Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1832/22.4T8CSC-A.L1-7
Relator: CRISTINA COELHO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRA-CONTRATUAL
ILÍCITO CRIMINAL
PRESCRIÇÃO
PRAZO
INSTAURAÇÃO DE PROCESSO CRIME
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. Estando em causa responsabilidade civil extracontratual em que o facto ilícito constitui crime, o prazo prescricional a ponderar é o previsto na lei penal, se for mais longo.
2. A instauração de processo penal interrompe o prazo prescricional que se encontre em curso para a dedução do pedido de indemnização cível com base em responsabilidade extracontratual junto da jurisdição civil, e o novo prazo prescricional não se inicia enquanto o inquérito não for arquivado ou nele for deduzida acusação.
3. Sendo arquivado o inquérito crime pelo MP, é a partir da data da notificação deste despacho ao arguido que se inicia a contagem do prazo de prescrição.
4. Sendo a causa de pedir na ação complexa, consubstanciando-se em factos ocorridos em momentos diferentes, de diferente natureza e com diferente autoria, mas que comungam entre si o mesmo resultado - o dano provocado ao A. -, a responsabilidade recai solidariamente sobre os vários autores, todos respondendo pelos danos que hajam causado, conforme dispõe o art.º 497º, nº 1, do CC.
5. Sendo a responsabilidade solidária, a extensão do prazo do nº 3 do artigo 498º do Código Civil abrange o responsável civil.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
Em 23.5.2022, A intentou ação declarativa de condenação, sob a forma comum, contra B, 2º C, e 3º D, pedindo a condenação solidária dos RR. a pagarem-lhe o valor de €115.000,00, acrescido dos juros de mora legais à taxa de 4% desde 10.9.2018, bem como de sanção pecuniária compulsória de 5%.
A fundamentar o peticionado, alegou, em síntese:
A A. e o 2º R. foram casados, e em 28.9.2010, celebraram com a 1ªR. um contrato promessa de compra e venda, nos termos do qual lhe prometeram vender a fração autónoma descrita com o nº … “D” da freguesia de Parede, inscrita na matriz urbana da união de freguesias de Carcavelos e Parede sob o art.º 6721, pelo valor de €175.000,00.
Acontece que o 2ºR. se separou da A. em 2006, tendo-se divorciado desta em 14.4.2011, mas, antes disso, em conluio com outros indivíduos, o 2ºR. obteve uma procuração, com a assinatura da A. falsificada, e com o auxílio do 3ºR., o qual elaborou para essa procuração um termo de autenticação de documento particular, feito por um advogado, fazendo constar que a referida procuração lhe foi apresentada para autenticação pela A., sendo esse facto e a assinatura da A. falsos.
O 2ºR., na posse desta documentação, conseguiu efetuar a escritura em 17.12.2010 com a 1ªR., vendendo-lhe a referida fração pelo valor de 160.000,00€, o que foi feito sem o conhecimento e autorização da autora, que se encontrava a residir no imóvel em causa, não tendo sido avisada previamente da marcação dessa escritura, ou até da sua concretização, senão depois desta ter ocorrido.
Em 23.12.2010, numa ocasião em que a A. não estava no local, o 2ºR. conseguiu entrar no imóvel acima referido, e, no ato, de imediato mudou a sua fechadura, impedindo o acesso à A. ao mesmo desde então.
A A. veio a saber que a R., na referida escritura, contra o que estava contratado no cpcv, e como seria normal, não comprou o imóvel, nem pagou, a totalidade do preço acordado, tendo a escritura sido feita apenas pelo valor de 160.000,00€, e não pelos 175.000€ previstos no cpcv, além de que não recebeu a posse do imóvel adquirido, factos que levam a crer que estaria ao corrente de que a A. (que vivia no imóvel) não estaria a par da marcação da escritura.
Sem saber da escritura, a A. apresentou uma queixa crime contra o seu ex-marido, pela invasão do domicílio desta, tendo na sequência tido conhecimento de que já tinha ocorrido a referida escritura de venda efetuada pelo réu, sem o seu conhecimento.
Intentou, também, contra a R. uma ação de anulação ao abrigo do art.º 1687º, nºs 1 e 2, do CC, ação que correu no Tribunal de Cascais com o nº 4981/11.0TBCSC, na instância central, 2ª secção cível, na qual foi proferida sentença que anulou a venda da fração.
Todavia a R., porque já tinha sido notificada no decurso desse processo do resultado da peritagem que concluíra que a assinatura era falsa, do que decorreria, inevitavelmente, a anulação da venda, para impedir o efeito útil da sentença, diligenciou por vender a fração em causa a MS, conforme se verifica no registo predial pelo ato com a apresentação nº 10 de 12-12-2015.
Venda essa feita pela R. antes do registo da presente ação, que só ocorreu em 2016, e antes da emissão e trânsito da sentença, que anulou a venda em causa, tendo a R., recorrido da sentença até ao STJ, conseguindo assim com essas suas manobras de má-fé entorpecer e impedir o efeito prático da ação da justiça, prejudicando dessa forma a autora que se viu impossibilitada de, pelo efeito da sentença, obter a anulação da venda e devolução da fração à sua titularidade e do 2ºR.
Em virtude da atuação dos RR., a A. sofreu um dano patrimonial, que se calcula no valor da diferença entre o valor pago pela R. pela fração na data da escritura e o valor de mercado da fração à data do trânsito da sentença que anulou a venda em causa, que se deu em 10.09.2018.
A atuação dolosa da R. impede a A. de obter o cumprimento da sentença na sua execução, com a entrega do imóvel, logo para dar cumprimento à sentença, não resta a esta senão a indemnização em dinheiro, visto já não ser possível a reconstituição natural.
Foi a ação conjunta dos três RR. que causou o prejuízo da ré.
Citados, os RR. contestaram, tendo o 3º e 1ª RR., invocado (cada um) a exceção de prescrição do direito invocado pela A.
A A. foi convidada a pronunciar-se sobre as exceções arguidas pelos RR., o que fez, pugnando pela improcedência das mesmas.
Em 24.5.2023, foi dispensada audiência prévia, e foi proferido despacho saneador, no qual se julgou improcedente a exceção de prescrição invocada pelos RR.
Inconformada com a decisão, apelou a 1ªR., apresentando, no final das alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
1. O presente recurso vem interposto do, aliás douto, despacho saneador que decidiu do mérito da causa ao julgar improcedentes as exceções de prescrição arguidas proferindo decisão errada e com o qual a Recorrente não pode de modo algum conformar-se;
2. Na decisão proferida no processo 4981/11.0TBCSC, que constitui o doc. 6 junto com a petição inicial, verifica-se que aquela ação não foi proposta contra o Réu, Dr. D, e incide apenas sobre a falsificação da assinatura da Autora;
3. Sem a intervenção do Réu, Dr. D, no processo 4981/11.0TBCSC, a decisão nele proferida considerou provados os factos 10 e 11 da Matéria de Facto Provada, a saber,
4. 10. A procuração de fls. 191 foi autenticada pelo Advogado do primeiro R., Dr. D.
5. 11. Procuração essa que não foi assinada pela A., tendo sido nela aposta uma assinatura idêntica à sua e que foi reconhecida pelo referido Advogado, Dr. D, como sendo da A.;
6. Como se verifica nada é referido quanto a uma suposta falsificação do reconhecimento;
7. O inquérito-crime nº 603/11.STDLSB investigou apenas se a autoria da assinatura da Autora na procuração tinha sido dela própria ou dos suspeitos que identificou;
8. O crime de falsificação da procuração, não sendo documento autêntico, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa. - art.º 256-1, CP;
9. Pelo que o procedimento criminal prescreveria no prazo de 5 anos. - art.º 118-1-c), CP:
10. Tal prazo, foi interrompido com a constituição de arguido em 21 outubro 2011. - vide fls. 2 da certidão-- art.º 121-1-a), CP;
11. E reiniciou-se em 2013, data do despacho de arquivamento. - vide fls. 14 e seguintes da certidão;
12. Pelo que o procedimento criminal se extinguiu 5 anos depois, em 2018. - art.º 121-2, CP;
13. O único crime que poderia ter sido imputado ao Réu, Dr. D, o que a Autora não fez, seria por este ter reconhecido, falsamente, a assinatura da Autora em 16 dezembro 2010;
14. O que constituiria, esse sim, um crime de falsificação qualificado por se reportar a documento com igual força ao de documento autêntico - art.º 256-3, CP;
15. Com um prazo de prescrição de 10 anos - art.º 118-1-b), CP;
16. Quanto a este hipotético crime nada foi alegado sobre a instauração de procedimento criminal e, por maioria de razão, não houve qualquer interrupção na contagem do prazo de prescrição.
17. Pelo que, tendo o mencionado reconhecimento, por certificação, sido consumado em 16 dezembro 2010, se constituísse crime, o que se desconhece, o mesmo teria prescrito 10 anos depois, isto é, em 15 dezembro 2020. -art.º 119-1, CP;
18. Por inexistência de qualquer suspensão ou interrupção. - art.ºs 120 e 121, CP;
19. Pelo que, mesmo que se entendesse que seria este prazo de 10 anos o aplicável à Recorrente, a verdade é que o mesmo já se teria esgotado;
20. No entanto, tal prazo de prescrição não é aplicável à Recorrente, uma vez que
21. A Recorrente nenhuma intervenção teve na feitura e utilização da procuração em causa;
22. Já que – art.ºs 1 a 4 da contestação- na sentença proferida no processo 4981/11.0TBCSC, datada de 17/06/2016, consta no ponto 3.1 Matéria de facto provada:
23. Com relevância para a decisão da causa ficou provado o seguinte facto 35. Na pendência da presente ação, a R. B vendeu a MS, a fração identificada em I. facto inscrito na C.R.Predial, por apresentação nº 10, datada de 12/12/2015.” - fls. 11 da sentença do processo 4981/11.0TBCSC doc. 6 junto com petição inicial;
24. Na mesma sentença, a fls. 26, 2.º parágrafo, consta o seguinte: Verifica-se que B vendeu a fração a terceiro, facto inscrito no registo em 12/12/2015, deixando esta obrigação, decorrente da anulação da aquisição a seu favor, de estar na sua disponibilidade. Com efeito, a R, transmitiu o direito de propriedade sobre a fração;
25. Tendo a mencionada sentença sido proferida em 17/06/2016 e imediatamente notificada à Autora, esta teve conhecimento, com a notificação, da venda efetuada pela Ré B;
26. Ora, a presente ação foi interposta em 23/05/2022 e a Ré B só foi citada em 1/07/2022;
27. Pelo que nessa data já tinha decorrido o prazo de 3 anos previsto no art.º 498-1, CC, desde que a Autora teve conhecimento do seu hipotético direito a ser indemnizada;
28. O despacho saneador em crise interpretou incorretamente os factos e o direito violando, entre outros, o art.º 498-1, CC, os art.ºs 576-1-3 e 579, ambos do CPC, e, ainda, os art.ºs 118-1-b)-c), 119-1, 120, 121-1-a)-2, 256-1-3, todos do CP
Termina pedindo que o despacho recorrido seja revogado, no que toca ao indeferimento da exceção de prescrição, substituindo-se por outro que julgue verificada e procedente a exceção de prescrição, absolvendo a Recorrente do pedido; e se, inesperadamente, for entendido que o tribunal não dispõe, ainda, de todos os elementos necessários a uma decisão definitiva, deve relegar-se para a decisão final o conhecimento da exceção de prescrição; tudo com as legais consequências.
Não se mostram juntas contra-alegações.
QUESTÕES A DECIDIR
Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusões da recorrente (art.ºs 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a única questão a decidir é se o direito invocado pela A. se mostra prescrito, ou não.
Cumpre decidir, corridos que se mostram os vistos.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O tribunal recorrido teve por adquiridos os seguintes factos:
A A. tomou conhecimento da venda em dezembro de 2010.
Intentou ação judicial tendente a anular o negócio em 2011.
Apresentou queixa contra os RR. pela falsificação naquele mesmo ano (2011), tendo o R. D sido constituído arguido no processo crime respetivo, que veio a ser arquivado pelo Digno Magistrado do MP por despacho exarado a 05.06.2013.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
O tribunal recorrido julgou improcedente a exceção de prescrição invocada pela R. e pelo 3ºR., com os seguintes fundamentos: “Vieram os RR B e D excecionar a verificação do prazo prescricional a que alude o art.º 498.º, n.º 3 do CC por já terem transcorrido três anos desde a data em que a A tomou conhecimento da venda (17.12.2010), termos e prejuízos que alega ter havido para si da realização do negócio. De facto, fundamento essencial na causa de pedir deduzida é o de que aquele negócio apenas ocorreu mediante a apresentação de procuração falsificada conferindo poderes de representação a seu então marido (o R C). … Analisando. Não obstante o argumento literal expendido no art.º 498.º, n.º 1 do CC, o n.º 3 do preceito indica que constituindo o fundamento indemnizatório concomitantemente crime aplica-se o prazo de prescrição correspondente (se mais longo). Tem, pois constituído doutrina pacífica dos Tribunais Superiores que: 1 - No âmbito da responsabilidade cível extracontratual o prazo prescricional de 3 anos pode ser alongado, quando o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prazo de prescrição mais dilatado. 2 - Quem pretenda beneficiar do prazo mais alongado em ação cível basta alegar e provar o circunstancialismo factual inerente a integração da conduta ilícita num qualquer tipo de crime, não se exigindo a instauração concreta de procedimento criminal, nem muito menos a condenação do autor do ato ilícito por prática criminal. 3 - O início do prazo prescricional conta-se a partir do momento em que o lesado teve conhecimento do seu direito, ou seja, a partir da data em que ele, conhecendo a verificação dos pressupostos que condicionam a responsabilidade, soube ter direito à indemnização pelos danos que sofreu sendo que todas as ocorrências situadas a jusante desse momento poderão ter interesse para outros efeitos, nomeadamente para interrupção ou suspensão do prazo, mas não para o início da sua contagem. 4 - Depois de iniciada, a prescrição continua a correr, ainda que o direito passe para novo titular, somando-se ao tempo que este estiver sem exigir o cumprimento, o período em que também não o exigiu o titular anterior. 5 - A lei impõe limites subjetivos para que possa relevar a interrupção da prescrição, donde em regra esta só produz efeitos relativamente às pessoas entre as quais se verifica. 6 – O reconhecimento do direito para efeitos de interromper o prazo prescricional, só tem valor jurídico, se for efetuado perante o respetivo titular por aquele contra quem o direito pode ser exercido. (Ac. TRE de 08.03.2018, proc. 590/17.9T8EVR.E1) E de forma bastante mais específica no que se prende com a relevância para o caso concreto: I – A aplicação do alargamento do prazo prescricional previsto no nº 3 do art.º 498º do Cód. Civil não está dependente de, previamente, ter sido ou não exercido o direito de queixa, ter havido ou não processo crime ou de o lesante ter sido ou não condenado pela prática do respetivo crime, assim como não impede a aplicação daquele preceito o facto de o processo crime ter sido arquivado (por qualquer motivo) ou amnistiado. II - A razão de ser daquele alargamento do prazo prescricional assenta apenas na especial qualidade e gravidade do facto ilícito. Por isto, para a verificação de tal alargamento, é mister que se alegue e prove na ação cível que os factos que são imputados ao lesante integram determinado tipo criminal. III – A apresentação da queixa crime apresentada pelo lesado interrompe o prazo prescricional previsto quer no nº 1, quer no nº 3, do art.º 498º do Código Civil. IV – O prazo assim interrompido reinicia-se com o trânsito em julgado do despacho de arquivamento ou de acusação ou de pronúncia/não pronúncia. V - A interrupção do prazo prescricional e o alargamento de tal prazo previsto no art.º 498º, nº 3 do Código Civil são aplicáveis a todos os responsáveis meramente civis, nomeadamente à seguradora, mesmo que demandada pela primeira vez na ação cível. (Ac. TRL de 16.06.2020, proc. 1662/19.0T8PDL.L1-7) Alegando a aqui A factualidade subsumível na prática de crime de falsificação qualificado por se reportar a documento com igual força ao de documento autêntico, prescreve o legislador, para o que releva, pena abstrata até cinco anos de prisão, a qual, por aplicação do art.º 118.º n.º 1 al. b) conjugado com o art.º 256.º, n.º 3, ambos do Código Penal, impõe um prazo de prescrição de 10 (dez) anos. O mesmo interrompeu-se com a constituição de arguido e apenas retomou o seu curso, tendo por referência o despacho de arquivamento em causa, quando tornado definitivo (art.º 287.º e 278.º do Código do Processo Penal) no dia 28.06.2013. Não se mostra, pois, e salvo devido respeito por entendimento diverso, ainda transcorrido o prazo prescricional em causa, termos em que improcede, no momento presente, a exceção da prescrição arguida, nos termos legalmente expostos e com os fundamentos aqui expendidos. …”.
Insurge-se a apelante contra o decidido, sustentando que:
- O inquérito-crime nº 603/11.STDLSB investigou apenas se a autoria da assinatura da A. na procuração tinha sido dela própria ou dos suspeitos que identificou - o crime de falsificação da procuração (porque não é documento autêntico), é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa (art.º 256-1, CP), pelo que o procedimento criminal prescreveria no prazo de 5 anos (art.º118-1-c), CP). Tendo tal prazo sido interrompido com a constituição de arguido em 21.10.2011 (art.º 121-1-a), CP), e reiniciado em 2013, data do despacho de arquivamento, o procedimento criminal extinguiu-se em 2018, estando prescrito o direito da A. à data da propositura da ação;
- O único crime que poderia ter sido imputado ao 3ºR., o que a Autora não fez, seria por este ter reconhecido, falsamente, a assinatura da Autora em 16.12.2010, o que consubstanciaria um crime de falsificação qualificado por se reportar a documento com igual força ao de documento autêntico (art.º 256-3, CP), com um prazo de prescrição de 10 anos (art.º 118-1-b), CP). Nada tendo sido alegado sobre a instauração de procedimento criminal quanto a este crime, não houve qualquer causa de interrupção na contagem do prazo de prescrição, pelo que, se constituísse crime teria prescrito 15.12.2020 (art.º 119-1, CP), antes da propositura da ação;
- Os referidos prazos de prescrição não são aplicáveis à apelante, uma vez que nenhuma intervenção teve na feitura e utilização da procuração em causa;
- Tendo em conta que no P. nº 4981/11.0TBCSC ficou provado que a apelante tinha vendido a fração em causa a terceiro, improcedendo o pedido de entrega da mesma à A., com a notificação da sentença aí proferida datada de 17.6.2016, a A. teve conhecimento do seu eventual direito a ser indemnizada, pelo que, à data da propositura da presente ação (23.5.2022), já tinha decorrido o prazo de 3 anos previsto no art.º 498º, nº 1, CC.
Apreciemos.
O pedido indemnizatório formulado pela A. na presente ação assenta na responsabilidade civil extracontratual dos RR. (art.º 483º do CC), sendo a causa de pedir complexa, integrada por factos ocorridos, num primeiro momento, em 2010 (em que a ilicitude do facto resulta de ilícito criminal), e, num segundo momento, em 2015 (em que a ilicitude do facto resulta de uma atuação que impede materialmente a A. de recuperar a fração, duma atuação em abuso de direito [1]), mas que contribuíram, conjuntamente, para o dano invocado e que a A. pretende ver indemnizado.
Dispõe o art.º 498º do CC que “1 – O direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respetivo prazo a contar do facto danoso. … 3 – Se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável. …”.
São pressupostos da responsabilidade civil extracontratual o facto ilícito do agente, a culpa deste, o dano e o nexo de causalidade entre a atuação do agente e o dano causado (art.º 483º, nº 1 do CC).
Como escrevem Pires de Lima e Antunes Varela, in CC Anotado, Vol. I, 2ª ed. rev. e act., pág. 437, para o começo do prazo de 3 anos “não é necessário que o lesado tenha conhecimento da extensão integral do dano (…), pois pode pedir a sua fixação para momento posterior, nem é necessário que conheça a pessoa do responsável, pois não deve admitir-se que a incúria do lesado em averiguar quem o lesou e quem são os responsáveis prolongue o prazo de prescrição. O que é necessário para começo da contagem do prazo é que o lesado tenha conhecimento do direito que lhe compete (…)”.
A razão de ser do nº 3 do artigo 498º do CC é a necessidade de adaptar o pedido de responsabilidade civil à ação penal, considerando os casos em que, por força do princípio da adesão, aquele pedido é deduzido no contexto desta, não fazendo sentido que o direito do titular à indemnização civil (a exercer no processo criminal) pudesse ser afetado pela prescrição quando estivesse ainda a decorrer o prazo de prescrição do procedimento criminal, que, em certos casos, é mais longo do que o fixado no nº 1 do artigo 498º do CC.
No caso, o tribunal recorrido aplicou o prazo (mais longo) de prescrição penal (de 10 anos – art.º 118º, nº 1, al. b) do CP), por poder o ilícito configurar a prática de um crime de falsificação qualificado por se reportar a documento com igual força ao de documento autêntico, punível com uma pena de prisão até 5 anos (art.º 256º, nº 3, do CP).
Para beneficiar do alongamento do prazo de prescrição tem o lesado de alegar factualidade integradora do respetivo tipo de crime, não sendo suficiente a possibilidade de, em abstrato, a conduta imputada integrar tipo criminal, e a A. alegou factualidade que permite integrar a conduta ilícita do 3º R. no crime de falsificação qualificado (art.º 256º, nºs 1, al. d), do CP) por se reportar a documento com igual força ao de documento autêntico (nº 3), nos art.ºs 3º e 6º da PI, pelo que o prazo prescricional a ponderar seria o referido pelo tribunal recorrido.
A prescrição, forma de extinção da obrigação, confere ao devedor o poder de se recusar a cumprir (art.º 304º, nº 1 do CC).
Tem o seu fundamento na exigência de promover o exercício oportuno dos direitos e a sanção da inércia ou da negligência injustificada do credor.
Assim sendo, entre os princípios gerais que informam o instituto da prescrição contam-se os princípios de que o prazo de prescrição só começa a correr quando o direito puder ser exercido (art.º 306º do CC) e de que a prescrição não deve correr se o credor não tem possibilidade de agir (art.º 321º do CC).
No caso sub judice, os factos que ocorreram em 2010 deram origem a procedimento criminal, que, aliás, se iniciou na sequência de auto de denúncia apresentado pela A. nesse mesmo ano.
Como vem sendo jurisprudência unânime dos tribunais superiores, a instauração de processo penal interrompe o prazo prescricional que se encontre em curso para a dedução do pedido de indemnização cível junto da jurisdição civil, e o novo prazo prescricional não se inicia enquanto o inquérito não for arquivado ou nele for deduzida acusação [2].
Como de forma elucidativa se sumaria no Ac. da RG de 28.6.2018, referido na nota 1, “… 2- Por força do princípio da adesão obrigatória do pedido de indemnização civil ao processo penal (art.º 71º do CPP), independentemente do processo penal ter sido instaurado oficiosamente pelo Ministério Público ou mediante queixa apresentada pelos demandantes cíveis ou por terceiros, ou da natureza pública, semipúblico ou particular do crime participado e investigado e de, nesse processo penal, os titulares do eventual direito indemnizatório se terem ou não constituído como assistentes ou de aí terem manifestado o seu propósito de deduzirem pedido de indemnização civil, a instauração desse processo penal interrompe o prazo prescricional que então se encontrava em curso para a dedução do pedido de indemnização cível junto da jurisdição civil e o novo prazo prescricional não se inicia enquanto o inquérito não for arquivado ou de nele ser deduzida acusação e destas últimas decisões se terem estabilizado na ordem jurídico-penal”.
O princípio plasmado no artigo 306º, nº 1 do CC impõe que o prazo de prescrição só comece a correr quando o direito puder ser exercido.
As necessidades de tutela que justificam esta regra fazem-se, naturalmente, sentir independentemente de quem seja o titular do direito de indemnização, sendo desrazoável que o prazo se iniciasse antes de o sujeito ter a possibilidade de exercer o seu direito.
Por outro lado, vigora no nosso ordenamento jurídico o princípio de adesão obrigatória em processo penal, mitigado por exceções.
Assim, dispõe o art.º 71º do CPP, com a epígrafe “Princípio de adesão”, que “O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei”.
E o art.º 72º do mesmo diploma legal, estatui que “1 - O pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado, perante o tribunal civil, quando: a) O processo penal não tiver conduzido à acusação dentro de oito meses a contar da notícia do crime, ou estiver sem andamento durante esse lapso de tempo; b) O processo penal tiver sido arquivado ou suspenso provisoriamente, ou o procedimento se tiver extinguido antes do julgamento; c) O procedimento depender de queixa ou de acusação particular; d) Não houver ainda danos ao tempo da acusação, estes não forem conhecidos ou não forem conhecidos em toda a sua extensão; e) A sentença penal não se tiver pronunciado sobre o pedido de indemnização civil, nos termos do nº 3 do artigo 82º; f) For deduzido contra o arguido e outras pessoas com responsabilidade meramente civil, ou somente contra estas haja sido provocada, nessa ação, a intervenção principal do arguido; g) O valor do pedido permitir a intervenção civil do tribunal coletivo, devendo o processo penal correr perante tribunal singular; h) O processo penal correr sob a forma sumária ou sumaríssima; i) O lesado não tiver sido informado da possibilidade de deduzir o pedido civil no processo penal ou notificado para o fazer, nos termos do nº 1 do artigo 75º e do nº 2 do artigo 77º”.
Resulta destes preceitos que a adesão do pedido civil ao processo penal é normalmente obrigatória (normalmente, o sujeito fica obrigado a deduzir o pedido indemnizatório no processo penal) e, excecionalmente, facultativa (excecionalmente, não existe aquela obrigação, podendo o sujeito deduzir o pedido indemnizatório, em separado, nos tribunais cíveis).
Mas mesmo nas situações excecionais em que o lesado pode deduzir pedido civil em separado, em causa está mera faculdade, entendendo-se que assiste ao lesado o direito de aguardar o desfecho do procedimento criminal [3].
O 3º R. foi constituído arguido (e foi ouvido à matéria criminal que lhe poderia ser imputada como resulta da certidão junta aos autos) no inquérito aberto com base na denúncia da A. - interrompendo-se o prazo de prescrição em curso (art.º 121º, nº 1, al. a), do CP) -, vindo a ser arquivado pelo Digno Magistrado do MP por despacho exarado a 05.06.2013, sendo, pois, a partir da data da notificação deste despacho ao arguido  que se iniciou a contagem do referido prazo de prescrição de 10 anos (art.º 121º, nº 2, do CP), o qual não se mostrava, ainda, decorrido à data da propositura da presente ação (23.5.2022), ao contrário do que sustenta a apelante.
Sustenta, porém, a apelante que o prazo de prescrição em causa não lhe é aplicável por não ter tido qualquer intervenção na falsificação da procuração, sendo, antes aplicável o prazo de 3 anos, que se deve contar a partir da data em que a A. teve conhecimento do seu eventual direito a ser indemnizada, o que ocorreu com a notificação da sentença proferida em 17.6.2016 no P. nº 4981/11.0TBCSC, no qual resultou provado que a apelante tinha vendido a fração em causa a terceiro, improcedendo o pedido de entrega da mesma à A., pelo que se mostrava prescrito o direito da A. à data da propositura da ação.
Mas sem razão.
Como referido supra, a causa de pedir na presente ação é complexa e consubstancia-se em factos ocorridos em momentos diferentes, de diferente natureza e com diferente autoria, mas que comungam entre si o mesmo resultado - o dano provocado à A. -, donde resulta que a responsabilidade recai solidariamente sobre os vários autores, todos respondendo pelos danos que hajam causado, conforme dispõe o art.º 497º, nº 1, do CC.
Como se escreveu no Ac. do STJ de 31.1.2007, P. 06A4620 (Sebastião Póvoas), consultável em www.dgsi.pt, embora em situação diferente, “Os co-lesantes ficam unidos na mesma responsabilidade através de um processo causal que torna o dano obra de todos. E será na causalidade que reside o critério de aferição da sua participação no evento lesivo. …. Sendo a responsabilidade solidária a extensão do prazo do nº3 do artigo 498º do Código Civil abrange os aqui réus, sujeitos ao regime da adesão do processo penal e, em consequência, à interrupção da prescrição do nº1 desse preceito durante o período da pendência deste.”.
Tal como o tribunal recorrido, perfilhamos o entendimento de que o nº 3 do art.º 498º do CC se aplica também aos responsáveis civis, sabendo que a questão é controvertida na doutrina e na jurisprudência.
E assim o entendemos porque existe responsabilidade solidária entre o(s) autor(es) do crime e o responsável civil, por via do processo causal subjacente ao dano, que a todos une no resultado.
Por outro lado, na ratio do preceito em causa, o alongamento do prazo prescricional está diretamente relacionado com a especial gravidade do facto ilícito, que determina, quer a sua tipificação como ilícito penal e a instauração do respetivo procedimento criminal, quer o alargamento do prazo prescricional previsto na norma cível, permitindo, desse modo, que a obrigação de indemnizar decorrente da aplicação das normas de direito civil não prescreva em momento anterior àquele em que se pode apurar a responsabilidade criminal, como já referimos.
Acresce que a letra do preceito não permite que sejam aplicados os diferentes prazos prescricionais em função do tipo de responsáveis, privilegiando, assim, as razões gerais subjacentes ao instituto da prescrição de certeza e segurança jurídicas e reação contra a inércia e desinteresse do titular do direito, mas também razões de fundo (aplicar a todos os responsáveis o mesmo prazo de prescrição), devendo entender-se que o legislador soube exprimir corretamente o seu pensamento quando apenas estabeleceu como único pressuposto do alargamento do prazo prescricional, a natureza criminal do facto, sendo certo que onde a lei não distingue, também o intérprete não deve distinguir (art.º 9º, nº 3 do CC).
Nesta conformidade, não nos merece censura a decisão do tribunal recorrido, que deve ser mantida, improcedendo a apelação.
As custas da apelação, na modalidade de custas de parte, são a cargo da apelante, por ter ficado vencida – art.º 527º, nºs 1 e 2, do CPC.
DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, mantendo-se, em consequência, a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
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Lisboa, 2024.01.23
Cristina Coelho
Ana Mónica Pavão
Ana Rodrigues da Silva
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[1] Com interesse sobre esta matéria, ver Elsa Vaz Sequeira, no Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das obrigações em geral, UCE, págs. 276/278.
[2] Entre outros, cfr. os Acs. do STJ de 8.4.1987, P. 0745576 (Lima Cluny), de 22.1.2004, P. 03B4084 (Ferreira de Almeida), de 3.10.2009, P. 206/09.7YFLSB (Salazar Casanova), de 22.5.2018, P. 2565/16.6T8PTM.E1.S2 (Alexandre Reis), da RL de 6.6.2017, P. 1032/11.9TVLSB.L1-1 (Manuel Marques), de 14.9.2017, P. 13681-16.4T8LSB.L1-6 (Anabela Calafate), da RP de 18.2.1992, P. 9140298 (Mário Ribeiro), da RC de 3.5.2011, P. 223/07.1TBPCV.C1 (Arlindo Oliveira), e 8.5.2019, P. 4637/17.0T8LRA-B.C1 (Emídio Santos), da RG de 28.6.2018, P. 4077/17.1T8GMR.G1 (José Alberto Moreira Dias), da RE de 25.10.2007, P. 577/07-2 (Maria Alexandra Santos), e de 2.10.2008, P. 1564/08-3 (Sílvio Sousa), todos em www.dgsi.pt.
[3] Como se escreveu no Ac. do STJ de 3.10.2009, referido na nota anterior, “… assiste ao lesado, que não quiser recorrer à ação cível em separado, o direito de aguardar o desfecho do procedimento criminal, não se podendo considerar que o direito à indemnização tem de ser exercido apenas porque se lhe abriu a faculdade de acionar civilmente em separado. 38. A não ser assim, converter-se-ia uma faculdade num ónus, impondo-se, por via interpretativa, uma sanção que a lei não quis impor, não se vislumbrando na lei que o efeito interruptivo decorrente do procedimento criminal instaurado cesse logo que ocorra a possibilidade de ser demandado o responsável civil em separado. 39. Coartar-se-ia desde logo ao lesado a possibilidade de exercer o pedido de indemnização no seio da ação penal que lhe permite beneficiar do amplo regime probatório que a lei processual penal faculta”.