Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
102/23.5TELSB-B.L1-3
Relator: CRISTINA ALMEIDA E SOUSA
Descritores: SUSPENSÃO TEMPORÁRIA E CONGELAMENTO DE OPERAÇÕES BANCÁRIAS
CONSTITUIÇÃO DE ARGUIDO
DIREITO DE DEFESA
CONTRADITÓRIO
INQUÉRITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/06/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: O acto de constituição de arguido é estranho ao procedimento de suspensão temporária e congelamento de operações financeiras regulado na Lei 83/2017 de 18 de Agosto.
Até à decisão de suspensão temporária das operações bancárias, nem sequer existe qualquer procedimento criminal, de resto, nem notícia do crime, mas apenas meras suspeitas assentes em determinados factos objectivos, actos ou negócios jurídicos aos quais a Lei associa riscos de serem ou terem sido instrumentos de branqueamento de capitais ou formas de financiamento de terrorismo. O procedimento conducente a tal suspensão insere-se no quadro das medidas cautelares prévias à instauração formal de um inquérito, em termos idênticos aos previstos nos arts. 241º a 261º do CPP.
Depois da decisão de congelamento, o que pode ser considerado como existente, é apenas um auto de notícia (para além da apreensão dos bens e valores, destinados a comprovar a prática dos crimes ou de branqueamento, ou de terrorismo e de outras provas documentais que tenham sido recolhidas e que constituirão meios de prova para o inquérito). Então, sim, dando início, formalmente, ao inquérito.
É precisamente para aferir da viabilidade da mera suspeita como uma real notícia de crime e da efectiva necessidade de se iniciar uma investigação criminal que o procedimento de suspensão temporária de operações financeiras existe e está, de resto, sujeito a normas especiais, próprias.
E a decisão de congelamento, depois de aferida a viabilidade de instauração do procedimento criminal, caracteriza-se pela sua aptidão para impedir ou interromper o circuito trifásico de reciclagem (integração, ocultação e integração) dos bens ou vantagens patrimoniais resultantes de factos típicos e ilícitos das espécies previstas no art.º 368º A nº 1 do Código Penal e pela sua indispensabilidade, no confronto ou comparação com outras medidas legais disponíveis.
Atenta a sua peculiar natureza jurídica, preventiva, repressiva, cautelar e provisória das medidas preventivas previstas nos arts. 48º e 49º da Lei 83/2017 de 18 de Agosto, o carácter urgente das finalidades de cessação de actividades criminosas altamente organizadas ou especialmente violentas que prossegue, as quais postulam um regime jurídico excepcional, as garantias de defesa ficam restringidas à notificação das decisões jurisdicionais que forem sendo proferidas, à possibilidade de apresentação de contraprova que possa demonstrar que as suspeitas determinantes da suspensão temporária das operações financeiras e/ou da sua prorrogação são infundadas, operando, por via do princípio «rebus sic stantibus» a alteração ou a revogação dessas decisões e o direito ao recurso.
Por conseguinte, nas questões de a suspensão e o subsequente congelamento das contas bancárias e acesso a cofres e correspondentes quantias monetárias terem sido decididos sem prévio contraditório e fora do âmbito de um inquérito formal e antes e à margem de qualquer acto de constituição de arguido, são da própria natureza do procedimento previsto nos arts. 47º a 49º da Lei 83/2017 de 18 de Agosto e não constituem qualquer violação seja de que garantia de defesa ou princípio constitucional, contendo-se nos limites da função modeladora do legislador ordinário, quanto ao equilíbrio que se impões estabelecer entre as garantias do processo justo e equitativo e do processo penal e os deveres do Estado de combater e reprimir formas mais graves, mais violentas e mais organizadas de criminalidade e de assegurar a paz social.
(sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
Por despacho proferido em 8 de Abril de 2024, no inquérito com o nº 102/23.5TELSB, no Juiz 3 do Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa, foi decidido o congelamento do saldo das contas bancárias:
i. Contas do BPI n.º 0-5233743.000.001 (EUR) e n.º 0-5233743.306.001 (USD), ambas tituladas por AA;
ii. Conta do BCP n.º 45474769239, titulada por BB;
iii. Conta do ABANCA com o IBAN PT......................., titulada por BB;
iv. Acesso aos cofres bancários do BCP com o n.º 1455 e com o n.º 1501, sitos junto da agência de Cascais ..., associados à conta n.º 45474769239, titulada por BB;
v. Contas do BPI nº 3-4642375.000.001, correspondente ao IBAN PT......................., e todas as contas associadas ao NUC 3- 4642375, tituladas por BB;
vi. Acesso aos cofres nº 67, 71 e 88 da agência do Banco BPI de Cascais-..., associados a contas do NUC 3-4642375, identificadas a fls. 1322;
Na mesma decisão foi declarada cessada, por inutilidade superveniente, a medida de suspensão temporária de operações bancárias relativas às referidas contas bancárias.
BB interpôs recurso deste despacho, tendo, para o efeito, formulado as seguintes conclusões:
I- A Recorrente encontra-se impossibilitada de movimentar quaisquer quantias a débito da sua conta bancária por ter sido determinada a suspensão da movimentação da sua conta bancária em Janeiro de 2023.
II- Desde essa data que a Recorrente tenta obter explicações formais quer por parte das entidades bancárias quer por quaisquer outras entidades que pudessem de algum modo esclarecer esta questão, nunca lhe tendo sido dadas quaisquer explicações formais por nenhuma das entidades envolvidas, nem alguma vez, apesar de todos os esforços, lhe foi dada a oportunidade de prestar depoimento e esclarecer o que houver a ser esclarecido, nomeadamente as quantias transferidas e debitadas das suas contas bancárias.
III- Desde Janeiro de 2023, altura em que foi impedida de movimentar a sua conta bancária, a Recorrente nada mais tem feito que pedir, implorar que a ouçam, dando-lhe a oportunidade de mostrar, explicar, esclarecer, nunca lhe tendo sido dada essa ou qualquer outra oportunidade.
IV- A Recorrente tem que aguardar o tempo que for necessário, e que não se alvitra quanto será, com as implicações necessariamente destruidoras em termos pessoais, familiares, emocionais, sociais e profissionais até que tudo se esclareça, o que não se pode aceitar.
V- E neste compasso de espera, sem qualquer possibilidade de intervenção nos presentes autos, a Recorrente é notificada do despacho de que ora se recorre, informando-a que a medida de suspensão temporária dos saldos das suas contas bancárias se encontrava cessada por inutilidade superveniente, determinando-se o congelamento do saldo das mesmas,
VI- Sem que sequer tenha sido determinada a sua constituição como arguida.
VII- A Recorrente tem actividades económicas concretas e a funcionar em Portugal há mais de 10 anos tendo sempre cumprido todos os requisitos legais.
VIII- Apresenta anualmente todas as declarações fiscais tendo residência fiscal em Portugal.
IX- Nunca a autoridade tributária levantou qualquer questão ou pediu quaisquer esclarecimentos.
X- Contrariamente ao que no despacho recorrido se afirma, todas as sociedades comerciais geridas pela Recorrente são actividades económicas sustentáveis e de grande utilidade pública, que criaram e mantêm 40 postos de trabalho, alguns para cidadãos ucranianos.
XI- Ressalve-se que algumas destas empresas, devido à actual situação económica, tiveram que ser reorganizadas em termos de actividade, sendo que, para este efeito foram acumulados fundos nas contas dos beneficiários que devido ao bloqueio das contas bancárias impossibilitaram a continuação da actividade prejudicando não só a família da Recorrente como a própria economia nacional.
XII- As transferências efectuadas foram feitas sob pressão das entidades bancárias que tomaram a decisão infundada de fechar as contas bancárias da Recorrente, que ao mesmo tempo viu recusada a sua pretensão de abrir novas contas bancárias nas entidades bancárias portuguesas devido à nacionalidade do seu companheiro ser Russa.
XIII- No que respeita ao facto de o Ministério Público vir afirmar que foram utilizados fundos das contas das empresas para satisfazer necessidades actuais é no mínimo confuso pois é evidente que estes fundos se destinam à realização das actividades das empresas. Será que o Ministério Público tem presente que os sócios e gerentes das sociedades comerciais não podem "deitar a mão" ao dinheiro das sociedades para despesas pessoais, por se tratar de patrimónios distintos?
XIV- A Recorrente poderia ter esclarecido todas as questões relativas às empresas, à sua actividade nas empresas em causa, ao património imobiliário e aos veículos e até relativamente ao seu companheiro AA, evitando que recaíssem sobre si tais suspeitas e ajudando a investigação mediante estes esclarecimentos comprováveis com documentação e outros meios de prova.
XV- Sem mais, optou-se por colocar a Recorrente numa situação absolutamente destruidora, colocando em causa a sua dignidade e até a sua própria sobrevivência.
XVI- A privação da liberdade financeira é também a privação total da liberdade da Recorrente.
XVII- Até ao presente, a Recorrente não foi constituída arguida, embora actualmente parece considerar-se recair sobre esta a suspeita de ter cometido os crimes indicados no despacho de que se recorre, ainda assim não foi chamada a prestar declarações, apesar de ter apresentado requerimento nesse sentido.
XVIII- A determinação de congelamento de saldo das contas bancárias tem a ver com novos instrumentos preventivos e repressivos criados para prevenir determinado tipo de crimes, nomeadamente o crime de branqueamento de capitais.
XIX- Sucede que, nos termos da Lei 83/17, de 18 de Agosto (Medidas de Combate ao Branqueamento de Capitais e ao Financiamento de Terrorismo), a decisão de suspensão de movimentação de saldo da conta bancária, ao abrigo dos artigos 48º nº3 alíneas a) e b) e 49º nº l e 2 constitui um meio de prova.
XX- Independentemente do que se afirmou acerca da grosseira ilegalidade da situação da Recorrente, viria mal ao "mundo" se fosse autorizado à Recorrente a abertura de conta(s) para onde fosse canalizado o seu vencimento mensal e não ficasse "congelado"?
XXI- Para que sejam tomadas as medidas em causa é imperativo que exista a suspeita da prática, nomeadamente, de um crime de branqueamento de capitais.
XXII- No caso concreto, e conforme despacho datado de ljun23 não recaem quaisquer suspeitas de a Recorrente ter cometido quaisquer tipo de crimes, nem tampouco que tal determinação possa constituir um meio de prova.
XXIII- Também a Lei 5/02 de 11 de Janeiro (Medidas de Combate à Criminalidade Organizada), que integra a medida de controlo de contas bancárias (art.4º), exige que existam suspeitas da prática de um crime (de catálogo) e de quem é ou são os seus agentes, exigindo-se fundadas suspeitas para a aplicação destas medidas.
XXIV- Exigindo-se que sejam aplicadas quando se mostrem necessárias, com grande interesse para a descoberta da verdade servindo as mesmas para apurar a origem e destino das quantias em questão, não podendo estas medidas subsistir se não existir fundado receio que as mesmas são de origem ilícita, mas provenientes dos actos ilícitos elencados no art.º 368º-A do CP, caso assim não seja não podem, não devem, não se pode aceitar que subsistam.
XXV- Não podendo também subsistir depois de alcançado o seu único propósito legalmente admissível - apurar a natureza das quantias.
XXVI- A decisão de congelamento da globalidade do saldo das contas da titularidade da Requerente é ilegal por violação do disposto no art.º 47º e na alínea b) do nº3 do art.º 48º, aplicável ex vi nº2 do artigo 49º, todos da Lei nº 83/2017 de 18 de Agosto, e do disposto no art.º 4º da Lei 5/02 de 11 de Janeiro.
XXVII- É necessário, para efeitos de aplicação da medida de congelamento em causa demonstrar que determinados montantes provieram de determinadas infracções concretamente identificadas, sendo claramente insuficiente desconfiar de alguma coisa e avançar para a aplicação de uma medida que bloqueia todos os montantes, sejam estes provenientes do que for.
XXVIII- Se a medida de suspensão temporária já era inadequada, o congelamento dos saldos das contas é inaceitável, e estas medidas não podem perdurar indefinidamente, aliás não deve perdurar mais que o tempo necessário para a alegada investigação, que no caso concreto não aceita sequer o depoimento da Recorrente, a não ser que esta medida, à semelhança da anterior mais não seja que um arresto preventivo encapotado, o que não se pode aceitar.
XXIX- Se efectivamente existe uma investigação, se existe uma suspeição quanto à Recorrente, esta já deveria ter sido notificada na qualidade de testemunha ou arguida, consoante o que se está a passar e que os envolvidos e sujeitos às medidas não sabem.
XXX- Porque têm de existir limites inultrapassáveis e quando se utiliza uma medida desta natureza, que envolve a liberdade das pessoas e a própria honra, há que ter em conta que a mesma deve manter-se pelo tempo estritamente necessário e ser o menos onerosa possível para os direitos pessoais.
XXXI- Congelar as contas bancárias da Requerente, privando-a de vários direitos fundamentais, é inaceitável e viola os princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade, entre outros.
XXXII- Não podem nem o Ministério Público nem o Tribunal a quo escudar-se na legislação de combate à criminalidade económico-financeira para fazer o que bem entende e pelo tempo que quiser, seja este qual for.
XXXIII- Nos termos da Lei nº 83/17, de 18 de Agosto (Medidas de Combate ao Branqueamento de Capitais e ao Financiamento de Terrorismo), a decisão de suspensão de movimentação de saldo da conta bancária, ao abrigo dos artigos 48º nº3 alíneas a) e b) e 49º nº l e 2 constitui um meio de prova.
XXXIV- Tal como o congelamento dos saldos das contas bancárias.
XXXV- As provas são um instrumento de descoberta da verdade material, que necessariamente têm de se inserir num processo/procedimento, que, dados os interesses envolvidos, não pode deixar de ter a natureza de processo penal, e, consequentemente, de estarem presentes as garantias dos cidadãos,
XXXVI- Sendo que, para que sejam tomadas as medidas em causa é imperativo que exista a suspeita da prática, nomeadamente, de um crime de branqueamento de capitais.
XXXVII- Também a Lei 5/02 de 11 de Janeiro (Medidas de Combate à Criminalidade Organizada), que integra a medida de controlo de contas bancárias (art.º 4º), exige que existam suspeitas da prática de um crime (de catálogo) e de quem é ou são os seus agentes, exigindo-se fundadas suspeitas para a aplicação da medida.
XXXVIII- Exigindo-se que sejam aplicadas quando se mostrem necessárias, com grande interesse para a descoberta da verdade servindo as mesmas para apurar a origem e destino das quantias em questão, não podendo estas medidas subsistir se não existir fundado receio que as mesmas são de origem ilícita, mas provenientes dos actos ilícitos elencados no art.º 368-A do CP,
XXXIX- Caso assim não seja não podem, não devem, não se pode aceitar que subsistam.
XL- Não podendo também subsistir depois de alcançado o seu único propósito legalmente admissível - apurar a natureza das quantias.
XLI- Para determinar o congelamento da totalidade dos saldos das contas bancárias sempre terá de se considerar existirem suspeitas de factos ilícitos, todavia, em primeiro lugar, há que questionar a titular dando-lhe oportunidade de responder, justificar o que se entenda ser justificável.
XLII- A legislação de combate à criminalidade organizada como a legislação de combate ao branqueamento de capitais devem ser utilizadas como instrumento de descoberta da verdade e não como instrumento de privação de direitos fundamentais.
XLIII- Congelar todas as contas bancárias da Recorrente, deixando-a com zero euros para sobreviver é inaceitável, tenebroso e viola os princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade, entre outros.
XLIV- Resulta cristalinamente, mormente da jurisprudência constante dos acórdãos da Relação de Lisboa 10jan2012 (pº 169/10.6TELSB-A.Ll-5;Relator: Neto Moura), e de 14fev2019 (Pº175/18.2TELSB.Ll-9; Relator Cristina Santana), e da Relação do Porto, de 21jun2017 (Pº 131/12.4TELSB-D.P1; Relator: António Gama), que inexistem, in casu, condições legais para se manter o bloqueio das suas contas.
XLV- Uma correcta e adequada avaliação da situação da Recorrente, conduz inexoravelmente a concluir que, como decorre daqueles arestos, nenhuma das situações justificadoras das medidas aplicadas se encontra presente, especialmente ao fim de um ano e meio de restrição total do acesso da Recorrente aos seus meios de subsistência.
XLVI- Assim, a decisão de congelamento da globalidade do saldo das contas da titularidade da Requerente é ilegal por violação do disposto no art.º 47º e na alínea b) do nº3 do art.º 48º, aplicável ex vi nº2 do artigo 49º, todos da Lei nº 83/2017 de 18 de Agosto, e do disposto no art.º 4º da Lei 5/02 de 11 de Janeiro.
XLVII- E, ainda, dos princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade, designadamente vertidos nos arts. 2º, 18º e 32º da Constituição da República.
XLVIII- A interpretação das normas supramencionadas com o sentido de permitir que um titular de contas possa estar indefinidamente sem acesso às mesmas, sem que sobre ele recaia suspeita da prática de crime e/ou sem que seja constituído arguido possa defender-se no processo e contribuir para a descoberta da verdade, causando- lhe um absoluto impedimento de movimentar até os saldos com origem no seu salário mensal, é grosseiramente inconstitucional por violação dos princípios e normas vertidos nos arts. 2º, 18º, 20º, e 32º da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que se requer:
a) seja revogado o Despacho recorrido, por ilegal;
b) seja de imediato determinado o desbloqueio das contas de a Recorrente é titular, ou
c) determinada a adopção de medida que permita que a Recorrente tenha acesso sem restrições aos saldos com origem no seu salário mensal, eventualmente em contas a abrir e para as quais tais verbas sejam canalizadas.
AA também interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
A- O presente recurso respeita à decisão de congelamento dos saldos das contas bancárias identificadas a fls. 1322, decisão que se entende ser nula por:
- por violação dos princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade, e da não discriminação em função do território de Origem, previstos nos artigos 2º, 13º, 18º e 32º da CRP.
- por falta de verificação dos requisitos que justifiquem a medida aplicada de congelamento das contas bancárias.
B- O Ministério Público, a 16/02/2023, ordenou a suspensão da movimentação da conta bancária do requerente, por, alegadamente, existirem suspeitas de factos suscetíveis de integrarem o crime de branqueamento de capitais, desde tal data que requereu a sua inquirição e constituição como arguido, para esclarecer todas e quaisquer dúvidas que o Ministério Público possa ter, o que o MP se recusa a fazer.
C- A conta bancária bloqueada é a única conta bancária que o recorrente dispõe em Portugal pelo que ter a mesma bloqueada implica que o mesmo esteja totalmente impedido do LIVRE acesso ao seu dinheiro, o que significa uma privação da sua liberdade.
D- Ou seja, o próprio Ministério Público entende não existirem indícios suficientes que justifiquem a constituição do recorrente como arguido, mas ao mesmo tempo priva a sua liberdade por mais de um ano, o que não se pode aceitar, este respeito deveria haver um entendimento análogo ao da limitação do tempo da prisão preventiva, tendo o Ministério Público obrigação de finalizar a investigação num prazo vaiável, e se não o fizer, pelo menos tem de devolver a pessoa à sua liberdade, uma vez que a liberdade individual não é apenas uma liberdade física, a privação da propriedade é igualmente um atentado contra a liberdade individual, e não pode subsistir indefinidamente.
E- Não se pode aceitar que o Ministério Publico prolongue no tempo a sua investigação, privando o Recorrente na sua liberdade, sem ter motivos suficientes para tal.
F- Para aplicar a medida de congelamento da conta é necessário que existam indícios da prática de crime, razão pela qual se o Ministérios Público, decorridos 14 meses de inquérito, recolheu indícios da prática de crime, como alega, não se entende que persista na recusa da inquirição do Recorrente como arguido para que o mesmo passa dissipar todas as dúvidas existentes.
G- Para sustentar a medida tomada, o despacho de fls. refere que o Ministério Público na sua promoção para sustentar a medida requerida alega "o recorrente é um cidadão russo, que exerceu cargos de responsabilidade política na Rússia (...)
H- Ou seja, a lei exige que o dinheiro seja proveniente ou esteja relacionado com a prática de atividades criminosas ou com o financiamento do terrorismo, e a este respeito a justificação do MP é que o Recorrente é um cidadão russo, como se tal facto, em si mesmo, fosse uma presunção de culpabilidade.
I- Essa alegação do MP revela uma visão racista e preconceituosa, uma vez que a referência à nacionalidade não foi referida com outro intuito que não seja o de associar o Recorrente ao regime Russo, e com isso estabelecer uma presunção de que o mesmo, em virtude de tal facto de torna suspeito de estar ligado a actividades ilícitas.
J- A assunção do MP que a nacionalidade do Recorrente o associa ao regime vigente no seu país de origem, bem como tal possa ser indício bastante de que os seus fundos financeiros estejam associados a uma actividade ilícita, é inadmissível no ordenamento jurídico português, violando princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da CRP.
L- O MP sustenta - dentro na mesma linha de pensamento - que o Recorrente exerceu cargos de responsabilidade política na Rússia, sendo que o Recorrente não tem qualquer função pública na Rússia há mais de 12 anos, razão pela qual, a menção a que "exerceu cargos de responsabilidade política na Rússia" não tendo relevância criminal, não poderá ter outra leitura que não seja, mais uma vez uma discriminação do Recorrente pela sua origem.
M- O tribunal ao impedir o regular uso da conta bancária, viola, igualmente, e o princípio da propriedade privada e à livre iniciativa privada e do princípio constitucional da proporcionalidade, constantes, respetivamente, dos artigos 62º nº l, 61º nº l e 18º nºs 2 e 3, ambos da CRP, devendo o mesmo ser revogado.
N- Acresce referir que o MP faz uma referência a que as empresas detidas pela família em Portugal não têm actividade, o que é, igualmente, totalmente falso, e seguramente não pode o MP ter dados no processo que suportem tal assunção.
O- O despacho é nulo por violação dos princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade, e da não discriminação em função do território de Origem, previstos nos artigos 2º, 13º, 18º e 32º da CRP
P- Sendo igualmente nulo por não se encontrarem preenchidos os requisitos legais para aplicação da medida de congelamento das contas bancárias.
Nestes termos e nos melhores de Direito que Vs. Exas mui doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser considerado procedente por provado, e em consequência ser revogado o despacho de congelamento dos saldos das contas bancárias identificadas a fls. 1322, por o mesmo ser ilegal.
Admitidos os recursos, o Mº. Pº. apresentou respostas a ambos.
Assim, na resposta ao recurso de BB, o Mº. Pº. formulou as seguintes conclusões:
1. Está em causa no presente recurso apenas a decisão de congelamento de saldos das seguintes contas / acesso aos cofres:
i. Conta do BCP n.º 45474769239, titulada por BB;
ii. Conta do ABANCA com o IBAN PT ..., titulada por BB;
iii. Acesso aos cofres bancários do BCP com o n.º 1455 e com o n.º 1501, sitos junto da agência de Cascais ..., associados a conta n.º 45474769239, titulada por BB;
iv. Contas do BPI n.º 3-4642375.000.001, correspondente ao IBAN PT ..., e todas as contas associadas ao NUC 3- 4642375, tituladas por BB;
v. Acesso aos cofres n.º 67, 71 e 88 da agência do Banco BPI de Cascais-..., associados a contas do NUC 3-4642375.
2. Como vem sendo unanimemente reconhecido pela jurisprudência, estamos (na medida de congelamento) perante um instrumento legal específico, de natureza cautelar, que apenas exige existência de indícios de que os fundos são provenientes ou estão relacionados com a prática de actividades criminosas e se verifique o perigo de serem dispersos na economia legítima, como acontece no caso concreto.
3. Tal instrumento legal destina-se apenas a prevenir ou a evitar o prosseguimento da actividade criminosa de branqueamento.
4. Do regime legal em causa e dos princípios que lhe subjazem decorre o consensual entendimento jurisprudencial da inaplicabilidade do regime previsto nos artigos 191º e ss do CPP, desde logo, a desnecessidade da prévia constituição de arguido para a aplicação da medida em causa e de prévio contraditório.
5. Por outro lado, a medida de congelamento de fundos prevista no art.º 49º nº 6 da Lei nº 83/2017 não é uma medida de coacção ou de garantia patrimonial, pelo que também não é aplicável o art.º 194º nº 4 do CPP.
6. A medida preventiva disciplinada pelo Lei 82/2017, de 17/08, não está, igualmente, dependente da verificação dos pressupostos de que dependem os meios de obtenção de prova disciplinados pelo art.º 181º do CPP, relativamente a apreensões.
7. O legislador exige, ainda assim, a sua conformidade com os princípios constitucionais da necessidade, adequação e proporcionalidade, atento o facto de estarmos perante uma medida restritiva de direitos, liberdades e garantias.
8. Tais princípios estão normativamente contemplados no momento da decisão judicial que determina a medida de congelamento, onde se afirmam ou não os respectivos pressupostos.
9. Resulta da decisão sob recurso, embora limitada pelo segredo de justiça, a verificação dos pressupostos legais para o decretamento da medida de congelamento foi apreciada, bem como a compatibilidade com tais Princípios, pelo que nenhuma censura merece, nesta parte, a decisão recorrida.
10. A Recorrente foi sempre notificada das decisões de confirmação e prorrogação de suspensão de operações bancárias, bem como da decisão de congelamento sob recurso, de onde resultam, ainda que de forma limitada, atenta a vigência de segredo de justiça, primeiro as suspeitas e depois os indícios existentes nos autos que fundamentaram essas mesmas decisões e os crimes em causa, não sendo, pois, verdade a sua afirmação de que “Nunca lhe foram quaisquer explicações formais por nenhuma das entidades envolvidas
11. Aliás, tal conhecimento dos fundamentos, primeiro, das decisões de suspensão de operações bancárias e, agora, de congelamento, fica bem patente da fundamentação do recurso a que agora se responde (e já ao anterior).
12. Ou seja, não se verifica ou está minimamente subjacente à decisão sob recurso (ou às anteriores de suspensão de operações bancárias), qualquer interpretação do art.º 49º da Lei nº 83/2017 de 18 de Agosto “no sentido de permitir que um titular de contas possa estar indefinidamente sem acesso às mesmas, sem que sobre ele recaia suspeita da prática de crime e/ou sem que seja constituído arguido em violação dos princípios e normas vertidos nos arts. 2º, 18º, 20º, e 32º da Constituição da República”, tal como invocado pela Recorrente na sua motivação que, aliás, tal como o faz agora e já o fez anteriormente, pode sempre “atacar” as decisões judiciais de que foi sempre sendo notificada, inclusive com partes das promoções, por via de recurso.
13. A decisão de congelamento impõe, de facto, uma restrição de liberdade para movimentar livremente fundos, no entanto, à Recorrente (e ao seu companheiro AA) foi já permitida a disponibilidade de fundos avultados que lhe permitirão, sem dificuldade, fazer face às suas despesas, mitigando claramente tal restrição, sendo certo e tal como já anteriormente ocorreu, poderá sempre a Recorrente solicitar autorização para realizar operações pontuais ao abrigo art.º 49º, n.º 5 da Lei n.º 83/2017, de 18/08.
14. AA é um cidadão russo, que exerceu cargos de responsabilidade política na Rússia (Vice-Ministro da Indústria e do Comércio da Rússia entre … e …) e mantém relação familiar com a Recorrente BB, tendo filhos em comum.
15. A Recorrente, por sua vez, controla diversas empresas cujas contas bancárias são alimentadas em exclusivo com fundos provenientes de AA — e, indirectamente, da Rússia —, sem que tais empresas tenham real actividade, servindo apenas para titular património imobiliário ou veículos de que aqueles são utilizadores/beneficiários ou detentores fiduciários.
16. As contas tituladas pela Recorrente BB foram sendo, quase em exclusivo, alimentadas por transferências provenientes de AA e objecto da decisão de congelamento (contra a qual este também se insurge em recurso autónomo).
17. No decurso do ano de 2022 (em datas próximas e posteriores ao início da guerra entre a Rússia e a Ucrânia), AA, companheiro da Recorrente BB transferiu avultadas quantias para uma conta em USD associada ao NUC 0-5233743 (objecto da decisão de congelamento) mais propriamente a conta BPI com o nº 0-5233743.306.001:
- Na data de 03-02-2022, fez transferir o montante de USD 2.000.000 de uma conta junto do RAIFFEISENBANK de Moscovo;
- Na data de 22-02-2022, fez transferir o montante de USD 1.000.000 de uma conta junto do RAIFFEISENBANK de Moscovo;
- Na data de 11-10-2022, fez transferir o montante de USD 3.000.000 a partir de uma conta junto do BANK GUTMANN AG, da Áustria, indiciando-se, no entanto, que tais fundos tivessem origem última em conta titulada pelo Recorrente domiciliada na Rússia, uma vez que, a informação que o próprio transmitiu ao BPI foi a de que tais fundos seriam creditados com proveniência na sua conta na Rússia (tal resulta expressamente da comunicação do BPI de fls. 2 e ss. dos autos).
18. Aquando da comunicação, o BPI comunicava a sua pretensão de encerrar as contas detidas por AA, tendo recebido do mesmo, na data de 06-02-2023, instruções para transferir os fundos da conta em USD para a conta em Euros associadas ao NUC 0-5233743 e ainda para realizar uma transferência de USD 500.000 para uma conta sita no Chipre.
19. Subsistem ainda fundos de elevado montante nas contas BPI associadas ao NUC 0-5233743 (€ 938.975,14 na conta nº 0-5233743.000.001, a que acresce um depósito a prazo de € 106.977,97 e o montante de USD 5.999.933,24 na conta n.º 0-5233743.306.001).
20. Já entre 2015 e 2021 AA havia feito transferências para a conta em euros associada ao mesmo NUC num montante total de cerca de € 13.000.000,00, as quais foram associadas à venda da participação do mesmo na entidade UNICORN CAPITAL PARTNERS, que era um fundo que detinha interesses em várias sociedades Industriais na Rússia.
21. AA foi ainda associado, como beneficiário final, à entidade BLAKESLY LIMITED, com sede no Chipre, que foi titular, entre 2014 e 2018, de contas no BPI associadas ao NUC 0-51 05843.
22. Nessa conta, titulada pela BLAKESLY LIMITED, foram recebidos fundos, com origem na Suíça, das entidades OGO-ROD SGPS e ALENCOM GROUP INC, que, em 2018, atingiram um total de cerca de €2.000.000,00. 
23. Verifica-se ainda que, em 2015 e 2016, a partir da referida conta da BLAKESLY LIMITED foram transferidos fundos, em benefício da sociedade nacional MIAN SGPS (NIPC: 510364420), para uma conta da mesma, junto do BPI, associada ao NUC 0-4859167.
24. Esta MIAN SGPS indicia-se ser detida pela CITERNE HOLDINGS LIMITED, sedeada no Chipre, que, por sua vez, é detida por uma PIANTA INVESTMENTS LTD, sedeada nas Ilhas Seychelles, a qual tem como beneficiário final o cidadão russo CC, filho de DD, que se encontra casado com a cidadã EE (nº 1320 das pessoas sancionadas na listagem anexa ao Regulamento (UE) nº 269/2014).
25.Verifica-se assim, ainda que por via indirecta, a ligação do AA à entidade MIAN SGPS, a qual, por sua vez, se encontra associada a pessoa que é alvo de sanções impostas pela União Europeia.
26. Em face das transferências recebidas directa e indirectamente de banco na Rússia na conta BPI de AA, a última já posterior ao inicio da guerra entre a Rússia e a Ucrânia (embora a data ou a data próxima da invasão - que estava a ser planeada desde, pelo menos, Novembro de 2021 - já seria do conhecimento das elites próximas do Governo Russo, como é o caso do companheiro da Recorrente, bem como as previsíveis sanções que seriam impostas), e da ligação societária do mesmo a uma sociedade controlada por familiares de pessoa sancionada, no caso a MIAN SGPS e a identificada EE, entendemos indiciar-se, desde logo, a pratica de crime de branqueamento associado a crime de violação de medidas restritivas.
27. Dos cerca de 20 milhões de euros que, entre 2015 e 2022, AA transferiu para as suas contas BPI associadas ao NUC 0- 5233743, foram identificados vários movimentos, ocorridos no decurso do ano de 2022, que revelam a circulação em. benefício da Recorrente BB, titular de contas junto do BPI associadas ao NUC 3-4642375, abertas a 27-04-2011, nas quais, em 2022, foram recebidas, como se referiu, diversas transferências avultadas ordenadas por AA.
28. Com efeito, a Recorrente BB, cidadã russa, residente em Portugal, pelo menos desde 2009, é titular de contas junto do BPI associadas ao NUC 3-4642375, abertas na data de 27-04-2011.
29. Verifica-se que, nessas contas junto do BPI tituladas pela Recorrente BB, foram recebidas, em 2022, as seguintes transferências ordenadas por AA:
- A 14-01-2022, €200.000,00;
- A 28-02-2022, € 2.500.000,00;
- A 14-03-2022, € 2.050.000,00.
30. Note-se que, tal como referido na conclusão 17, entre 03-02-2022 e 22-02- 2022, foram creditados na conta de AA (conta origem dos referidos fundos) USD3.000.000 de uma conta junto do RAIFFEISENBANK de Moscovo...
31. A Recorrente BB é, por sua vez, participante no capital social das sociedades PAVO GARDEN EDA e GRETTA VESTA SGPS, SA, afigurando-se que tem como sua sócia nas mesmas a referida entidade BLAKESLY LIMITED.
32. Através da referida GRETTA VESTA SGPS, a Recorrente BB participa ainda em várias outras sociedades nacionais, algumas das quais são utilizadas apenas para deter bens imobiliários, caso da BIENESTAR LDA e da CHIC TERRACE SA, e outras se encontram associadas a detenção e exploração de unidades ligadas à hotelaria e turismo, caso da SOBERHOUSE SA e da KMW SA, conexas com o designado HOTEL SENHORA DA GUIA, em Cascais.
33. Verifica-se que, quer a GRETTA VESTA SGFS quer a sua participada de maior valor, a SOBERHOUSE SA, apresentaram resultados líquidos negativos, pelo menos desde 2017, em sede das suas declarações de IRC.
34. Tal diferença entre os rendimentos próprios da Recorrente BB e os aportes de AA à mesma, e face à origem dos fundos recebidos e movimentados a partir da Conta BPI nº3-4642375.0.001, indicia que a mesma está a ser usada para permitir a circulação e a ocultação, através de investimentos em seu nome, de fundos recebidos de terceiros, mais propriamente de outros cidadãos russos da proximidade política deste último, nomeadamente, como já se referiu, DD, ex-Vice-Primeiro-Ministro da Rússia (1999-2000) e ex-Ministro da Indústria e EE, Vice-Primeira-Ministra da Rússia, através do filho do primeiro, CC.
35. A Recorrente BB procedeu à utilização da maior parte dos fundos recebidos de AA (referidos no ponto 29) na aquisição (indiciando-se que a título fiduciário como se verá adiante) de uma moradia sita em Cascais, tendo sido vendedora a sociedade CONVERSAS D’AVENIDA LDA, a quem a primeira realizou pagamentos, entre Março e Maio de 2022. no montante total de € 2.750.000.
36. Tal aplicação directa dos fundos recebidos de AA na aquisição de activos imobiliários, indiciam uma estratégia planeada de circulação e conversão dos fundos aportados do exterior por este.
37. Por via do encerramento das contas BPI, a Recorrente BB iniciou a transferência de fundos que detinha na conta à ordem junto do BPI (associadas ao NUC 3-4642375), o que fez nos seguintes montantes para contas abertas e tituladas pela primeira (em 28-02-2023, o montante de € 445.000,00 para a conta BCP nº 45474769239 e, no dia 01-03-2023, o montante de € 457.000,00 para a conta ABANCA com o IBAN PT...
38. A conta BCP n.º 45474769239 titulada pela Recorrente BB detinha apenas fundos com origem nas contas BPI da mesma e que haviam sido transferidos depois dos recebimentos com origem em AA (em 14-03-2022, o montante de 100.000,00€ e, em 10-06-2022, o montante de 200.000,00€).
39. A conta junto do ABANCA, acima referida, tinha apenas fundos recebidos da conta BPI e que têm a sua origem última no seu companheiro AA.
40. Em face da origem dos fundos recebidos e movimentados a partir da conta BPI n.º 3-4642375.000.001 de BB, entendemos que se indicia que os montantes recebidos de AA integram a prática de crime de branqueamento associado a crime de violação de medidas restritivas, para além de fraude fiscal.
41. Em 14/07/2022 AA adquiriu um apartamento T3 duplex e varanda no empreendimento Apartamentos Turísticos The Residences, no terceiro e quarto piso do edifício C na Freguesia de Albufeira.
42. Já em 22/11/2022 foi adquirido um imóvel sito na Rua do ..., n.º ..., Estoril, em nome de GG, filha menor do Recorrente AA e BB, nascida a 10/06/2009.
43. A aplicação directa dos fundos creditados em contas tituladas por AA, ou a este associadas (como as da Recorrente), na aquisição de activos imobiliários, indiciam, mais uma vez, uma estratégia planeada de circulação e conversão dos fundos aportados do exterior por este.
44. A recorrente BB, para além da referida participação nas pessoas colectivas GRETTA VESTA SGPS S.A. A., PAVO GARDEN LDA, BIENESTAR UNIPESSOAL LDA, CHIC TERRACE S.A., SOBERHOUSE ATIVIDADES HOTELEIRAS S.A., MAGNAMELODIA S.A. e KMW SOCIEDADE IMOBILIÁRIA E TURÍSTICA S.A., tem ainda intervenção HOTEL FAROL DESIGN e no HOTEL SENHORA DA GUIA CASCAIS BOUTIQUE.
45. HH é empresário da construção civil. Mantem conexão com entidades influentes e indivíduos da elite russa suspeitos de branqueamento de capitais e ocupa, actualmente, o cargo de Presidente do Conselho de Administração do grupo PIONEER que detém grande dimensão no sector da construção civil.
46. O conselho de administração do grupo PIONEER conta ainda com a intervenção do companheiro da Recorrente, AA e II.
47. HH adquiriu, em 2021, um imóvel no Algarve com o objectivo de se candidatar ao visto de Autorização de Residência para Investimento, tendo posteriormente optado por se candidatar ao visto para Actividade Altamente Qualificada (mudança que coincidiu com o anúncio por parte do Ministério dos Negócios Estrangeiros, em Março de 2022, de que os vistos Gold seriam suspensos para os cidadãos de nacionalidade russa).
48. HH é casado com JJ, que se encontra associada a vários veículos de luxo e aos imóveis sitos na Avenida ..., ... Estoril e na R ..., ..., ALCABIDECHE, MALVEIRA SERRA.
49. JJ e HH fundaram em 01/07/2022 a sociedade M-ESTATE, LDA (NIPC .........), a qual, em 29/05/2023, usaram para efectuar a compra do imóvel (referido na conclusão 35) onde residem no Estoril, à Recorrente BB q«e o adquiriu, logo após o aporte de fundos da conta AA que, por sua vez, tiveram a sua origem, em parte (USD 3.000.000) em conta junto do RAIFFEISENBANK de Moscovo, indiciando-se, pois, que o imóvel foi adquirido por esta a solicitação de AA e apenas enquanto fiduciária de HH e como forma de contornar as sanções em vigor, integrando, pois, a prática de crime de branqueamento associado a crime de violação de medidas restritivas, para além de fraude fiscal.
50. Apesar de se ter candidatado ao visto para Actividade Altamente Qualificada, indicia-se ainda que HH que não exerce qualquer actividade em território nacional.
51. O companheiro da recorrente, AA, foi Vice-Ministro do referido DD, entre … e ….
52. A Recorrente BB. por seu turno, indicia-se estar associada à farmacêutica de EE (que foi responsável pela gestão da pandemia na Rússia), denominada GENERIUM (uma das empresas que fabricava as únicas “vacinas COVID” (Sputnik V) autorizadas na Rússia e na qual o companheiro da Recorrente, AA, também terá participações).
53. EE é Vice-Primeira-Ministra da Rússia desde …, é alvo da Ficha de Pessoa Procurada emitida pela Republica Checa e é casada com DD, ex-Vice-Primeiro-Ministro da Rússia (…-…) e ex-Ministro da Indústria, pai de CC (proprietário de varias sociedades que operam no ramo imobiliário e que se indicia deter, igualmente, 8% da supra referida GENERIUM). Os três possuem ligações a uma rede de empresas e moradias de luxo em Cascais.
54. DD e CC são alvo de sanções do Canadá e da Ucrânia.
55. EE é, como se referiu, entidade sancionada pela UE (n.º 1320 das pessoas sancionadas na listagem anexa ao Regulamento (UE) nº 269/2014).
56. Tendo em conta o exposto e as referidas ligações, indicia-se que os fundos, que se suspeita pertencer, pelo menos em parte, a terceiros, mais propriamente a outros cidadãos russos da proximidade politica do companheiro da Recorrente, e que circularam pelas contas tituladas por AA e pela Recorrente BB sujeitas a medida de bloqueio nos autos, nomeadamente, as tituladas pela recorrente, tenham ligação a entidades sancionadas e/ou tenham sido movimentados em violação de medidas restritivas relativas ao conflito entre a Rússia e a Ucrânia.
57. Indiciam-se, assim, factos susceptíveis de integrar a prática de crimes de fraude fiscal qualificada, previsto e punido nos termos dos artigos 103º e 104º do RGIT e de violação de medidas restritivas, previsto e punido nos termos do artigo 28º da Lei n.º 97/2017, de 23 de Agosto, e que a(s) conta(s) bancária(s) em apreço é(são) utilizadas para receber e transferir tais quantias, conduta essa subsumível ao crime de branqueamento, previsto e punido nos termos do artigo 368º-A. do Código Penal.
58. Subsiste uma forte possibilidade de dissipação dos fundos pela economia legitima (na aquisição e imóveis e de participações sociais) e para contas no estrangeiro para fora do controlo das autoridades.
59. Ora, tendo sido atingido o limite do prazo de duração normal do inquérito, conforme art.º 49º nº 2 da Lei 83/2017, de 18 de Agosto, subsistindo (tendo até sido reforçados) os indícios que determinaram a aplicação da suspensão de operações nas contas e importando ainda realizar ainda diligências adicionais de recolha de prova, impunha-se a aplicação da medida de congelamento, prevista no art.º 49º, n.º 6 da mesma Lei 83/2017, em face do risco da dispersão dos valores em causa na economia ilegítima, pelo que nenhuma censura merece a decisão recorrida.
60. Por outro lado, resulta claramente da decisão sob recurso a avaliação da compatibilidade do decretamento da medida com os princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade, inexistindo, pois, qualquer violação dos artigos constitucionais invocados na motivação de recurso.
61. O decretamento da medida de congelamento impôs-se como sendo absolutamente necessária, adequada e proporcional, atenta a conversão das suspeitas iniciais em indícios de que os fundos resultam de actividades criminosas e a verificação do perigo dos mesmos virem ser a dispersos na economia legitima ou movimentados para comas no estrangeiro.
62. Pelo exposto, nenhuma censura merece a decisão recorrida.
E, na resposta ao recurso de AA, o Mº. Pº. concluiu:
1. Está em causa no presente recurso apenas a decisão de congelamento das contas do BPI n.º 0-5233743.000.001 (EUR) e n.º 0-5233743.306.001 (USD), tituladas pelo Recorrente AA.
2. A decisão de congelamento impõe, de facto, uma restrição de liberdade para movimentar livremente fundos, no entanto, ao Recorrente (e à sua companheira BB) foi já permitida a disponibilidade de fundos avultados que lhe permitirão, sem dificuldade, fazer face às suas despesas, mitigando claramente tal restrição, sendo certo e tal como já anteriormente ocorreu, poderá sempre o Recorrente solicitar autorização para realizar operações pontuais ao abrigo art.º 49º, n.º 5 da Lei n.º 83/2017, de 18/08.
3. Como vem sendo unanimemente reconhecido pela jurisprudência, estamos (na medida de congelamento) perante um instrumento legal específico, de natureza cautelar, que apenas exige existência de indícios de que os fundos são provenientes ou estão relacionados com a prática de actividades criminosas e se verifique o perigo de serem dispersos na economia legítima, como acontece no caso concreto.
4. Tal instrumento legal destina-se apenas a prevenir ou a evitar o prosseguimento da actividade criminosa de branqueamento.
5. Do regime legal em causa e dos princípios que lhe subjazem decorre o consensual entendimento jurisprudencial da inaplicabilidade do regime previsto nos artigos 191º e ss do CPP, desde logo a desnecessidade da prévia constituição de arguido para a aplicação da medida em causa e de prévio contraditório.
6. Por outro lado, a medida de congelamento de fundos prevista no art.º 49º nº 6 da Lei nº 83/2017 não é uma medida de coacção ou de garantia patrimonial, pelo que também não é aplicável o art.º 194º nº 4 do CPP.
7. A medida preventiva disciplinada pelo Lei 83/2017, de 17/08, não está, igualmente, dependente da verificação dos pressupostos de que dependem os meios de obtenção de prova disciplinados pelo art.º 181º do CPP, relativamente a apreensões.
8. O legislador exige, ainda assim, a sua conformidade com os princípios constitucionais da necessidade, adequação e proporcionalidade, atento o facto de estarmos perante uma medida restritiva de direitos liberdades e garantias.
9. Tais princípios estão normativamente contemplados no momento da decisão judicial que determina a medida de congelamento, onde se afirmam ou não os respectivos pressupostos.
10. Resulta da decisão sob recurso, embora limitada pelo segredo de justiça, que a verificação dos pressupostos legais para o decretamento da medida de congelamento foi apreciada, bem como a sua compatibilidade com tais princípios, pelo que nenhuma censura merece, nesta parte, a decisão recorrida.
11. O Recorrente foi sempre notificado das decisões de confirmação e prorrogação de suspensão de operações bancárias, bem como da decisão de congelamento sob recurso, de onde resultam, ainda que de forma limitada, atenta a vigência de segredo de justiça, primeiro as suspeitas, depois os indícios existentes nos autos que fundamentaram essas mesmas decisões e os crimes em causa, não sendo, pois, verdade a sua afirmação de que «O Recorrente não sabe quais os factos que motivam a existência do processo».
12. Aliás, tal conhecimento dos fundamentos, primeiro das decisões de suspensão de operações bancárias e, agora, de congelamento, fica bem patente da fundamentação do recurso a que agora se responde.
13. O Recorrente é um cidadão russo, que exerceu cargos de responsabilidade política na Rússia (Vice-Ministro da Indústria e do Comércio da Rússia entre ...) e mantém relação familiar com BB, tendo filhos em comum.
14. Esta última, por sua vez, controla diversas empresas cujas contas bancárias são alimentadas em exclusivo com fundos provenientes do Recorrente - e, indirectamente, da Rússia-, sem que tais empresas tenham real actividade, servindo apenas para titular património imobiliário ou veículos de que aqueles são utilizadores/beneficiários ou detentores fiduciários.
15. As contas tituladas por BB foram sendo, quase em exclusivo, alimentadas por transferências provenientes de AA e objecto da decisão de congelamento (contra a qual aquela também se insurge em recurso autónomo).
16. No decurso do ano de 2022 (em datas próximas e posteriores ao início da guerra entre a Rússia e a Ucrânia), o recorrente AA transferiu avultadas quantias para uma conta em USD associada ao NUC 0-5233743 (objecto da decisão de congelamento) mais propriamente a conta BPI com o nº 0-5233743.306.001:
- Na data de 03-02-2022, fez transferir o montante de USD 2.000.000 de uma conta junto do RAIFFEISENBANK de Moscovo;
- Na data de 22-02-2022, fez transferir o montante de USD 1.000.000 de uma conta junto do RAIFFEISENBANK de Moscovo;
- Na data de 11-10-2022, fez transferir o montante de USD 3.000.000 a partir de uma conta junto do BANK GUTMANN AG, da Áustria, indiciando-se, no entanto, que tais fundos tivessem origem última em conta titulada pelo Recorrente domiciliada na Rússia, uma vez que, a informação que o próprio transmitiu ao BPI foi a de que tais fundos seriam creditados com proveniência na sua conta na Rússia (tal resulta expressamente da comunicação do BPI de fls. 2 e ss dos autos).
17. Aquando da comunicação, o BPI comunicava a sua pretensão de encerrar as contas detidas pelo Recorrente AA, tendo recebido do mesmo, na data de 06-02-2023, instruções para transferir os fundos da conta em USD para a conta em Euros associadas ao NUC 0- 5233743 e ainda para realizar uma transferência de USD 500.000 para uma conta sita no Chipre.
18. Subsistem ainda fundos de elevado montante nas contas BPI associadas ao NUC 0-5233743 (€ 938.975,14 na conta n.º 05233743.000.001 a que acresce um depósito a prazo de € 106.977 e o montante de USD 5.999.933,24 na conta n.º 0-5233743.306.001).
19. Já entre 2015 e 2021 o Recorrente AA havia feito transferências para a conta em euros associada ao mesmo NUC num montante total de cerca de €13.000.000,00, as quais foram associadas à venda da participação do mesmo na entidade UNICORN CAPITAL PARTNERS, que era um fundo que detinha interesses em várias sociedades Industriais na Rússia.
20. O Recorrente foi ainda associado, como beneficiário final, à entidade BLAKESLY LIMITED, com sede no Chipre 2018, de contas no BPI associadas ao NUC 0-5105843.
21. Nessa conta, titulada pela BLAKESLY LIMITED, foram recebidos fundos, com origem na Suíça, das entidades OGO-ROD SGPS e ALENCOM GROUP INC, que, em 2018, atingiram um total de cerca de € 2.000.000,00.
22. Verifica-se ainda que, em 2015 e 2016, a partir da referida conta da BLAKESLY LIMITED foram transferidos fundos, em benefício da sociedade nacional MIAN SGPS (NIPC: 510364420), para uma conta da mesma, junto do BPI, associada ao NUC 0-4859167.
23. Esta MIAN SGPS indicia-se ser detida pela CITERNE HOLDINGS LIMITED, sedeada no Chipre, que, por sua vez, é detida por uma PIANTA INVESTMENTS LTD, sedeada nas Ilhas Seychelles, a qual tem como beneficiário final o cidadão russo CC, filho de DD, que se encontra casado com a cidadã EE (n.º 1320 das pessoas sancionadas na listagem anexa ao Regulamento (UE) nº 269/2014),
24. Verifica-se assim, ainda que por via indirecta, a ligação do Recorrente AA à entidade MIAN SGPS, a qual, por sua vez, se encontra associada a pessoa que é alvo de sanções impostas pela União Europeia.
25. Em face das transferências recebidas directa e indirectamente de banco na Rússia na conta BPI do Recorrente AA, a última já posterior ao início da guerra entre a Rússia e a Ucrânia (embora a data ou a data próxima da invasão - que estava a ser planeada desde. pelo menos, Novembro de 2021 - já seria do conhecimento das elites próximas do Governo Russo, como é o caso do Recorrente, bem como as previsíveis sanções que seriam impostas), e da ligação societária do mesmo a uma sociedade controlada por familiares de pessoa sancionada, no caso a MIAN SGPS e a FF, entendemos pratica de crime de branqueamento associado a crime de violação de medidas restritivas.
26. Dos cerca de 20 milhões de euros que, entre 2015 e 2022, o Recorrente AA transferiu para as suas contas BPI associadas ao NUC 0-5233743, foram identificados vários movimentos, ocorridos no decurso do ano de 2022, que revelam a circulação em benefício da referida BB, titular de contas junto do BPI associadas ao NUC 3-4642375, abertas a 27-04-2011, nas quais, em 2022, foram recebidas diversas transferências avultadas ordenadas pelo Recorrente AA.
27. Com efeito, a BB, cidadã russa, residente em Portugal, pelo menos desde 2009, é titular de contas junto do BPI associadas ao NUC 3-4642375, abertas na data de 27-04-2011.
28. Verifica-se que, nessas contas junto do BPI, tituladas por BB, foram recebidas, em 2022, as seguintes transferências ordenadas por AA:
- A 14-01-2022, € 200.000,00;
- A 28-02-2022, € 2.500.000,00;
- A 14-03-2022, € 2.050.000,00.
29. Note-se que, tal como referido na conclusão 16. entre 03-02-2022 e 22-02-2022, foram creditados na conta do Recorrente AA (conta origem dos referidos fundos) USD3.000.000 de uma conta junto do RAIFFEISENBANK de Moscovo...
30. BB (companheira do recorrente) é, por sua vez, participante no capital social das sociedades GRETTA VESTA SGPS, SA, afigurando-se que tem como sócia, nas mesmas a referida entidade BLAKESLY LIMITED.
31. Através da referida GRETTA VESTA KISLITSYNA participa ainda em várias outras sociedades nacionais algumas das quais são utilizadas apenas para deter bens imobiliários, caso da BIENESTAR LDA e da CHIC TERRACE associadas a detenção e exploração de unidades ligadas à hotelaria e turismo, caso da SOBERHOUSE SA e da KMW, SA conexas com o designado HOTEL SENHORA DA GUIA, em Cascais.
32. Verifica-se que, quer a GRETTA VESTA SGPS quer a sua participada de maior valor, a SOBERHOUSE SA, apresentaram resultados líquidos negativos, pelo menos desde 2017, em sede das suas declarações de IRC. 
33. Tal diferença entre os rendimentos próprios da BB e os aportes de AA à mesma, e face à origem dos fundos recebidos e movimentados a partir da Conta BPI nº 3-4642375.000.001, indicia que a mesma está a ser usada para permitir a circulação e a ocultação, através de investimentos em seu nome, de fundos recebidos de terceiros, mais propriamente de outros cidadãos russos da proximidade política deste último, nomeadamente, como já se referiu, DD, ex-Vice-Primeiro-Ministro da Rússia (...-…) e ex-Ministro da Indústria e EE, Vice-Primeira- Ministra da Rússia, através do filho do primeiro, CC.
34. BB procedeu à utilização da maior parte dos fundos recebidos de AA (referidos no ponto 28) na aquisição (indiciando-se que a título fiduciário como se verá adiante) de uma moradia sita em Cascais, tendo sido vendedora a sociedade CONVERSAS D’AVENIDA LDA, a quem a primeira realizou pagamentos, entre Março e Maio de 2022, no montante total de € 2.750.000,00.
35. Tal aplicação directa dos fundos recebidos de AA na aquisição de activos imobiliários, indiciam uma estratégia planeada de circulação e conversão dos fundos aportados do exterior por este.
36. Por via do encerramento das contas BPI, BB iniciou a transferência de fundos que detinha na conta à ordem junto do BPI (associadas ao NUC 3-4642375), o que fez nos seguintes montantes para contas abertas e tituladas pela primeira (em 28-02-2023, o montante de € 445.000,00 para a conta BCP nº 45474769239 e, no dia 01-03-2023, o montante de € 457.000,00 para a conta ABANCA com o IBAN PT... 
37. A conta BCP nº 45474769239 da BB detinha apenas fundos com origem nas contas BPI da mesma e que haviam sido transferidos depois dos recebimentos com origem em AA (em 14-03-2022, o montante de 100.000,00 € e, em 10-06-2022, o montante de 200,000,00 €).
38. A conta junto do ABANCA, acima referida, tinha apenas fundos recebidos da conta BPI e que têm a sua origem última no Recorrente AA.
39. Em face da origem dos fundos recebidos e movimentados a partir da conta BPI nº 3-4642375.000.001 de BB, entendemos que se indicia que os montantes recebidos do Recorrente AA integram a prática de crime de branqueamento associado a crime de violação de medidas restritivas, para além de fraude fiscal.
40. Em 14/07/2022 o Recorrente AA adquiriu um apartamento T3 duplex e varanda no empreendimento Apartamentos Turísticos The Residences, no terceiro e quarto piso do edifício C na Freguesia de Albufeira.
41. Já em 22/11/2022 foi adquirido um imóvel sito na Rua ..., nº ..., Estoril, em nome de GG, filha menor do Recorrente AA e BB, nascida a 10/06/2009.
42. A aplicação directa dos fundos creditados em contas tituladas pelo Recorrente AA, ou a este associadas (como as da sua companheira), na aquisição de activos imobiliários, indiciam, mais uma vez, uma estratégia planeada de circulação e conversão dos fundos aportados do exterior por este.
43. BB, para além da referida participação nas pessoas colectivas GRETTA VESTA SGPS S.A. A., PAVO GARDEN LDA, BIENESTAR UNIFESSOAL LDA, CHIC TERRACE S.A., SOBERHOUSE ATIVIDADES HOTELEIRAS S.A., MAGNAMELODIA S.A. e KMW SOCIEDADE IMOBILIÁRIA E TURÍSTICA S.A., tem ainda intervenção HOTEL FAROL DESIGN e no HOTEL SENHORA DA GUIA CASCAIS BOUTIQUE.
44. HH é empresário da construção civil. Mantém conexão com entidades influentes e indivíduos da elite russa suspeitos de branqueamento de capitais e ocupa, actualmente, o cargo de Presidente do Conselho de Administração do grupo PIONEER que detém grande dimensão no sector da construção civil.
45. O conselho de administração do grupo PIONEER conta ainda com a intervenção do recorrente AA e II.
46. HH adquiriu, em 2021, um imóvel no Algarve com o objectivo de se candidatar ao visto de Autorização de Residência para Investimento, tendo posteriormente optado por se candidatar ao visto para Actividade Altamente Qualificada (mudança que coincidiu com o anúncio por parte do Ministérios dos Negócios Estrangeiros, em Março de 2022, de que os vistos Gold seriam suspensos para os cidadãos de nacionalidade russa).
47. HH é casado com JJ, que se encontra associada a vários veículos de lua Avenida ..., ... Estoril e na R ..., ..., ALCABIDECHE, MALVEIRA SERRA.
48. JJ e HH fundaram em 01/07/202 LDA (NIPC .........), a qual, em 29/05/20 compra do imóvel (referido na conclusão 34) companheira do recorrente, BB, que o adquiriu, logo após o aporte de fundos da conta do Recorrente que, por sua vez, tiveram a sua origem, em parte (USD 3.000.000) cm conta junto do RAIFFEISENBANK de Moscovo, indiciando-se, pois, que o imóvel foi adquirido por esta a solicitação do Recorrente e apenas enquanto fiduciária de HH e como forma de contornar as sanções em vigor, integrando, pois, a prática de crime de branqueamento associado a crime de violação de medidas restritivas, para além de fraude fiscal.
49. Apesar de se ter candidatado ao visto para Actividade Altamente Qualificada, indicia-se ainda que HH que não exerce qualquer actividade em território nacional.
50. O recorrente AA foi Vice-Ministro do referido DD, entre … e ….
51. BB, por seu turno, indica-se estar associada à farmacêutica de EE (que foi responsável pela gestão da pandemia na Rússia), denominada GENERIUM (uma das empresas que fabricava as únicas “vacinas COVID (Sputnik V) autorizadas na Rússia e na qual o Recorrente AA também terá participações.
52. EE é Vice-Primeira-Ministra da Rússia desde ..., é alvo da Ficha de Pessoa Procurada emitida pela Republica Checa e é casada com DD, ex-Vice-Primeiro-Ministro da Rússia (...-…) e ex-Ministro da Indústria, pai de CC (proprietário de varias sociedades que operam no ramo imobiliário e que se indicia deter, igualmente, 8% da supra referida GENERIUM). Os três possuem ligações a uma rede de empresas e moradias de luxo em Cascais.
53. DD e CC são alvo de sanções do Canadá e da Ucrânia.
54. EE é, como se referiu, entidade sancionada pela EU (n.º 13201 listagem anexa ao Regulamento (UE) nº 269/2014).
55. Tendo em conta o exposto (embora de forma limitada atento o segredo de justiça) e as referidas ligações, indicia-se, pois, fortemente que os fundos, que se indicia pertencer a terceiros, mais propriamente a outros cidadãos russos da proximidade política do recorrente, e que circularam pelas contas sujeitas a medida de bloqueio nos autos, nomeadamente, as tituladas pelo recorrente AA e pela sua companheira BB, tenham ligação a entidades sancionadas e/ou tenham sido movimentados em violação de medidas restritivas relativas ao conflito entre a Rússia e a Ucrânia.
56. Indiciam-se, assim, factos susceptíveis de integrar a prática de crimes de fraude fiscal qualificada, previsto e punido nos termos dos artigos 103º e 104º do RGIT e de violação de medidas restritivas, previsto e punido nos termos do artigo 28º da Lei n.º 97/2017, de 23 de Agosto, e que a(s) conta(s) bancária(s) em apreço é(são) utilizadas para receber e transferir tais quantias, conduta essa subsumível ao crime de branqueamento, previsto e punido nos termos do artigo 368º-A, do Código Penal.
57. Subsiste uma forte possibilidade de dissipação dos fundos pela economia legítima (na aquisição e imóveis e de participações sociais) e para contas no estrangeiro para fora do controlo das autoridades.
58. Ora, tendo sido atingido o limite do prazo de duração normal do inquérito, conforme art.º 49.º, n.º 2 da Lei 83/2017, de 18 de Agosto, subsistindo (tendo até sido reforçados) os indícios que determinaram a aplicação da suspensão de operações nas contas e importando ainda realizar ainda diligências adicionais de recolha de prova, impunha-se a aplicação da medida de congelamento, prevista no art.º 49.º em face do risco da dispersão dos valores em causa na economia ilegítima, pelo que nenhuma censura merece a decisão recorrida.
59. O decretamento da medida de congelamento impôs-se como sendo absolutamente necessária, adequada e proporcional, atenta a conversão das suspeitas iniciais em indícios de que os fundos resultam de actividades criminosas e a verificação do perigo de os mesmos virem a ser dispersos na economia legítima ou movimentados para contas no estrangeiro.
60. O crime de violação de medida restritiva imposta pela Organização das Nações Unidas ou pela União Europeia encontra-se previsto desde 2002, tendo sido inicialmente consagrado nos arts. 2º e 3º da Lei 11/2002, de 16 de Fevereiro.
61. A partir de 2014, veio a ser concebido um regime para a aplicação e execução dessas mesmas medidas restritivas, no qual foi incluído o regime sancionatório aplicável à sua violação, surgindo assim a Lei 97/2017, de 23 de Agosto.
62. Ambos os dispositivos legais prevêem dois tipos penais.
63. A primeira forma de ilícito dirige-se à violação fundos e de operações sendo dirigida a quem, desrespeitando as sanções, colocar, directa ou indirectamente, à disposição são as identificadas nas resoluções ou regulamentos, quaisquer fundos ou recursos económicos que as mesmas possam utilizar ou dos quais possam beneficiar, ou que permitam executar transferências de fundos proibidas - forma hoje prevista no art.º 28.º, n.º 1 da Lei 97/2017, de 23 de Agosto.
64. A segunda forma de ilícito é dirigida à violação de outros deveres, reportando-se a quem, contrariando uma medida restritiva, estabeleça ou mantenha relação jurídica proibida com qualquer dos sujeitos identificados nas resoluções ou regulamentos, incluindo por via da aquisição ou aumento de participação em sociedade ou no controlo de imóvel - forma actualmente prevista no art.º 28.º, n.º 2 da Lei 97/2017, de 23 de Agosto.
65. Ambos tipos de ilícito integram na sua previsão a norma de carácter internacional que estabelece a medida restritiva.
66. Tratando-se de um regulamento da UE, como é o caso dos autos, uma vez que possui carácter geral, é obrigatório em todos os seus elementos e directamente aplicável, o mesmo constitui fonte imediata de deveres para os particulares, pelo que integra directamente os elementos do tipo legal de crime previsto na lei nacional.
67. Tal significa que o Regulamento (UE) nº 833/2014, do Conselho, não carece do prévio procedimento de aplicação que se encontra previsto nos art.º 6º e 7º da Lei 97/2017, conforme aliás decorre do art.º 1º da mesma Lei.
68. No caso da medida restritiva imposta pelo art.º 5.º-B -1 do Regulamento (UE) nº 833/2014, do Conselho, temos como destinatários de deveres as instituições financeiras, que ficam proibidas de aceitar depósitos (no sentido do art.º 1.º k) do mesmo Regulamento), e temos os nacionais russos ou pessoas ali residentes como sendo os titulares dos direitos restringidos, isto é, são estes que não podem transferir ou, de qualquer outra forma, colocar em Portugal quantias superiores, no seu total, a 100.000,00€.
69. O crime de violação de medidas restritivas pode ser cometido por qualquer desses destinatários de deveres ou titulares de direitos restringidos, bem como por qualquer pessoa que, de alguma forma, permita que um nacional russo, sem título de residência em Portugal, coloque no sistema financeiro nacional uma quantia superior a € 100.000,00 - não estamos portanto perante um crime de execução vinculada na forma ou subjectivamente limitado, isto é, de mão própria.
70. Estamos, pois, nos antípodas das conclusões H) a J) da motivação, entendendo ser evidente que os factos indiciados, na medida em que representam a colocação no sistema financeiro nacional de fundos (que se suspeitam de origem ilícita) no montante superior a € 100.000,00, suspeitos de serem titulados por cidadãos russos sem título de residência em Portugal, mas com utilização de uma conta em nome de pessoa com autorização de residência em Portugal, no caso o ora recorrente e a sua companheira, são susceptíveis de integrarem a prática do crime de violação de medida restritiva, previsto e punido no art.º 28.º, n.º 1 da Lei 97/2017, de 23 de Agosto, conjugado com o disposto no art.º 5.º-B, n.º 1, do Regulamento (UE) nº 833/2014, do Conselho, crime esse que, atenta a moldura penal, sempre seria, só por si, susceptível de ser ilícito precedente para efeito do crime de branqueamento de capitais, conforme art.º 368º-A - 1 do Cod. Penal
71. Existem, pois, de facto sanções em vigor aplicáveis, entre outros, a cidadãos de nacionalidade russa e entidades russas e a sua violação é susceptível de integrar, em abstracto, o crime violação de medidas restritivas, mas tal não tem subjacente qualquer presunção de culpabilidade ou violação do Princípio de Igualdade.
72. Por sua vez, na base da fundamentação da decisão sob recurso, como da mesma claramente resulta, estão apenas e só os indícios sobre a origem ilícita dos fundos e a verificação de perigo de dissipação dos fundos pela economia legitima e para contas no estrangeiro.
73. Assim e porque não se verifica qualquer ilegalidade ou inconstitucionalidade do despacho recorrido por violação do Princípio de Igualdade ou qualquer outra norma constitucional, também nesta parte deverá o recurso improceder.
74. Pelo exposto, nenhuma censura merece a decisão recorrida.
Remetido o processo a este Tribunal, na vista a que se refere o art.º 416º do CPP, o Exmo. Sr. Procurador Geral da República Adjunto emitiu parecer, concluindo:
«Analisados os fundamentos do recurso, bem como os fundamentos constantes do douto Despacho recorrido, acompanhamos as Respostas excelentemente elaboradas e fundamentadas pelo Digno Magistrado do Ministério Público junto da 1.a instância, aderindo-se à argumentação oferecida, que se subscreve e aqui se dá por inteiramente reproduzida, nomeadamente as conclusões apresentadas em cada uma das Respostas. Com efeito, consideramos que o Digno Magistrado do Ministério Público junto da 1.ª Instância identificou corretamente o objeto dos recursos, respondeu cabalmente a todas as questões suscitadas em cada um dos recursos e argumentou com clareza e correção jurídica, o que merece o nosso acolhimento, dispensando-nos, assim, porque de todo desnecessário e redundante, de aduzir outros considerandos no que ao objeto dos recursos em análise diz respeito, a não ser sublinhar que a medida de congelamento se mostra necessária, adequada e proporcional e, a nosso ver, não foi feita qualquer interpretação ilegal que se afigure como inconstitucional.
«Pelo exposto, e salvo o devido e muito respeito por diferente opinião, somos do parecer que os recursos interpostos pelos Recorrentes AA e BB devem ser julgados improcedentes e, consequentemente, o Despacho recorrido deve ser mantido».
Cumprido o disposto no art.º 417º nº 2 do CPP, a recorrente BB respondeu, nos seguintes termos:
1. A Resposta do MP ora notificada é jurídica e materialmente eivada de contradições, deturpações da realidade e, lamentavelmente, dela perpassa toda uma motivação política que se pensava ter terminado no 25º dia do mês de Abril dos idos de 74 do século passado.
2. Este processo, pelos contornos que tem assumido, com uma total obliteração dos mais elementares direitos processuais e substantivos da Recorrente (e, diga-se, da sua Família), impedindo-a por um lado de se defender e explicar o que houver a explicar e, por outro, apodando-a e tratando-a como criminosa.
3. Será este procedimento o que verdadeiramente se encontra respaldado na Constituição e na Lei? Não. Quer-se crer que não, sob pena de os compêndios de processo penal e de direito constitucional mais não serem do que letra morta e se papaguearem realidades imaginárias.
4. Vai-se em passo acelerado para 2 anos que a Recorrente tem a sua vida familiar, financeira e emocional virada do avesso, permitindo-se “o sistema” arrastar obscuras desconfianças, dúvidas e equívocos pelo tempo que muito bem entende, e a Recorrente que espere ....
5. As razões substanciais para que a Relação de Lisboa ponha cobro a este pesadelo encontram-se na Motivação e Conclusões do Recurso.
6. Mas, face à tenebrosa Resposta que o MP atravessou no processo, é da mais elementar Justiça que à Recorrente seja permitido pronunciar-se sobre tal arrazoado.
Assim,
7. A motivação política, infelizmente, é absolutamente óbvia e nem se tentando dissimular:
a. a menção repetida da cidadania russa de AA e do seu trabalho como vice-ministro até ... (há … anos!);
b. a ligação de todas as datas mencionadas aos acontecimentos na Ucrânia;
c. mencionar, num contexto incompreensível, ao lado dos nomes da Recorrente e de AA os nomes de personalidades políticas russas;
d. declarar efectivamente criminosa qualquer atividade económica na Rússia em qualquer período temporal.
8. Com base nesta motivação política, o MP ignora completamente os factos e acontecimentos reais.
9. É impossível apresentar um único facto de utilização das contas de AA ou da Recorrente como contas de trânsito.
10. Todas as suas contas foram certamente e sempre utilizadas exclusivamente por estes e no seu próprio interesse.
11. Este facto pode ser facilmente confirmado pelos extractos bancários.
12. Não há provas de qualquer ligação económica da Recorrente ou de AA com qualquer dos terceiros referidos, nem com quaisquer outras pessoas sancionadas.
13. Este facto pode também ser facilmente confirmado por extractos bancários ou por informações constantes do registo de accionistas.
14. As numerosas contradições na posição do MP demonstram mais uma vez a motivação puramente política do caso:
a. por um lado, ao justificar a necessidade de congelar os fundos, é referido o perigo da sua diluição e transferência para outras jurisdições; por outro lado, a justificação é a consolidação sistemática dos fundos em Portugal durante muitos anos (aliás, este facto não levantou quaisquer questões até 2022);
b. por um lado, a actividade económica em Portugal, nomeadamente no sector imobiliário turístico, é apontada como criminosa; por outro lado, sugere-se que não existe uma atividade económica normal;
c. por um lado, é referido o encerramento de contas em Portugal e o seu bloqueio; por outro lado, a informação sobre a transferência dessas contas para outros países (aliás, a pedido do BPI) é apresentada como um libelo;
d. as relações familiares de AA e da Recorrente são regularmente mencionadas, mas ao mesmo tempo sugere-se que a transferência de fundos entre as suas contas é criminosa.
15. O MP ignora completamente quaisquer datas e factos reais, tentando ligar todos os acontecimentos à guerra na Ucrânia, em óbvia efabulação.
16. O MP também tenta associar as datas das transferências de fundos de AA para a Recorrente a quaisquer acontecimentos políticos,
MAS
ao mesmo tempo, não está interessado no que é óbvio: a constituição de uma família normal e o capital de herança para esta família só se tornaram possíveis a partir de dezembro de ... (depois de AA se ter divorciado oficialmente extinguindo o seu casamento anterior).
17. A fonte de origem dos fundos na Rússia é repetidamente mencionada, como uma tentativa de criminalizar este mesmo facto,
MAS
ao mesmo tempo, as informações de que a investigação dispõe sobre a total legalidade do negócio de AA são completamente ignoradas.
18. Além disso, a verdadeira legalidade desta atividade nunca foi posta em causa.
Apenas o seu endereço na Rússia foi declarado como uma infração penal....
19. Quer a troca de informações fiscais e bancárias entre a Rússia e Portugal, que existiu até 2022, quer as declarações fiscais apresentadas por AA são persistentemente ignoradas.
20. A aquisição de bens imobiliários no interesse da sua filha(!) é mesmo interpretada como criminosa!
21. Ao mesmo tempo, ninguém se interessa pelo facto de que, durante a conclusão das transacções imobiliárias e de quaisquer transferências entre contas, todos os documentos necessários que confirmam a fonte de origem dos fundos foram sempre fornecidos e verificados pelos departamentos de compliance dos bancos.
22. Assim, em vez de eliminar quaisquer dúvidas sobre todas as transacções e negócios mencionados através de uma simples verificação dos factos, o MP tenta criar um sentido de criminalidade à sua volta.
23. Para o efeito, enumera os nomes de figuras políticas russas e as datas de acontecimentos políticos. Os factos sob a forma de extractos bancários e declarações de impostos são ignorados.
24. O significado político do processo tornou-se mais importante do que a vida de uma família cumpridora da lei, que vive em Portugal há mais de 10 anos.
25. No mais, remete-se para o requerimento que AA apresentou na sequência da resposta do MP, da qual resulta, inequivocamente, quão absurdas são as teses defendidas pelo MP, infelizmente com respaldo judicial.
Termos em que se requer que seja o presente requerimento tido em consideração quando da apreciação do recurso interposto pela ora Requerente.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, nos termos e para os efeitos previstos nos art.º 418º e 419º nº 3 al. c) do CPP, cumpre, então, decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. DO ÂMBITO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR:
De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem o recorrente e dos vícios previstos no art.º 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito.
Umas e outras definem, pois, o objecto do recurso (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061 e Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995).
Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º por remissão do art.º 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art.º 412º do CPP, a que se seguem os vícios enumerados no art.º 410º nº 2 do mesmo diploma;
Finalmente, as questões relativas à matéria de Direito.
Seguindo esta ordem lógica, em face dos fundamentos do recurso apresentados nas conclusões, as questões que cumpre apreciar, no presente recurso, são as seguintes:
No recurso da recorrente Recorrente BB:
Qual o efeito jurídico de não lhe terem ainda sido dadas explicações sobre o congelamento das contas bancárias de que é titular, de ainda não ter sido ouvida para poder esclarecer os factos e de não ter ainda sido constituída arguida.
Se todas as sociedades comerciais geridas pela Recorrente prosseguem actividades económicas lícitas e de grande utilidade pública;
Se, para que sejam tomadas as medidas em causa, nestes autos, é imperativo que exista a suspeita da prática, nomeadamente, de um crime de branqueamento de capitais;
Se, por efeito do congelamento das suas contas bancárias a recorrente se encontra privada da sua liberdade individual;
Se a decisão de congelamento da globalidade do saldo das contas da titularidade da Requerente é ilegal por violação do disposto no art.º 47º e na alínea b) do n.º 3 do art.º 48º, aplicável ex vi do n.º 2 do artigo 49º, todos da Lei nº 83/2017 de 18 de Agosto, do disposto no art.º 4º da Lei 5/02 de 11 de Janeiro e ainda dos princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade, designadamente vertidos nos arts. 2º, 18º e 32º da Constituição da República;
Se a interpretação das normas supramencionadas com o sentido de permitir que um titular de contas possa estar indefinidamente sem acesso às mesmas, sem que sobre ele recaia suspeita da prática de crime e/ou sem que seja constituído arguido é inconstitucional por violação dos princípios e normas vertidos nos arts. 2º, 18º, 20º e 32º da Constituição da República Portuguesa.
No recurso do recorrente AA:
Se a conta bancária bloqueada é a única conta bancária que o recorrente dispõe em Portugal pelo que ter a mesma bloqueada implica que o mesmo esteja totalmente impedido do livre acesso ao seu dinheiro, o que significa uma privação da sua liberdade.
Se não existem indícios suficientes da prática do crime de branqueamento de capitais, porque também não existem indícios que justifiquem a constituição do recorrente como arguido;
Se a única justificação do MP é a de que o Recorrente é um cidadão russo, sendo que tal facto não permite uma presunção de culpabilidade;
Se a alegação de que o recorrente tem nacionalidade russa revela uma visão racista e preconceituosa, uma vez que a referência à nacionalidade não foi referida com outro intuito que não seja o de associar o Recorrente ao regime Russo, e com isso estabelecer uma presunção de que o mesmo, em virtude de tal facto de toma suspeito de estar ligado a actividades ilícitas, violando princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da CRP.
Se o tribunal ao impedir o regular uso da conta bancária, viola, igualmente, e o princípio da propriedade privada e à livre iniciativa privada e do princípio constitucional da proporcionalidade, constantes, respectivamente, dos artigos 62º n.º 1, 61º n.º 1 e 18º nºs 2 e 3, ambos da CRP.
Se as empresas detidas pela família em Portugal têm, de facto, actividade.
2.2. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
Antes da análise das questões colocadas no presente recurso, importa ter em consideração a seguinte a factualidade:
No dia 5 de Abril de 2024, o Mº. Pº. redigiu e apresentação a decisão do Juiz de Instrução Criminal, a seguinte «promoção» (referência Citius 2142191):
Conforme já exposto a fls. 859 a 863:
a) Por despacho de 14-02-2023, a fls. 307 a 311 foram suspensos os movimentos a débito com destino a contas no estrangeiro relativamente às contas do BPI n.º 0- 5233743.000.001 (EUR) e n.º 0-5233743.306.001 (USD), ambas tituladas por AA;
b) Por despacho de 28-03-2023, a fls. 462 a 468, foram suspensos os movimentos a débito com destino a contas no estrangeiro relativamente às contas do BCP n.º 45474769239 e do ABANCA com o IBAN PT..., ambas tituladas por BB, bem como o acesso aos cofres bancários do BCP com o n.º 1455 e com o n.º 1501, sitos junto da agência de Cascais ..., associados à conta n.º 45474769239, titulada por BB;
c) Por despacho de 12-05-2023, a fls. 561 a 564, foi determinada a suspensão temporária da execução de todos os movimentos a débito, relativamente às contas acima identificadas;
d) Finalmente, por despacho de 22-05-2023, a fls. 619 a 622, foi determinada a suspensão temporária da execução de todos os movimentos a débito, relativamente às contas do BPI nº 3-4642375.000.001, correspondente ao IBAN PT..., e todas as contas associadas ao NUC 3-4642375, tituladas por BB, bem como do acesso aos cofres nº 67, 71 e 88 da agência do Banco BPI de Cascais-..., associados a contas do NUC 3- 4642375;
Também como ali exposto, as suspensões referidas nas alíneas a) e b) caducaram -, por mero efeito da suspensão referida na alínea c) -, excepto quanto aos cofres 1455 e 1501 do BCP, encontrando-se vigentes as suspensões referidas nas alíneas c) e d), bem como a suspensão relativa a esses cofres. 
Tais decisões de suspensão fundaram-se, em suma, na circunstância de existirem suspeitas de que os fundos movimentados nas contas afectadas tiveram origem em condutas criminosas, atentas as características dos movimentos bancários registados.
Com efeito, conforme reiteradamente referido nos autos, AA é um cidadão russo, que exerceu cargos de responsabilidade política na Rússia e que mantém relação familiar com a referida BB, tendo filhos em comum.
Esta última controla diversas empresas cujas contas bancárias são alimentadas em exclusivo com fundos provenientes daquele — e, indirectamente, da Rússia -, sem que tais empresas tenham real actividade, servindo apenas para titular património imobiliário ou veículos de que aqueles são utilizadores/beneficiários.
Também as contas tituladas pela própria BB foram sendo, quase em exclusivo, alimentadas por transferências provenientes de AA.
Na verdade, no decurso do ano de 2022, o referido AA transferiu avultadas quantias para uma conta em USD associada ao NUC 0-5233743. Já entre 2015 e 2021 o mesma AA havia feito transferências para a conta em euros associada ao mesmo NUC num montante total de cerca de €13.000.000,00, as quais foram associadas à venda da participação do mesmo na entidade UNICORN CAPITAL PARTNERS, que era um fundo que detinha interesses em várias sociedades Industriais na Rússia.
AA foi ainda associado, como beneficiário final, à entidade BLAKESLY LIMITED, com sede no Chipre, que foi titular, entre 2014 e 2018, de contas no BPI associadas ao NUC 0-5105843. Nessa conta, em nome da BLAKESLY LIMITED, foram recebidos fundos, com origem na Suíça, das entidades OGO-ROD SGPS e ALENCOM GROUP INC, que, em 2018, atingiram um total de cerca de €2.000.000,00.
Verifica-se ainda que, em 2015 e 2016, a partir da referida conta da BLAKESLY LIMITED foram transferidos fundos, em benefício da sociedade nacional MIAN SGPS (NIPC: 510364420), para uma conta da mesma, junto do BPI, associada ao NUC 0-4859167.
Esta MIAN SGPS indicia-se ser detida pela CITERNE HOLDINGS LIMITED, sedeada no Chipre, que, por sua vez, é detida por uma PIANTA INVESTMENTS LTD, sedeada nas Ilhas Seychelles, a qual tem como beneficiário final o cidadão russo CC, filho de DD, que se encontra casado com a cidadã EE (n.º 1320 das pessoas sancionadas na listagem anexa ao Regulamento (UE) nº 269/2014).
Verifica-se assim, ainda que por via indirecta, a ligação do AA à entidade MIAN SGPS, a qual, por sua vez, se encontra associada a pessoa que é alvo de sanções impostas pela União Europeia.
Dos cerca de 20 milhões de euros que, entre 2015 e 2022, AA transferiu para as suas contas BPI associadas ao NUC 0-5233743, foram identificados vários movimentos, ocorridos no decurso do ano de 2022, que revelam a circulação em benefício de BB, titular de contas junto do BPI associadas ao NUC 3-4642375, abertas a 27-04-2011, nas quais, em 2022, foram recebidas diversas transferências avultadas ordenadas por AA.
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BB é participante no capital social das sociedades PAVO GARDEN EDA e GRETTA VESTA SGPS, SA, afigurando-se que tem como sua sócia nas mesmas a entidade BLAKESLY LIMITED. Através da referida GRETTA VESTA SGPS, BB participa ainda em várias outras sociedades nacionais, algumas das quais são utilizadas apenas para deter bens imobiliários, caso da BIENESTAR LDA e da CHIC TERRACE SA, e outras se encontram associadas a detenção e exploração de unidades ligadas à hotelaria e turismo, caso da SOBERHOUSE SA e da KMW SA, conexas com o designado HOTEL SENHORA DA GUIA, em Cascais. Verifica-se que, quer a GRETTA VESTA SGPS quer a sua participada de maior valor, a SOBERHOUSE SA, apresentaram resultados líquidos negativos, pelo menos desde 2017, em sede das suas declarações de IRC.
Tal diferença entre os rendimentos próprios da BB e os aportes de AA à mesma, e face à origem dos fundos recebidos e movimentados a partir da Conta BPI nº 3-4642375.000.001, recai a suspeita de a mesma estar a ser usada para permitir a circulação e a ocultação, através de investimentos em seu nome, de fundos recebidos de terceiros, mais propriamente de outros cidadãos russos da proximidade política deste último.
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Em 14/07/2022 AA adquiriu um apartamento T3 duplex no empreendimento Apartamentos Turísticos The Residences, no terceiro e quarto piso do edifício C na Freguesia de Albufeira. Já em 22/11/2022 foi adquirido um imóvel sito na Rua ..., n.º ..., Estoril, em nome de GG, filha menor de AA e BB, nascida a 10/06/2009. A aplicação directa dos fundos recebidos de AA na aquisição de activos imobiliários, indiciam uma estratégia planeada de circulação e conversão dos fundos aportados do exterior por este.
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BB tem intervenção nas pessoas colectivas GRETTA VESTA SGPS S.A. A. (detém participação de 100% da BIENESTAR, CHIC TERRACE e 85% da KMW e da SOBERHOUSE), KMW SOCIEDADE IMOBILIÁRIA E TURÍSTICA S.A. (teve como Administrador único KK e é detida a 15% pela PROPRIURBE), SOBERHOUSE ATIVIDADES HOTELEIRAS S.A., MAGNAMELODIA S.A. (detida a 2,0% pela FIDUCIA-SGPS, LDA. Teve como Administrador único DOMNICA CHIR/LA), CHIC TERRACE S.A. (Teve como Administrador único LL), PAVO GARDEN LDA (detida a 20% pela BLAKESLY e 80% por MARGARITA) e BIENESTAR UNIFESSOAL LDA, assim como no HOTEL FAROL DESIGN e no HOTEL SENHORA DA GUIA CASCAIS BOUTIQUE, participando nestas diversos cidadãos de origem estrangeira como KK, MM, NN, OO, LL e PP.
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O referido KK é casado com MM. É interveniente nas sociedades SOCIEDADE AGRO-TURISTICA DA HERDADE DO RIO MOURINHO, S.A. como Vogal do Conselho de Administração, PROPRIURBE - PROPRIEDADES E URBANIZAÇÕES, S.A. como Vogal do Conselho de Administração, FLUGRAPH, SGPS, S.A., como Vogal do Conselho de Administração e ESTALAGEM DO FAROL, S.A., como Vogal do Conselho de Administração. Pertenceu ainda ao conselho de administração da SOBERHOUSE ATIVIDADES HOTELEIRAS S.A. até 2011.
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A sociedade PROPRIURBE - PROPRIEDADES E URBANIZAÇÕES, S.A, do seu sogro, QQ, foi detentora de 15% da sociedade SOBERHOUSE ATIVIDADES HOTELEIRAS, S.A. de BB. Actualmente detém 15% da sociedade KMW SOCIEDADE IMOBILIÁRIA E TURÍSTICA S.A.
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QQ ocupa o cargo de Presidente do Conselho de Administração da PROPRIURBE, sendo ai acompanhado pelos familiares KK, MM e RR. Esta sociedade é detida a 100% pela sociedade FLUGRAPH, SGPS, S.A..
A sociedade FLUGRAPH, SGPS, S.A. tem como Presidente do Conselho de Administração QQ, contando ainda com KK e SS como vogais.
QQ intervém ainda como presidente do Conselho de Administração da SOCIEDADE AGRO-TURISTICA DA HERDADE DO RIO MOURINHO, S.A., na qual o genro é vogal.
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TT é Presidente do Conselho de Administração da sociedade ESTALAGEM DO FAROL S. A.. Este é ainda interveniente nas MIAN - SGPS, S.A. (detém participação de 100% da EVRICA, BECO DA AVENIDA E SANSOTO) como Administrador Único, EVRICA MANAGEMENT, S.A. como Administrador Único, BECO DA AVENIDA, S.A., como Administrador Único e SANSOTO - REAL ESTATE INVESTMENTS, S.A., como Administrador Único.
Nas sociedades MIAN, EVRICA e BECO DA AVENIDA surge ainda a intervenção de SERGEY PREOBRAZHENSKIY.
Os imóveis adquiridos pelas EVRICA e BECO DA AVENIDA eram previamente detidos pela COKAL HOLDINGS, LIMITED (com sede em Belize).
PP foi administrador único da sociedade LAS IDEAS, S.A. (detida a 100% pela GRETTA VESTA SGPS) até à sua extinção em Dezembro de 2023 e na qual BB e OO tiveram intervenção até 2018.
Após a extinção da sociedade, os bens imóveis desta passaram para a esfera patrimonial de PP.
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HH é empresário da construção civil. Mantem conexão com entidades influentes e indivíduos da elite russa suspeitos de branqueamento de capitais e ocupa actualmente o cargo de Presidente do Conselho de Administração do grupo PIONEER que detém grande dimensão no sector da construção civil, tendo assumido o cargo após a morte do seu antecessor, UU.
O conselho de administração do grupo PIONEER conta ainda com a intervenção de AA e II.
HH adquiriu, em 2021, um imóvel no Algarve com o objectivo de se candidatar ao visto de Autorização de Residência para Investimento, tendo posteriormente optado por se candidatar ao visto para Actividade Altamente Qualificada, mudança que coincidiu com o anuncio por parte do Ministério dos Negócios Estrangeiros, em Março de 2022, de que os vistos Gold seriam suspensos para os cidadãos de nacionalidade russa.
HH é casado com JJ, proprietária das viaturas de marca Porsche, modelo 911 Carrera 4s com a matrícula BA-..-AS, registada a 12/06/2023, com início do seguro a 15/05/2023 e da marca Porsche, modelo Cayenne 5 com a matrícula AZ-..-SI., registada a 20/04/2023 e com início do seguro a 15/05/23.
JJ encontra-se ainda associada aos imóveis sitos na Avenida ..., ... Estoril e na R ..., ..., ALCABIDECHE, MALVEIRA SERRA.
JJ e HH fundaram em 01/07/2022 a sociedade M-ESTATE, LDA (NIPC 517016834), a qual, em 29/05/2023, usaram para efectuar a compra do imóvel onde residem no Estoril, a BB. 
Relativamente a HH não foi apurado o exercício de qualquer actividade em território nacional, sendo que, mesmo em fontes abertas, este apenas surge a partir do momento em que ascende no Grupo PIONEER.
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É de notar ainda que, AA foi vice-Ministro de DD, entre ....
BB, por seu turno, estará associada à farmacêutica de EE, denominada GENERIUM.
EE é Vice-primeira-ministra da Rússia desde ..., é alvo da Ficha de Pessoa Procurada emitida pela República Checa e é casada com DD, ex-Vice-primeiro-ministro da Rússia (…-…) e ex-Ministro da Indústria, pai de CC (proprietário de várias sociedades que operam no ramo imobiliário).
Os três possuem ligações a uma rede de empresas e moradias de luxo em Cascais.
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Tendo em conta o exposto indicia-se fortemente que os fundos que circularam pelas contas sujeitas a medida de bloqueio nos autos, tenham ligação a entidades sancionadas ou tenham sido movimentados em violação de medidas restritivas relativas ao conflito entre a Rússia e a Ucrânia.
Existem assim indícios de factos susceptíveis de integrar a prática de crimes de fraude fiscal qualificada, previsto e punido nos termos dos artigos 103º e 104º do RGIT e de violação de medidas restritivas, previsto e punido nos termos do artigo 28º da Lei n.º 97/2017, de 23 de Agosto, e que a(s) conta(s) bancária(s) em apreço é(são) utilizadas para receber e transferir tais quantias, conduta essa subsumível ao crime de branqueamento, previsto e punido nos termos do artigo 368º-A, do Código Penal.
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Acresce ainda que, subsiste uma forte possibilidade de dissipação dos fundos para contas no estrangeiro - designadamente, como se verifica nos autos já ter acontecido, Dubai e Lituânia (Revolut) - e, portanto, que as quantias sejam movimentadas para fora do controlo das autoridades.
Foi, então, proferida a decisão recorrida, em 8 de Abril de 2024, que tem o seguinte teor (transcrição integral):
Fls. 1314 a 1323:
O Ministério Público requereu o adiamento do acesso aos autos por um período de três meses, invocando para tanto o disposto no art.º 89.º, n.º 6, do Código de Processo Penal, bem como que, o livre acesso aos autos pelos denunciados poderá pôr irremediavelmente em causa a eficácia das diligências ainda a efectuar no inquérito, quer em território nacional, quer aquelas a efectuar ao abrigo da Cooperação Judiciária Internacional.
Investiga-se nestes autos a prática dos crimes de violação de medidas restritivas, p. e p. pelo art.º 28.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 97/2017, de 23.08, e de branqueamento, p. e p. pelo art.º 368.º-A, n.ºs 1, al. j), a 4, do Código Penal, surgindo ainda como ilícito antecedente deste o crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103.º e 104.º, ambos do RGIT.
Nestes termos, atenta a conjugação do disposto nos arts. 215.º, n.º 2, al. e), e 276º, n.ºs 1, 3, al. a), e 4, ambos do Código de Processo Penal, e na medida em que se mantêm os pressupostos de facto e de direito que levaram à prolação do despacho judicial que validou a decisão do Ministério Público de aplicar aos presentes autos o segredo de justiça, havendo ainda que ter presentes as diligências de recolha de prova que se mostram em curso ou que estão em vias de ser realizadas, ao abrigo do disposto no art.º 89.º, n.º 6, do Código de Processo Penal, determina-se que o acesso aos autos seja adiado até 08.07.2024.
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Veio o Ministério Público, invocando o disposto no art.º 49.º, n.º 6, da Lei n.º 83/2017, de 18.08, requerer que se substitua a medida de suspensão de operações pelo congelamento dos fundos depositados nas contas bancárias identificadas a fls. 1322.
Prevê o n.º 6 do art.º 49.º da citada Lei n.º 83/2017 que, a solicitação do Ministério Público, o juiz de instrução pode determinar o congelamento dos fundos, valores ou bens objecto da medida de suspensão aplicada, caso se mostre indiciado que os mesmos são provenientes ou estão relacionados com a prática de actividades criminosas ou com o financiamento do terrorismo e se verifique o perigo de serem dispersos na economia legítima.
Investiga-se nestes autos a prática dos crimes de violação de medidas restritivas, p. e p. pelo art.º 28.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 97/2017, de 23.08, e de branqueamento, p. e p. pelo art.º 368.º-A, n.ºs 1, al. j), a 4, do Código Penal, surgindo ainda como ilícito antecedente deste o crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103.º e 104.º, ambos do RGIT.
As suspeitas que conduziram à confirmação da suspensão temporária de operações bancárias têm vindo a ser corroboradas pela investigação em curso, mostrando-se neste momento indiciado que o saldo das contas bancárias acima referidas está relacionado com a prática dos referidos ilícitos criminais.
Na ponderação que neste momento terá de ser feita entre, por um lado, a circunstância de os presentes autos se encontrarem sujeitos ao regime do segredo de justiça e, por outro lado, o dever de fundamentação dos actos decisórios (art.º 97.º, n.º 5, do Código de Processo Penal), pode concluir-se, como o faz o Ministério Público na promoção de fls. 1314 a 1322, que: AA é um cidadão russo, que exerceu cargos de responsabilidade política na Rússia e que mantém relação familiar com (…) BB, tendo filhos em comum; esta última controla diversas empresas cujas contas bancárias são alimentadas em exclusivo com fundos provenientes daquele – e, indirectamente, da Rússia –, sem que tais empresas tenham real actividade, servindo apenas para titular património imobiliário ou veículos de que aqueles são utilizadores/beneficiários; também as contas tituladas pela própria BB foram sendo, quase em exclusivo, alimentadas por transferências provenientes de AA; subsiste uma forte possibilidade de dissipação dos fundos para contas no estrangeiro – designadamente, como se verifica nos autos já ter acontecido, Dubai e Lituânia (Revolut).
Por seu turno, com a cessação da vigência da medida de suspensão temporária de operações bancárias, mantém-se o perigo de as quantias que se indicia terem sido obtidas ilicitamente, e que estão depositadas nas contas bancárias em causa, serem dispersas pela economia legítima.
Pelo exposto, defere-se o requerido e, consequentemente:
- Determina-se o congelamento do saldo das contas bancárias identificadas a fls. 1322;
- Declara-se cessada, por inutilidade superveniente, a medida de suspensão temporária de operações bancárias relativa às referidas contas bancárias.
Notifique e comunique às instituições bancárias.
2.3. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DOS RECURSOS
A Lei 83/2017 de 23 de Agosto prevê entre as medidas repressivas e preventivas de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo, a suspensão temporária de operações financeiras e o congelamento dos respectivos valores, nos arts. 47º, 48º e 49º.
Este diploma transpôs parcialmente para a ordem jurídica portuguesa as Directivas 2015/849/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Maio de 2015, e 2016/2258/UE, do Conselho, de 6 de Dezembro de 2016, nas quais se reconhece a extrema e polifacetada danosidade social do crime de branqueamento de capitais, se reconhece a especial vulnerabilidade dos sistemas financeiros, das instituições de crédito e do mercado da União resultantes da livre circulação de capitais e da livre prestação de serviços financeiros inerentes ao espaço financeiro integrado da União para se converterem em instrumentos privilegiados de dissimulação da origem dos fluxos de dinheiro ilícito, de outros produtos do crime para branqueadores de capitais ou os seus cúmplices, com sérios prejuízos para a estabilidade, integridade, bom funcionamento e credibilidade do sistema financeiro e económico europeu (cfr. considerandos 1 e 2 da Directiva (UE) 2015/849), bem assim, a necessidade imperiosa de recolha, troca de informações e cooperação institucional e judiciária internacional, entre as instituições bancárias e financeiras e entre estas a as autoridades judiciárias e tributárias dos países membros (cfr. Directiva 2016/2258/EU) para agilizar os procedimentos de investigação e capacitar as instâncias de investigação no combate e repressão ao branqueamento.
É, precisamente, em atenção à extrema gravidade do crime de branqueamento de capitais que a Lei 83/2017 de 18 de Agosto, diversamente do que sucede com a esmagadora maioria dos outros crimes, em que a investigação criminal se inicia com a notícia da prática do crime a que se segue um inquérito formal, permite que a actividade de recolha de informações tenha lugar e se desenvolva em momento anterior, visando a obtenção de informações pertinentes à própria aquisição dessa notícia, apenas com base numa análise de risco de uma comunicação ABC-FT (sigla para a expressão antibranqueamento de capitais e de financiamento de terrorismo) e, por isso mesmo, abdica da constituição prévia como arguido da pessoa visada pela suspensão temporária de operações financeiras, assim como de uma base factual minimamente sustentada (excepção feita à medida de congelamento de fundos prevista no art.º 49º nº 6 cuja aplicação está condicionada à prova, ainda que só indiciária, de esses fundos são provenientes ou estão relacionados com a prática de actividades criminosas ou com o financiamento do terrorismo e, cumulativamente, se verifique o perigo de serem dispersos na economia legítima), bastando meras suspeitas materializadas em determinados índices objectivos considerados como de risco de branqueamento (ou de financiamento de terrorismo), ainda que constantes de documentos.
Por isso, também impõe às entidades obrigadas, do sector financeiro e não-financeiro um conjunto de deveres gerais preventivos ABC-FT que se encontram enumerados no artigo 11º n.º 1: a) de controlo; b) de identificação e diligência; c) de comunicação; d) de abstenção; e) de recusa; f ) de conservação; g) de exame; h) de colaboração; i) de não divulgação; e, j) de formação e comina para a violação de qualquer destes deveres a responsabilidade contraordenacional, tal como previsto no art.º 169º da mesma Lei.
Ainda na mesma perspectiva da importância dada à prevenção ABC-FT, a Lei 83/2017 de 18 de Agosto, assegura que toda a documentação e informações obtidas no decurso dos procedimentos de averiguação preventiva de branqueamento de capitais ou de financiamento de terrorismo possam ser usados como meios de prova em processos judiciais, como defluí das normas contidas nos nºs 1 e 7 do art.º 56º (nos termos do nº 1, «as entidades obrigadas disponibilizam todas as informações, todos os documentos e os demais elementos necessários ao integral cumprimento dos deveres enumerados nos artigos 43º, 45º, 47º e 53º, ainda que sujeitos a qualquer dever de segredo, imposto por via legislativa, regulamentar ou contratual» e segundo o que dispõe o nº 7, «os elementos disponibilizados pelas entidades sujeitas ao abrigo do nº 1 podem ser utilizados em processo penal, nos inquéritos que tiveram origem em comunicações de operações suspeitas, bem como em quaisquer outros inquéritos, averiguações ou procedimentos legais conduzidos pelas autoridades judiciárias, policiais ou sectoriais, no âmbito das respectivas atribuições legais e na medida em que os elementos disponibilizados se mostrem relevantes para efeitos probatórios»).
Quanto à medida de suspensão de operações financeiras, a mesma constituí um meio de obtenção de prova que apresenta algumas similitudes com a apreensão, mas não comunga dos pressupostos previstos no art.º 181º do CPP, a não ser quando se trate de ordenar o congelamento, no circunstancialismo descrito no nº 6 do art.º 49º (na medida em que este exige uma maior intensidade nos indícios e já não se basta como na suspensão temporária, com uma simples suspeita).
O seu efeito imediato, sendo a paralisação dos movimentos bancários ou financeiros considerados de risco, pode muito bem interromper a execução ou o começo da execução do crime de branqueamento e, ao mesmo tempo, evitar que o agente faça desaparecer os valores detectados, colocando-os em circulação no circuito económico e financeiro legítimo.
Simultaneamente, providencia ou pode providenciar a obtenção de meios de prova que permitam reconstituir historicamente o processo de conversão, transferência, auxílio ou facilitação de operação de conversão ou transferência de vantagens provenientes da prática dos factos ilícitos de lenocínio, abuso sexual de crianças ou de menores dependentes, extorsão, tráfico de estupefacientes, tráfico de seres humanos, fraude fiscal, e demais infracções referidas no artigo 1º nº 1 da Lei nº 36/94 de 29 de Setembro e dos factos ilícitos puníveis com pena de prisão de duração mínima superior a 6 meses ou de duração máxima superior a 5 anos, que integram o catálogo dos crimes precedentes, segundo a incriminação do branqueamento prevista no arts. 368º- A nºs 1 e 2 do Código Penal.
Esta medida de suspensão «radica num juízo de necessidade de prevenção da prática de crime de branqueamento (neste sentido, José Damião da Cunha, Medidas de Combate à Criminalidade Organizada e Económico-Financeira, Universidade Católica Editora. 2017, págs. 77 a 85), embora esta sua natureza cautelar reforçada não se autonomize da sua principal finalidade que é a de meio de obtenção de prova.
«O dever de abstenção e a eventual subsequente decisão de suspensão de operação suspeita simbolizam o ponto fulcral do regime de prevenção ABC-FT, sendo a atuação fundamental apta a obstar que uma operação de branqueamento ou de financiamento do terrorismo seja executada, impedindo o desígnio criminoso, seja ele o da dispersão de fundos oriundos da economia ilícita pela lícita, ocultando a sua proveniência, ou o de financiar actos de terrorismo.
«Os passos cronológicos da abstenção e subsequente suspensão de operação suspeita (SOB) são nove:
«1. O exercício do dever de abstenção previsto pelo artigo 47.º, cujo n.º 1 impõe às entidades obrigadas a exigência de terem de se abster “de executar qualquer operação ou conjunto de operações, presentes ou futuras, que saibam ou que suspeitem poder estar associadas a fundos ou outros bens provenientes ou relacionados com a prática de atividades criminosas ou com o financiamento do terrorismo.”
«2. Nessas circunstâncias, a entidade obrigada abstém-se de executar a operação e tem de proceder à comunicação de operação suspeita, de imediato, ao DCIAP e à UIF (artigo 47.º, n.º 2, conjugado com os artigos 43.º e 44.º). Excecionalmente, a operação poderá ocorrer nos termos do n.º 3 do mesmo artigo.
«“No caso de a entidade obrigada considerar que a abstenção referida no n.º 1 não é possível ou que, após consulta ao DCIAP e à Unidade de Informação Financeira, é suscetível de prejudicar a prevenção ou a futura investigação das atividades criminosas de que provenham fundos ou outros bens, do branqueamento de capitais ou do financiamento do terrorismo, as operações podem ser realizadas, comunicando a entidade obrigada ao DCIAP e à Unidade de Informação Financeira, de imediato, as informações respeitantes às operações”
«3. Essa comunicação de operação suspeita com exercício do dever de abstenção dará origem à instauração no DCIAP de um procedimento de averiguação preventiva de branqueamento (PAPB), ou de financiamento do terrorismo (PAPFT), no qual terão início, de imediato, as diligências consideradas adequadas, nomeadamente a pesquisa de antecedentes quanto à pessoa, ou pessoas, singular e/ou coletiva objeto da comunicação.
«4. O relatório da UIF: nos termos do artigo 47.º, n.º 4, a UIF, no prazo de dois dias úteis a contar do recebimento da comunicação, tem de pronunciar-se sobre a mesma, remetendo ao DCIAP uma informação sobre o que conseguiu apurar ao nível de inteligência financeira sobre essa operação suspeita e as suas conclusões.
«5. A investigação dos factos: o DCIAP tem o prazo de seis dias úteis após a comunicação de operação suspeita com abstenção por parte da entidade bancária (quatro dias úteis, após a receção da informação financeira da UIF, como prevê o artigo 48.º, n.º 1), para determinar a suspensão temporária da execução das operações.
«6. A decisão do MP de suspensão temporária de operação suspeita (SOB), por dois dias úteis, está configurada no n.º 3 do artigo 48.º nos seguintes termos:
«“a) Pode abranger operações presentes ou futuras, incluindo as relativas à mesma conta ou a outras contas ou relações de negócio identificadas a partir de comunicação de operação suspeita ou de outra informação adicional que seja do conhecimento próprio do DCIAP, independentemente da titularidade daquelas contas ou relações de negócio;
«7. A notificação à entidade obrigada: ao determinar (ou ao não determinar) a SOB, o DCIAP notifica a entidade obrigada do sentido da sua decisão (artigo 48.º, n.º 1). Esta notificação será o penúltimo ato formal na averiguação preventiva que, seguidamente, deverá ser arquivada sem qualquer notificação adicional ao visado pela comunicação.
«8. A abertura de inquérito: no caso de o DCIAP ter determinado uma SOB provisória, será extraída uma certidão dos elementos considerados relevantes do PAPB (ou do PAPFT), nomeadamente da comunicação inicial da operação suspeita (com ocultação da identidade do comunicante), da documentação recolhida, da decisão do DCIAP de concretização da SOB e da respetiva notificação à entidade obrigada, que será autuada e registada como inquérito por prática de crime de branqueamento.
«9. O despacho judicial de confirmação e prorrogação de suspensão: o inquérito de branqueamento é enviado pelo DCIAP ao juiz de instrução, geralmente do Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC), para efeitos de pedido de confirmação da SOB e de pedido de prorrogação da mesma por um prazo mais alargado, normalmente três meses». (Carlos Casimiro Nunes, O Ministério Público na prevenção do branqueamento e do financiamento do terrorismo, Revista do Ministério Público 153, Janeiro - Março 2018, p. 126 a 128).
Simplesmente, a adopção de medidas de suspensão temporária de operações financeiras, considerando a sua natureza repressiva e preventiva no combate ao branqueamento de capitais e aos crimes que o precedem e a circunstância de incidirem sobre o património privado dos cidadãos, postula um conflito/equilíbrio entre o valor da administração da Justiça, na prevenção, combate e repressão da criminalidade económico-financeira e, muitas vezes, altamente organizada, que é um valor de interesse e ordem pública e certos direitos, liberdades e garantias, como é o caso dos direitos das pessoas singulares e colectivas à propriedade privada e à livre iniciativa privada que, por terem consagração constitucional (arts. 62º nº 1 e 61º nº 1 da CRP), são direitos fundamentais.
É o próprio artigo 272º nº 3 da Constituição que estabelece o limite intransponível em matéria de prevenção de crimes: só pode fazer-se com respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
O eventual sacrifício dos direitos fundamentais da pessoa, «em nome da prevenção e repressão das manifestações mais drásticas e intoleráveis da criminalidade» há-se ser analisado à luz do princípio da ponderação de interesses, o que constitucionalmente se articula com o artigo 18º nº 2 e o 272º nº 3 da Constituição (Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra Ed.., 1992, p. 28).
Num sistema democrático de justiça, as acções preventivas sempre se revestem de uma dose considerável de discricionariedade, tratando-se do património privado, a suspensão temporária de operações financeiras, necessariamente, afronta direitos fundamentais das pessoas visadas e importa uma restrição a direitos, liberdades e garantias que só pode ser efectuada por um tribunal (artigos 17º, 18º, 61º nº 1, 62º nº 1 e 202º nº 2 da Constituição), através da ponderação do princípio da proporcionalidade na vertente de proibição do excesso que inclui os subprincípios da proporcionalidade e da razoabilidade, nos termos do art.º 18º nº 2 da Constituição.
De harmonia com este princípio, a suspensão temporária de operações bancárias terá de ser apta para alcançar o fim visado (critério da idoneidade), tem de ser necessária, ou seja, as finalidades por ela visadas, não fora a sua aplicação, ou não seriam alcançadas ou só muito dificilmente o seriam, o que envolve um juízo de ponderação acerca da capacidade lesiva da medida (critério da razoabilidade) e tem de ser materialmente adequada à sua finalidade em face dos danos que produz (critério de proporcionalidade estrita).
Ora, precisamente, para assegurar o equilíbrio entre estes dois valores essenciais é que em atenção à gravidade dos crimes e à eficácia da prevenção, combate e repressão do branqueamento de capitais, a Lei 83/2017 de 18 de Agosto admite a intervenção precoce antes da notícia do crime e baseada em meras suspeitas, dando grande amplitude de poderes/deveres às autoridades administrativas, bancárias, financeiras, judiciárias envolvidas na recolha, transmissão e troca de informações relevantes, as quais, noutras circunstâncias e referidas a outro tipo de crimes, até estariam sob segredo profissional e enfatiza a cooperação interinstitucional e internacional, assim como o aproveitamento dessas informações como meios de prova potencialmente utilizáveis em qualquer processo.
Mas, em contrapartida, estes poderes são temperados pelas exigências de que o bloqueio de contas bancárias e/ou outras operações financeiras seja sujeito a um apertado controlo jurisdicional, quer na sua aplicação, quer na sua prorrogação e tenha uma duração limitada, quer pelo decurso do prazo máximo da sua duração, quer com fundamento na alteração das circunstâncias de facto que motivaram a sua aplicação e/ou a sua manutenção (estando, pois, condicionados por um prazo peremptório de caducidade que coincide com os legalmente previstos no art.º 276º do CPP, para a duração máxima do inquérito e por uma cláusula «rebus sic stantibus» que permite alterar decisões judiciais já tomadas, sem ofensa ao caso julgado, se e quando e sempre que se alterarem os pressupostos de facto em que essas decisões se tenham sustentado).
E, de duas uma: se da aplicação da suspensão não resultar qualquer das finalidades a que se destina – paralisação imediata dos efeitos de uma possível consumação e obtenção de meios de prova do crime de branqueamento ou do crime de terrorismo – a mesma não poderá manter-se, porque, pese embora não seja uma medida de coacção nem de garantia patrimonial, a sua manutenção está sujeita ao princípio «rebus sic standibus», do que resulta que a medida só pode ser mantida e prorrogada, enquanto persistirem os fundamentos de facto e de direito que determinaram a sua aplicação – o risco de branqueamento e/ou de terrorismo e a aptidão para fornecer meios de prova da prática dos factos integradores desses crimes.
Se da sua aplicação resultarem meios de prova relevantes para descoberta da verdade, poderá ter lugar o congelamento dos bens e valores objecto das operações financeiras suspensas, caso se verifiquem os pressupostos enunciados no nº 6 do art.º 49º - a existência de indícios de que os fundos são provenientes ou estão relacionados com a prática de atividades criminosas ou com o financiamento do terrorismo e a verificação do perigo de serem dispersos na economia legítima, o que, de resto, está de acordo com os princípios gerais do direito penal e processual penal, em matéria de confisco, apreensão e perda a favor do Estado dos instrumentos e dos produtos do crime (arts. 109º a 111º do CP, 178º a 186º, 227º e 228º do CPP, além do regime jurídico da perda ampliada).
Feito este excurso, importa esclarecer os recorrentes que as circunstâncias de não lhes terem sido dadas explicações, nem oportunidades de as darem, esclarecendo os factos, não têm a dimensão de violação da sua dignidade humana, nem de afronta às suas garantias de defesa previstas no art.º 32º, nem constitui qualquer compressão intolerável ou inconstitucional do princípio do processo justo e equitativo, consagrado em geral, no art.º 20º, ambos da CRP.
Os recorrentes também se insurgem contra o facto de até hoje não terem sido constituídos arguidos.
Porém, a circunstância de ainda não terem sido constituídos arguidos não tem, nem pode ter o efeito jurídico que parecem pretender atribuir-lhe, concretamente, o de violação seja de que garantias de defesa, designadamente, na vertente do direito ao contraditório, nos termos previstos no art.º 32º ou da tutela jurisdicional efectiva nos termos previsto no art.º 20º da CRP e do seu corolário que é o princípio do processo justo e equitativo.
Isto, porque a não constituição como arguidos dos recorrentes, dada a fase em que o processo se encontra não corresponde, pelo menos, até ao momento actual, à omissão de algum acto legalmente imposto, nem retira à decisão de congelamento agora impugnada a sua validade e eficácia.
O arguido é a pessoa que é formalmente constituída como sujeito processual, nessa qualidade, ou que, por efeito da prática de certos actos processuais vem a assumir esse estatuto processual. É a qualidade relativa a quem corre processo penal como eventual responsável pelo crime que constitui objecto desse mesmo processo.
Só pode ser constituída como arguida a pessoa singular ou colectiva em relação a quem exista «fundada suspeita da prática de crime» (com a reforma introduzida no Código de Processo Penal pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, o grau de suspeita subjacente à constituição como arguido passou a ser mais exigente para impedir constituições automáticas e causadoras de restrições injustificadas a direitos fundamentais).
A constituição de arguido pode e deve ser realizada através da comunicação feita ao visado por uma autoridade judiciária ou um órgão de polícia criminal (artigo 58º nº 2 do CPP), sem que seja exigida qualquer formalidade especial, podendo a mesma revestir a forma oral ou a forma escrita.
Por seu turno, os arts. 57º a 59º enumeram os diversos actos processuais que determinam a assunção da qualidade de arguido, as quais têm em comum a existência da tal «fundada suspeita da prática de crime» e são eles:
a) A dedução da acusação ou a apresentação de requerimento de abertura da instrução num processo penal (artigo 57º nº 1 do CPP);
b) A prestação de declarações por pessoa contra quem corre inquérito perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal (artigo 58º nº 1 alínea a) do CPP);
c) A aplicação de uma medida de coacção ou de garantia patrimonial (artigo 58º nº 1 alínea b) do CPP);
d) A detenção como suspeito (artigo 58º nº 1 alínea c) do CPP);
e) A elaboração de um auto de notícia que resulte que uma pessoa é identificada como agente de um crime e aquele lhe for comunicado, salvo se a notícia for manifestamente infundada (artigo 58º nº 1 alínea d) do CPP);
f) Quando, no decurso de um inquérito de pessoa que não é arguido, surja a fundada suspeita de crime por ela cometido (artigo 59.º, n.º 1 do CPP); e
g) Quando o suspeito solicite esse estatuto, sempre que estiverem a ser efectuadas diligências destinadas a comprovar a imputação, que pessoalmente o afetem (artigo 59º nº 2 do CPP).
O arguido, a partir da respetiva constituição (momento de aquisição desse estatuto processual), passa ter um conjunto de direitos e deveres processuais, por força do seu estatuto processual (artigos 60º e 61º do CPP).
Só pode ser constituído arguido quem, pessoalmente, se encontrar nalguma das condições subsumíveis às previsões contidas nos arts. 57º nº 1; 58º nº 1 als. a) a d) ou 59º nºs 1 e 2 do CPP, porque só pode ser criminalmente responsabilizado quem tenha praticado um crime, o que está em perfeita sintonia com a natureza pessoalíssima da responsabilidade criminal, nos termos consagrados no art.º 30º nº 3 da CRP, sendo certo que a tutela judicial do acervo de direitos de intervenção no processo e de organização da defesa previstos no art.º 61º do CPP e a sua consequente imposição à autoridade judiciária dependem da prática de um acto processual – a constituição como arguido, nos termos do art.º 60º do CPP.
Nos termos do art.º 58º nº 4, sempre que a constituição como arguido seja feita por órgão de polícia criminal é comunicada à autoridade judiciária no prazo de 10 dias e por esta apreciada, em ordem à sua validação, no prazo de 10 dias.
E por imposição do nº 5, a constituição de arguido implica a entrega, sempre que possível no próprio acto ou sem demora injustificada, de documento de que constem a identificação do processo e do defensor, se este tiver sido nomeado, e os direitos e deveres processuais referidos no artigo 61.º e deverá ser traduzido e explicados os direitos e deveres previstos no mesmo normativo, sempre que o arguido não conheça nem domine a língua portuguesa, para língua que ele compreenda.
A preterição destas formalidades tem como consequência que as declarações prestadas por arguido com omissão ou violação das mesmas sejam considerados meios proibidos de prova, nos termos do nº 7 do mesmo art.º 58º, com excepção da validação da constituição de arguido pela autoridade judiciária, tal como resulta do nº 8 do referido normativo.
O princípio constitucional da plenitude das garantias de defesa, a que se refere o art.º 32º nº 1 da Constituição, postula a necessidade de o arguido conhecer, na sua real dimensão, os factos cuja autoria lhe é atribuída, para que os possa rebater, apresentado provas, prestando declarações, em suma, organizando a sua defesa.
A garantia constitucional do acesso a um processo justo e equitativo densifica-se em várias regras de que se destacam o direito à igualdade de armas e de tratamento, no processo, sendo proibidas todas as diferenças de tratamento arbitrárias; a proibição da indefesa e o direito ao contraditório, traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e direito, oferecer provas, controlar a admissibilidade e a produção das provas da outra parte e pronunciar-se sobre o valor e resultado de umas e outras e, em geral, em condições de igualdade e ao longo de todo o processo, influenciarem as decisões a proferir, quanto aos factos e quanto à aplicação do direito, por forma a que nenhuma decisão seja tomada pelo tribunal sem prévia possibilidade de os intervenientes no processo a discutirem, contestarem e valorarem, o direito a prazos razoáveis de acção e de recurso, sendo proibidos os prazos de caducidade demasiado exíguos; o direito à fundamentação das decisões; o direito à decisão em prazo razoável; o direito de conhecimento dos dados do processo; o direito à prova e o direito a um processo orientado para a prossecução da justiça material (Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, pág. 415 e 416, do vol. I, da 4.ª edição, da Coimbra Editora. No mesmo sentido, Miguel Teixeira de Sousa, «A jurisprudência constitucional portuguesa e o direito processual civil», XXV Anos de Jurisprudência Constitucional Portuguesa, Coimbra Editora, 2008, p. 72; Guilherme Fonseca, «A defesa dos direitos - princípio geral da tutela jurisdicional dos direitos fundamentais», Boletim do Ministério da Justiça, n.º 344, 1985, p. 38; Lopes do Rego, «Os princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos ónus e cominações e o regime da citação em processo civil», Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra Editora, 2003, p. 835 e Lopes do Rego, «Acesso ao direito e aos tribunais», Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Aequitas, 1993, p. 44; id., «O direito fundamental do acesso aos tribunais e a reforma do processo civil», Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, pp. 745 e 747; Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 353/2008, 301/2009, 286/2011, 350/2012, 90/2013, 778/2014, 510/2015, 193/2016, 251/2017 e 675/2018, in https://www.tribunalconstitucional.pt).
A fórmula do nº 1 do art.º 32º da Constituição «é, sobretudo, uma expressão condensada de todas as normas restantes deste artigo, que todas elas são, em última análise, garantias de defesa. Todavia, este preceito introdutório serve também de cláusula geral englobadora de todas as garantias que, embora não explicitadas nos números seguintes, hajam de decorrer do princípio da proteção global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal. Em “todas as garantias de defesa” engloba-se indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação. Dada a radical desigualdade material de partida entre a acusação (normalmente apoiada no poder institucional do Estado) e a defesa, só a compensação desta, mediante específicas garantias, pode atenuar essa desigualdade de armas. Este preceito pode, portanto, ser fonte autónoma de garantias de defesa. Em suma, a “orientação para a defesa” do processo penal revela que ele não pode ser neutro em relação aos direitos fundamentais (um processo em si, alheio aos direitos do arguido), antes tem neles um limite infrangível.» (J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., 2007).
Estas garantias de defesa constitucionalmente reconhecidas estão materializadas nos direitos e deveres que, segundo o art.º 61º do CPP, integram o estatuto processual de arguido.
A tutela judicial do acervo de direitos de intervenção no processo e de organização da defesa previstos no art.º 61º do CPP e a sua consequente imposição à autoridade judiciária dependem, pois, da prática de um específico acto processual que é a constituição como arguido, nos termos do art.º 60º do CPP.
Ora, até à decisão de suspensão temporária das operações bancárias, nem sequer existe qualquer procedimento criminal, de resto, nem notícia do crime, mas apenas meras suspeitas assentes em determinados factos objectivos, actos ou negócios jurídicos aos quais a Lei associa riscos de serem ou terem sido instrumentos de branqueamento de capitais ou formas de financiamento de terrorismo.
Depois da decisão de congelamento, o que pode ser considerado como existente, é apenas um auto de notícia (para além da apreensão dos bens e valores, destinados a comprovar a prática dos crimes ou de branqueamento, ou de terrorismo e de outras provas documentais que tenham sido recolhidas e que constituirão meios de prova para o inquérito).
Como é sabido, o auto de notícia é apenas o primeiro acto do que poderá vir a ser, então sim, um processo oficial e, consequentemente, um inquérito, tal como o mesmo está configurado no CPP, como a fase inicial do procedimento criminal, que é essencialmente de investigação destinada a apurar da existência de um crime, determinar a identidade dos seus agentes e a responsabilidade deles, descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação.
A obrigatoriedade de realização do inquérito confunde-se com dever de investigar do Mº. Pº., cuja configuração resulta da conjugação das atribuições e competências que em matéria de investigação criminal e acção penal lhe estão estatutariamente atribuídas, nos termos dos arts. 3º nº 1 al. c); 47º; 58º e 63º da Lei 47/86, de 15.10, segundo a redacção da Lei 114/2017, de 29.12 e das regras específicas que regem a tramitação do processo penal, com especial enfoque, nos arts. 48º a 56º do CPP e nas que se referem às finalidades e razão de ser do inquérito, contidas nos arts. 262º e seguintes do mesmo código.
A verificação cumulativa de duas circunstâncias: a notícia de factos em relação aos quais não seja evidente, nem notório que os mesmos são destituídos de tutela penal (seja por via da prescrição, de amnistia, da extinção do direito de queixa, de despenalização resultante da sucessão de leis penais no tempo, ou da manifesta falta de tipicidade) e as diligências probatórias de investigação, é o que determina a obrigatoriedade do inquérito.
O domínio próprio para o exercício das garantias de defesa é, precisamente, o processo penal regido, entre outros princípios, pelo da oficialidade e este pressupõe a existência de um inquérito formal já instaurado.
Antes dele, existem, eventualmente, medidas cautelares com uma natureza mais ou menos intrusiva de direitos, liberdades e garantias, que até podem assumir e assumem mesmo a natureza jurídica de actos processuais, de que a suspensão temporária de operações financeiras não é, sequer, o único exemplo, tal como o ilustram a previsão das buscas e das escutas como meios de obtenção de prova, no CPP, e todas as cautelas do legislador em torno da sua regulamentação, quer do ponto de vista da catalogação de crimes para cuja investigação são admissíveis, quer dos requisitos de validade formal e substancial essenciais à sua validade e eficácia, quer quanto ao tempo e ao modo como é feito o controlo jurisdicional da sua execução e que prescindem da prévia constituição do suspeito como arguido e em relação a cuja realização também não está previsto o exercício de qualquer contraditório, sem que o processo perca a sua natureza de processo justo e equitativo, como é próprio do Estado de Direito Democrático que é a República Portuguesa.
Antes do inquérito e paralelas a este podem existir realidades que sejam consideradas como investigação criminal. Esta será uma fase processual em que são praticados actos precários de obtenção e conservação da prova e que depois podem dar origem a um inquérito. O CPP dá a esta fase o nome de fase da notícia do crime e regula-a, nos arts. 241º a 261º.
Do mesmo modo que a Lei 83/2017 de 18 de Agosto prevê e regula os procedimentos de suspensão temporária de operações financeiras e o congelamento, em fases prévias à da notícia do crime e para o efeito de recolha de provas que possam vir a ser utilizadas na investigação subsequente a realizar, já no âmbito de um inquérito.
O acto de constituição de arguido é, pois, estranho ao procedimento de suspensão temporária e congelamento de operações financeiras regulado na Lei 83/2017 de 18 de Agosto.
É que, para prevenir a possibilidade de, afinal, o que era uma mera suspeita não ser, sequer, um indício e, portanto, não poder alicerçar uma notícia de crime apta a desencadear um processo crime, a suspensão temporária de operações financeiras tem de ser necessariamente prévia e exterior à instauração de qualquer inquérito e, consequentemente, anterior à constituição do suspeito como arguido, porque é precisamente para aferir da viabilidade da mera suspeita como uma real notícia de crime e da efectiva necessidade de se iniciar uma investigação criminal que o procedimento de suspensão temporária de operações financeiras existe e está, de resto, sujeito a normas especiais, próprias.
Não se regem pelos pressupostos previstos nos arts. 191º e seguintes do CPP, pois que não se trata de uma medida de coacção ou de garantia patrimonial e daí que não lhe sejam aplicáveis as regras contidas, naqueles arts. 191º e seguintes, incluindo, no art.º 192º, que exige como condição prévia essencial à aplicação de qualquer medida de coacção ou de garantia patrimonial, a constituição de arguido.
Para além disso, servindo a suspensão temporária de operações financeiras para interromper ou impedir o que pode ser uma actividade criminosa altamente perigosa e prejudicial para a vida comunitária, as garantias de defesa têm, necessariamente, de ceder em benefício da eficácia e celeridade do respectivo procedimento, dada a urgência na recolha da prova, sem que os visados estejam de pré-aviso e a necessidade de assegurar uma forma expedita de quebrar a ligação dos fundos com a sua real origem ilícita.
«Em causa está uma medida de natureza preventiva e repressiva, nomeadamente de combate ao branqueamento de vantagens de proveniência ilícita, o que só pode ser alcançado de forma eficaz com medidas próprias, como a decretada, de forma a evitar que o agente faça desaparecer os valores detectados, nomeadamente através de transferências internacionais facilmente exequíveis, em particular quando podem estar em causa agentes experientes em actividades económico-financeiras internacionais.
«Compreende-se que não seja exigida a constituição de arguido, pois não se está perante uma medida de coacção ou de garantia patrimonial – daí a inaplicabilidade do regime previsto no artigo 191º e segs, do CPP - mas antes de um instrumento do regime específico cautelar e de obtenção de prova instituído para superar alguns pontos de bloqueio na investigação da criminalidade económico-financeira organizada» (Ac. da Relação de Lisboa de 07.05.2019, proc. 963/18.0TELSB-B.L1-5. No mesmo sentido, Acs. da Relação de Lisboa de 06.10.2020, proc. 261/20.9TELSB-A.L1-5 e 10/03/2021, no mesmo processo; Ac. da Relação do Porto de 14.07.2020, proc. nº 109/19.7TELSB-A.P; Ac. da Relação de Lisboa de 19.10.2021, proc. 513/20.8TELSB-B.L1-5, Ac. da Relação de Lisboa de 03.05.2022, proc. 261/20.9TELSB-E.L1-5, Ac. da Relação de Lisboa de 23.04.2024, proc. 85/23.1TELSB-B.L1-5, in http://www.dgsi.pt).
Nem o princípio do processo justo e equitativo, nem as garantias de defesa previstos nos arts. 20º e 32º da CRP correspondem a direitos absolutos, sendo, de resto, da permanente tensão entre eles, onde avultam o direito ao contraditório e ao recurso, por exemplo, e o poder público de administrar justiça penal e de combater e reprimir a criminalidade que vivem o direito penal e o direito processual penal.
E é o que acontece, precisamente, com a aplicação das medidas preventivas previstas nos arts. 48º e 49º da Lei 83/2017 de 18 de Agosto.
Atenta a sua peculiar natureza jurídica, preventiva, repressiva, cautelar e provisória, o carácter urgente das finalidades de cessação de actividades criminosas altamente organizadas ou especialmente violentas que prossegue, as quais postulam um regime jurídico excepcional, as garantias de defesa ficam restringidas à notificação das decisões jurisdicionais que forem sendo proferidas, à possibilidade de apresentação de contraprova que possam demonstrar que as suspeitas determinantes da suspensão temporária das operações financeiras e/ou da sua prorrogação são infundadas, operando, por via do princípio «rebus sic stantibus» a alteração ou a revogação dessas decisões e o direito ao recurso.
Por conseguinte, nas questões de a suspensão e o subsequente congelamento das contas bancárias e acesso a cofres e correspondentes quantias monetárias terem sido decididos sem prévio contraditório e fora do âmbito de um inquérito formal e antes e à margem de qualquer acto de constituição de arguido, os recursos improcedem, porque são da própria natureza do procedimento previsto nos arts. 47º a 49º da Lei 83/2017 de 18 de Agosto e não constituem qualquer violação seja de que garantia de defesa ou princípio constitucional, contendo-se nos limites da função modeladora do legislador ordinário, quanto ao equilíbrio que se impões estabelecer entre as garantias do processo justo e equitativo e do processo penal e os deveres do Estado de combater e reprimir formas mais graves, mais violentas e mais organizadas de criminalidade e de assegurar a paz social.
Não está em causa que um processo justo e equitativo, para o ser, também deva ser um processo célere, que defina a situação jurídica e processual das pessoas indicadas como suspeitas da prática de comportamentos que possam ser qualificados como crimes, em ordem a estabelecer a sua culpabilidade ou a sua inocência e a retirar as consequências devidas de uma e outra conclusões, dentro do próprio processo, proferindo uma decisão final de condenação ou de absolvição, no mais breve tempo possível, a partir da obtenção da notícia do crime.
Esta é, aliás, uma imposição que resulta das previsões contidas nos nºs 4 e 5 do art.º 20º da CRP, nos termos dos quais, todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo, sendo que, para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei garante procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos, assim como da imposição contida no art.º 32º nº 2, parte final, de que o arguido seja julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa, considerando, ainda, as proibições constitucionais de sujeição a penas ou medidas de segurança de carácter perpétuo ou de duração indefinida ou ilimitada e de perda dos direitos direitos civis, profissionais ou políticos, como consequência das sanções penais, bem assim da incolumidade da titularidade dos direitos fundamentais, ressalvadas as limitações inerentes ao sentido da condenação e às exigências próprias da respectiva execução, nos termos consagrados no art.º 30º da CRP.
Daí que logo que exista a suspeita da prática de actos com tutela penal, o CPP determine a constituição da pessoa visada como arguida, já que o estatuto jurídico-processual de arguido é ele próprio, uma garantia, contra eventuais arbitrariedades, ilegalidades ou abusos do poder público no exercício do seu «jus puniendi».
É, evidentemente, uma das manifestações do processo justo e equitativo e quanto mais cedo o arguido adquirir o seu estatuto, como tal, com toda a panóplia de direitos e deveres que, nos termos dos arts. 32º da CRP e do art.º 61º do CPP, poderá exercer e a que está sujeito, mais a investigação ganha em legitimidade democrática, pela natureza dialética e mais equilibrada em termos de contraditório e de igualdade de oportunidades de aduzir argumentos de facto e de direito e apresentar provas concedidas aos sujeitos processuais - Mº. Pº. e Arguido.
E mais ganha também em qualidade de informação recolhida sobre a existência ou inexistência de um crime e da identidade do seu autor e em celeridade quanto à decisão de acusar ou de arquivar o processo, precisamente, em resultado da dinâmica mais adversial e contraditória que se instala no processo, em resultado da constituição do suspeito como arguido.
Porém, no caso vertente, foram respeitados os prazos legais de duração da suspensão das operações bancárias visando os recorrentes estabelecidos no art.º 49º nº 2 da Lei 83/2017 de 18 de Agosto e, no que se refere à decisão de congelamento dos saldos existentes nas referidas contas depósito, tendo a mesma sido proferida em 8 de Abril de 2024, iniciando-se só então, formalmente, o inquérito.
É certo que, no decurso do inquérito, os actos de constituição dos recorrentes como arguidos são obrigatórios e a sua omissão geradora de nulidade por insuficiência do inquérito, nos termos do art.º 120º nº 2 al. d) do CPP (Ac. STJ de Fixação de Jurisprudência nº1/2006, de 23-11-2005, in DR, nº 1, Série I A de 2-01-2006: A falta de interrogatório como arguido, no inquérito, de pessoa determinada contra quem o mesmo corre, sendo possível a notificação, constitui a nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal).
Mas o que é igualmente certo é que é ao Mº. Pº. que compete, exclusivamente e com autonomia, dirigir a fase de inquérito decidindo que diligências probatórias e quando há-de realizar as que reputar pertinentes e adequadas à investigação do crime e dos seus agentes, desse modo recolhendo as provas que irão fundamentar a sua decisão de acusar ou não, (artigos 263º, 264º e 267º do CPP e art.º 219º nº 2 da CRP), só não estando excluídas de controlo jurisdicional, os aspectos da investigação que interfiram com direitos, liberdades e garantias.
Tudo, para concluir que, por ora, se afigura prematuro retirar, seja que consequências jurídicas da circunstância de os recorrentes ainda não terem sido constituídos arguidos.
Nos recursos, ambos os recorrentes colocam em crise a verificação dos pressupostos de que depende a admissibilidade do congelamento do dinheiro depositado nas contas bancárias e cofres mencionados no despacho recorrido.
Como instrumento de obtenção de recolha de prova e de informações relevantes para a investigação, pese embora de entre o elenco das provas contido no CPP seja com a apreensão que tem mais semelhança, a suspensão temporária de operações financeiras também não faz apelo aos pressupostos de que dependem os meios de obtenção de prova por apreensão regulados no art.º 181º do CPP, daí que também não lhe sejam aplicáveis as regras ali previstas, o que vale por dizer, que prescinde da existência de indícios fortes ou suficientes da prática de algum dos crimes do catálogo, bastando-se com meras suspeitas da sua existência, sob pena de frustração das finalidades repressivas e preventivas assumidamente consagradas na Lei 83/2017 de 18 de Agosto dirigidas à cessação ou evitamento de práticas de branqueamento de capitais e de utilização do sistema financeiro para o efeito.
«Constituindo uma medida temporária preventiva e para efeitos de obtenção de prova na investigação de atividade criminosa, cabe referir que a lei em questão (Lei 83/2017 de 18 de Agosto) nos arts. 47º e 48º não exige fortes indícios ou sequer uma base de indiciação na aferição da medida que está a ser apreciada, antes prevendo cenários de suspeita e de conhecimento por parte das autoridades de investigação de operações suspeitas. (…) a lei n.º 83/2017 somente no art.º 49º nº 6 para a medida de maior envergadura do congelamento de fundos exige que se encontre indiciado que os fundos “são provenientes ou estão relacionados com a prática de actividades criminosas ou com o financiamento do terrorismo e se verifique o perigo de serem dispersos na economia legítima.”» (Ac. da Relação do Porto de 10.03.2021, proc. 109/19.7TELSB-C.P1 in http://www.dgsi.pt).
«A medida de suspensão temporária de operações bancárias não depende da existência de indícios, mas apenas de suspeitas da existência de um crime de catálogo e constitui um mecanismo necessariamente expedito, destinado a prevenir ou a evitar o prosseguimento de uma actividade criminosa de branqueamento, sem prejuízo de se revelar, secundariamente; um instrumento de obtenção de recolha de prova e de informações relevantes para a investigação» (Ac. da Relação de Lisboa de 19.10.2021, proc. 513/20.8TELSB-B.L1-5, in http://www.dgsi.pt. No mesmo sentido, Ac. da Relação de Lisboa de 23.04.2024, proc. 85/23.1TELSB-B.L1-5, na mesma base de dados).
O presente procedimento visa a recolha de informação e de provas que sustentem as suspeitas iniciais da prática, pelos recorrentes, dos crimes de crimes de fraude fiscal qualificada, previsto e punível pelos artigos 103º e 104º do RGIT e de violação de medidas restritivas, previsto e punível pelo artigo 28º da Lei n.º 97/2017 de 23 de Agosto, e que as contas bancárias congeladas têm sido utilizadas para receber e transferir tais quantias, conduta essa subsumível ao crime de branqueamento, previsto e punível pelo artigo 368º-A do Código Penal.
Do despacho recorrido, ainda que por remissão para a descrição factual contida na promoção do Mº. Pº., constam circunstâncias detalhadas sobre a sucessão de acontecimentos relacionados com a constituição, fusão e agrupamento de sucessivas sociedades comerciais, sua natureza, repartição de capital, identificação de sócios e/ou beneficiários, constituição de contas bancárias, todo o iter cronológico de transferências, depósitos, fluxos financeiros, situação económica e fiscal das diversas empresas, ligações dos recorrentes a outras pessoas com interesses societários e patrimoniais nessas sociedades, aquisições de bens.
Trata-se de factos que se encontram ilustrados em documentos oportunamente feitos chegar aos autos, em cumprimento dos deveres de informação e colaboração previstos nos arts. 43º a 46º da Lei 83/2017 de 18 de Agosto.
Não há notícia de que algum dos recorrentes tenha requerido a produção de meios de prova ou de obtenção de prova ou juntado meios probatórios em ordem a neutralizar este juízo indiciário, na sequência das notificações dos despachos judiciais que foram determinando, primeiro a suspensão temporária de qualquer tipo de operações, actos ou negócios jurídicos sobre os saldos existentes nas contas , de seguida, a prorrogação do prazo de duração da suspensão e agora, o congelamento das importâncias em dinheiro existentes nessas contas.
As alegações exaradas nas conclusões VII a XIV do recurso da recorrente BB e as alegações incluídas nas conclusões L e N do arguido AA se comprovadas, são realmente relevantes para contrariar os indícios da prática dos crimes em investigação neste processo.
Mas, para que tal suceda, é preciso que sejam comprovadas.
Neste preciso momento processual, são apenas meras afirmações não sustentadas em provas concretas, nem em regras de experiência ou de senso comum, por isso, sem aptidão para colocar em crise o juízo indiciário em que assentou a decisão recorrida de determinar o congelamento.
Assim, perante a natureza e intensidade dos indícios, também não restam dúvidas de que foram observados os princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade.
Com efeito, a inobservância dos princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade, não podem ser aferidos pela privação do uso dos rendimentos congelados imposta às pessoas visadas, em si mesma considerada, mas pela susceptibilidade de a decisão de congelamento impedir ou interromper o circuito trifásico de reciclagem (integração, ocultação e integração) dos bens ou vantagens patrimoniais resultantes de factos típicos e ilícitos das espécies previstas no art.º 368º A nº 1 do Código Penal e pela sua indispensabilidade, no confronto ou comparação com outras medidas legais disponíveis.
Face às informações e documentos até agora recolhidos, os crimes em investigação estão indiciados, o risco de dissipação dos fundos e da sua integração no sistema económico legítimo é real e não se vislumbra que outro mecanismo processual que não o congelamento determinado na decisão recorrida seja apto a impedir a prossecução das actividades de camuflagem e dissipação do dinheiro congelado.
Não se ignora o grau de compressão, no direito de propriedade privada e, por via da privação da utilização das quantias monetárias ou bens abrangidos na decisão de suspensão e de congelamento, nem que este tipo de decisões envolve o condicionamento de certas vertentes da liberdade individual, especialmente, as que envolvam o dispêndio, rentabilização ou uso e administração desses valores e desses bens.
Mas, além de não ser verdade que os recorrentes estejam totalmente privados das quantias monetárias congeladas, considerando a possibilidade prevista no art.º 49º nº 5 da Lei 83/2017 de 18 de Agosto da qual resulta que as pessoas visadas por estas medidas restritivas não perdem a titularidade e o domínio de facto sobre as quantias, embora com algumas limitações, o problema é que o branqueamento de capitais e o terrorismo, pela sua transcendente danosidade social, atendendo aos bens jurídicos que a sua incriminação visa proteger e ao largo espectro de prejuízos que causam, postulam necessidades acrescidas de combate e repressão, tratando-se de formas de criminalidade especialmente violenta e altamente organizada segundo a qualificação contida no art.º 1º als. l) e m) do CPP.
É da própria da natureza peculiar do procedimento de suspensão temporária de operações financeiras, a prática de actos de natureza acentuadamente cautelar, repressiva e provisória para responder de forma rápida e eficiente à existência do risco de consumação de crimes de branqueamento de capitais e de financiamento de actividades terroristas, ainda que só sustentado em meras suspeitas, a partir de determinados factos objectivos qualificados como potenciais manifestações da prática desses tipos de crime.
Quanto à argumentação dos recorrentes relacionada com a duração tendencialmente indefinida das medidas repressivas e preventivas a que se referem os arts. 47º a 49º da Lei 83/2027 de 18 de Agosto, a mesma não tem fundamento, porquanto a vigência de tais medidas está sujeita a um prazo máximo e peremptório de caducidade que, nos termos do art.º 49º nº 2 da referida Lei, coincide com os prazos legais previstos no CPP para a duração do inquérito e que a caducidade é uma das causas de extinção dos direitos ou das situações jurídicas a que se refere.
Em face de tudo quanto fica exposto e em conformidade com toda a argumentação explanada, não se vislumbra que a decisão recorrida tenha feito qualquer interpretação desconforme às normas contidas nos artigos 18.º, 20.º, n.ºs 1 e 4, 32.º, n.º 1, e 62.º, da Constituição da República Portuguesa.
Por fim, veio ainda o recorrente AA invocar a violação do princípio da igualdade, porque, em seu entender, a afirmação repetida da sua condição de nacional russo constituí uma presunção de culpabilidade.
Na sua vertente negativa, o princípio da igualdade, consagrado no art.º 13º da CRP proíbe quaisquer privilégios e discriminações, e na sua vertente positiva, abrange cinco dimensões: o tratamento igual de situações iguais, o tratamento desigual de situações substancial e objetivamente desiguais, o tratamento das situações relativamente iguais ou desiguais de acordo com o princípio da proporcionalidade, o tratamento das situações não apenas como existem mas como devem existir e, finalmente, a consideração do princípio da igualdade não por si só, isoladamente, mas na sua relação com os valores e padrões materiais da Constituição (Maria Lúcia Amaral, «O princípio da igualdade na Constituição portuguesa», in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Armando M. Marques Guedes, Coimbra, Coimbra Editora, 2004, págs. 35-57. No mesmo sentido, Acórdãos do Tribunal Constitucional, nºs n.º 44/84, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 3.º vol., 1984, págs. 133-146, 144-145, n.º 157/88, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 12.º vol., 1988, págs. 107-150, 139, n.º 186/90, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 16.º vol., 1990, págs. 383-394, 390, n.º 370/94, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 28.º vol., 1994, págs. 169-180, 178, n.º 232/2003, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 56.º vol., 2003, págs. 7-51, n.º 353/2012, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 84.º vol., 2012, págs. 125-153, n.º 594/2012, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 85.º vol., 2012, págs. 305- 316, n.º 187/2013, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 86.º vol., 2013, nº 195/2017, in http://tribunalconstitucional.pt).
O princípio da igualdade, ou melhor a acusação da sua violação feita pelo recorrente AA não tem qualquer relevo, nem pertinência, numa situação como aquela que aconteceu nos presentes autos e contra a qual o recorrente se insurge, pois que a afirmação da sua nacionalidade tem sido tão repetida, quanto têm sido repetidas as circunstâncias concretas, que constituem os indícios da proveniência ilegítima dos fundos transferidos para as contas bancárias de que os recorrentes são titulares e que foram objecto do congelamento imposto pela decisão recorrida e, bem assim, aquelas que revelam a existência do perigo de dissipação dos fundos e da sua inserção na economia legítima.
A circunstância de o recorrente ser russo, parece incontornável, porque essa é realmente a sua nacionalidade.
Em nenhum excerto da decisão recorrida se denota a formulação, seja de que juízo de culpabilidade, nem podia, porque o que estão em causa, são apenas indícios da prática de determinados crimes integrados no catálogo daqueles que a Lei 83/2017 de 18 de Agosto permite a suspensão temporária e o posterior eventual congelamento de operações bancárias e dos fundos existentes nas contas depósito.
Em todo o caso, não foi por ser russo que contas bancárias do recorrente AA foram congeladas como, de resto, o evidencia o próprio texto da decisão recorrida.
As razões do congelamento só incidentalmente se referem à nacionalidade russa do recorrente, em virtude das ligações políticas, societárias e de grande proximidade existencial com pessoas e empresas russas, inseridas em listagem de pessoas sancionadas no contexto das medidas restritivas resultantes da guerra que opõe a Rússia e a Ucrânia e que constam de regulamentos que integram o direito da união a que Portugal está vinculado e os seus residentes também, com força obrigatória geral.
Porém, o que determinou a decisão do congelamento sobre que versam os recursos, foi todo um iter sequencial lógico e cronológico de transferências bancárias desde contas depósito sediadas em instituições de crédito russas, ligações e posições societárias e múltiplos contratos de compra e venda de imóveis e de aquisição de veículos automóveis de e por sociedades comerciais ou agrupamentos de empresas detidas por pessoas de nacionalidade russa inseridas em listagens de pessoas visadas pelas referidas sanções e pelos recorrentes, todos agindo em parcerias contratuais, transacções comerciais recíprocas ou em ligações existenciais estreitas uns com os outros, que ilustram uma forte probabilidade de dinheiro proveniente da Rússia e de actividades económicas desenvolvidas por pessoas nacionais russos, sem título de residência em Portugal, inibidas de as desenvolverem no espaço económico europeu, coloquem no sistema financeiro nacional quantias superiores a € 100.000,00, mediante a utilização das contas bancárias e das empresas de que os recorrentes são titulares e/ou sócios.
Em suma, foi em virtude de os fluxos financeiros de e para as referidas contas bancárias sediadas em Portugal e tituladas pelos recorrentes aparentar todo um conjunto de actos e negócios jurídicos envolvendo países terceiros de risco elevado na acepção do artigo 37º, pessoas politicamente expostas (PEP) e titulares de outros cargos políticos ou públicos, nos termos previstos no artigo 39º da Lei 83/2017 de 18 de Agosto e enquadrados pelo contexto histórico actual de uma guerra que opõe a Rússia e a Ucrânia e de, em resultado dela e por causa dela, e à luz do Regulamento (UE) n. º 833/2014 do Conselho, de 31 de Julho de 2014, que impõe medidas restritivas tendo em conta as acções da Rússia que desestabilizam a situação na Ucrânia, na sua actual redacção (https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:02014R), assim como pela tipificação do crime de violação de medida restritiva imposta pela Organização das Nações Unidas ou pela União Europeia, p. e p. pelo art.º 28º nº 1 da Lei nº 97/2017 de 23 de Agosto, estarem em vigor sanções aplicáveis, entre outros, a cidadãos de nacionalidade russa e pessoas colectivas russas, que envolvem restrições substanciais na liberdade de circulação de bens, mercadorias e valores e a sua violação ser susceptível de integrar, em abstracto, o crime violação de medidas restritivas.
Note-se que o art.º 28º da referida Lei 97/2017 de 23 de Agosto, tipifica como crimes os comportamentos de quem, nos termos do nº 1, «violando uma medida restritiva, colocar, direta ou indiretamente, à disposição de pessoas ou entidades designadas, quaisquer fundos ou recursos económicos que as mesmas possam utilizar ou dos quais possam beneficiar, ou executar transferência de fundos proibida, é punido com pena de prisão de um até cinco anos» e os de quem, segundo a descrição típica do nº 2, «violando uma medida restritiva, estabeleça ou mantenha relação jurídica proibida com pessoas ou entidades designadas ou constitua, adquira ou aumente a participação ou posição de controlo relativo a imóvel, empresa ou pessoa coletiva, ainda que irregularmente constituída, situados, registados ou constituídos num território identificado nos atos de aprovação ou aplicação da medida».
Na medida em que o limite mínimo da respectiva moldura penal abstracta é superior a seis meses, trata-se de crimes integrados no catálogo inserto no art.º 368-A nº 1 do CP como precedentes do de branqueamento de capitais.
Entre muitas outras circunstâncias apuradas por efeito dos deveres de comunicação a que as instituições bancárias e outras estão obrigadas, nos termos da Lei 83/2017 de 18 de Agosto, destacam-se as seguintes:
As contas tituladas pela Recorrente BB que foram congeladas por imposição da decisão recorrida, foram sendo, quase em exclusivo, alimentadas por transferências provenientes de AA.
Assim, no decurso do ano de 2022 (em datas próximas e posteriores ao início da guerra entre a Rússia e a Ucrânia), AA, companheiro da Recorrente BB transferiu as seguintes quantias para uma conta em USD associada ao NUC 0-5233743 (objecto da decisão de congelamento) mais propriamente a conta BPI com o nº 0-5233743.306.001:
- Na data de 03-02-2022, fez transferir o montante de USD 2.000.000 de uma conta junto do RAIFFEISENBANK de Moscovo;
- Na data de 22-02-2022, fez transferir o montante de USD 1.000.000 de uma conta junto do RAIFFEISENBANK de Moscovo;
- Na data de 11-10-2022, fez transferir o montante de USD 3.000.000 a partir de uma conta junto do BANK GUTMANN AG, da Áustria, mas cujos fundos têm a sua numa conta titulada pelo Recorrente domiciliada na Rússia, tal como consta da informação que o próprio transmitiu ao BPI (cfr. comunicação do BPI de fls. 2 e ss. dos autos).
Aquando da comunicação à UIF, o BPI comunicava a sua pretensão de encerrar as contas detidas por AA, tendo recebido do mesmo, na data de 06-02-2023, instruções para transferir os fundos da conta em USD para a conta em Euros associadas ao NUC 0-5233743 e ainda para realizar uma transferência de USD 500.000 para uma conta sita no Chipre.
Existem ainda as seguintes quantias nas contas BPI associadas ao NUC 0-5233743 (€ 938.975,14 na conta nº 0-5233743.000.001, a que acresce um depósito a prazo de € 106.977,97 e o montante de USD 5.999.933,24 na conta n.º 0-5233743.306.001).
Entre 2015 e 2021 AA havia feito transferências para a conta em euros associada ao mesmo NUC num montante total de cerca de € 13.000.000,00, as quais foram associadas à venda da participação do mesmo na entidade UNICORN CAPITAL PARTNERS, que era um fundo que detinha interesses em várias sociedades Industriais na Rússia.
AA foi ainda associado, como beneficiário final, à entidade BLAKESLY LIMITED, com sede no Chipre, que foi titular, entre 2014 e 2018, de contas no BPI associadas ao NUC 0-51 05843.
Nessa conta, titulada pela BLAKESLY LIMITED, foram recebidos fundos, com origem na Suíça, das entidades OGO-ROD SGPS e ALENCOM GROUP INC, que, em 2018, atingiram um total de cerca de € 2.000.000,00. 
Verifica-se ainda que, em 2015 e 2016, a partir da referida conta da BLAKESLY LIMITED foram transferidos fundos, em benefício da sociedade nacional MIAN SGPS (NIPC: 510364420), para uma conta da mesma, junto do BPI, associada ao NUC 0-4859167.
Esta MIAN SGPS é detida pela CITERNE HOLDINGS LIMITED, sedeada no Chipre, que, por sua vez, é detida pela PIANTA INVESTMENTS LTD, sedeada nas Ilhas Seychelles, a qual tem como beneficiário final o cidadão russo CC, filho de DD, que se encontra casado com a cidadã EE.
DD e CC são alvo de sanções do Canadá e da Ucrânia, respectivamente (https://laws.justice,ec. ca/eng/regulations/sor-2014-58/fulltext.html e https://www.opensanctions.org/entities/NK- RmMMHViqq03ZJMbcekPh08/L) e EE é Vice-Primeira-Ministra da Rússia desde …, é alvo da Ficha de Pessoa Procurada emitida pela República Checa e figura no nº 1320 das pessoas sancionadas na listagem anexa ao Regulamento (UE) nº 269/2014).
Dos cerca de 20 milhões de euros que, entre 2015 e 2022, AA transferiu para as suas contas BPI associadas ao NUC 0- 5233743, foram identificados vários movimentos, ocorridos no decurso do ano de 2022, que revelam a circulação em benefício da Recorrente BB, titular de contas junto do BPI associadas ao NUC 3-4642375, abertas a 27-04-2011, nas quais, em 2022, foram recebidas, como se referiu, diversas transferências avultadas ordenadas por AA.
A Recorrente BB é também cidadã russa, residente em Portugal, pelo menos desde 2009, é titular de contas junto do BPI associadas ao NUC 3-4642375, abertas na data de 27-04-2011.
Nessas contas junto do BPI tituladas pela Recorrente BB, foram recebidas, em 2022, as seguintes transferências ordenadas por AA:
- A 14-01-2022, €200.000,00;
- A 28-02-2022, € 2.500.000,00;
- A 14-03-2022, € 2.050.000,00.
Sendo que, entre 03-02-2022 e 22-02- 2022, foram creditados na conta de AA (conta origem dos referidos fundos) USD3.000.000 de uma conta junto do RAIFFEISENBANK de Moscovo.
A Recorrente BB é, por sua vez, participante no capital social das sociedades PAVO GARDEN EDA e GRETTA VESTA SGPS, SA, afigurando-se que tem como sua sócia nas mesmas a referida entidade BLAKESLY LIMITED.
Através da referida GRETTA VESTA SGPS, BB participa ainda em várias outras sociedades nacionais, algumas das quais são utilizadas apenas para deter bens imobiliários, caso da BIENESTAR LDA e da CHIC TERRACE SA, e outras se encontram associadas a detenção e exploração de unidades ligadas à hotelaria e turismo, caso da SOBERHOUSE SA e da KMW SA, conexas com o designado HOTEL SENHORA DA GUIA, em Cascais. Verifica-se que, quer a GRETTA VESTA SGPS quer a sua participada de maior valor, a SOBERHOUSE SA, apresentaram resultados líquidos negativos, pelo menos desde 2017, em sede das suas declarações de IRC.
Foi com base, nestes fluxos monetários, ligações de proximidade política e societária, bem como na diferença entre os rendimentos próprios da BB e os aportes de AA à mesma, e face à origem dos fundos recebidos e movimentados a partir das contas bancárias objecto da medida de suspensão temporária de movimentação, tituladas por ambos os recorrentes tenham ligação a entidades sancionadas e/ou tenham sido movimentados em violação de medidas restritivas relativas ao conflito entre a Rússia e a Ucrânia.
Estas, entre outras, as circunstâncias determinantes da decisão de congelamento, na qual se refere expressamente que «AA é um cidadão russo, que exerceu cargos de responsabilidade política na Rússia e que mantém relação familiar com (...) BB, tendo filhos em comum; esta última controla diversas empresas cujas contas bancárias são alimentadas em exclusivo com fundos provenientes daquele - e, indirectamente, da Rússia -, sem que tais empresas tenham real actividade, servindo apenas para titular património imobiliário ou veículos de que aqueles são utilizadores/beneficiários; também as contas tituladas pela própria BB foram sendo, quase em exclusivo, alimentadas por transferências provenientes de AA, subsiste uma forte possibilidade de dissipação dos fundos para contas no estrangeiro - designadamente, como se verifica nos autos já ter acontecido, Dubai e Lituânia (Revolut).»
Ora, estas circunstâncias reconduzem-se a factos susceptíveis de integrar a prática de crimes de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 103º e 104º do RGIT e de violação de medidas restritivas, p. e p. pelo artigo 28º da Lei n.º 97/2017, de 23 de Agosto e de branqueamento de capitais, p. e p. pelo artigo 368º -A, do Código Penal.
Os motivos da decisão foram indícios da prática destes crimes e o perigo sério de dissipação das quantias monetárias depositadas por via da sua integração no sistema económico e financeiro lícito e não a nacionalidade do recorrente, não havendo, pois, qualquer violação do princípio constitucional da igualdade.
Os recursos improcedem, pois, na totalidade.
III – DECISÃO
Termos em que decidem:
Negar provimento aos recursos, confirmando, na íntegra, a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes, fixando a Taxa de Justiça em 5 UCs para cada um deles – art.º 513º do CPP.
Notifique.
*
Acórdão elaborado pela primeira signatária em processador de texto que o reviu integralmente (art.º 94º nº 2 do CPP), sendo assinado pela própria e pelos Juízes Adjuntos.
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Tribunal da Relação de Lisboa, 6 de Fevereiro de 2024
Cristina Almeida e Sousa
Francisco Henriques
Carlos Alexandre