovou o Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas dispõe no seu artigo 1º:
1- A presença de álcool no sangue é indiciada por meio de teste no ar expirado, efectuado em analisador qualitativo.
2- A quantificação da taxa de álcool no sangue é feita por teste no ar expirado, efectuado em analisador quantitativo, ou por análise de sangue.
3- A análise de sangue é efectuada quando não for possível realizar o teste em analisador quantitativo.”
E o seu artigo 2º estatui que:
1- Quando o teste realizado em analisador qualitativo indicie a presença de álcool no sangue, o examinando é submetido a novo teste, a realizar em analisador quantitativo, devendo, sempre que possível, o intervalo entre os dois testes não ser superior a trinta minutos.
2- Para efeitos do disposto no número anterior, o agente da entidade fiscalizadora acompanha o examinando ao local em que o teste possa ser efectuado, assegurando o seu transporte, quando necessário.
3- Sempre que para o transporte referido no número anterior não seja possível utilizar o veículo da entidade fiscalizadora, esta solicita a colaboração de entidade transportadora licenciada ou autorizada para o efeito.
4- O pagamento do transporte referido no número anterior é da responsabilidade da entidade fiscalizadora, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 158.º do Código da Estrada.”

Perante tal quadro legal e, tendo presente o referido Ac. do TRL de 07.10.2021 por nós proferido, concluímos que o teste de despiste do álcool implica duas fases distintas:
1ª: através de um teste qualitativo que apenas serve para verificar se existe ou não álcool no sangue e daí concluir-se pela eventual prática de um crime ou de uma contra ordenação, ou nenhuma das duas (o chamado teste de despistagem);
2ª: através de um teste quantitativo cuja finalidade já é a de determinar ao certo a TAS (teste que servirá de prova pericial para comprovar o valor da respectiva taxa e acusar o condutor de álcool no sangue).

A este propósito, voltamos a transcrever o Ac. do TRL de 23.03.2021 (acessível no www.dgsi.pt) onde se pode ler: “Resulta, assim, que o analisador qualitativo visa uma primeira despistagem da presença de álcool no sangue em ordem à selecção dos visados a submeter ao exame por analisador quantitativo. Este, sim, que determina a concreta taxa de alcoolemia de que é portador quem a ele se submete. (…) realça-se, após a realização do teste qualitativo, se este registar positivo, o agente da entidade fiscalizadora acompanha o examinando ao local em que o teste (ou exame) quantitativo possa ser efectuado” (veja-se ainda o Ac. do TRG de 11.02.2019, acessível in www. dgsi.pt).
Daqui resulta que os dois testes - qualitativo e quantitativo - têm, pois, natureza distinta: o primeiro serve apenas para despistagem da pesquisa de álcool no sangue e o segundo é o único que serve de prova para demonstrar em sede de julgamento criminal a taxa de álcool no sangue.

Quanto ao valor probatório do teste quantitativo, voltamos a transcrever o Ac. do TRL de 29.07.2020 (acessível in www. dgsi.pt) onde se pode ler que: “observado que seja todo este procedimento legal para a obtenção de uma medição juridicamente válida da TAS, o resultado deste exame, expresso no talão do alcoolímetro de modelo aprovado e com verificação válida, deve ser considerado prova vinculado, preconstituída (o que implica que não pode ser repetida), dotada de especial valor probatório estabelecido para a prova pericial, no artigo 163º do CPP, como também resulta do preceituado nos artigos 6º e 7º da Lei 18/2007, de 17 de Maio” (entendimento também perfilhado por Benjamim Rodrigues, Da prova penal, Tomo I, Coimbra 2008, pág. 117).
Isto significa que o segundo teste (quantitativo), dotado de especial valor probatório estabelecido para a prova pericial, só deve ser realizado se o primeiro teste indiciar uma taxa superior ao legalmente permitido por lei e só pode ser realizado por quem tem competências próprias dos órgãos de polícia criminal.

Assim, atenta a distinta natureza probatória dos testes qualitativo e quantitativo acima explanado e as competências adstritas à Policia Municipal esta pode realizar ambos os testes?
A nossa resposta tem que ser negativa tal como já defendemos no referido Ac. do TRL de 07.10.2021.
A este respeito, voltamos a transcrever o Ac. do TRL de 23.03.2021 que é elucidativo sobre a falta de competência da policia municipal para realizar o teste quantitativo: “Ora, se a Lei não permite que a Policia Municipal participa acidentes de viação que envolvam procedimento criminal (por manifestamente tal competência ser das forças de segurança com que estão em coordenação), como é que podemos sustentar que admite recolha de prova em ordem à perseguição criminal de pessoa que exerce a condução influenciado pelo álcool?
Porque assim é, estando vedado às polícias municipais o exercício de competências próprias dos órgãos de polícia criminal, não podemos deixar de concluir que lhe faltava competência para determinar à arguida a realização do exame para quantificação da taxa de álcool no sangue através do ar expirado, que se traduz numa recolha de prova em ordem à sua apresentação a julgamento pela prática de crime de condução de veiculo em estado de embriaguez, com observância das formalidades previstas no artigo 153º do Código da estrada e que nestas se incluem, manifestamente.” (no mesmo sentido - a Polícia Municipal não tem legitimidade legal nem competências para efectuar o teste quantitativo - veja-se, entre outros, o Ac. do TRL de 08.07.2020, da 3ª secção criminal do TRL, Proc. n.º 86/20.1PBCSC.L1, Acs. do TRL de 09.09.2021, 17.09.2021 e 14.10.2021, acessíveis em www.dgsi.pt).

Perante tais considerações, no seguimento do que já decidimos, entendemos que a Polícia Municipal de facto não tinha competências para determinar à arguida a realização do exame para a quantificação da taxa de álcool no sangue através do ar expirado perante o resultado do teste qualitativo que indiciava um resultado superior a 1.2 g/l de álcool no sangue.

O recorrente na sua motivação alega que as polícias municipais são entidades fiscalizadoras para efeitos do disposto no artigo 153º do Código da Estrada, podendo por isso usar todas as formas de realização de exame de pesquisa de álcool no sangue.

Ora, no seguimento do que já decidimos não concordamos com tal entendimento, porquanto, atentas as atribuições e competências da policia municipal acima elencadas e previstas no citado diploma legal 19/2004, no âmbito das funções de fiscalização do trânsito rodoviário previstas no artigo 3º, n.º 2 da citada lei 19/2004 não estão englobadas as fiscalizações com vista à deteção de álcool no sangue por parte dos condutores, já que tais funções enquadram-se no âmbito das funções próprias dos órgãos de policia criminal que, como vimos, os policiais municipais estão vedados de exercerem, excepto em regime de cooperação expressamente previsto no citado diploma legal 19/2004.

A este propósito, voltamos a transcrever o citado Ac. do TRL de 08.07.2020 onde pode ler-se: “Ora o Digno recorrente assenta o seu entendimento no facto de no nº 2 do citado artº 2º se fazer referência apenas a “entidade fiscalizadora” pelo que a Polícia Municipal seria tida, para efeitos deste diploma, como entidade fiscalizadora.
Em nosso ver tal subsunção não é possível atento o quadro legal em que a Polícia Municipal se move, em especial o disposto no artº 3o nos 4 e 5 da Lei no 19/2004 de 20-05.
Repare-se que a Polícia Municipal, no caso em apreço, não age como entidade fiscalizadora, isto é, não tem legitimidade para de forma aleatória proceder a fiscalizações – vulgarmente conhecidos por “operação stop” – tendo a sua intervenção no caso em apreço se constrangido ao facto de se ter apercebido de que um crime poderia estar a ser cometido, daí a sua intervenção ser considerada no âmbito de um flagrante delito.
Por outro lado, a recolha de prova indiciária no caso em apreço surge como forma de confirmar o possível ilícito penal, e assim, justificar a intervenção da Polícia Municipal numa situação em que a mesma não estaria legitimada a actuar, e não no âmbito de uma simples fiscalização aleatória, própria das polícias de segurança pública.
A Lei no 18/2007 de 17-05 não tem a virtualidade de atribuir funções à Polícia Municipal que esta não tenha por força do regime legal que a rege em especial.
Assim, porque a Polícia Municipal apenas podia deter o arguido em flagrante delito e constatando a indiciação da prática de crime, entregá-lo de imediato à PSP a quem competira efectuar a restante recolha de prova, nunca podia tal Polícia Municipal “acompanhar” o detido – como sem o manter detido? – a local onde o segundo teste pudesse ser efectuado.”

Refira-se ainda que legalmente os órgãos de polícia criminal têm competência própria para realizarem o teste quantitativo de pesquisa de álcool no sangue e, ao contrário do que defende o recorrente, não necessitam para o efeito de prévia determinação da autoridade judiciária.

O recorrente alega ainda que a detenção por parte da Policia Municipal tem sempre como pressuposto a ocorrência de um crime público ou semi-público, punível com pena de prisão e em situação de flagrante delito e só com a realização do teste quantitativo se podia saber se estaria perante uma infração criminal.

De facto, conforme acima referimos, a detenção por parte da Policia Municipal tem sempre como pressuposto a ocorrência de um crime público ou semi-público, punível com pena de prisão e em situação de flagrante delito. Porém, não concordamos com o argumento que só com a realização do teste quantitativo se podia saber se estaria perante uma infração criminal, porquanto, no caso em apreço, após a realização do teste qualitativo por parte da polícia municipal esta foi confrontada com indícios suficientes para ficar convencida de que a arguida apresentava uma TAS (mesmo que indiciária) que integrava a prática do crime previsto no artigo 292º do C.P. e, por via disso, podia proceder à detenção da arguida (como fez) em flagrante delito.

A este propósito, voltamos a transcrever o citado Ac. do TRL de 08.07.2020: “Não colhe a tese do Digno recorrente de que só com o teste quantitativo é que a Policia Municipal podia saber que estava perante um crime, porquanto a detenção em flagrante delito não exige a certeza da prática do crime, apenas de indícios, ficando a certeza para processo próprio a ser tratado por autoridade judiciária”.

Assim, conforme decorre do acima explanado, para a detenção da arguida bastava os indícios recolhidos com a realização do teste qualitativo, já que, ao contrário do propugnado pelo recorrente, a situação de flagrante delito ocorreu desde logo com a constatação da TAS indiciada de álcool no sangue apresentada com o teste qualitativo superior a 1.2g/l.
O recorrente afirmou ainda que a polícia municipal deve assegurar os meios de prova até à chegada do órgão de polícia criminal competente, perante os crimes de que tiverem conhecimento no exercício das suas funções.

A este respeito, importa relembrar o que o artigo 4º da citada Lei 19/2004 preceitua:
1- As polícias municipais, na prossecução das suas atribuições próprias, são competentes em matéria de:
(…)
e)- Detenção e entrega imediata, a autoridade judiciária ou a entidade policial, de suspeitos de crime punível com pena de prisão, em caso de flagrante delito, nos termos da lei processual penal;
f)- Denúncia dos crimes de que tiverem conhecimento no exercício das suas funções, e por causa delas, e competente levantamento de auto, bem como a prática dos actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova, nos termos da lei processual penal, até à chegada do órgão de polícia criminal competente;(…).”

No caso vertente, não resulta da factualidade apurada acima transcrita uma efectiva necessidade e uma urgência na realização do teste quantitativo por parte da Polícia Municipal com vista a acautelar e assegurar os meios de prova até à chegada da polícia criminal competente.

De facto, da matéria de facto apurada resulta que a Polícia Municipal interceptou a arguida pelas 23h00m e submeteu-a (e bem) à realização do teste qualitativo de análise de álcool no sangue.

E, após o resultado desse teste, conforme resulta da norma acima transcrita, a Polícia Municipal devia ter de imediato contactado a polícia criminal competente para se deslocar ao local da verificação da infracção e, caso fosse necessário acautelar os meios de prova, devia ter de imediato transportado a arguida ao posto da polícia criminal competente (cujas instalações se situam a pouco mais de 200 metros do Departamento da Polícia Municipal de Cascais conforme realçado na sentença recorrida).

Sucede que, em vez disso, a Polícia Municipal deslocou a arguida, detida, para o Departamento Municipal (que, reitera-se, se situa a pouco mais de 200 metros das instalações da policia criminal competente) e sujeitou-a a recolha de prova pericial, entregando-a na Divisão da PSP de Cascais apenas pelas 1h30.

Perante todo o exposto, consideramos que a primeira actuação da Policia municipal – sujeição da arguida ao teste de ar expirado qualitativo – deve entender-se (como o fez a sentença recorrida) como tendo sido uma actuação legal e justificada.

Quanto à actuação subsequente da Policia Municipal entendemos que, ao contrário do que defende o recorrente, deve considerar-se desconforme às competências que lhe estão adstritas.

Efectivamente, a Polícia Municipal após ter constatado a indiciação da prática de crime (com a taxa indiciária do teste qualificativo a que submeteu a arguida) deveria, como decorre das competências que estão legalmente previstas na referida Lei 19/2004 e atenta a distinta natureza do teste quantitativo, chamar de imediato a PSP ao local ou entregar (detendo-a) a arguida de imediato à PSP mais próxima, a quem competiria efectuar a restante recolha da prova, devendo assim a detenção cessar o mais depressa possível (neste sentido, veja-se os referidos Acs. do TRC de 28.05.2008, do TRL de 08.07.2020, do TRL de 23.03.2021 e do TRL de 07.10.2021).

Porém, no caso presente, a Polícia Municipal deteve a arguida e levou-a indevidamente ao seu departamento onde aí a sujeitou a teste de pesquisa de álcool quantitativo e, só posteriormente, entregou a arguida na esquadra da PSP. Note-se que, tendo ficado demonstrado que os agentes da polícia municipal determinaram que a arguida os acompanhasse no carro patrulha até ao Departamento da Policia Municipal com o objectivo de aí se realizar o teste quantitativo para deteção da taxa concreta de álcool no sangue, tal situação só pode configurar uma detenção da arguida por parte da Policia Municipal com vista à realização do teste quantitativo.

Deste modo, atenta a finalidade da detenção da arguida – realização do teste quantitativo para deteção da taxa concreta de álcool no sangue – e a falta de legitimidade legal e de competências da Policia Municipal para realizar o teste quantitativo, a detenção da arguida nas circunstâncias apuradas no caso vertente tem que ser considerada ilegal.

Nestes termos, na esteira do entendimento por nós já sufragado no referido Ac. do TRL de 07.10.2021, concorda-se inteiramente com o enquadramento jurídico que o Tribunal a quo faz, quer das competências da Policia Municipal, quer da ilegalidade da sua actuação, a partir do momento em que a arguida realizou o teste qualitativo por força do disposto nos citados artigos 2º a 4º da lei 19/2004, de 20.05 (veja-se o referido Ac. do TRL de 23.03.2021).

Resta-nos agora extrair a consequência da actuação (ilegal) da polícia Municipal – saber qual a validade a atribuir ao teste quantitativo realizado pela Polícia Municipal na arguida detida ilegalmente.

O artigo 32º, n.º 6 da CRP dispõe que “são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicilio, na correspondência e nas telecomunicações”.

Por sua vez, o artigo 126º do C.P.P. estabelece:
1- São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas.
2- São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante:
a)- Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos;
b)- Perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória ou de avaliação;
c)- Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei;
d)- Ameaça com medida legalmente inadmissível e, bem assim, com denegação ou condicionamento da obtenção de benefício legalmente previsto;
e)- Promessa de vantagem legalmente inadmissível.”

A sentença recorrida considerou nula a prova (no caso o teste quantitativo) com base nas considerações que passamos a transcrever:
O Título V do Livro II do C.P.P é intitulado “Das nulidades.Cabe olhar, desde logo, para o disposto no artigo 118.º, n.º 3, onde se determina que as disposições desse título não prejudicam as normas do Código quanto a proibições de prova. Como refere Fernando Gama Lobo (GAMA LOBO, Fernando, in Código de Processo Penal Anotado, 3ª Edição, Almedina, 2019, p. 195),A lei declara expressamente que em sede de invalidades, para além do regime das nulidades, existe também um muito relevante regime próprio, autónomo, para as chamadas proibições de prova, que se encontra genericamente previsto no art. 126º (...), os quais obviamente geram também nulidades, sanáveis ou insanáveis, em função da sua concreta gravidade processual.”.
Mais especificamente, quanto aos chamados métodos proibidos de prova, dispõe o artigo 126.º, n.º 1 do C.P.P que, são nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas. E complementa o n.º 2 que são ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante:
a)-Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos;
b)-Perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória ou de avaliação;
c)-Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei;
d)-Ameaça com medida legalmente inadmissível e, bem assim, com denegação ou condicionamento da obtenção de benefício legalmente previsto.
De acordo com Germano Marques da Silva (op. cit., pp. 160 e 161), “A verdade processual não é senão o resultado probatório processualmente válido, isto é, a convicção de que certa alegação singular de facto é justificavelmente aceitável como pressuposto da decisão, por ter sido obtida por meios processualmente válidos. A verdade processual não é absoluta ou ontológica, mas uma verdade judicial, prática e, sobretudo, não uma verdade obtida a todo o preço mas processualmente válida.”.
Na verdade, a consagração de meios proibidos de prova tem de ser vista como uma auto-limitação do próprio Estado que, admitindo que “não vale tudo”, para punir criminosos, estabelece verdadeiros limites à prossecução dessa verdade e aos poderes do Estado.
E como diz José Mouraz Lopes (GAMA, António, et. al., in Comentário Judiciário do Código  de Processo Penal – Tomo II, Almedina, 2ª Edição, 2020, pp. 38 e 39),Na fundamentação da proibição de métodos probatórios podem ser convocados argumentos de diversa estirpe. Desde logo, a preservação da validade epistemológica da informação obtida – ninguém duvidará de que, p. ex., uma confissão ou um testemunho arrancados sob tortura encerram um grave potencial de afastamento da verdade histórica. Por outra banda, o estado está adstrito a critérios de lisura procedimental que por força implicam que não use os mesmos meios – por mais eficazes que se mostrassem – que os delinquentes que visa perseguir e punir, podendo dizer-se que sobre si impende o dever de preservar as “mãos limpas”. No entanto, o fundamento que em definitivo sustenta a proibição é a tutela (a garantia) de direitos e liberdades fundamentais”.
Ancorando-nos também nas palavras de Cláudio Lima Rodrigues (LIMA RODRIGUES, Cláudio, in Das Proibições de prova no âmbito do direito processual penal – o caso específico das proibições de prova no âmbito das escutas telefónicas e da valoração da prova proibida pro reo, Verbo Jurídico) diremos, “(...) é de salientar que o problema das proibições de prova enquadra-se numa encruzilhada em que o próprio Estado pode encontrar-se. De um lado, a necessidade de assegurar um processo penal efectivo, capaz de perseguir e punir os criminosos e, de outro lado, o dever de assegurar um processo penal justo, associado à ideia de fair trial, àquele que por ele se vê envolvido, apresentando assim as proibições de prova, segundo KAI AMBOS, uma dimensão individual de protecção dos direitos fundamentais (protegendo o investigado da utilização de provas ilegalmente obtidas contra si) e uma dimensão colectiva de preservação da integridade constitucional, “particularmente através da realização de um processo justo”. Daí que a temática das proibições de prova se ligue à própria concepção de Estado em vigor a cada momento histórico e em cada local geograficamente delimitado , cabendo a esse mesmo Estado “uma dupla função estabilizadora da norma: o Estado deve estabilizar as normas jurídico penais não só através de uma persecução penal efectiva, mas também, em um mesmo plano, através da garantia dos direitos fundamentais dos investigados por meio do reconhecimento e, principalmente, aplicação das proibições ou vedações de utilização de provas [...] “ (...) tem de se ter presente que o fim de investigar e punir os crimes, embora sendo um valor de elevada importância, não pode ser sempre e sob quaisquer circunstâncias o valor prevalente num Estado de Direito democrático.
O Estado de polícia, com os seus meios ilimitados pode perseguir e punir os criminosos de forma mais eficaz que o Estado liberal, mas naquele surge o perigo de se verem condenados inocentes, mostrando-se assim a finalidade de combate à criminalidade contraproducente, conduzindo a redução da criminalidade privada à “criminalidade de Estado”.
Entendeu, assim, o legislador constitucional que, embora, a realização da justiça seja um valor com dignidade constitucional, é um valor que não pode ser encarado de forma absoluta. Não pode a realização da justiça ser perseguida com um intolerável sacrifício para os direitos fundamentais dos cidadãos.”.
Este longo excurso serve para mostrar que as proibições de valoração de prova devem ser vistas como modos de evitar a perda da autoridade do próprio Estado, já danificada com a produção do método proibido de prova, impedindo que a sua imagem saia ainda mais “danificada” através da prolação de uma sentença que valore a prova já ilegitimamente produzida.
Lembre-se até que a obrigação de desconsiderar toda a prova proibida é uma imposição constitucional. Como determina o artigo 32.º, n.º 8 da C.R.P, são nulas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, domicílio, correspondência ou telecomunicações.
Como refere Fernando Gama Lobo (op. cit. pp 217-219), “Na verdade, a tutela da vida e da dignidade humana, impõem desde logo, sem possibilidade de situações de excepção, porque são direitos indisponíveis, que a sua violação seja cominada com a nulidade absoluta ou insanável (...) Seria um atentado à pessoa humana e um retrocesso democrático, que se permitisse como método de prova, a agressão física e moral a seres humanos, como aliás aconteceu no passado (...) gerando uma nulidade absoluta e insanável, todas as provas obtidas mediante (i) tortura (ii) coacção ou (iii) ofensa da integridade física ou moral (...)
Por isso, e tendo em conta este quadro constitucional e legal, que ilações deveremos tirar de uma actuação da Polícia Municipal fora dos seus poderes?
O que temos, em termos objectivos, é a realização de uma prova pericial (teste quantitativo) por alguém destituído de poderes para a realizar e efectuada durante uma situação de detenção ilegal – porque não foi orientada, como a lei determina, para a entrega imediata do detido ao OPC, mas sim para a realização de diligências probatórias, para as quais a Polícia Municipal é incompetente.
A competência da Polícia Municipal cessou quando, verificando que a Arguida conduzia apresentando uma TAS de 1,55g/l no teste qualitativo, obteve indícios claros da prática de um crime praticado em flagrante delito. O que se impunha era a entrega imediata ao OPC competente para que este, garantindo todos os direitos fundamentais da Arguida, procedesse à realização do teste quantitativo, realizando a competente investigação criminal da sua competência.
Por isso, há que concluir que a realização do teste quantitativo apenas foi conseguida porquanto a Arguida foi mantida ilegalmente numa situação de detenção, visto ter sido mantida fora das condições e situações que a lei habilitante permite.
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Tudo o que se veio de dizer serve para configurarmos a prova pericial obtida (o teste quantitativo realizado), como método proibido de prova por não poder ser desligado da forma como foi conseguido.
Assim, porque obtida com restrição inadmissível da liberdade de acção da Arguida, ofendendo a sua integridade física e moral e perturbando a vontade de acção e decisão, há que concluir que o teste quantitativo efectuado, que serve para provar a condução sob efeito do álcool, é prova nula (tudo cf. Artigos 32.º, n.º 8 da C.R.P e 126.º, n.º 1 e 2, a), b), c) e d) do C.P.P).
Sendo esta prova nula não pode a mesma ser valorada pelo Tribunal, não podendo ser considerado provado que a Arguida, no dia 15/04/2021, pelas 23h00 conduzia com uma TAS de 1,90 g/l de sangue.
Como diz José Mouraz Lopes, (op. cit., pp. 63 e 64, “De pouco valeria o legislador proibir certos métodos probatórios (...) se não acompanhasse a proibição de uma adequada sanção. Só ela concretiza, no fim de contas, o programa constitucional que proscreve certas provas em razão do seu carácter daninho para os direitos fundamentais tutelados no art. 126º (arts. 25º/1, 26º/1, 32º/8 e 34º CRP). De modo que o legislador vedou a valoração das provas obtidas pelos métodos previstos no n.º 1 e 2 do art. 126º e fê-lo expressando “não podendo [as mesmas] ser utilizadas” (n.° 1) e dispondo que é “igualmente” assim para as referidas no n.° 3 (...) as provas proibidas (...) não podem ser consideradas pelo julgador na formação da sua convicção. É como se não existissem (...)”.
(…)
Aliás, admitir a validade do teste pericial, com base no facto de o mesmo ser objectivo e revelar a verdade dos factos independentemente da entidade que o realiza, seria deixar entrar pela janela o que não se quis deixar entrar pela porta. Seria abrir totalmente a possibilidade de violar os mais fundamentais direitos da pessoa em prol de um efémero sentimento de justiça. Uma perspectiva deste jaez abriria a possibilidade de admitir todas as atrocidades imagináveis desde que no fim o meio de prova obtido demonstrasse que aquela pessoa havia efectivamente cometido um crime.
(…)
Não se diga – porque tal nos levaria de volta a caminhos sombrios – que o simples facto de o teste, efectuado durante uma detenção ilegal, apresentar taxa crime servirá para legitimar toda a conduta anterior, porque a detenção não altera o valor do teste. (…)
Um Estado de Direito não pode considerar que os métodos usados pelos seus agentes, mesmo que contra legem, são aceitáveis para descobrir a verdade. Uma verdadeira sociedade democrática tem de exigir que todos – e em maior medida os agentes do Estado – actuem conforme as leis democraticamente aprovadas. Deve exigir que todos os direitos das pessoas – mesmo as que praticaram crimes – são respeitados.
Assim, e concluindo, a Polícia Municipal num caso como estes, após verificar que a Arguida estava a praticar um crime (condução de veículo automóvel em estado de embriaguez), podia e devia proceder à detenção como fez. Mas a única solução que tinha a seguir era conduzir a Arguida directamente ao OPC competente e não levá-la para o seu Departamento de Polícia com o fim de recolher prova pericial (teste quantitativo) e então só depois o levar ao OPC.
Não há dúvidas de que a Polícia Municipal actuou fora do catálogo das medidas de polícia que lhe são atribuídas, contrariando o princípio constitucional da tipicidade e proibição do excesso. E além disso agiu sem que se verificasse qualquer circunstância que justificasse e exigisse a necessidade daquela actuação urgente e cautelar (a esquadra do OPC competente fica a 200 metros do Departamento de Polícia).
Perante esta actuação, completamente contrária ao à constituição e à lei, só há uma alternativa: considerar a prova recolhida nula e não a valorar. A acção da Polícia Municipal, independentemente do resultado o teste, não pode ser branqueada, devendo ser considerada ilícita nos termos dos artigos  32.º, n.º 8 da C.R.P e 126.º, n.º 1 e 2 do C.P.P. (…).”

Concorda-se com o tribunal a quo na apreciação que efectuou e nas conclusões que retirou quanto à invalidade do teste qualitativo e da sua subsequente não valoração como prova.
Conforme expendido no referido Ac. do TRL de 08.07.2020 “o teste quantitativo faz prova plena em Tribunal, pelo que a sua recolha deve respeitar os direitos do arguido.”

No caso presente, a Policia Municipal manteve (ilegalmente) a detenção da arguida para a submeter ao teste quantitativo e, ao fazê-lo, restringiu indevidamente a liberdade constitucionalmente consagrada da arguida, pelo que, no seguimento do entendimento por nós sufragado no referido Ac. do TRL de 14.10.2021 o resultado do teste quantitativo é nulo nos termos do artigo 126º, nºs 1 e 2, als. a) e c) do CPP por ter sido proveniente de uma detenção ilegal (no mesmo sentido o referido Ac. do TRL de 08.07.2020).

Assim, conforme entendimento exarado no referido Ac. do TRL de 07.10.2021 por nós proferido, voltamos a entender que a detenção ilegal da arguida (atenta a sua finalidade) contamina de forma irremediável a validade do teste quantitativo do álcool.
A este respeito, importa ainda referir que sendo certo que no nosso ordenamento jurídico o artigo 32º, n.º 8 da CRP não destrinçou se a prova é adquirida num grau imediato ou mediato, na nossa jurisprudência não vingam posições extremadas de aceitação plena do efeito à distância das proibições de prova sem qualquer tipo de ponderação (veja-se Acs. do T.C. 213/94 e 198/2004), impondo-lhe variados limites (cfr., entre outros, Ac. Rel. Lisboa de 23.06.2004, Acs. de STJ de 06.04.2004, 25.01.2005, 07.06.2006, 20.02.2008, 12.03.2009 e 1604.2009, acessíveis in internet www.dgsi.pt).

Assim, a nossa jurisprudência tem adoptado uma série de excepções como forma de atenuar o efeito à distância das proibições de prova de molde a validar as provas secundárias.Entre essas excepções contam-se aquelas que são originariamente provenientes do ordenamento jurídico norte-americano e que têm sido adaptadas no nosso sistema:
a)-A chamada fonte independente segundo a qual é de admitir a valoração da prova secundária quando, ao lado do caminho proibido, exista um caminho autónomo, independente, de onde o material probatório possa ser retirado;
b)-A chamada mácula dissipada que se verifica sempre que entre a prova violadora de uma proibição de prova e a prova secundária que dela decorreu, se verifique uma longa distância, de tal forma que se pode afirmar que nenhum nexo causal subsiste entre tal prova e a violação inicial;
c)-A chamada descoberta inevitável que aceita a valoração da prova secundária sempre que possa concluir-se, com elevado grau de probabilidade, que a prova secundária poderia ter sido igualmente descoberta através de uma investigação diferente, conforme aos ditames legais (cfr. ”Nuno Miguel Melo, “Dos limites do efeito à distância nas proibições de prova” e Cláudio Lima Rodrigues, “Proibição de Prova no âmbito do direito processo penal: escutas telefónicas e da valoração da prova proibida pro reo”).

No caso vertente, a Policia Municipal manteve ilegalmente a detenção da arguida para a realização do teste quantitativo e, durante essa detenção ilegal, submeteu-a a esse mesmo teste, sendo esse o único meio de prova obtido para demonstração da taxa concreta de álcool no sangue.

Isto significa que estamos perante um nexo causal entre a detenção ilegal da arguida por parte da Policia Municipal e a obtenção do resultado do exame pericial (único meio de prova obtido para comprovar a taxa de álcool no sangue), não estando tal situação abrangida por nenhuma das excepções acima elencadas.

Por último, importa referir que a concreta taxa de álcool no sangue não pode ser provada por meio de confissão do agente, faltando-lhe para o efeito razão de ciência, só podendo essa prova ser feita através de teste no ar expirado ou por meio de análise (neste sentido, entre outros, veja-se Ac. TRP de 20.01.2010 acessível in www.dgsi.pt).

Assim, no caso, apesar da confissão do consumo de bebidas alcoólicas por parte da arguida, tal confissão não permite apurar qual a efectiva taxa de álcool no sangue que a mesma teria aquando da sua condução.

Assim, sendo nulo o teste quantitativo, não estão preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal que a arguida vinha acusada, pelo que, não há qualquer censura a fazer à sentença recorrida.

Por todo o exposto, não assiste razão ao recorrente, improcede também neste segmento o recurso interposto pelo Ministério Público.
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IIIDECISÃO
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Sem tributação.
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Lisboa, 24.02.2022

(Maria do Rosário Silva Martins)
(Lígia Maria da Nova Araújo Sá Trovão)