Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
19861/22.6T8LSB.L1-7
Relator: ALEXANDRA DE CASTRO ROCHA
Descritores: INJUNÇÃO
NÃO OPOSIÇÃO
APOSIÇÃO DE FÓRMULA EXECUTÓRIA
CASO JULGADO
ACÇÃO DE ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/21/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÕES
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTES
Sumário: I – A nulidade a que alude o art.º 615º nº1 c) do Código de Processo Civil, decorrente de contradição entre os fundamentos e a decisão, apenas se verifica quando não existe qualquer nexo lógico entre aqueles e esta.
II – A nulidade a que se reporta o art.º 615º nº1 d) do Código de Processo Civil, decorrente de o juiz deixar de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, apenas se verifica se a questão tiver sido completamente omitida e não se, ainda que não mencionada expressamente, a mesma puder considerar-se abrangida pela argumentação e decisão proferidas.
III – A falta de dedução de oposição a um requerimento de injunção [a que foi aposta fórmula executória, por falta de oposição, em 6/12/2013] e a falta de dedução de oposição à execução fundada naquele requerimento não preenchem o conceito de caso julgado impeditivo de que, em acção autónoma, a autora (ali executada) peça a condenação da ré (ali exequente) a restituir-lhe as quantias indevidamente pagas mediante penhora efectuada nessa execução.
IV – A obrigação de restituição fundada em enriquecimento sem causa pressupõe a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: - existência de um enriquecimento;
- ausência de causa justificativa para esse enriquecimento;
- que o enriquecimento tenha ocorrido à custa do empobrecimento daquele que pede a restituição;
- que a lei não faculte ao empobrecido outro meio de ressarcimento.
V – Para que a parte seja condenada como litigante de má fé, é mister que não haja quaisquer dúvidas em qualificar a sua conduta processual como dolosa ou gravemente negligente.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO:
C… intentou a presente acção declarativa, com processo comum, contra Cofidis, pedindo que a R. seja «condenada a restituir à A. todas as quantias que já recebeu e as que venha ainda a receber à custa do património da A. e que excedam os montantes que legal e contratualmente dela tinha direito a haver em consequência da resolução do contrato de crédito, ou seja 12.663,86€ e respectivos juros de mora à taxa legal e juros compulsórios contados desde a apresentação do requerimento de injunção».
Alega que A. e R. celebraram entre si um contrato de mútuo, mediante o qual esta emprestou àquela determinada quantia, que a A. deveria restituir, acrescida de juros, em prestações mensais. Tendo a A. deixado, a dada altura, de proceder ao pagamento dessas prestações, veio a ser notificada da apresentação, pela R., de um requerimento de injunção, ao qual não deduziu oposição, vindo a ser-lhe aposta a fórmula executória. Posteriormente, a ora R. intentou contra a aqui A. uma acção executiva, tendo por título executivo aquele requerimento de injunção, sendo certo que a ora A. e ali executada não deduziu qualquer oposição. No decurso dessa acção, foi penhorada a pensão de reforma da aqui A., tendo a Sr.ª Agente de Execução adjudicado à aqui R. (e ali exequente) os valores penhorados, após o que extinguiu a execução. Ocorre que, mediante tal adjudicação, a R. já recebeu um valor muito superior àquele que lhe cabia contratualmente e que era devido por força do título executivo, pelo que deve ser condenada a restituir o excesso, com fundamento em enriquecimento sem causa.
A R. contestou, invocando a existência de caso julgado, face à não dedução de oposição quer à injunção, quer à execução, quer à penhora, bem como atenta a falta de reclamação relativamente à nota discriminativa apresentada pela Sr.ª Agente de Execução e em relação ao acto de adjudicação das quantias penhoradas. De qualquer forma, entende não se encontrarem preenchidos os requisitos da repetição do indevido, uma vez que os valores calculados pela Sr.ª Agente de Execução estão em conformidade com o capital devido e com a taxa de juro aplicável, não tendo ainda existido o pagamento integral e não havendo quaisquer pagamentos em excesso. Finaliza pedindo a condenação da A., como litigante de má fé, por ter deduzido pretensão que bem sabia não ter fundamento.
A A. pronunciou-se no sentido da improcedência da excepção de caso julgado e do pedido relativo à litigância de má fé. Pediu ainda, por sua vez, a condenação da R., como litigante de má fé, em multa e indemnização, por fazer do processo um uso reprovável, com o objectivo de enriquecer à custa da A..
Realizou-se audiência prévia, no decurso da qual foi proferida decisão que, julgando improcedente a excepção de caso julgado, concluiu com o seguinte dispositivo:
«Nestes termos, a presente acção deverá ser julgada totalmente procedente e por consequência a R. condenada a restituir à A. todas as quantias que já recebeu e as que venha ainda a receber à custa do património da A. e que excedam os montantes que legal e contratualmente dela tinha direito a haver em consequência da resolução do contrato de crédito, ou seja 12.663,86€ e respectivos juros de mora à taxa de 8% e juros compulsórios contados desde a apresentação do requerimento de injunção.
Custas pela Ré».
Não se conformando com esta decisão, dela apelou a A., formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões:
«1ª- De acordo com a fundamentação assente, a Ré tem direito a haver da A. o capital em dívida de 12.663,86€ que já resulta da aplicação da cláusula penal de 8%, juros de mora à taxa legal e juros compulsórios à taxa de 5%.
2ª- Porém a douta decisão declara inadvertidamente que a R. tem direito a juros de mora à taxa legal de 8%, contradizendo os referidos fundamentos.
3ª- Conduzindo à nulidade prevista no artigo 615º nº 1 al. c) do CPC.
4ª- A manter-se este dispositivo, a R. reteria indevidamente em seu poder a diferença entre a taxa de juros de mora legalmente devida pela A. (4%) e a taxa de 8% mencionada na decisão.
5ª- Do que resultaria violado o disposto no artigo 476º nº 1 do CPC.
6ª- Impondo-se a alteração da decisão no sentido de passar a constar a condenação da R. a restituir à A. todas as quantias que já recebeu e as que venha ainda a receber à custa do património da A. e que excedam os montantes que legal e contratualmente dela tenha direito a haver em consequência da resolução do contrato de crédito, ou seja 12.663,86€ e respectivos juros de mora à taxa de 4% e juros compulsórios contados desde a data da apresentação do requerimento de injunção.
Assim se fará
J U S T I Ç A !».
Não houve contra-alegações.
Igualmente inconformada com a sentença, dela interpôs recurso a R., formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões:
«1. Proferiu o Tribunal a quo despacho no sentido de julgar improcedente a excepção dilatória de caso julgado invocada pela Recorrente na sua Contestação, sendo que, para fundamentar tal decisão, limitou-se a afirmar que “(…) A exceção dilatória não se confunde com a autoridade do caso julgado; (…) Ora, nos presentes autos ainda não houve nenhuma decisão judicial que pudesse excluir a segunda acção. (…)”, sem, porém, fazer qualquer referência à verificação (ou não) da tríplice identidade a que se refere o artigo 581.º, do CPC, ou seja, a identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir.
2. O caso julgado constitui uma excepção dilatória, que tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de repetir ou contradizer uma decisão anterior – artigo 577.º, alínea i), e artigo 580.º, n.º 2, ambos do CPC.
3. Assim, a excepção de caso julgado tem em vista o efeito negativo de obstar à repetição de causas, implicando a tríplice identidade a que se refere o artigo 581.º, do CPC, ou seja, a identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir.
4. Ora, o litígio em análise já foi objecto de decisão judicial transitada em julgado no âmbito de um procedimento de injunção e no âmbito de uma acção executiva, sendo que a ora Recorrida, ali, respectivamente, Requerida e Executada, não deduziu oposição, nem, tão pouco, apresentou (na dita acção executiva) qualquer reclamação relativamente à nota discriminativa (com simulador para adjudicação de rendimentos periódicos) elaborada pela Sra. Agente de Execução e respectivo acto de adjudicação, pelo que pretende, com a presente acção, pôr em causa as anteriores decisões, uma vez que deixou precludir todos os prazos de defesa que a lei lhe confere.
5. Conclui-se, por isso, que no caso sub judice se verifica a excepção do caso julgado, prevista nas já citadas normas adjectivas, a qual, enquanto excepção dilatória (artigo 577.º, alínea i), do CPC) obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa, determinando a absolvição da Ré, ora Recorrente, da instância, uma vez que a presente causa é a repetição de uma outra já definitivamente julgada, tendo andado mal o Tribunal a quo ao ter julgado improcedente a excepção de caso julgado invocada pela ora Recorrente, na sua Contestação.
6. Ficou, assim, evidente que a decisão em crise fez uma incorrecta interpretação dos factos e desadequada aplicação do Direito, designadamente das citadas disposições legais (artigos 577.º, alínea i), 580.º e 581.º, todos do CPC), que violou, devendo, por isso, ser revogada e substituída por outra que julgue procedente a excepção de caso julgado invocada pela ora Recorrente, na sua Contestação.
7. Dito isto, entendeu o Tribunal a quo, na sentença por si proferida, que, estando estabelecido na cláusula 10.º do contrato de crédito o pagamento de uma penalidade de 8%, não poderá a Ré, ora Recorrente, peticionar a condenação em 24,72%, o que a Recorrente impugna, ao abrigo do disposto no artigo 640.°, n.º1, alínea a), do CPC.
8. Importa, primeiramente, dizer que, ainda que se entenda que não se verifica a excepção de caso julgado supra mencionada, estamos perante uma situação de autoridade do caso julgado, a qual nem sequer exige a coexistência das três identidades referidas no artigo 581.º, do CPC (nesse sentido, vide Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 24-11-2015, processo n.º 346/14.0T8PVZ.PT, disponível em www.dgsi.pt, Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 21-10-1997, in “CJ, Ano XXII, T1 – pág. 24”), porquanto, com a presente acção, existe uma tentativa da Recorrida de ultrapassar a “proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade de caso julgado é o comando de acção, a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição do processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição da decisão antecedente” (vide Miguel Teixeira de Sousa in “O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ 325, págs. 49 e ss).
9. Ora, “I. A autoridade de caso julgado formado por decisão proferida em processo anterior, cujo objecto se insere no objecto da segunda, obsta que a relação ou situação jurídica material definida pela primeira decisão possa ser contrariada pela segunda, com definição diversa da mesma relação ou situação, não se exigindo, neste caso, a coexistência da tríplice identidade mencionado no artigo 581º do Código de Processo Civil.(…)” - Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 13-09-2018, processo n.º 687/17.5T8PNF.S1, disponível em www.dgsi.pt (sublinhado nosso).
10. Ainda que assim não fosse, entende a Recorrente que o Tribunal a quo lavra num erro, quando refere que estando estabelecido na cláusula 10.º do contrato de crédito o pagamento de uma penalidade de 8%, não poderá a Ré, ora Recorrente, peticionar a condenação em 24,72% (sendo que a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto plasmada na sentença recorrida, no que tange à explicitação dos fundamentos que basearam tal decisão, bem como à ausência de indicação dos factos não provados, afigura-se, salvo o devido respeito, manifestamente insuficiente, não respeitando, por isso, o disposto no artigo 607.º, n.º 4, do CPC).
11. O título executivo é o requerimento de injunção, ao qual foi aposta fórmula executória no dia 06-12-2013 (e não o contrato), sendo que da análise do mesmo se verifica que os juros de mora são calculados à taxa anual de 24,72%, tendo, de resto, o Tribunal a quo dado como provado que, entre a A., ora Recorrida, e a R., ora Recorrente, foi estabelecido, em 2005, o contrato de crédito n.º 42555561237910, pelo qual a segunda emprestou à primeira um montante de €11.457,00, com juro à taxa anual de 24,72% (facto provado 1).
12. Por outro lado, da análise da cláusula 10.º, n.º 1 e n.º 2, do contrato de crédito, resulta que a penalidade única de 8% é aplicada aquando da resolução do contrato e visa substituir as penalidades devidas pela mora, não indicando a cláusula em questão que os juros moratórios se vencem à taxa de 8%.
13. De resto, analisando o extrato de conta junto aos autos pela R., ora Recorrente, com a sua Contestação, verifica-se que é ali referido no quadro que consta da página 2 que é cobrada uma “Comissão por Incumprimento Definitivo (8%)” de €935,29, sendo deduzidos €168,48 relativos à “Anulação das Comissões por atraso no pagamento” (conforme dispõe a cláusula 10.º, n.º 2, do contrato de crédito).
14. Do exposto resulta que, contrariamente ao entendimento do Tribunal a quo, da cláusula 10.º do contrato de crédito não resulta que a Ré não possa peticionar juros de mora à taxa de 24,72%, sendo que, conforme resulta do título executivo, vencem-se juros moratórios à taxa anual de 24,72%.
15. Assim sendo, na Fundamentação de Facto da sentença recorrida deverá constar dos factos provados que se vencem juros moratórios à taxa anual de 24,72%, conforme resulta do título executivo (requerimento de injunção).
16. Posto isto, pediu a Recorrente, na sua Contestação, que fosse julgada procedente, por provada, a excepção peremptória da não verificação da situação de cumprimento de obrigação inexistente, a que se reporta o n.º 1, do artigo 476.º, do CC, bem como que fosse a Recorrida condenada, nos termos do artigo 542.º, n.º 1, do CPC, tendo o Tribunal a quo omitido pronúncia relativamente a tais pedidos (artigo 615.°, n.º 1, alínea d), do CPC).
17. Relativamente ao primeiro pedido, pretende a Recorrida que a Recorrente “…seja condenada a restituir todas as quantias que já recebeu e as que venha ainda a receber à custa do património da A. que excedam os montantes que legal e contratualmente dela tinha direito a haver na sequência da resolução do contrato de crédito …”.
18. Nesse sentido, apresenta a Recorrida cálculos aritméticos em que os juros de mora são calculados à taxa de 4%.
19. Ora, conforme resulta do título executivo, os juros de mora são calculados à taxa anual de 24,72% (e não à taxa de 4%), pelo que as operações aritméticas efectuadas pela Recorrida na sua Petição Inicial, que servem de base ao seu pedido, estão erradas.
20. A nota discriminativa elaborada pela Agente de Execução na supra referida acção executiva (nota discriminativa junta pela Recorrida na sua petição inicial como Doc. 7), onde os juros de mora são calculados à taxa que consta do título executivo, indica, no respectivo simulador para adjudicação de rendimentos periódicos, o valor a ser pago pela Executada, ora Recorrida, desde a data da dita nota, à Exequente, ora Recorrente, dela constando os respectivos cálculos aritméticos.
21. Até ao momento, o valor ali indicado ainda não foi integralmente liquidado, razão pela qual a ora Recorrente não recebeu indevidamente qualquer quantia, devendo os ditos descontos na pensão da ora Recorrida prosseguir até ser atingido o montante que consta da nota discriminativa supra mencionada.
22. No que concerne ao seguindo pedido, entende a Recorrente que é altamente reprovável que a Recorrida tenha apresentada a Petição Inicial que deu origem aos presentes autos, entendendo a Recorrente que a Recorrida litigou de má-fé.
23. Na verdade, sabia a Recorrida que o litígio em análise já tinha sido objecto de decisão judicial transitada em julgado no âmbito de um procedimento de injunção e no âmbito de uma acção executiva, sendo que a ora Recorrida, ali, respectivamente, Requerida e Executada, não deduziu oposição, nem, tão pouco, apresentou (na dita acção executiva) qualquer reclamação relativamente à nota discriminativa (com simulador para adjudicação de rendimentos periódicos) elaborada pela Sra. Agente de Execução e respectivo acto de adjudicação, pelo que pretende a Recorrida, com a presente acção, pôr em causa as anteriores decisões, uma vez que deixou precludir todos os prazos de defesa que a lei lhe confere.
24. Sabia, também, a Recorrida que, conforme resulta do título executivo, os juros de mora são calculados à taxa anual de 24,72% e não, conforme alega na sua Petição Inicial, à taxa de 4%, pelo que as operações aritméticas por si efectuadas na dita Petição Inicial, e que servem de base ao seu pedido, não podiam deixar de estar erradas.
25. O artigo 542.º, n.º 1, do CPC, dispõe que, “Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.”, sendo que, no caso concreto, encontram-se preenchidas as alíneas a) e d), do n.º 2, do artigo 542.º, do CPC, pelo que deverá a Recorrida ser condenada, nos termos do artigo 542.º, n.º 1, do CPC.
26. Ficou, assim, evidente que a sentença em crise fez uma incorrecta interpretação dos factos e desadequada aplicação do Direito, tendo, ainda, omitido pronuncia sobre dois pedidos efectuados pela ora Recorrente, devendo, por isso, ser revogada e substituída por outra que determine a improcedência da acção, e condene a Recorrida, nos termos do artigo 542.º, n.º 1, do CPC.
NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO QUE V. EXAS. SUPRIRÃO:
Deve ser, por V. Exas., concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, serem revogadas as decisões recorridas e substituídas por Acórdão que contemple as conclusões aqui elaboradas.
Assim se fazendo JUSTIÇA».
A A. contra-alegou, defendendo que, embora tenha existido omissão quanto aos pedidos de condenação por litigância de má fé, tal omissão deverá ser suprida oficiosamente, mas apenas mediante a condenação da R. nos termos que haviam sido peticionados pela A. na sua resposta. No mais, defende a improcedência do recurso interposto pela R..
QUESTÕES A DECIDIR
Conforme resulta dos arts. 635º nº 4 e 639º nº 1 do Código de Processo Civil, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, as quais desempenham um papel análogo ao da causa de pedir e do pedido na petição inicial. Ou seja, este Tribunal apenas poderá conhecer da pretensão e das questões [de facto e de direito] formuladas pelas recorrentes nas conclusões, sem prejuízo da livre qualificação jurídica dos factos ou da apreciação das questões de conhecimento oficioso (garantido que seja o contraditório e desde que o processo contenha os elementos a tanto necessários – arts. 3º nº 3 e 5º nº 3 do Código de Processo Civil). Note-se que «as questões que integram o objecto do recurso e que devem ser objecto de apreciação por parte do tribunal ad quem não se confundem com meras considerações, argumentos, motivos ou juízos de valor. Ao tribunal ad quem cumpre apreciar as questões suscitadas, sob pena de omissão de pronúncia, mas não tem o dever de responder, ponto por ponto a cada argumento que seja apresentado para sua sustentação. Argumentos não são questões e é a estes que essencialmente se deve dirigir a actividade judicativa». Por outro lado, não pode o tribunal de recurso conhecer de questões novas que sejam suscitadas apenas nas alegações / conclusões do recurso – estas apenas podem incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, salvo os já referidos casos de questões de conhecimento oficioso [cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 2022 – 7ª ed., págs. 134 a 142]. Finalmente, cabe, ainda, conhecer das questões suscitadas em sede de contra-alegações, relativas aos pressupostos processuais, conforme resulta do art.º 638º nº5 e 6, também do Código de Processo Civil, e relativas às mencionadas questões de conhecimento oficioso.
A esta luz, são as seguintes as questões que cumpre apreciar:
- nulidade da decisão recorrida, por contradição entre os fundamentos e a decisão;
- nulidade da decisão recorrida, por omissão de pronúncia;
- impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
- caso julgado;
- preenchimento dos pressupostos do enriquecimento sem causa e, em caso afirmativo, determinação dos montantes a restituir;
- litigância de má fé de ambas as partes[1].
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O tribunal recorrido considerou assentes os seguintes factos:
«1º - Entre a A. e a Ré foi estabelecido em 2005 o contrato de crédito nº 425555612379100, pelo qual a segunda emprestou à primeira um montante de 11.457,00€ com juro à taxa anual de 24,72%.
2º - Nos termos desse contrato o valor em dívida teria de ser reembolsado à Ré em prestações mensais por débito em conta bancária, sendo o montante de cada prestação correspondente a 230€.
3º - A partir de Fevereiro de 2013 a A. deixou de pagar as prestações do contrato, tendo sido advertida pela R. para proceder à regularização do mesmo no prazo de 15 dias efectuando o pagamento de 2.093,60€.
4º - Com a expressa advertência de que caso não fossem regularizados os valores em atraso o contrato de crédito seria resolvido e ao valor em dívida acresceria uma comissão por incumprimento definitivo no valor de 8% sobre o montante total em dívida.
5º - Posteriormente por carta de 1-6-2013 a R. notificou a A. de que em consequência do incumprimento das suas obrigações contratuais procedera à resolução do contrato pelo que em cumprimento do contrato de crédito e face ao direito da Ré à exigibilidade imediata da totalidade da dívida deveria a A. proceder ao pagamento imediato da mesma, acrescida de uma cláusula penal de 8% sobre o saldo em dívida, no montante total de 12.663,86€..
6º - Por carta de 3-9-2013 foi a A. notificada pela F… que fora encarregada de proceder à recuperação do aludido crédito no montante de 12.663,86€, sendo-lhe indicada a forma de proceder ao pagamento.
7º - Notificação essa que foi posteriormente repetida por carta de 19-09-2013.
8º - Não tendo efectuado o pagamento veio a A. a ser notificada da apresentação por parte da R. de um requerimento de Injunção para cobrança do capital de 12.663,86€, sendo-lhe indicado pelo Balcão Nacional de Injunções que dispunha do prazo de 15 dias para pagar ou deduzir oposição sob pena de:
a) Ser aposta fórmula executória no requerimento de injunção, tendo o requerente a faculdade de intentar acção executiva;
b) Passando ainda a dever juros de mora à taxa legal desde a data da apresentação do requerimento de injunção e juros à taxa de 5% ao ano a contar da data da aposição da fórmula executória.
9º - A A. não deduziu oposição à Injunção.
10º - Veio depois a R. a instaurar contra a A. a acção executiva nº 554/14.4TBTMR no Tribunal Judicial de Tomar, posteriormente remetida ao Juízo de Execução do Entroncamento – Juiz 3, tendo como título executivo o mencionado requerimento de Injunção.
11º - A A. foi citada para a dita acção executiva e mais uma vez não deduziu oposição quer à própria execução quer à penhora que recaiu sobre 1/3 da sua pensão de reforma paga pela Caixa Geral de Aposentações.
12º - Vindo a ser notificada pela srª Agente de Execução de que esta decidira adjudicar à exequente os valores penhorados e proceder à extinção do processo.
13º - Entretanto a CGA suspendeu o envio dos descontos para este processo executivo dado existir uma outra execução com penhora anterior do mesmo crédito e informou que os descontos para o processo nº 554/14.4TBTMR seriam reiniciados em 2020/02/01».
MÉRITO DO RECURSO
Da invocada nulidade da decisão recorrida
Pretende a A. que a sentença é nula, por contradição entre os fundamentos e a decisão [pois aplica uma penalidade de 8% sobre o capital de €12.663,86, quando nesse capital se encontra já incluída a referida penalidade], enquanto a R. defende que a mesma sentença é nula, por omissão de pronúncia, já que não conheceu da «excepção de não verificação da situação de cumprimento de obrigação inexistente», nem da litigância de má fé da A..
O tribunal recorrido, no despacho que admitiu o recurso, não se pronunciou, como lhe incumbia, sobre as nulidades arguidas (cfr. arts. 617º nº 1 e 641º nº 1 do Código de Processo Civil).
No entanto, considerando que os elementos constantes dos autos permitem o conhecimento daquelas nulidades, entende-se ser dispensável a baixa dos autos à 1ª instância (cfr. nº5, daquele art.º 617º)[2] e passar-se-á, de imediato, à sua apreciação.
Quanto à primeira das nulidades apontadas, temos que, de acordo com o art.º 615º nº 1 c) do Código de Processo Civil, a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Como refere o Prof. Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, vol. V, Coimbra, 1984, pág. 141), no caso previsto na mencionada alínea c), a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto.
Ora, no caso dos autos, não se verifica qualquer contradição lógica entre os factos provados, as normas invocadas e a decisão proferida – tendo sido considerado que se encontra em falta o pagamento de €12.663,86, entendeu-se que sobre esta quantia é aplicável uma taxa de juros de mora de 8%, pelo que, em consequência, a R. foi condenada a restituir à A. os montantes recebidos que excedam aquele valor e respectivos juros compulsórios.
Se, eventualmente, era outra a taxa aplicável, ou se era diversa a quantia devida em função das cláusulas legais e contratuais aplicáveis, tratar-se-á de uma questão de erro de julgamento (portanto, relativa ao mérito da decisão), que nada tem a ver com a questão da nulidade por contradição entre fundamentos e decisão.
Constata-se, pois, que a decisão proferida é a consequência lógica do raciocínio seguido pelo tribunal a quo, sendo certo que tal decisão é perfeitamente inteligível por um declaratário normal, pelo que não ocorre a nulidade apontada, improcedendo, nessa vertente, as conclusões do recurso da A..
Relativamente às nulidades apontadas pela R., há que chamar à colação o art.º 608º nº 2 do Código de Processo Civil, o qual dispõe que o juiz deve conhecer de todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, não podendo ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras. Assim, o juiz, na sentença, terá de resolver todas as questões que as partes suscitem ou que sejam de conhecimento oficioso, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Em consonância, nos termos do art.º 615º nº 1 d), do mesmo diploma, a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.
As questões a resolver «reportam-se aos pontos fáctico-jurídicos estruturantes da posição das partes, nomeadamente os que se prendem com a causa de pedir, pedido e excepções, não se reconduzindo à argumentação utilizada pelas partes em defesa dos seus pontos de vista fáctico-jurídicos, mas sim às concretas controvérsias centrais a dirimir». Já «a qualificação jurídica dos factos é de conhecimento oficioso (art.º 5º nº 3 do Código de Processo Civil), mas esse poder não pode deixar de ser conjugado com outras limitações, designadamente aquelas que obstam a que seja modificado o objecto do processo (integrado tanto pelo pedido como pela causa de pedir) ou as que fazem depender um determinado efeito da sua invocação pelo interessado[3]».
Constata-se, pois, que o invocado art.º 615º nº 1 d) diz respeito à necessidade de o tribunal conhecer do objecto do litígio. A nulidade a que se reporta aquela norma, decorrente de o juiz deixar de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, apenas se verifica se a questão tiver sido completamente omitida e não se, ainda que não mencionada expressamente, a mesma puder considerar-se abrangida pela argumentação e decisão proferidas.
No caso dos autos, a A. pretendia a restituição de determinadas quantias, com fundamento em enriquecimento sem causa, enquanto a R. defendia não se encontrarem preenchidos os pressupostos daquela restituição, porque não se verificou, por parte da A., o cumprimento de uma obrigação inexistente.
Em primeiro lugar, há que dizer que, atentas as regras do ónus da prova (cfr. art.º 342º do Código Civil), sendo «o cumprimento de uma obrigação inexistente» um dos pressupostos do enriquecimento sem causa, trata-se de um facto constitutivo do direito da A., cujo ónus da prova a esta competia. Assim, não cabia ao tribunal a quo conhecer da «inexistência de cumprimento de uma obrigação inexistente», mas sim da verificação do enriquecimento sem causa: os factos invocados pela R. a esse propósito não constituem qualquer excepção, mas sim impugnação dos factos cujo ónus da prova incumbia à A..
Ora, embora a fundamentação expendida seja mínima, o certo é que o tribunal claramente conheceu da questão em causa, uma vez que entendeu que a R. deve restituir à A. as quantias que recebeu e receberá em excesso, o que significa, sem margem para dúvidas, que conheceu da questão do enriquecimento sem causa, considerando preenchidos os seus pressupostos. Ou seja, embora não se tenha reportado expressamente ao enriquecimento sem causa, a sentença, ao condenar a R., resolve essa questão.
Não ocorre, assim, qualquer nulidade a este propósito, pelo que, nessa parte, improcedem as conclusões de recurso da R..
Quanto à litigância de má fé da A., já se verifica que a decisão recorrida é totalmente omissa e, portanto, tratando-se de questão da qual cabia conhecer em primeira instância (já que foi suscitada pela R., sendo uma controvérsia a dirimir), a sentença é nula, nessa parte, o que aqui se declara, nessa medida procedendo as conclusões recursivas da R..
Face a tal declaração, compete a este tribunal de recurso conhecer da questão omitida (cfr. art.º 665º do Código de Processo Civil), o que se fará infra[4].
Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Nos termos do art.º 662º nº1 do Código de Processo Civil, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
No caso dos autos, a R. pretende que se adite aos factos provados que «se vencem juros moratórios à taxa anual de 24,72%, conforme resulta do título executivo (requerimento de injunção)».
Ocorre que «na decisão sobre a matéria de facto apenas devem constar os factos provados e os não provados, excluindo-se afirmações genéricas, conclusivas e que contenham matéria de direito, as quais, acaso constem do elenco dos factos provados, dele devem ser excluídas, o que pode ser feito, oficiosamente, pelo tribunal de recurso», ao abrigo do disposto nos arts. 663º nº 2 e 607º nº 4 do Código de Processo Civil[5].
Como refere o Prof. Alberto dos Reis (in Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 4ª ed., págs. 206-207) «é questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior» e «é questão de direito tudo o que respeita à interpretação e aplicação da lei».  Ou seja, há matéria de direito «sempre que, para se chegar a uma solução, se torna necessário recorrer a uma disposição legal» e «há matéria de facto quando o apuramento das realidades se faz todo à margem da aplicação directa da lei, isto é, quando se trata de averiguar factos cuja existência ou não existência não depende da interpretação a dar a nenhuma norma jurídica». «Reduzido o problema à sua simplicidade, a fórmula é esta: a) é questão de facto determinar o que aconteceu; b) é questão de direito determinar o que quer a lei, ou seja, a lei substantiva, ou seja a lei de processo»[6].
Ora, para se determinar se se vencem, ou não, juros de mora e, em caso afirmativo, se a taxa é a pretendida pela R., é necessário recorrer a normas jurídicas onde se funde o vencimento dos juros e a taxa aplicável.
Trata-se, pois, de matéria de direito, a qual, como se disse, não deve constar dos factos provados.
Improcede, assim, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto e, nessa medida, improcedem as conclusões de recurso da R..
No entanto, por se encontrarem assentes[7], relevando para a decisão, nos termos do art.º 662º nº1 do Código de Processo Civil, aditam-se oficiosamente os seguintes factos à matéria provada:
14 - O contrato referido em 1 corresponde ao documento nº2 da contestação, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
15 - Desse documento consta a declaração de que a A. se obrigava a pagar, além das mensalidades relativas ao valor do empréstimo e juros, o valor do prémio de seguro acordado.
16 - As cláusulas 6, 7 e 10, das condições gerais, daquele documento, tem a seguinte redacção:
«


 


 ».
17 - O requerimento de injunção mencionado em 8 corresponde ao documento 1 da contestação, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
18 - No campo atinente à exposição dos factos daquele requerimento de injunção, a aqui R. alega que se encontra em dívida o capital de €12.663,86, a que acrescem juros de mora, contados desde 1 de Fevereiro de 2013, à taxa anual de 24,72%.
19 - Aquele capital de €12.663,86 corresponde à diferença da soma dos montantes emprestados, juros remuneratórios, prémios de seguro, cláusula penal e outros custos relativamente às quantias pagas pela A., conforme documento 3 da contestação elaborado pela R., que aqui se dá por integralmente reproduzido.
20 - Desse documento consta que, na data da resolução do contrato, se encontrava por pagar a quantia de €11.859,64, subtraída da anulação das comissões por atraso no pagamento, perfazendo o valor em falta um total de €11.691,16, que inclui todo o capital ainda não restituído, juros remuneratórios vencidos, prémios de seguro e «outros custos».
21 - Àquele valor por restituir a R. aplicou uma comissão de 8%, por incumprimento definitivo, no valor de €935,29, e IS sobre aquela comissão, no valor de €37,41.
22 - Atenta a ausência de oposição, o Sr. Secretário de Justiça, em 6/12/2013, apôs no requerimento de injunção a menção «Este documento tem força executiva».
23 - Na execução mencionada em 10 foi apresentado o requerimento executivo correspondente ao documento 4 da contestação, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
24 - A notificação mencionada em 12 corresponde aos documentos 7 da petição inicial e 5 da contestação, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
25 - Dessa notificação consta a «conta corrente discriminada da execução», com o cálculo do valor a ser pago pela executada, perfazendo um total de € 38.595,66, que inclui capital, juros e custas de parte.
26 - A executada não reclamou do acto da Sr.ª Agente de Execução referido em 12, 24 e 25.
27 - Até à data da contestação apresentada nestes autos, a R. havia recebido, através da penhora da pensão da executada na acção executiva referida em 10, pelo menos, a quantia de € 26.267,33.
28 - Na carta mencionada em 5, que a R. dirigiu à A., consta, além do mais, o seguinte:
« ».
Do caso julgado
Pretende a R. que o tribunal  não poderia ter conhecido do pedido, por se verificar a excepção de caso julgado ou, pelo menos de autoridade do caso julgado, uma vez que a A. não deduziu oposição ao requerimento de injunção, nem oposição à execução, nem oposição à penhora, e também não reclamou da liquidação efectuada pela Sr.ª Agente de Execução.
Vejamos.
Nos termos dos arts. 580º e 581º do Código de Processo Civil, o caso julgado pressupõe a repetição de uma causa, depois de a primeira ter sido decidida por sentença que já não admita recurso ordinário, visando-se evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior. Considera-se que se repete a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, havendo identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico e identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico.
Por outro lado, como se refere, entre outros, no Ac. RL de 28/2/2019 (proc. 18897/11, disponível em http://www.dgsi.pt), mesmo não ocorrendo aquela tríplice identidade, configura-se a aplicação da figura da autoridade de caso julgado, que «tem a ver com a existência de relações entre acções, já não de identidade jurídica (própria da excepção de caso julgado), mas de prejudicialidade entre acções, de tal ordem que julgada, em termos definitivos, uma certa questão em acção que correu termos entre determinadas partes, a decisão sobre essa questão ou objecto da primeira causa, se impõe necessariamente em todas as acções que venham a correr termos, ainda que incidindo sobre objecto diverso, mas cuja apreciação dependa decisivamente do objecto previamente julgado, perspectivado como relação condicionante ou prejudicial da relação material controvertida na acção posterior».
Em qualquer dos casos (excepção de caso julgado ou autoridade de caso julgado) é mister que exista uma decisão judicial prévia, transitada em julgado.
Ora, no caso dos autos, não se encontram preenchidos os pressupostos da excepção de caso julgado, ou sequer da autoridade do caso julgado, porque, desde logo, não existiu uma acção prévia em que tenha existido uma decisão judicial de mérito acerca da questão que aqui se aprecia [saber quais as quantias que eram devidas pela A. à R., em face do contrato entre ambas celebrado, e, em consequência, se foram efectuados pagamentos em excesso] ou acerca de uma questão com ela conexa.
Com efeito, no caso do procedimento de injunção, o requerimento ali apresentado pela aqui R. não foi submetido a qualquer apreciação judicial, antes tendo sido aposta, pelo Sr. Secretário Judicial do B.N.I., a fórmula executória, atenta a falta de dedução de oposição. Tal acto do Sr. Secretário é meramente administrativo, tendo como única consequência a formação de um título executivo extrajudicial, mas não constituindo qualquer decisão de mérito proferida por um órgão jurisdicional, sendo certo que a falta de oposição não tem qualquer consequência preclusiva relativamente aos fundamentos da oposição[8]. É que, sendo a injunção um título executivo formalizado por um acto de um secretário de justiça, num processo pré-judicial implementado por um credor contra o respectivo devedor, na sequência da omissão de oposição por parte do último, apesar de notificado com essa cominação, estamos perante um título executivo extrajudicial especial ou atípico. Assim sendo, a falta de oposição do requerido, embora releve do ponto de vista da aposição da fórmula executória no requerimento de injunção, não implica a existência de um acto jurisdicional de composição do litígio, pelo que a fórmula executória é insusceptível de assumir efeito de caso julgado ou preclusivo para o requerido (cfr. Salvador da Costa, A Injunção e as Conexas Acção e Execução, 4ª ed., págs. 150, 213, 214, 251, 252)[9].
Por outro lado, quanto à falta de oposição à execução e de oposição à penhora, é também clara a inexistência de qualquer decisão judicial, transitada em julgado, que confira efeitos a essa falta e, muito menos, que fixe a quantia devida pela A. à R.. Como se refere no Ac. STJ de 3/5/2023[10],«não existe no CPC um qualquer preceito legal que estabeleça o ónus de embargar e também não nos parece que se possa/deva afirmar que tal ónus é extraível, por interpretação, dos artigos 728.º/1 e 2 e 732.º/6 ambos do CPC.
Tanto mais que, numa tal tarefa interpretativa não pode perder-se de vista, como o TC vem considerando, que, “num processo equitativo, não podem aceitar-se efeitos preclusivos intensos sobre direitos essenciais das partes com base em regras pouco claras. Ou, dito de outro modo, quanto mais intenso é o efeito preclusivo (intensidade medida pela centralidade do direito afetado), mais exigente deve ser o intérprete com a clareza da regra na qual esse efeito se baseia, clareza que se há de buscar, antes de mais, na própria letra da lei, regra que visa evitar que o risco interpretativo seja desproporcionadamente alocado à parte, com sacrifício dos seus direitos processuais, e injustificadamente aliviado do lado do legislador, que tem o dever de sinalizar com clareza os efeitos desfavoráveis, principalmente a supressão de direitos processuais de grande importância.
E começamos por acentuar este aspecto – sobre a não consagração na lei processual dum ónus de embargar – por a solução a que se chegue ter que ser idêntica quer para o caso de, tendo-se deduzido embargos, não se haverem neles deduzido os meios de defesa que agora se vêm invocar quer para o caso de nem sequer se haverem deduzido embargos; e por, naturalmente, tal identidade de solução ser a consequência da existência dum ónus de embargar.
E se, em relação à 1.ª hipótese, ainda poderá ser invocado/interpretado o disposto no art.º 732.º/6 do CPC – isto é, pode ser invocado que foi proferida uma decisão de mérito nos embargos e que a mesma constitui, segundo a interpretação que possa ser feita de tal preceito, caso julgado quanto a tudo o que diga respeito à existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda – outro tanto não acontece em relação à 2.ª hipótese, em que, não tendo sido deduzido embargos, não existe uma qualquer decisão de mérito proferida nos embargos a que seja atribuída força de caso julgado material e que possa servir de fulcro e alicerce ao raciocínio segundo o qual todos os meios de defesa e tudo o que diga respeito à existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda (por não terem sido deduzidos embargos) não pode mais ser deduzido e discutido.
(…)
A seu propósito, ensinava o Prof. Anselmo de Castro que a acção executiva “existe para realizar o direito, com tanto se bastando e não para o declarar; logo, também esse fim não pode ser assinado à oposição e impor-se ao executado o ónus de a deduzir. A oposição está instituída, na e para a execução, tão só para os fins que a lei lhe fixa, quando o executado a queira deduzir, de suspender ou anular a execução e não para que em todo o caso seja tornado ou fique certo o direito do credor”. Acrescentado ainda que “para se ter como excluída a acção de restituição do indevido na falta de oposição seria preciso ver-se na acção executiva uma acção declarativa do direito a ela acoplada, de que a oposição à execução funcionasse como contestação, e não o pode ser, por nenhum pedido de declaração do direito comportar o pedido de execução. Ou ver na acção executiva uma provocatio ad agendum para declaração negativa do direito do credor, isto é, o exercício de uma acção declarativa provocada.
Na mesma linha de raciocínio, sustentava o Prof. Lebre de Freitas que, “(…) diversamente da contestação da acção declarativa, a oposição por embargos de executado, constituindo, do ponto de vista estrutural, algo de extrínseco à acção executiva, toma o carácter duma contra-acção tendente a obstar à produção dos efeitos do título executivo e (ou) da acção que nele se baseia. (…)
Constituindo petição duma acção declarativa e não contestação duma acção executiva, a propositura de embargos de executado não representa a observância de qualquer ónus cominatórios (ónus de contestação, ónus de impugnação especificada) a cargo do réu na acção declarativa. (…)
Mas, na medida em que os embargos de executado são o meio de oposição à execução idóneo à alegação dos factos que em processo executivo constituiriam matéria de excepção, o termo do prazo para a sua dedução faz precludir o direito de os invocar no processo executivo, a exemplo do que acontece no processo declarativo: enquanto neste o efeito preclusivo se dissolve, com a sentença, no efeito geral do caso julgado, tal não acontece no processo executivo, em que não há caso julgado, pelo que nada impede a invocação duma excepção não deduzida em outro processo. A decisão neste subsequentemente proferida não tem eficácia no processo executivo, mas pode conduzir à restituição ao executado da quantia conseguida na execução, pelo mecanismo da restituição do indevido. (…)”
Ora, a nosso ver, é justamente este entendimento (…) que está consagrado no actual 732.º/6 do CPC.
(…)
Não representando a oposição à execução uma contestação da acção executiva e não estando por isso sujeita aos ónus de contestação, de impugnação especificada e de preclusão, (…) a acção de restituição do indevido se devia ter sempre como admissível e acessível ao executado que, mesmo por negligência, não houvesse deduzido qualquer oposição.
(…) [Só] não seria assim – não seria admissível a acção de restituição do indevido – se a falta de causa da deslocação patrimonial (produzida na execução) invocada na acção de restituição do indevido tivesse como fundamento a mesma causa de pedir que já havia sido invocada na oposição deduzida à execução e que aí havia sido alvo de decisão de mérito (naturalmente, de improcedência).
(…)
A existência ou não dum ónus de embargar será sempre, a nosso ver, a chave da solução da questão sub judice, uma vez que é a partir da consagração de tal ónus de embargar que ocorre a preclusão dos fundamentos não invocados (ou a preclusão decorrente da não dedução de embargos), o que significa que, não existindo ónus de embargar, não ficam precludidos os fundamentos não invocados.
Em conclusão:
Decorre do que se acaba de expor que o resultado dum processo executivo não é imutável, que o acto satisfativo do credor (pagamento) na execução não goza de irrevogabilidade análoga à do caso julgado material; que o desfecho da execução não surte eficácia fora do processo executivo, obstando, é certo, a uma nova acção executiva, mas não impedindo a propositura, pelo executado, duma acção de restituição do indevido com um fundamento não discutido ou apreciado nos embargos opostos à acção executiva»[11].
Deste modo, atenta a não preclusão [pela falta de dedução de oposição à execução / à penhora] dos fundamentos invocados na presente acção pela A. (inaplicabilidade da taxa de juro pretendida pela R. e consequente existência de pagamentos indevidos), e face à inexistência de qualquer decisão judicial de mérito, transitada em julgado, que tenha incidido sobre tais fundamentos, tem de improceder a excepção de caso julgado / autoridade de caso julgado invocadas pela R. recorrente.
E o mesmo se diga a propósito da falta de reclamação do acto da Sr.ª Agente de Execução mediante o qual esta efectuou o cálculo da quantia em falta. Também aqui não existe qualquer decisão judicial transitada em julgado que fixe o montante da dívida exequenda. Efectivamente, o agente de execução exerce um conjunto de funções (art.º 719º do Código de Processo Civil) que não são materialmente judiciais, mas sim materialmente administrativas, não constituindo os seus actos o exercício do poder jurisdicional e, portanto, não faz sentido, relativamente a ele, falar-se  «em caso julgado, uma vez que se trata de instituto apenas aplicável às decisões judiciais[12]». Claro que, atenta a falta de impugnação, o acto da Sr.ª Agente de Execução se tornou definitivo, no sentido de que se trata de um caso estabilizado ou resolvido[13]. No entanto, tal acto não teve a virtualidade de definir as quantias em dívida por força da relação contratual de A. e R., nada tendo apreciado acerca disso, já que se limitou a efectuar simples cálculos aritméticos sem que se tenha pronunciado sobre a relação jurídica substancial e, por isso mesmo, tais cálculos apenas têm eficácia dentro do processo executivo.
Assim, improcedem todas as conclusões de recurso relativas à excepção / autoridade de caso julgado, devendo manter-se, nessa vertente, a decisão recorrida.
Do enriquecimento sem causa
Pretendia a A. que a R. fosse condenada a restituir-lhe os valores entregues mediante a penhora efectuada na acção executiva, no montante que exceda €12.663,86, acrescidos de juros de mora, à taxa de 4%, desde a data da apresentação do requerimento de injunção, e de 50% dos juros compulsórios, à taxa de 5%, desde a data da aposição da fórmula executória no requerimento de injunção.
Já a R. entende que os cálculos efectuados naquela acção se encontram em conformidade com o contrato celebrado e o título executivo, pelo que nada deve ser restituído.
Apreciando.
Nos termos do art.º 473º do Código Civil, «aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou», tendo a obrigação de restituir por enriquecimento sem causa, de modo especial, por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela[14], «a obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa ou locupletamento à custa alheia pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos:
a) É necessário, em primeiro lugar, que haja um enriquecimento. O enriquecimento consiste na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, seja qual for a forma que essa vantagem revista. Umas vezes a vantagem traduzir-se-á num aumento do activo patrimonial (preço da alienação de coisa alheia … recebimento de prestação não devida, porque a obrigação nunca existiu ou já havia sido cumprida ou fora cedida entretanto, … etc.); outras, numa diminuição do passivo (cumprimento efectuado por terceiro, na errónea convicção de estar obrigado a efectuá-lo), outras, no uso ou consumo de coisa alheia ou no exercício de direito alheio, quando estes actos sejam susceptíveis de avaliação pecuniária (…); outras, ainda, na poupança de despesas (…).
b) A obrigação de restituir pressupõe, em segundo lugar, que o enriquecimento, contra o qual se reage, careça de causa justificativa – ou porque nunca a tenha tido ou porque, tendo-a inicialmente, entretanto a haja perdido.
(…)
A causa do enriquecimento varia consoante a natureza jurídica do acto que lhe serve de fonte.
Assim, sempre que o enriquecimento provenha de uma prestação, a sua causa é a relação jurídica que a prestação visa satisfazer. Se, por exemplo, A entrega a B certa quantia para cumprimento de uma obrigação e esta não existe – ou porque nunca foi constituída, ou porque já se extinguiu ou porque é inválido o negócio jurídico em que assenta – deve entender-se que a prestação carece de causa.
(…)
Para saber se o enriquecimento criado por determinados factos assenta ou não numa causa justificativa […] trata-se de um puro problema de interpretação e integração da lei, tendente a fixar a correcta ordenação jurídica dos bens. Quando o enriquecimento criado está de harmonia com a ordenação jurídica dos bens aceite pelo sistema, pode asseverar-se que a deslocação patrimonial tem causa justificativa; se, pelo contrário, por força dessa ordenação positiva, ele houver de pertencer a outrem, o enriquecimento carece de causa.
(…)
Com vista a abranger todas as situações de enriquecimento injusto, poderá dizer-se que a falta de causa justificativa se traduz na inexistência de uma relação ou de um facto que, à luz dos princípios aceites no sistema, legitime o enriquecimento (…).
A falta de causa terá de ser não só alegada como provada, de harmonia com o princípio geral estabelecido no artigo 342.º, por quem pede a restituição. Não bastará para esse efeito, segundo as regras gerais do onus probandi, que não se prove a existência de uma causa da atribuição: é preciso convencer o tribunal da falta de causa (...).
c) A obrigação de restituir pressupõe, finalmente, que o enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição.
A correlação exigida por lei entre a situação dos dois sujeitos traduz-se, em regra, no facto de a vantagem patrimonial alcançada por um deles resultar do sacrifício económico correspondente suportado pelo outro. Ao enriquecimento injusto de uma pessoa corresponde o empobrecimento de outra.
(…)
O valor que, em qualquer dos casos, entra no património do enriquecido é o mesmo que sai do património do empobrecido.
(…)
No n.º 2 do artigo 473.º indicam-se exemplificativamente (…) casos especiais de enriquecimento sem causa. Cita-se, em primeiro lugar, o pagamento indevido, a que se referem os artigos 476.º a 478.º».
A restituição com base em enriquecimento sem causa tem natureza subsidiária, apenas podendo ocorrer se a lei não facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, se não lhe negar o direito à restituição e se não atribuir outros efeitos ao enriquecimento – cfr. art.º 474º do Código Civil.
Para o caso de cumprimento de uma obrigação inexistente (que constitui um caso particular da figura geral do enriquecimento sem causa), prevê o art.º 476º nº 1, também do Código Civil, que «o que for prestado com a intenção de cumprir uma obrigação pode ser repetido, se esta não existia no momento da prestação».
Finalmente, de acordo com o art.º 479º, do mesmo diploma, a obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa compreende tudo quanto se tenha obtido à custa do empobrecido.
Em suma, a obrigação de restituir fundada no instituto do enriquecimento sem causa pressupõe a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: a existência de um enriquecimento; que ele careça de causa justificativa; que o mesmo tenha sido obtido à custa do empobrecimento daquele que pede a restituição; que a lei não faculte ao empobrecido outro meio de ser restituído[15].
Vejamos se os pressupostos desta figura se encontram, ou não, preenchidos no caso dos autos.
Atentos os factos provados, não restam dúvidas de que, mediante a penhora efectuada na acção executiva que intentou contra a aqui A., a R. se encontra a receber pagamentos, assim obtendo um incremento patrimonial. Por outro lado, resultando tal incremento da penhora da pensão da A., é também claro que o mesmo é obtido à custa do empobrecimento desta. É ainda certo que, encontrando-se a execução extinta, a A. não pode ali reclamar a restituição de quaisquer quantias, não tendo, portanto, outro meio legal para obter a devolução do que tiver sido pago a mais. Resta, pois, averiguar se as atribuições patrimoniais efectuadas na execução a favor da aqui R. carecem, ou não, de causa.
O título executivo apresentado pela R. na execução foi um requerimento de injunção, com fórmula executória.
Nos termos do art.º 21º nº2, com referência ao art.º 13º d), do DL 269/98 de 1-9, e do art.º 10º nº5 do Código de Processo Civil, com base naquele título, o exequente podia pedir a quantia constante do requerimento de injunção, a taxa de justiça paga, juros de mora desde a data da apresentação do requerimento e juros à taxa de 5% ao ano a contar da data da aposição da fórmula executória. Relativamente aos juros de mora, não fazendo a lei referência à taxa legal, há que aplicar, caso exista e seja pedida, a taxa contratual - cfr. art.º 406º nº1 do Código Civil e Ac. RC de 10/9/2019[16]. No entanto, conforme já referimos supra, a A. não está impedida, nos presentes autos, de demonstrar que aquelas quantias não são devidas, em face da relação contratual que a liga / ligou à R..
Ora, quanto ao valor de capital constante do requerimento de injunção e peticionado na execução [€ 12.663,86], o mesmo não é posto em causa pela aqui A., pelo que nada há a apreciar acerca dele.
Já relativamente aos juros de mora, no requerimento de injunção a aqui R. reporta-se à taxa de 24,72% ao ano.
Ocorre que, compulsado o contrato celebrado, dele não consta a estipulação daquela taxa a título de juros moratórios. Com efeito, na cláusula 6ª, relativa ao «custo do crédito», estipula-se que este corresponde a uma taxa nominal anual de 16,8%, podendo, no entanto, a Cofidis rever e alterar a taxa de juros, avisando o mutuário por escrito dessa alteração (cfr. cláusula 7ª, sob a epígrafe «modificação do custo do crédito»). Trata-se, claramente, de uma taxa de juros remuneratórios (destinados a remunerar a R. pela disponibilização do capital à A. - cfr. art.º 1145º nº1 do Código Civil), que nada têm a ver com a mora.
Por outro lado, dos factos provados resulta que a R. veio a resolver o contrato celebrado com a A., tendo exigido o pagamento de todas as quantias já vencidas e não pagas (capital e juros remuneratórios) e do capital vincendo, não lhe sendo lícito exigir, sobre este último, o pagamento de juros remuneratórios (cfr. AUJ do Supremo Tribunal de Justiça de 25/3/2009).
Quanto aos juros de mora, refere a cláusula 10ª do contrato de mútuo que, caso não fosse efectuado o pagamento de uma prestação na data do seu vencimento, acresceria a cada prestação uma penalidade mensal de 4%. No entanto, em caso de resolução e recurso a Juízo (como ocorreu no caso dos autos), aquela cláusula 10ª nº2 prevê que são devidos:
1 - o capital vencido;
2 - os juros contratuais e encargos vencidos sobre aquele capital;
3 - o capital vincendo;
4 - uma penalidade única de 8% sobre todo o saldo em dívida, a título de cláusula penal, em substituição de todas as penalidades devidas pela mora;
5 - juros de mora, à taxa legal, sobre toda a dívida.
Assim, atenta esta cláusula e face aos factos provados, constata-se que pela A., nos termos dos arts. 406º nº1, 810º e 804º a 806º do Código Civil, era devido o pagamento das seguintes quantias atinentes ao contrato de mútuo celebrado:
a) € 11.691,16 de capital vencido e vincendo, juros remuneratórios vencidos, prémios de seguro e outras despesas - valor correspondente à soma de 1 + 2 + 3 supra;
b) € 972,70 de cláusula penal moratória (e respectivo IS) sobre a quantia referida em a) - valor correspondente ao ponto 4 supra;
c) juros de mora, à taxa legal (e não, como consta da sentença recorrida, à taxa de 8%), sobre a soma dos valores mencionados em a) e b); tais juros devem ser contados não (como consta do requerimento de injunção) desde 1/2/2013, nem (como pretende a A. e como consta de decisão recorrida) desde a data de apresentação do requerimento de injunção, mas sim, nos termos do art.º 805º nº1 do Código Civil, desde a data que a R. fez constar na interpelação da A. para pagamento daqueles valores (8 dias úteis após 1/6/2013, ou seja, 14/6/2013).
Aos juros de mora assim calculados acrescem juros compulsórios, de acordo com o art.º 829º-A nº4 do Código Civil e 21º nºs 2 e 3, com referência ao art.º 13º d), do DL 269/98 de 1-9, à taxa de 5%, dos quais metade pertencem à R..
Atento o raciocínio acabado de expender, constata-se que se provou que, face à relação jurídica contratual estabelecida entre A. e R. não existe qualquer causa justificativa para que esta receba daquela - conforme peticionou na execução e foi ali calculado, determinando-se a respectiva penhora - juros de mora, à taxa de 24,72%, sobre a quantia de €12.663,86, contados desde 1/2/2013, mas apenas juros de mora, sobre tal quantia, à taxa legal, contados desde 14/6/2013, acrescidos de juros compulsórios (à taxa de 2,5%[17]). Nessa medida, encontram-se preenchidos os pressupostos da obrigação de restituição, por enriquecimento sem causa.
Já não existe, porém, fundamento para que - como pretendia a A. e consta da decisão recorrida - a R. seja obrigada a restituir todas as quantias que tenha recebido em sede executiva e que excedam os €12.663,86 e respectivos juros moratórios e compulsórios, porquanto do montante calculado pela Sr.ª Agente de Execução constam valores relativos a custas de parte (incluindo taxas de justiça e adiantamento de despesas e honorários da Sr.ª Agente de Execução), cujo pagamento não se provou aqui carecer de justificação (ónus que cabia à A. e que a mesma não cumpriu).
Assim, procedem parcialmente ambas as apelações, devendo a decisão do tribunal a quo ser substituída por outra que condene a R. a restituir à A. os valores que, no âmbito da acção executiva identificada no ponto 10 dos factos provados e com base no título executivo também ali mencionado, tiver recebido e/ou vier a receber por efeito da penhora de bens da A., valores esses correspondentes à diferença entre os juros moratórios calculados, à taxa de 24,72%, sobre a quantia de €12.663,86 e contados desde 1/2/2013, e os juros moratórios devidos, à taxa legal, sobre aquela quantia de €12.663,86, contados desde 14/6/2013.
Da litigância de má fé
A. e R. imputam-se mutuamente a qualificação de litigantes de má fé.
De acordo com o art.º 542º nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, tendo litigado de má fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir. Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
«a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão».
Como se refere no Ac. TCAN de 30/4/2009[18], «Alberto dos Reis costumava caracterizar as lides, com referência à conduta do litigante, como lides cautelosas, lides simplesmente imprudentes, lides temerárias e lides dolosas – Código de Processo Civil Anotado, volume II, págs. 254 e ss. Ora, apenas esta última parece caber no conceito legal de litigância de má fé, embora a atitude dolosa [dolo directo, necessário, ou eventual] deva ser estendida até ao ponto de abranger a negligência grave, que convive paredes-meias, como é sabido, com o dolo eventual. Assim, para que se condene a parte como litigante de má fé não basta uma lide ousada ou uma conduta meramente culposa, sendo necessário, face ao manifesto gravame jurídico-social associado a tal condenação, que não haja quaisquer dúvidas em qualificar a conduta como dolosa ou gravemente negligente».
Ora, considerando que a divergência entre as partes se baseava em fundamentos exclusivamente jurídicos – sendo certo que a interpretação das normas aplicáveis é susceptível de entendimentos doutrinais e jurisprudenciais diversos –, entendemos que não pode considerar-se que A. e R., caso tivessem usado o grau de diligência exigível, poderiam ter tomado consciência da falta de fundamento (parcial) das suas pretensões e, consequentemente, não pode considerar-se que tenham agido com negligência grosseira (e, muito menos, com dolo).
É que, a não ser que estejamos perante uma interpretação da lei que é a todos os níveis evidente e uniforme (o que não acontece no caso dos autos), quando esteja em causa uma questão estritamente jurídica, «deve ser-se cauteloso, prudente e razoável na condenação por litigância de má fé», porque «a discordância na interpretação da lei, e na sua aplicação aos factos, é faculdade que não deve ser coarctada em nome de uma certeza jurídica»[19].
Não deve, pois, qualquer das partes nos presentes autos, atenta a falta de preenchimento do elemento subjectivo do art.º 542º do Código de Processo Civil, ser condenada como litigante de má fé.
DECISÃO
Pelo exposto, julgam-se as apelações parcialmente procedentes e, em consequência:
a) Declara-se nula a sentença, na parte em que omite o conhecimento da questão da litigância de má fé;
b) Substitui-se a decisão recorrida pela seguinte:
«1 – Condena-se a R. a restituir à A. os valores que, no âmbito da acção executiva identificada no ponto 10 dos factos provados e com base no título executivo também ali mencionado, tiver recebido e/ou vier a receber por efeito da penhora de bens da A., valores esses correspondentes à diferença entre os juros moratórios calculados, à taxa de 24,72%, sobre a quantia de € 12.663,86, contados desde 1/2/2013, e os juros moratórios devidos, à taxa legal, sobre aquela quantia de € 12.663,86, contados desde 14/6/2013.
2 – Absolvem-se as partes dos pedidos de condenação como litigantes de má fé.»
Custas em ambas as instâncias por A. e R., na proporção de 1/5 para a primeira e 4/5 para a segunda – arts. 527º do Código de Processo Civil e 6º nº2, com referência à Tabela I-B, do Regulamento das Custas Processuais.

Lisboa, 21-05-2024
Alexandra de Castro Rocha
Carlos Oliveira (vencido, conforme declaração infra)
Edgar Taborda Lopes

VOTO DE VENCIDO
Não concordo com a solução pugnada no presente acórdão por ter por boa a posição expressa no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15 de Dezembro de 2020 (Processo n.º 20509/19.1T8LSB.L1-7), no qual foi relatora a Sra. Juíza Desembargadora Carla Câmara, e no qual fui adjunto.
Concordo que a questão não se coloque em termos de caso julgado, no que se refere à mera aposição da fórmula executória pelo funcionário do Balcão Nacional de Injunções. No entanto, a partir do momento em que o devedor é citado para os termos da execução para, em prazo, deduzir oposição, seja nos termos do Art.º 728.º n.º 1 do C.P.C. (no caso de processo ordinário), seja nos termos do Art.856.º do C.P.C. (no caso de processo sumário), funciona o princípio da preclusão relativamente à possibilidade de invocação de exceções perentórias à obrigação exequenda. Doutro modo, aqueles preceitos perderiam todo e qualquer sentido prático, pondo-se em causa a segurança jurídica e permitindo-se a prática de atos inúteis no contexto do processo de execução.
Não tendo o devedor deduzido oportunamente, no prazo estabelecido pela lei, embargos de executado, deixando que fossem penhorados bens e que a execução fosse declarada extinta pelo pagamento, não poderia ser interposta ação declarativa com o propósito de reaver os valores que determinaram a extinção da obrigação exequenda. O princípio da preclusão deve ser entendido como exceção dilatória inominada que deve determinar a absolvição do réu da instância. Esta deveria ser, no meu entender, a decisão a tomar pelo Tribunal da Relação.
Carlos Oliveira



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[1] Note-se que, embora não tenha recorrido da sentença na parte em que omitiu o conhecimento da questão da litigância de má fé da R., a A. suscitou tal questão nas contra-alegações, sendo certo que a litigância de má fé é de conhecimento oficioso, pelo que pode ser apreciada por este tribunal de recurso, mas apenas quanto a uma eventual condenação em multa e já não quanto à indemnização, pois que esta depende de pedido (cfr. art.º 542º nº1 do Código de Processo Civil) e, nessa parte, face à ausência de recurso, a decisão transitou em julgado.
[2] Conforme refere António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª ed., pág. 215, «a omissão de despacho do juiz a quo sobre as arguidas nulidades ou sobre a reforma da sentença não determina invariavelmente a remessa dos autos para tal efeito, cumprindo agora ao relator apreciar se aquela intervenção se mostra ou não indispensável”.
[3] Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol I, 3ª ed.,pág. 782.
[4] Tornando-se desnecessária a notificação das partes para os termos do nº3 do citado art.º 665º, uma vez que nas alegações e contra-alegações ambas defenderam já que deve ser o Tribunal da Relação a apreciar a questão, em substituição da 1ª instância, e igualmente já se pronunciaram acerca do sentido em que entendem que a decisão deverá ser proferida (o que significa que aquela norma se encontra antecipadamente cumprida).
[5] Cfr. Ac. RP de 14/12/2022, proc. 2093/19, disponível em http://www.dgsi.pt.
[6] A este respeito pode ver-se, com interesse, o Ac. STJ de 1/10/2019, proc. 109/17, disponível em http://www.dgsi.pt.
[7] Quer mediante os documentos a que se alude nos pontos aditados, quer mediante acordo das partes.
[8] Note-se que o requerimento de injunção foi apresentado em 9/10/2013 e a fórmula executória foi aposta em 6/12/2013, pelo que, segundo o disposto no art.º 731º do C.P.C. [aplicável de acordo com a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do art.º 857º, pelo Ac. nº 264/2015 do Tribunal Constitucional], “além dos fundamentos de oposição especificados no artigo 729º, na parte em que sejam aplicáveis, podem ser alegados quaisquer outros que possam ser invocados como defesa no processo de declaração”.
[9] Poderia ser diversa a solução se o procedimento de injunção se tivesse desenrolado sob a égide da redacção dada ao DL 269/98 pela Lei 117/2019 de 13-9, prevendo o [novo] art.º 14º-A daquele diploma a existência de preclusões relativamente a determinados meios de defesa, caso não seja deduzida oposição:
«Artigo 14.º-A
Efeito cominatório da falta de dedução da oposição
1 - Se o requerido, pessoalmente notificado por alguma das formas previstas nos n.ºs 2 a 5 do artigo 225.º do Código de Processo Civil e devidamente advertido do efeito cominatório estabelecido no presente artigo, não deduzir oposição, ficam precludidos os meios de defesa que nela poderiam ter sido invocados, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
2 - A preclusão prevista no número anterior não abrange:
a) A alegação do uso indevido do procedimento de injunção ou da ocorrência de outras excepções dilatórias de conhecimento oficioso;
b) A alegação dos fundamentos de embargos de executado enumerados no artigo 729.º do Código de Processo Civil, que sejam compatíveis com o procedimento de injunção;
c) A invocação da existência de cláusulas contratuais gerais ilegais ou abusivas;
d) Qualquer excepção peremptória que teria sido possível invocar na oposição e de que o tribunal possa conhecer oficiosamente.»
[10] Proc. 1704/21, disponível em http://www.dgsi.pt.
[11] Neste sentido, pode ver-se também José Lebre de Freitas, Armando Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 3º, 3ª ed., págs. 475 e 478.
[12] Cfr. Ac. RG de 7/6/2023, proc. 633/16, disponível em http://www.dgsi.pt.
[13] Cfr. José Lebre de Freitas e outros, ob. cit., págs. 403 e 420.
[14] Código Civil Anotado, Volume I, 4ª ed., em anotação ao art.º 473º.
[15] Cfr. Ac. RC de 2/11/2010, proc. 1867/08, disponível em http://www.dgsi.pt.
[16] Proc. 5038/15, disponível em http://www.dgsi.pt.
[17] Já que os restantes 2,5% de juros compulsórios cabem ao IGFEJ - cfr. art.º 21º nº3 do DL 269/98.
[18] Proc. 01657/08, disponível em http://www.dgsi.pt.
[19] Cfr. Ac. RL de 18/1/2023, proc. 456/13, disponível em http://www.dgsi.pt.