Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
226/24.1T8SRQ-A.L1-2
Relator: FERNANDO ALBERTO CAETANO BESTEIRO
Descritores: TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
COMPETÊNCIA
RESPONSABILIDADE CIVIL
FREGUESIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: – Compete aos Tribunais Administrativos a apreciação de litígio respeitante à responsabilidade civil solidária de uma Freguesia e de uma pessoa de direito privado, ao abrigo do art.º 4º, n.º 1, al. f), e 2 do ETAF.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I.
AA e BB intentaram, contra CC Construções Unipessoal, Lda., e Junta de Freguesia da ..., a presente acção com a forma de processo comum, pedindo que:
a. A primeira ré, CC Construções Unipessoal, Lda., seja condenada, para ressarcimento dos danos que lhe são imputados a título de responsabilidade contratual, no pagamento das quantia de €25 964,91 (vinte e cinco mil novecentos e sessenta e quatro euros e noventa e um cêntimos), a que acrescem juros de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento, e ainda na condenação de pagamento de juros vincendos, desde a citação até efetivo e integral pagamento, referente a danos patrimoniais, e de € 2.000,00 (dois mil euros), respeitante a danos não patrimoniais, a cada um dos autores;
subsidiariamente,
b. As duas rés sejam condenadas, a título de responsabilidade extracontratual, no pagamento dos danos patrimoniais causados aos autores, que perfazem a quantia de quantia de €25 964,91 (vinte e cinco mil novecentos e sessenta e quatro euros e noventa e um cêntimos), a que acrescem juros vincendos, desde a citação até efetivo e integral cumprimento do pagamento da indemnização, bem como no pagamento, para ressarcimento dos danos não patrimoniais sofridos, na quantia de €2.000,00 (dois mil euros) a cada um dos Autores.
Alegaram, em síntese, que:
- acordaram com a ré CC Construções Unipessoal, Lda, em esta proceder à colocação e implantação de uma casa pré-fabricada, que haviam adquirido previamente, num terreno pertencente ao autor, pelo preço de € 6.000,00, configurando tal acordo um contrato de empreitada;
- por decisão da aludida ré, a casa pré-fabricada foi transportada, não para o terreno do autor, mas para as instalações de uma empresa de transporte e, após, por força da mora na execução dos trabalhos que havia acordado, nas instalações de um clube de futebol, à guarda da mesma ré, que ficou com as respectivas chaves e, por tal, responsável pelo depósito, vigilância e segurança do bem aí permanecendo a aguardar que a mesma a colocasse no local acordado e a implantasse;
- a ré empreiteira foi adiando a realização dos trabalhos de colocação e implantação da casa no terreno conforme acordado;
- no dia 07-08-2023, terá sido realizada uma queimada no terreno onde a casa pré- fabricada se encontrava, executada por funcionários da Junta de Freguesia da ..., de
acordo com ordens e instruções dessa entidade pública, ou alguém ateou fogo nas ervas secas deixadas pelos mesmos funcionários após a limpeza do terreno, provocando um incêndio;
- no decurso da realização da queimada ou fogo ateado causando, este atingiu a casa pré-fabricada que, com o recheio que nela se encontrava, ficaram reduzidos a cinzas;
- a casa pré-fabricada e a chave desta, foram entregues à sociedade empreiteira, na pessoa do seu sócio e gerente, ficando este obrigado a garantir a sua segurança enquanto não cumprisse com a conclusão dos trabalhos, isto é, com a sua implantação no terreno do autor;
- a autoria da decisão de deixar a casa pré-fabricada nas instalações do clube de futebol é directamente imputável à sociedade empreiteira, tendo a mora na execução do trabalho de implantação na propriedade do autor concorrido para que a prestação se tornasse impossível, dado que a casa e o seu recheio ficaram completamente destruídos no incêndio;
- pelo que se verificam os pressupostos da responsabilidade contratual decorrentes do regime da empreitada concernentes ao incumprimento dos deveres, principal de implantar a casa fabricada na propriedade do autor dentro do prazo a que se obrigou, e laterais, que se impõem ao empreiteiro na execução da empreitada, nomeadamente o de guardar o bem que lhe é entregue, conservando-o até poder criar condições para que seja implantado no local da execução da empreitada;
- sucede que a guarda do bem pela sociedade empreiteira, no local onde a sociedade empreiteira destinou o seu depósito, ultrapassou em muito o tempo razoável para o efeito (cerca de nove meses desde a entrega do bem imóvel até à ocorrência do incêndio), sujeitando o bem móvel a maiores riscos, por se tratar de um local a céu aberto acessível ao público, e sem vigilância, do que resultou o não cumprimento da empreitada e, por via disso, a responsabilidade da mesma pelos danos sofridos, cujo ressarcimento ascende aos valores peticionados;
- ainda que se entenda que a conservação do património dos autores tem autonomia relativamente ao interesse em obter o resultado do contrato celebrado, considerando que o bem/casa pré-fabricada, integra os seus interesses globais mas não está envolvido na relação obrigacional estabelecida entre as partes, pode ainda, afigurar-se que a violação invocada deverá ser atribuída à primeira ré no âmbito da responsabilidade civil extracontratual pelo risco;
- acresce que, quando a Junta de Freguesia demandada mandou executar a limpeza do terreno, sabia que no mesmo estava depositada a casa pré-fabricada dos autores e que, por tal, os sobrantes aí deixados, isto é, as ervas secas amontoadas, seriam passíveis de activar um incêndio, como ocorreu, em consequência do incumprimento por esta entidade pública, das regras de segurança na prática deste acto, causando, dessa forma, a destruição da aludida casa;
- pelo que, nesse âmbito, importa também imputar à ré Junta da Freguesia da ... a responsabilidade extracontratual pela prática de facto ilícito;
- destarte resulta a responsabilidade solidária de ambas as rés, pelos danos causados, para cujo ressarcimento deverão pagar as quantias reclamadas.
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A ré identificada como Junta de Freguesia, a 01-10-2024, apresentou contestação onde, além do mais, arguiu a excepção dilatória de incompetência absoluta e pugnou pela sua absolvição da instância.
Em síntese, alega que são os Tribunais Administrativos os competentes para conhecerem do pedido contra si deduzido, posto que se funda na responsabilidade civil extracontratual e é uma pessoa colectiva de direito público.
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A ré CC Construções Unipessoal, Lda., apresentou contestação a 02-10-2024, onde também arguiu a aludida excepção dilatória, devendo as duas rés ser absolvidas da instância.
Em síntese, alega que, sendo a ré Junta de Freguesia uma entidade pública, os Tribunais Administrativos são os competentes para conhecerem de todos os pedidos formulados.
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Após despacho de 09-12-2024, em que se convidaram os autores a pronunciar-se sobre a excepção dilatória referida, os mesmos, a 06-01-2025, responderam pugnando pela sua improcedência.
Alegaram, em síntese, que:
- peticionaram, a título principal, a condenação da ré CC Construções Unipessoal, Lda., no pagamento de indemnização emergente de responsabilidade civil contratual;
- formularam pedido subsidiário de condenação solidárias das rés, CC Construções Unipessoal, Lda., e Junta de Freguesia, no pagamento de indemnização decorrente de responsabilidade civil extracontratual;
- o que define a competência do Tribunal em razão da matéria é o pedido principal, cabendo ela àquele a quem foi dirigida a petição e não aos Tribunais Administrativos;
- ainda que assim não se entenda por, do acabado de expor, parecer derivar ofensa das regras de competência em razão da matéria e da hierarquia, num raciocínio que se estende, por equivalência de razões, à demanda subsidiária nos termos do novel art.º 39 do CPC, esse efeito não ocorre pela circunstância de que o art.º 4º nºs 1 e 2 ETAF não deve ser interpretado em desarmonia com o sistema legal, designadamente com o disposto nos arts. 212º n.º 3, da CRP, e 1º nº 1 ETAF;
- pelo que, impondo-se a harmonização das citadas normas, a exequibilidade desse efeito passa por atribuir competência aos tribunais administravos para os litígios emergentes de relações jurídicas administravas e excluir dessa jurisdição os litígios que, respeitando embora a pessoas de direito público, não tenham na sua origem qualquer relação administrava e fiscal, o que fizeram;
- assim, a competência para a tramitação da presente acção cabe à ordem dos Tribunais Judiciais (onde a acção foi intentada) e não aos Tribunais Administrativos.
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No dia 02-02-2024, foi proferida decisão que julgou a excepção dilatória referida improcedente.
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Inconformada, a 18-02-2025, a entidade demandada identificada como Freguesia, interpôs recurso que culminou com as seguintes conclusões (transcrição):
1. A Meritíssima Juiz, no seu douto despacho, decidiu pela improcedência a exceção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal invocada pela aqui Recorrente;
2. Não entende a aqui Recorrente como pôde o Meritíssima Juiz improceder a exceção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal em razão da matéria, contornando a letra da lei e, consequentemente, incumprindo os pressupostos legais nela previstos.
3. Uma vez que, o artigo 4.º n.º 2 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais dispõe que a competência para julgar os litígios emergentes de relações jurídicas estabelecidas pela ocorrência de dano, cuja pessoa coletiva é parte processual, seja esta a título principal ou subsidiário, e nos autos demandada, é, sem que dúvidas subsistam o Tribunal Administrativo;
4. Assim, não assiste qualquer razão à Meritíssima Juiz quando, no douto despacho, sustenta que o Tribunal competente para julgar o caso de responsabilidade civil extracontratual é o Tribunal Judicial da Comarca dos Açores.
5. Até porque, a mesma sustenta tal convicção com o facto de as questões relativas à responsabilidade civil extracontratual são matérias exclusivas do direito privado, o que não se coaduna com o estabelecido no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
6. É notório que na jurisprudência mais recente é unânime o entendimento que entende que o tribunal competente para julgar as causas de responsabilidade civil extracontratual, em que seja demandada uma entidade pública será sempre o Tribunal Administrativo o tribunal competente, independentemente de terem sido demandadas no mesmo processo entidades privadas.
7. Ademais, sempre se diga que a Junta de Freguesia da ... integra a administração autónoma do Estado Português, revestindo a natureza de órgão público. Por conseguinte, ser-lhe-ão aplicáveis as disposições legais relativas às autarquias locais, dispostas na Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro, bem como as consagradas no Decreto-lei n.º 57/2019, de 30 de Abril.
8. Assim, todas as intervenções locais por si realizadas, revestirão sempre o cariz público, ou seja, em momento algum pratica a junta de freguesia qualquer ação que não seja de caráter público. Até porque, o fim de agir da aqui Recorrente será sempre a prossecução do interesse público.
9. O dispositivo legal estatuído no artigo 4.º n.º 1 al. f) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais consagra que todas as ações em que se discute a responsabilidade extracontratual do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público, e independentemente dessa responsabilidade emergir de uma atuação de gestão pública ou de gestão privada.
10. In casu, ficou ao longo das presentes alegações demonstrado que, inequivocamente, o Tribunal Judicial da Comarca dos Açores é incompetente em razão de matéria para julgar o caso sub judice, visto que a aqui Recorrente por ser uma Junta de Freguesia, é uma entidade pública e como tal, ser-lhe-á aplicável não só o preceituado no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, como o previsto no na Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, que aprovou o regime da responsabilidade civil extracontratual do estado e demais entidades públicas.
11. Nestes termos, deve o presente despacho ser revogado e, consequentemente, ser substituído por outro que julgue a exceção dilatória de (in)competência absoluta do tribunal em razão da matéria.
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A 20-03-2024, o recurso foi admitido, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo, o que não foi alterado neste Tribunal.
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II.
1.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635º, n.º 4, 636º e 639º, n.ºs 1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art.º 608º, n.º 2, parte final, ex vi do art.º 663º, n.º 2, parte final, ambos do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Tendo isto presente, no caso, atendendo às conclusões transcritas, a intervenção deste Tribunal de recurso é circunscrita à seguinte questão:
- Saber se os Tribunais Administrativos são os competentes para conhecer do pedido subsidiário formulado na petição inicial, de condenação das duas rés no pagamento de indemnização civil.
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2.
A factualidade a ponderar na presente decisão é a referida no relatório acima constante, que aqui se dá por reproduzida.
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3.
Antes de se entrar no conhecimento da questão acima identificada, cumpre proceder a uma precisão, atinente à identificação da entidade demandada identificada como “Junta de Freguesia da ...”.
Parte na presente acção, do lado passivo, além da ré CC Construções Unipessoal, Lda., nunca poderá ser a Junta de Freguesia da ..., já que se trata de um órgão representativo da Autarquia Local Freguesia da ..., essa sim, pessoa colectiva, de direito público de base territorial – cf., a propósito, arts. 235º, n.º 2, e 236º, n.º 1, 239º, n.º 1, e 244º da Constituição da República Portuguesa, e 5º, n.º 1, da Lei n.º 75/2013, de 12-09.
Ora, conforme decorre do disposto no art.º 11º do CPC, por regra (que se aplica ao caso dos autos), tem personalidade judiciária quem estiver dotado de personalidade jurídica.
Nessa perspectiva, entende-se existir uma incorrecta identificação da entidade demandada, aqui recorrente, que cumpre suprir no sentido de se assumir que a mesma corresponde à Freguesia de ..., que se mostra devidamente representada na lide pelo Presidente da sua Junta de Freguesia, como se afere pela procuração forense junta com a contestação apresentada a 01-10-2024, pelo mesmo outorgada (art.º 14º, n.º1, al. a), da Lei n.º 75/2013, de 12-09), e que contestou nessa qualidade.
No mesmo sentido, veja-se Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, CPC Anotado, vol. I, 3ª edição, Almedina, Coimbra, p. 45-46.
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4.
A competência ou a jurisdição do tribunal deve, em geral, apreciar-se e determinar-se em função do pedido, tal como arquitetado e apresentado em juízo pelo autor, e dos fundamentos ou causa de pedir invocados na respetiva petição inicial, ou seja, do objeto do processo ou conteúdo da lide (cf., a título de exemplo, os acórdãos do TRG de 20-10-2022, processo n.º 396/22.3T8VCT.G1, do Tribunal de Conflitos de 11-09-2024, processo n.º 0395/23.8BECBR-A.C1.S1, ambos acessíveis em www.dgsi.pt).
Releva, assim, para este efeito, como thema decidendum, a relação material controvertida proposta. Não importa o seu mérito, nem sequer a legalidade e propriedade de qualquer dos procedimentos subjacentes.
Como ensinava Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, pág. 91), a competência do tribunal afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum). É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor, compreendidos aí os respetivos fundamentos, não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão.
Por outro lado, os tribunais judiciais gozam de competência genérica ou não discriminada, ou seja, são competentes para o conhecimento de todas as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, conforme resulta, desde logo, do disposto no art.º 211º, n.º1, da Constituição da República Portuguesa (de ora em diante designada por CRP), segundo o qual [o]s tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”, norma que é desenvolvida no art.º 40º, n.º1, da Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26.08.
Ao invés, os tribunais administrativos têm a sua competência limitada às causas que lhe são especialmente atribuídas. O art.º 212º, n.º3, da CRP define o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal em função dos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais ao estatuir que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”, norma que é reproduzida no art.º 1.º do actual Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19-02, na redacção da Lei n.º 114/2019, de 12-09.
As normas referidas contêm, portanto, uma cláusula geral positiva de atribuição de competência aos tribunais administrativos dos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas, que assim constitui a regra básica sobre a delimitação da competência jurisdicional dos tribunais administrativos com os demais tribunais: os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas são, em regra, julgados nos tribunais administrativos, que assim são os tribunais comuns em matéria administrativa, detendo reserva de jurisdição nessas matérias, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição.
Fala-se, a este propósito, de uma reserva material de jurisdição atribuída pela CRP aos tribunais administrativos, sendo debatido, na doutrina e na jurisprudência, se tal reserva é absoluta, quer num sentido negativo, implicando que os tribunais administrativos só poderão julgar questões de direito administrativo, quer num sentido positivo, conduzindo a que só eles poderão julgar tais questões.
Defendendo a natureza absoluta ou fechada daquela reserva material de jurisdição, no sentido de que o legislador ordinário só pode atribuir o julgamento de litígios materialmente administrativos a outros tribunais se a devolução estiver prevista a nível constitucional, podem ver-se Mário Esteves de Oliveira / Rodrigo Esteves de Oliveira, Código de Processo Nos Tribunais Administrativos, I, Coimbra: Almedina, 2006, pp. 21-25, e Freitas do Amaral / Mário Aroso de Almeida, Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, Coimbra: Almedina, 2007, pp. 21 e ss..
Defendendo a natureza relativa daquela reserva material de jurisdição, admitindo a introdução de desvios ao critério material da natureza da relação jurídica controvertida quando impostos por um obstáculo prático intransponível, de ordem logística, ligado à insuficiência da rede de tribunais administrativos e justificados pela necessidade de salvaguardar o princípio da tutela judicial efetiva que ficaria comprometida pelo “entupimento” e irregular funcionamento daqueles se, porventura, o legislador ordinário, seguindo a via constitucional, atribuísse, de imediato, aos tribunais administrativos o julgamento de todos os litígios de natureza administrativa, pronunciam-se Sérvulo Correia, “A arbitragem voluntária no domínio dos contratos administrativos”, Estudos em Memória do Prof. Castro Mendes, Lisboa: Lex, 1995, p. 254; Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, p. 107 e ss., e Rui Medeiros, “Brevíssimos tópicos para uma reforma do contencioso de responsabilidade”, Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 16, pp. 35- 36, e Jorge Miranda, “Os parâmetros constitucionais da reforma do contencioso administrativo”, Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 24, pp. 3 e ss. Estes autores entendem que a norma do n.º 3 do artigo 212 da CRP consagra uma reserva relativa, um modelo típico, que deixa à liberdade do poder legislativo a introdução de alguns desvios, aditivos ou subtrativos, desde que preserve o núcleo essencial do modelo de acordo com o qual o âmbito regra da jurisdição administrativa corresponde à justiça administrativa em sentido material, tese que assenta na ideia de que a finalidade principal do legislador constitucional foi a abolição do carácter facultativo da jurisdição administrativa e não a consagração de uma reserva de competência absoluta dos tribunais administrativos. Estas razões são, de resto, aduzidas na exposição de motivos da Proposta de Lei que deu origem ao atual ETAF, onde se lê o seguinte: “No plano da delicada e complexa matéria da delimitação do âmbito da jurisdição, partiu-se, como não podia deixar de ser, do quadro constitucional vigente e das imposições que dele decorrem, vinculando o legislador ordinário. Como é bem sabido, desde a revisão constitucional de 1989, e sem que, ao longo destes quase doze anos, o facto tivesse sido objeto de controvérsia, a jurisdição administrativa e fiscal é uma jurisdição constitucionalmente obrigatória, o que, como tem sido assinalado pela doutrina, significa que o legislador não pode pôr o problema de saber se ela deve ou não deve existir. Existe em Portugal e está hoje consolidada, a exemplo do que sucede em França, na Alemanha ou na Itália, uma ordem jurisdicional administrativa e fiscal, diferente da jurisdição comum, constituída por verdadeiros tribunais, dotados de um estatuto em tudo idêntico àquele que a Constituição estabelece para os restantes tribunais, impondo-se hoje assegurar que as vias de acesso a esses tribunais são aptas, como a Constituição também exige, a dar resposta a todas as questões que, por imperativo constitucional, devam ser submetidas a essa jurisdição.
Neste quadro se inscreve a definição do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal que, como a Constituição determina, se faz assentar num critério substantivo, centrado no conceito de relações jurídicas administrativas e fiscais. Mas sem erigir esse critério num dogma, uma vez que a Constituição, como tem entendido o Tribunal Constitucional, não estabelece uma reserva material absoluta, impeditiva da atribuição aos tribunais comuns de competências em matéria administrativa ou fiscal ou da atribuição à jurisdição administrativa e fiscal de competências em matérias de direito comum. A existência de um modelo típico e de um núcleo próprio da jurisdição administrativa e fiscal não é incompatível com uma certa liberdade de conformação do legislador, justificada por razões de ordem prática, pelo menos quando estejam em causa domínios de fronteira, tantas vezes de complexa resolução, entre o direito público e o direito privado.”
O último entendimento tem sido acolhido na jurisprudência do Tribunal Constitucional (Acórdãos n.º 508/94, in DR de 94.12.13, n.º 372/94, in DR II Série, n.º 204, de 3 de Setembro de 1994, n.º 347/97, in DR II Série, n.º 170, de 25 de Julho de 1997 e n.º 284/2003, de 29 de Maio de 2003), na jurisprudência do Tribunal de Conflitos (Acórdão de 27.11.2008, Proc. n.º 19/08), na jurisprudência do STA (Acórdãos de 18.02.1998, Rec. n.º 40 247; 14.06.2000.06, Rec. n.º 45 633; 24.01.2001., Rec. n.º 45 636; 20.02.2001, Rec. n.º 45 431; 31.10.2002.10, Rec. n.º 1329/02) e na jurisprudência do STJ (Ac. de 1.03.2018, processo n.º 1203/12.0TBPTL), admitindo-se que o legislador ordinário, desde que não descaracterize o modelo típico, segundo o qual a regra é que o âmbito da jurisdição administrativa corresponde à justiça administrativa em sentido material, pode, sem ofensa à lei constitucional, alterar o perímetro natural da jurisdição, quer atribuindo-lhe algumas competências em matérias de direito comum, quer atribuindo aos tribunais comuns algumas competências em matérias administrativas.
Assim, à luz do art.º 212º, n.º 3, da CRP e do artigo 1.º do ETAF, o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal é definido pela natureza dos litígios, que naturalmente é o resultado de um processo de qualificação jurídica. Sendo estes emergentes de relações jurídicas administrativas, que constitui, nos termos referidos, a regra geral para a delimitação da competência jurisdicional dos tribunais administrativos face aos tribunais judiciais, cabe aos primeiros a competência para dirimir os litígios, exceto nos casos em que, pontualmente, o legislador atribua competência a outra jurisdição, como os desde logo previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 4.º do ETAF, mas também os que são ou venham a ser contemplados em legislação avulsa.
É neste contexto que tem de ser enquadrado o art.º 4º, n.º 1, al. f), do ETAF, na redação da Lei n.º 114/2019, de 12-09, no qual se dispõe que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo.
A propósito desta norma que, grosso modo, tem redação idêntica à da versão inicial do ETAF, Fernandes Cadilha (“O novo regime de responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas pelo exercício da função administrativa”, Revista do CEJ, Lisboa, 1.º Semestre, n.º 11, 2009, pp. 245-263) escreve que o ETAF operou “um alargamento da competência dos tribunais administrativos em matéria de responsabilidade civil das pessoas coletivas de direito público através de três diferentes vias: (a) uniformizou o âmbito da jurisdição no que se refere à responsabilidade decorrente da atividade administrativa, passando a atribuir aos tribunais administrativos as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas coletivas de direito público, sem qualquer prévia distinção entre atos de gestão pública e atos de gestão privada (artigo 4º, nº1, alínea g), segmento inicial); (b) passou a incluir no âmbito da jurisdição administrativa a responsabilidade por danos resultantes do exercício da função legislativa, bom como do funcionamento da administração da justiça (…); (c) passou igualmente a abarcar na competência dos tribunais administrativos a responsabilidade civil extracontratual de sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado.”
É ponto assente que, com a Reforma do Contencioso Administrativo levada a cabo pela referida Lei n.º 13/2002, foi alterado, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, o critério determinante da competência material entre jurisdição comum e jurisdição administrativa, que deixou de assentar na clássica distinção entre atos de gestão pública e atos de gestão privada, passando a jurisdição administrativa a abranger, por um lado, todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas coletivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado, e, por outro, a responsabilidade extracontratual das pessoas coletivas de direito privado às quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público.
Nas palavras de Sérvulo Correia (Direito do Contencioso Administrativo, Lisboa: Lex, 2005, p. 714), o ETAF privilegiou um factor de incidência subjetiva. Independentemente da natureza jurídica pública ou privada da situação de responsabilidade, esta cabe no âmbito da jurisdição exercida pelos tribunais administrativos só porque é pública a personalidade da entidade alegadamente responsável ou da entidade em que se integram os titulares de órgãos ou servidores públicos.
No caso vertente, vistos os elementos objetivos da acção, tal como gizados pelos autores na petição inicial, estamos, sem quaisquer dúvidas, no que tange ao pedido subsidiário, perante uma demanda em que está em causa a responsabilidade civil de uma Freguesia (da ...), decorrente de acto por si praticado.
O único factor que dificulta a conclusão da atribuição de competência para conhecimento do pedido deduzido contra a ré Freguesia aos Tribunais da Jurisdição Administrativa resulta da circunstância de tal pretensão ter sido formulada também contra a primeira ré, pessoa coletiva de direito privado, invocando a responsabilidade solidária de ambas por terem contribuído para a ocorrência dos danos cujo ressarcimento aqueles peticionam, com fundamento na factualidade que alegam na petição inicial, acima mencionada em síntese.
Ora, a esse propósito, importa reter que, por força do disposto no art.º 4º, n.º 2, do ETAF, na versão acima referida, pertence à Jurisdição Administrativa e Fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandados entidades públicas e particulares, entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de responsabilidade.
Em referência ao preceito acabado de mencionar, Mário Aroso de Almeida (Manual de Processo Administrativo, Almedina, 3ª ed., p. 253-254) afirma que o mesmo tem em vista obstar a dificuldades que se sentiam “quanto à competência dos tribunais administrativos para conhecer de acções de responsabilidade civil quando se verifique o chamamento ao processo de sujeitos privados que se encontrem envolvidos com a Administração ou com outros particulares numa relação jurídica administrativa ou no âmbito de uma relação conexa com a relação principal que constitui objeto do litígio”.
No acórdão do Tribunal dos Conflitos de 13-07-2022, processo n.º 1974/21.3T8LRA.S1 (acessível em dgsi.pt), referiu-se, com o que se concorda, que o aludido art.º 4º, n.º 2, do ETAF, “traz para o âmbito da jurisdição administrativa o conhecimento de litígios que envolvem entidades privadas, desprovidas de poderes de autoridade, quando estão ligadas a entidades públicas por vínculos de solidariedade, nomeadamente nos exemplos referidos no citado n.º 2. A ampliação da competência da jurisdição administrativa verifica-se relativamente a essas entidades privadas, ou seja, só ocorre quando aquela competência abrange as entidades públicas nos termos das diversas alíneas do n.º 1 do artigo 4.º (ou de outra disposição legal) e justifica-se pela vantagem manifesta de possibilitar o conhecimento global do litígio, sem obrigar à propositura de acções diferentes em diferentes jurisdições, com a duplicação de actividade processual e o risco de decisões contraditórias (“O art.º 4.º, n.º 2, do ETAF apresenta-se como uma concretização do princípio da tutela jurisdicional efectiva, designadamente dos sub-princípios da economia e da celeridade processual (…)”, escreve Sandra dos Reis Luís, O artigo 4.º, n.º 2, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais: sentido e alcance, in Comentários à Legislação Processual Administrativa, vol. I, 5.ª ed., Lisboa, 2020, pág. 407 e segs.., pág. 434).”
Por outro lado, como tem sido entendimento do Tribunal de Conflitos, o preenchimento da previsão do aludido art.º 4º, n.º2, do ETAF, apenas se verifica se se mostrarem alegados factos de que deriva a obrigação de indemnizar e que as obrigações dos responsáveis tenham entre si uma relação de solidariedade, que, em caso de procedência, fundamente a condenação solidária, sendo insuficiente a mera invocação da responsabilidade solidária (vejam-se, a propósito, os acórdãos do Tribunal de Conflitos de 17-05-2018, processo n.º 052/17, 22-03-2018, processo n.º 56/17, de 19/01/2022, processo n.º 026/21, e de 27-09-2023, processo n.º 01543/23.3T8GMR.S1, todos acessíveis em dgsi.pt).
No caso em apreço, verifica-se que, em sede de petição inicial, os autores, além de invocarem a solidariedade das entidades demandadas, fundamentam-na com a alegação de factos que a sustentam e dos quais resultam a concorrência de ambas para a produção dos danos que alegam e cujo ressarcimento peticionam, o que, em abstracto, se mostra apto a integrar o âmbito de previsão do art.º 497º, n.º 1, do Cód. Civil, onde se estatui a responsabilidade solidária.
Assim, conclui-se que, de acordo com a relação material controvertida, tal como configurada pelos autores, o pedido subsidiário formulado no articulado inicial se insere no n.º 2 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, pelo que a competência para dele conhecer é dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Ao que se acaba de concluir não obsta a circunstância de os autores terem deduzido o pedido mencionado a título subsidiário, em cumulação com o pedido principal de condenação da ré Construções CC Unipessoal, Lda., no pagamento de quantia monetária a título de indemnização, com fundamento no incumprimento de contrato de empreitada com a mesma celebrado.
Na verdade, está-se diante de duas pretensões com autonomia entre si, sem qualquer dependência lógico jurídica, não ocorrendo situação para a aplicação do art.º 91º, n.º 1, do CPC.
O pedido principal, que não se integra no âmbito de previsão das normas atributivas de jurisdição administrativa e fiscal, como se mostra pacífico nos autos, recai, como assumido pelo Tribunal Recorrido, no âmbito de jurisdição dos Tribunais Judiciais, pelo que os autos deverão prosseguir para o seu conhecimento.
Em face do exposto, concluímos que, em relação ao pedido subsidiário formulado nos autos, de condenação das rés CC Construções Unipessoal, Lda., e da Freguesia da ... (tenha-se em atenção a rectificação da entidade demandada acima tratada), está verificada a exceção dilatória da incompetência absoluta, que tem como consequência a absolvição das rés da instância, no que ao mesmo respeita, como decorre dos arts. 96º, al., a), 278º, n.º 1, al. a), 576º, n.º1, e 2, e 577º, n.º1, todos do CPC.
Resta concluir pela procedência do recurso, revogando-se a decisão recorrida, julgando-se verificada a aludida excepção dilatória e a consequente absolvição das rés da instância, no que respeita ao pedido subsidiário acima identificado.
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5.
Considerando a procedência da apelação, os autores deverão suportar as custas do recurso (art.º 527º, n.º 1 e 2 do CPC).
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III.
Em face do exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o Colectivo desta 2ª Secção em julgar o recurso interposto pela ré Freguesia de ... procedente e, em consequência:
a. Revogam a decisão recorrida;
b. Julgam verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta, em razão da matéria e absolvem as rés, CC Construções Unipessoal, Lda., e Freguesia da ..., da instância, no que respeita ao pedido de condenação solidária contra elas deduzido na petição inicial a título subsidiário.
Custas do recurso pelos autores.
Notifique.
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Lisboa, 10-04-2025.
Os Juízes Desembargadores,
Fernando Alberto Caetano Besteiro
Laurinda Gemas
Pedro Martin Martins