Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2091/24.0YRLSB-5
Relator: SANDRA OLIVEIRA PINTO
Descritores: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
FORÇA EXECUTIVA
REVELIA
CAUSA DE RECUSA FACULTATIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/24/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
Decisão: DEFERIDA A EXECUÇÃO
Sumário: (da responsabilidade da relatora):
I- A previsão constante da alínea c) do nº 1 do artigo 3º do RJMDE exige, enquanto informação obrigatoriamente constante do MDE (para que o mesmo possa ser executado), a indicação da existência de uma sentença com força executiva, de um mandado de detenção ou de qualquer outra decisão judicial com a mesma força executiva nos casos previstos nos artigos 1º e 2º. O conceito de força executiva não se confunde com o de trânsito em julgado, tal como o mesmo é concebido no direito nacional.
II- O Estado requerido não pode recusar a execução do MDE com base numa decisão proferida na ausência – à revelia – do requerido, uma vez que tenha operado o circunstancialismo reportado em qualquer uma das alíneas do artigo 12º-A, nº 1 do RJMDE.
III- A previsão constante do nº 4 do artigo 12º-A do RJMDE, que corresponde à transposição do artigo 4º-A, nº 3 da Decisão-Quadro 2002/584/JAI do Conselho de 13 de junho de 2002, reporta-se à revisão da detenção pelo Estado de emissão, de acordo com o seu direito nacional, posteriormente à entrega. É, pois, ao Estado de emissão que cabe proceder a tal reapreciação.
IV- A pretensão do requerido de cumprir a pena em Portugal mostra-se manifestamente inviável, seja porque o Ministério Público não requereu que este Tribunal declarasse a sentença condenatória ... exequível em Portugal, confirmando as penas aplicadas, conforme exige o nº 3 do artigo 12º do RJMDE, seja porque está estabelecido nos autos que o requerido já impugnou a mesma no tribunal competente do Estado de emissão. O requisito da definitividade ou trânsito em julgado e executoriedade da decisão condenatória constitui pressuposto necessário do reconhecimento de sentença penal estrangeira que aplique penas de prisão (ou outra medida privativa da liberdade), como decorre da aplicação conjugada dos artigos 12º, nº 4, do RJMDE e 1º, 2º, nºs 1, alínea d) e 2, alínea j), 17º, nº 1, alínea i), § iii, e 26º da Lei nº 158/2015, de 17 de setembro, que “estabelece o regime jurídico da transmissão, (…) do reconhecimento e da execução, em Portugal, das sentenças em matéria penal que imponham penas de prisão ou outras medidas privativas da liberdade tomadas pelas autoridades competentes dos outros Estados membros da União Europeia (…)”, aqui aplicável, com as necessárias adaptações, ex vi daquele artigo 12º, nº 4.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
1. O Ministério Público junto deste Tribunal da Relação, ao abrigo do disposto no artigo 16º, nº 1 da Lei nº 65/2003, de 23 de agosto, tendo em vista a execução do Mandado de Detenção Europeu (MDE) emitido pelas Autoridades Judiciárias ..., apresentou AA, nascido em ........1942, em ..., de nacionalidade ..., titular do passaporte ..., válido até ........2028, residente em ..., para audição.
2. O requerido foi detido em Portugal pela autoridade policial portuguesa em 17 de julho de 2024, por existir uma indicação ao abrigo do artigo 26º, da Decisão 2007/533/JAI do Conselho, de 12 de junho de 2007, no sistema de informação Schengen, de Mandado de Detenção Europeu (com o registo número FRPR00002067287000001), para efeitos de captura e entrega a ..., para cumprimento da pena de 1 ano de prisão em que foi condenado no processo nº 2024/1014 do Tribunal da Comarca de ....
3. Em 18 de julho de 2024, procedeu-se a diligência de audição do requerido no Tribunal da Relação de Lisboa, nos termos do artigo 18º, da Lei nº 65/2003, de 23 de agosto (Regime Jurídico do Mandado de Detenção Europeu – RJMDE). Nessa diligência, o requerido declarou opor-se à execução do MDE e não renunciar à regra da especialidade. Na ocasião, o relator de turno considerou a manutenção da detenção desnecessária à obtenção do desiderato do mandado, tendo determinado que o detido aguardasse os ulteriores termos em liberdade, sujeito a TIR já prestado e à obrigação de se apresentar semanalmente no posto policial da área da sua residência.
4. Tendo requerido prazo para o efeito, veio AA, em requerimento datado de 27.07.2024 (refª Citius 704606), apresentar os fundamentos da sua oposição, alegando, em síntese, que:
“(…) resulta manifesta a falta de preenchimento de todos os pressupostos legais essenciais de que depende a emissão e consequente execução do mandado de detenção europeu emitido pelo Estado ... em 11/07/2024.
5. Em desfavor da extradição do aqui Oponente, resulta ainda a verificação de causa facultativa de recusa de execução do mandado de detenção europeu emitido pelo Estado ....
(…)
14. (…) do pedido de execução do mandado de detenção europeu formulado pelo Ministério Público não resulta a alegação de qualquer facto concreto que seja suscetível de se considerar subsumível ao elenco de hipóteses legais previstas no artigo 12.º-A da LMDE que excecionam a regra de recusa de execução do mandado.
15. O ónus de alegação (e prova) dos eventuais factos concretos suscetíveis de integrarem alguma das exceções à regra prevista no artigo 12.º-A, n.º 1, da LMDE, pertencia ao Ministério Público no requerimento inicial que desencadeou os presentes autos.
(…)
17. Uma vez que o Ministério Público não alegou no seu requerimento inicial qualquer facto concreto que seja apto a integrar alguma das hipóteses legais previstas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 12.º da LMDE, deverá prevalecer a regra legal estatuída no proémio da referida norma legal, atento o facto de o Oponente não ter estado presente no julgamento que conduziu à decisão condenatória proferida em ..., tal como resulta do facto alegado pelo Ministério Público no artigo 3.º do seu inicial requerimento.
(…)
24. Neste caso estaria em causa a força executiva da sentença condenatória proferida em 03/07/3024, no âmbito do processo-crime n.º 2024/1014 que pende junto do Tribunal da Comarca de ... em ....
25. Compulsado o mandado de detenção – o qual, reitera-se, encontra-se apenas em língua ..., não tendo sido junta aos presentes autos qualquer tradução – e a informação inserida no SIS, não decorre que a sentença condenatória proferida no âmbito do processo-crime n.º 2024/2014 disponha de força executiva.
26. Além do mais, não foram promovidas quaisquer diligências com vista à obtenção de informações complementares, ao abrigo do disposto no artigo 16.º, n.º 3, da LMDE, acerca da exequibilidade da sentença, carecendo os autos de informação essencial à boa decisão acerca da detenção do Oponente e execução do mandado de detenção europeu.
Ora:
27. A exequibilidade da sentença proferida pelo Tribunal de ..., que determinou a condenação da arguida em pena privativa da liberdade com duração superior a quatro meses é o facto que sustenta a detenção do Oponente e o respetivo pedido de execução do mandado de detenção europeu.
28. Pois que, não tendo a sentença condenatória força executiva, jamais se mostrará legalmente admissível a detenção do Oponente e a procedência do pedido de execução do mandado de detenção europeu.
29. A mera circunstância de ter sido proferida no Estado emissor uma “sentença emitida à revelia” não se revela suficiente para concluir que a sentença condenatória consubstancia uma sentença já transitada em julgado e, por isso, com força executiva.
30. Resulta assim manifesto que o mandado de detenção europeu carece da indicação de um facto essencial que legalmente fundamenta a detenção e entrega do aqui Oponente no Estado emissor do mandado europeu, sendo omisso relativamente a um pressuposto essencial ao deferimento do pedido de extradição dirigido pelo Estado ..., pois o mesmo visa o cumprimento de uma pena de prisão, que pressupõe um trânsito em julgado que não vem referido em tal mandado europeu.
31. A este propósito, prescreve o artigo 258.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, aqui aplicável subsidiariamente por força do artigo 34.º da Lei n.º 65/2003 de 23 de agosto, que:
“1 - Os mandados de detenção são passados em triplicado e contêm, sob pena de nulidade:
a) A data da emissão e a assinatura da autoridade judiciária ou de polícia criminal competentes;
b) A identificação da pessoa a deter; e
c) A indicação do facto que motivou a detenção e das circunstâncias que legalmente a fundamentam.”
32. Uma vez que o mandado de detenção europeu em causa nestes autos não contem a indicação da exequibilidade da sentença, ou seja, não indica o facto que motivou a detenção e que legalmente a fundamenta, encontra-se o mesmo ferido de nulidade, que aqui expressamente se argui para os devidos e legais efeitos, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 258.º, 118.º, n.º 1 e 120,º, todos do Código de Processo Penal, aqui aplicáveis por força da remissão expressa legalmente prevista no artigo 34.º da LMDE.
Sem prescindir, ainda,
33. In casu, e com fundamento no exposto supra, sempre se haverá de reconhecer que o mandado de detenção europeu não cumpre com todos os requisitos legais impostos pelo artigo 3.º da LMDE, sendo omisso acerca da força executiva da sentença condenatória proferida no processo-crime que sob o n.º 2024/1014 corre termos junto do Tribunal de Comarca de ... contra o aqui Oponente.
34. A inobservância dos requisitos de conteúdo e forma previstos no artigo 3.º da LMDE configura, pelo menos, uma irregularidade, que aqui expressamente se argui para os devidos e legais efeitos, nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 118.º e 123.º do Código de Processo Penal, aqui aplicáveis por força da remissão prevista no artigo 34.º da LMDE.
Acresce que,
35. Como se adiantou supra, impõe-se igualmente ao Estado emissor o cumprimento da obrigação de tradução do mandado de detenção para uma das línguas oficiais do Estado membro de execução ou noutra língua oficial das instituições das Comunidades Europeias aceite por este Estado, mediante declaração depositada junto do Secretariado-Geral do Conselho.
36. Compulsados os autos, verifica-se que no pedido de execução de mandado de detenção europeu apresentado pelo Ministério Público apenas consta o mandado de detenção europeu em língua ... e o formulário A do SIS em inglês e em português, incumprindo-se com a obrigação legal prevista no artigo 3.º, n.º 2 da LMDE.
37. A omissão da tradução do mandado de detenção configura uma irregularidade, que aqui se argui para os devidos e legais efeitos, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 118.º e 123.º do Código de Processo Penal, ex vi artigo 34.º da LMDE.
Sempre sem prescindir,
IV – DA INEXIQUIBILIDADE DO MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
38. O sistema de emissão e execução do mandado de detenção europeu está estruturado com o objetivo único de obter a detenção de uma pessoa que se encontre num Estado membro para ser entregue ao Estado membro emissor.
39. Sucede que, na informação divulgada no pedido de detenção europeu inserido no Sistema de Informações de Schengen (SIS), com o n.º 0006.02PR0000206728700000001.01 emitido pela Autoridade Judiciária ..., é formulado o seguinte pedido:
“239. Rendição ou Pedido para Extradição: Este formulário diz respeito a um Mandado de Detenção Europeu / Pedido de Extradição para a … ou  ….” (negrito e sublinhado nossos).
40. Desde logo, nos termos do disposto no artigo 4.º, n.º 4 da LMDE, uma indicação inserida no SIS “produz os mesmos efeitos de um mandado de detenção europeu, desde que acompanhada das informações referidas no n.º 1 do artigo 3.º.”.
41. No caso concreto, a autoridade judiciária de emissão emitiu um mandado de detenção europeu com vista ao cumprimento de uma pena de prisão aplicada por decisão judicial proferida no Estado ... no âmbito da qual foram julgados factos praticados em território ..., com a finalidade de o Oponente ser entregue ao Estado … ou ...
42. No caso concreto, ao decidir-se pela execução do mandado de detenção europeu de 11/07/2024, não se mostram sequer acauteladas as garantias de defesa do Oponente.
43. Desde logo porque do próprio mandado de detenção europeu e respetivo “formulário A” não decorre em que concreto Estado membro deve o Oponente ser entregue com vista ao cumprimento de pena de prisão, criando-se nos presentes autos uma dúvida insanável, que, necessariamente, conduz à improcedência do pedido recusa da execução do mandado de detenção europeu, o que se requer seja judicialmente reconhecido e declarado.
44. Ademais, resulta da descrição das circunstâncias vertida no formulário A do SIS, a decisão judicial condenatória em que se funda o pedido de extradição do Oponente reporta-se a factualidade exclusivamente praticada em ..., pretendendo o Estado emissor o cumprimento de pena de prisão ordenada por decisão judicial proferida por autoridade judiciária ....
45. Resulta igualmente do formulário A que o Oponente tem nacionalidade … e possui residência em Portugal.
46. Nenhuma razão imperiosa foi apresentada pelo Estado ... que justificasse a necessidade de entrega do Oponente a um Estado-membro distinto do Estado-membro em que a decisão judicial condenatória foi proferida e deverá a pena ser cumprida, pelo que tal pedido se mostra desprovido de qualquer fundamento legal e incompatível com o fim da detenção e entrega do Oponente.
47. Pelo que jamais poderá o ... ordenar a execução do mandado de detenção europeu e entregar o Oponente a um Estado-membro que não tem qualquer conexão com a sentença condenatória e com a execução da pena aplicada ou, sequer, com a residência do Oponente.
48. Por último, decorre do mandado de detenção europeu nestes autos que aquando da entrega do visado por tal mandado, será o mesmo pessoalmente notificado da decisão judicial condenatória emitida à revelia, sendo-lhe concedido um prazo de cinco dias para deduzir recurso.
49. Contrariamente ao que se impunha, as finalidades do mandado de detenção europeu não se mostram salvaguardadas com a extradição do Oponente para a … ou para a …, como também não se mostram salvaguardados os direitos de defesa do Oponente.
50. Face ao exposto, por falta de concretização dos Estado-membro em que o Oponente deverá ser entregue e por manifesta falta de fundamentação do pedido de entrega do Oponente a um estado-membro distinto do estado emissor do mandado, impõe-se julgar improcedente o pedido de execução do mandado de detenção europeu de 11/07/2024.
Ainda sem prescindir:
V- DA FALTA DE PREENCHIMENTO DE PRESSUPOSTO ESSENCIAL À EXECUÇÃO DO MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
51. Por acórdão proferido em 06/06/2007, já decidiu o Supremo Tribunal que “a recusa facultativa não pode ser concebida como um acto gratuito ou arbitrário do tribunal.
Há-de, decerto, assentar em argumentos e elementos de facto adicionais aportados ao processo susceptíveis de adequada ponderação, nomeadamente invocados pelo interessado, que, devidamente equacionados, levem o tribunal a dar justificada prevalência ao processo nacional sobre o do Estado requerente.” (negrito nosso, cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06/06/2007, processo n.º 07P2178, disponível em www.dgsi.pt).
52. Assim sendo, impõe-se à autoridade judiciária do Estado exequente a valoração de factualidade adicional aportada pelo Oponente que contenda diretamente com a execução do mandado de detenção europeu e, caso se venha a revelar necessária, a promoção de diligências que se revelem essenciais à boa decisão da causa, sob pena incorrer na nulidade prevista no artigo 119.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal, aplicável ex vi artigo 34.º da LMDE.
Revertendo ao caso concreto,
53. O Oponente foi julgado à revelia no processo n.º 2024/1014 que corre termos no Tribunal de Comarca de ....
54. Por decisão judicial proferida em 03/07/2024, foi o aqui Oponente condenado na pena de um ano de prisão, pela prática dos crimes de fraude fiscal e branqueamento de capitais.
55. Tudo o que decorre expressamente das informações vertidas no mandado de detenção europeu, no formulário A do SIS juntos aos autos e que fundamenta o pedido de execução do mandado de detenção europeu deduzido pelo Ministério Público junto deste Tribunal.
56. No entanto, e como já se adiantou supra, do mandado de detenção – o qual, reitera-se, encontra-se apenas em língua ..., não tendo sido junta aos presentes autos qualquer tradução – e da informação inserida no SIS, não decorre que a sentença condenatória proferida no âmbito do processo-crime n.º 2024/2014 tem força executiva, decorrendo apenas da informação vertida pelo Estado emissor no “formulário A” junto aos presentes autos que: “241. Sentença com força executiva: Sentença emitida à revelia”.
57. Mais se diga que tal indicação jamais poderia constar do mandado europeu, uma vez que não se verifica o transito em julgado da sentença condenatória proferida em ... e a sua correlativa força executiva.
Porquanto,
58. Em 19/07/2024, ou seja, decorridos apenas 16 dias desde a prolação da sentença condenatória, foi pelo Oponente interposto recurso da referida sentença junto do Tribunal da Comarca de ... (Cf. Docs. 1 e 1-A que se juntam e aqui se dão por integralmente reproduzidos).
59. Note-se que, como decorre da própria declaração emitida pelo Tribunal de ... que admitiu o recurso, o recurso interposto incide sobre toda a matéria.
60. A exequibilidade da sentença proferida pelo Tribunal de ..., que determinou a condenação da arguida em pena privativa da liberdade com duração superior a quatro meses é o facto que sustenta a execução do mandado de detenção e a entrega do Oponente, uma vez que a sua intrínseca finalidade subjacente é o cumprimento pelo Oponente de uma pena de prisão de 1 ano.
61. Não tendo a sentença condenatória força executiva, jamais se mostrará legalmente admissível a execução do mandado de detenção europeu.
62. Face ao exposto, por se mostrar prejudicada a execução do mandado de detenção europeu de 11/07/2024, impõe-se seja julgado improcedente o pedido de execução do mandado de detenção europeu, o que se requer para os devidos e legais efeitos.
Sem prescindir e sempre subsidiariamente,
VI – DAS CAUSAS FACULTATIVAS PARA RECUSA DA EXECUÇÃO DO MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
63. Considerando os factos anteriormente referidos, bem como as informações constantes do próprio mandado de detenção europeu emitido pelo Estado ..., que referem expressamente o facto de que o Oponente:
(i) Foi julgado à revelia;
(ii) Ainda não foi notificado da sentença proferida; e
(iii) Que será notificado aquando da execução do mandado,
64. Verifica-se que, na verdade, a situação em apreço terá enquadramento legal no disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 12.º - A do Lei 65/2003, de 23 de agosto, que dispõe:
“1 - A execução do mandado de detenção europeu emitido para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas da liberdade pode ser recusada se a pessoa não tiver estado presente no julgamento que conduziu à decisão, a menos que do mandado conste que a pessoa, em conformidade com a legislação do Estado membro de emissão:
(…)
d) Não foi notificada pessoalmente da decisão, mas na sequência da sua entrega ao Estado de emissão é expressamente informada de imediato do direito que lhe assiste a novo julgamento ou a recurso que permita a reapreciação do mérito da causa, incluindo apreciação de novas provas, que podem conduzir a uma decisão distinta da inicial, bem como dos respetivos prazos.”
65. Sucede que, ainda que da análise do transcrito normativo não haja lugar à recusa da extradição do Oponente, o certo é que o disposto no n.º 4 do referido artigo 12.º - A, determina que a situação enquadrável na alínea d) possa levar à revisão da detenção e recusa da execução do mandado se a pessoa a ser entregue tiver interposto recurso – como é o caso do Oponente – até estarem concluídos os trâmites do recurso interposto em conformidade com a legislação do Estado membro de emissão.
66. Ora, o Oponente, conforme já referido, interpôs recurso da decisão contra si proferida,
67. Estando, desta forma, preenchido o primeiro dos pressupostos para aplicação do n.º 4 do artigo 12º-A da Lei 65/2003, de 23 de agosto,
68. Uma vez que o Oponente ignora quais os trâmites processuais inerentes ao recurso ali interposto, afigura-se indispensável o esclarecimento pela autoridade judiciária ... de tais trâmites, com vista ao apuramento da legalidade da execução do mandado de detenção europeu.
69. Face ao exposto, requer-se a V. Exa. se digne oficiar as autoridades ... para que junto dos presentes autos esclareçam quais os trâmites legais do recurso interposto, nomeadamente quanto aos seus efeitos e à possibilidade de ser a pena imediatamente executada.
70. Na verdade, se a questão for analisada à luz do Direito Nacional, não restam dúvidas de que a sentença proferida não pode ser executada, nem o Oponente poderia ser preso para cumprimento da pena enquanto a decisão não se mostrasse transitada em julgado,
71. O que parece ser, ao abrigo do Princípio da Presunção de Inocência, a necessária tramitação de uma decisão que determina uma pena privativa da liberdade em qualquer Estado Membro da União Europeia.
72. Assim, os esclarecimentos solicitados são necessários, sob pena de se privar um cidadão da sua liberdade de forma ilegal e ilegítima.
Caso ainda assim não se entenda, refira-se que:
73. O Oponente nasceu nos ... em ..., tendo, nesta data, 82 anos de idade.
74. Teve um percurso de sucesso, tendo-se licenciado e exercido a profissão de ... durante mais de 50 anos nos ..., onde era amplamente reconhecido pelo seu trabalho.
75. Após a sua reforma, o Oponente, porque é um empreendedor nato, foi para ... com a intenção de ali iniciar um projeto relacionado com a criação de um ....
76. Para o efeito, aceitou ser voluntário da ..., tendo efetuado as pesquisas e os contactos necessários para a construção do museu.
77. Este projeto foi concretizado em ... e é hoje reconhecido como o maior museu do … do mundo.
78. Acresce que, em virtude dos seus vastos conhecimentos em matéria … e da sua dedicação ao desenvolvimento dos projetos da Fundação, chegou o Oponente à conclusão que Portugal seria o país ideal para prosseguir com os projetos estabelecidos pela referida Fundação.
79. Pelo que, em janeiro de 2014 se mudou para Portugal, onde estabeleceu o seu domicílio e, desta forma, tem a sua residência estabelecida desde aquela data, ou seja, há mais de 10 anos.
80. É em Portugal que reside o ano todo, que tem duas residências – uma em … e outra no ... – e que se encontra a trabalhar no referido ....
81. Tanto o seu voluntariado é valorizado pela Fundação que, em 17 de novembro de 2022, atribuiu ao Oponente o uso e habitação permanente do apartamento situado na ..., em Lisboa, onde habitualmente reside, conforme cópia da escritura que se junta e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (Doc. n.º 2).
82. É ainda em Portugal que, várias vezes ao ano, recebe a visita e acolhe na sua residência, os seus filhos e netos e ali partilham a vida familiar.
83. Desde 2014 que estabeleceu o seu domicílio fiscal em Portugal, conforme cópia da declaração emitida pela Autoridade Tributária que aqui se junta e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (Doc. n.º 3),
84. Sendo também em Portugal que apresenta as suas declarações de IRS e líquida os respetivos pagamentos por conta, conforme cópia das declarações que se juntam e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (Docs. n.ºs 4 e 5),
85. E que mantém uma vida estável, conforme cópia da fatura de água que se junta e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (Doc. n.º 6).
86. Por sua vez, desde 2014 que mantém a expetativa de levar adiante o projeto relativo à implementação de um museu … em ..., tendo já apresentado o respetivo plano de atividade e, junto da ..., um pedido de licenciamento para esse efeito, conforme cópias que se juntam e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (Docs. 7 e 8).
87. Pelo que, dúvidas não restam de que o Oponente reside, com estabilidade, há mais de 10 anos em Portugal, país onde se situa o seu núcleo de vida pessoal e familiar.
Acresce que,
88. Em .../.../2022, o Oponente foi acometido por um ..., tendo sido submetido a cirurgia ... no ..., conforme cópia de relatório médico que se junta e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (Doc. n.º 9).
89. Após ter tido alta de internamento, o Oponente é acompanhado, pelo menos, trimestralmente, para verificação da sua situação …, na medida em que face à sua idade e à delicadeza da doença irreversível de que padece, poderá sofrer outro episódio de emergência e cirurgia a qualquer momento.
90. A doença … irreversível de que padece ditaram a necessidade de ser regularmente vigiado em consultas médicas, ser sujeito a terapêutica medicamentosa diária e manter hábitos de vida saudáveis que lhe permitam manter o seu estado de saúde.
91. Conforme consta das declarações prestadas pelo Oponente em sede de audição de detido para execução do mandado de detenção europeu, regressar a ... causaria um estado de ansiedade e de receio que deve, medicamente, evitar.
92. Tendo ainda demonstrado a sua disponibilidade para cumprir a pena a que foi condenado e caso se mantenha após decisão do recurso pendente, em Portugal.
93. A este propósito importará igualmente valorar que, por acórdão proferido pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem em 30 de janeiro de 2020, o Estado ... foi já condenado pela sobrelotação das prisões ...s e pelas suas condições de detenção indignas (acórdão “J.M.B. and Others v. France”, acessível em https://hudoc.echr.coe.int/eng#{%22itemid%22:[%22003-6624855-8792764%22]}).
94. De facto, o Oponente é um cidadão octogenário, fisicamente debilitado por uma doença irreversível, apresentando dificuldades cardíacas e necessitando de acompanhamento médico constante.
95. Desde logo, a detenção e encaminhamento do Oponente para ..., país com o qual não mantém qualquer elo social ou familiar, prejudicará gravemente o estado de saúde do mesmo.
96. Note-se que perante uma eventual execução de uma pena de prisão em ..., encontrar-se-á o aqui Oponente deslocado do seu seio social e familiar, sem qualquer possibilidade de assistência por parte da equipa médica que o vem acompanhando em Portugal, e sem a possibilidade de receber o apoio de terceiros que o vêm acompanhando no seu dia-a-dia, há mais de 10 anos, e que residem em Portugal.
97. Mais, a inserção de um cidadão octogenário que padece de doença cardíaca irreversível e que está sujeito a terapêutica e acompanhamento médico constante, num sistema prisional que é, reconhecidamente, incapaz de assegurar as condições de detenção dignas, como é o caso do Estado ..., configura um sério risco para a vida e integridade física do aqui Oponente.
Isto posto,
98. Nos termos do artigo 12.º, n.º 1, da Lei 65/2003 de 23 de agosto:
1 - A execução do mandado de detenção europeu pode ser recusada quando:
(…)
g) A pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal, desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o ... se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa;
(…)
3 - A recusa de execução nos termos da alínea g) do n.º 1 depende de decisão do tribunal da relação, no processo de execução do mandado de detenção europeu, a requerimento do Ministério Público, que declare a sentença exequível em Portugal, confirmando a pena aplicada.
4 - A decisão a que se refere o número anterior é incluída na decisão de recusa de execução, sendo-lhe aplicável, com as devidas adaptações, o regime relativo ao reconhecimento de sentenças penais que imponham penas de prisão ou medidas privativas da liberdade no âmbito da União Europeia, devendo a autoridade judiciária de execução, para este efeito, solicitar a transmissão da sentença.
99. Assim, constitui causa de recusa facultativa de execução de mandado de detenção europeu a circunstância de a pessoa procurada se encontrar em território nacional e ter nacionalidade portuguesa ou residência em Portugal, desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o ... se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa.
100. Sendo precisamente este o caso do Oponente, requerendo-se que seja declarada improcedente a execução do mandado de detenção europeu.
Termos em que se requer a V. Exas. se dignem julgar procedente, por provada, a presente oposição à execução do Mandado de Detenção Europeu, e, em consequência, decidir pelo indeferimento do mandado de detenção europeu emitido contra AA, com as devidas e legais consequências.
Mais se requer a V. Exas. se dignem reconhecer e declarar os vícios processuais arguidos em III supra, com os devidos e legais efeitos.
Sem prescindir, caso assim não se entenda, sempre se requer seja indeferido o pedido de execução do mandado de detenção europeu com fundamento em recusa facultativa nos termos do artigo 12.º, g) da LMDE e seja determinada a revisão da sentença estrangeira para determinação da possibilidade do cumprimento de eventual pena em território nacional.”
Juntou documentos e requereu outras diligências probatórias.
5. O Ministério Público apresentou resposta à oposição deduzida (refª Citius 21948212), invocando, resumidamente que:
“De acordo com os elementos constantes do MDE (secção d), AA “não compareceu pessoalmente no processo que conduziu à decisão” e “não foi notificado pessoalmente, mas foi informado oficialmente e efetivamente por outros meios da data e do local fixados para o processo que conduziu à decisão, pelo que ficou inequivocamente estabelecido que (…) teve conhecimento do processo previsto e foi informado de que podia ser proferida uma decisão em caso de não comparência”.
Acresce que, como esclarece o Requerido, este não só teve conhecimento do julgamento previsto, como conferiu mandato a um defensor por si designado para o representar no processo (vd. art. 12.º-A, nº1, alínea b), da Lei nº 65/2003, de 23 de agosto), o qual, entretanto, veio a interpor recurso da sentença condenatória em causa.
No caso em apreço, estando assente que o Requerido não esteve presente aquando do seu julgamento em ... e não foi notificado pessoalmente da sentença, não há qualquer dúvida que se aplica o estatuído no art. 12.º-A, da Lei nº 65/2003, de 23 de agosto.
A referida disposição legal estabelece, no nº1, alínea a), que o MDE pode ser recusado se a pessoa procurada não tiver estado presente no julgamento, exceto, entre outras, se no mandado constar que a pessoa procurada foi informada do julgamento e que podia ser proferida sentença, mesmo não estando presente.
Neste segmento, os dados constantes do MDE permitem concluir que se mostra devidamente preenchido o requisito que a lei exige no art. 12.º-A, nº1, alínea a), da Lei 65/2003, de 23 de agosto.
Por outro lado, contrariamente ao sugerido pelo Requerido, nos termos do art. 12.º-A, nº4, da Lei 65/2003, ter-se-á necessariamente que atender á possibilidade de emissão de um MDE para cumprimento de pena, ainda que a decisão não tenha transitado em julgado, desde que se dê á pessoa procurada a possibilidade de recorrer da decisão.
Com efeito, a execução de um MDE é admissível quando a pessoa tenha sido julgada na ausência e o Estado emissor faça constar do mandado que a pessoa procurada não foi notificada pessoalmente da decisão, mas na sequência da sua entrega ao Estado de emissão será expressamente informada do direito que lhe assiste a novo julgamento ou a recurso que permita a reapreciação do mérito da causa.
Assim, independentemente dos contornos do caso concreto, do texto do art. 12.º-A resulta claro que a possibilidade de requerer às autoridades emissoras do MDE novo julgamento ou a possibilidade de interpor recurso não podem obstar à entrega da pessoa procurada, sendo assim manifestamente improcedente a alegação que a sentença condenatória carece de força executiva.
No que respeita á recusa facultativa prevista nos termos do art. 12.º, nº1, alínea g), da Lei nº 65/2003, ou seja, ao eventual cumprimento da pena em território nacional, importa ter presente que o Requerido interpôs recurso da sentença subjacente á emissão do MDE.
Assim e ainda que se admita como plausível uma efetiva e consolidada residência do Requerido no nosso país, o certo é que essa possibilidade se mostra prejudicada, já que o Estado português só se pode comprometer perante uma decisão transitada em julgado, situação que, conforme expressamente reconhecido pelo Requerido, não se verifica neste caso.
Em síntese, o mandado de detenção europeu ora em apreço obedece aos requisitos de conteúdo e forma a que alude o art. 3.º, nº1, alínea e), da Lei nº 65/2003, de 23 de agosto, foi emitido para efeitos de cumprimento de pena, os factos em causa estão suficientemente descritos, para além de constarem do art. 2.º, nº2, da citada Lei, também se encontram tipificados como crime na lei portuguesa, e não se verifica qualquer causa de recusa da sua execução, designadamente as circunstâncias previstas nos arts. 11.º e 12.º, da Lei nº65/2003.
Pelo exposto, deverá ser julgada improcedente a oposição apresentada e ordenado o cumprimento do MDE, devendo ser proferida decisão no sentido de o Requerido ser entregue, para cumprimento de pena, ao Estado emissor do MDE.”
6. Em 23.07.2024 foi junta aos autos a tradução para língua portuguesa do MDE emitido pelas autoridades ...s (refª Citius 704181), a qual foi notificada ao requerido em 08.08.2024 (refª Citius 21964506) – o qual nada requereu, nessa sequência.
Por despacho da Relatora de 03.09.2024 (refª Citius 21972354), foi indeferida a inquirição das testemunhas indicadas na oposição e mantidos nos autos os documentos apresentados.
Procedeu-se ao exame do processo e, colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
Tendo em conta a oposição deduzida pelo extraditando, as questões a decidir são as seguintes:
1. Se o presente MDE contém todas as informações necessárias à respetiva execução;
2. Se ocorre causa de recusa facultativa da entrega requerida;
3. Se deve recusar-se a execução em função da residência do requerido em Portugal, determinando-se, em substituição, a revisão da sentença estrangeira e o cumprimento da pena em território nacional.
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ii.1. Fundamentos de facto
Com interesse para a decisão a proferir, encontram-se provados os seguintes factos:
Do MDE emitido pela Justiça ... resulta:
1. Destina-se o mesmo a entrega do requerido com vista ao cumprimento da pena total de 1 (um) ano de prisão, fixada na decisão contraditória proferida em 03 de julho de 2024, pela 11ª Câmara das Apelações Correcionais do Tribunal de Apelação de ...;
2. Face a condenação pela autoria de 5 infrações, previstas e punidas nos artigos 1741 §§ 1, 3 e 4, e 1750 do Código Geral dos Impostos e artigo 50 da Lei 52-401, de 14 de abril de 1952 (desvio fraudulento à coleta ou ao pagamento de impostos: não apresentação de declaração no prazo previsto – fraude fiscal), nos artigos 1741, §§ 1, 2, 3 e 4, e 1750 do Código Geral dos Impostos e artigo 50 da Lei 52-401, de 14 de abril de 1952 (desvio fraudulento à coleta ou ao pagamento de impostos: dissimulação de montantes – fraude fiscal), nos artigos 1741, §§ 1, 2 (1º), 9 e 10, e 1750 do Código Geral dos Impostos e artigo 50 da Lei 52-401, de 14 de abril de 1952 (fraude fiscal realizado ou facilitado por uma conta aberta ou um contrato subscrito junto a uma organização estabelecida no estrangeiro), nos artigos 1741, §§ 1, 2 (2º), 9 e 10, e 1750 do Código Geral dos Impostos e artigo 50 da Lei 52-401, de 14 de abril de 1952 (fraude fiscal realizado ou facilitado pela interposição de pessoa estabelecida no estrangeiro), nos artigos 324-2 1º, 324-1 § 2, e 324-1-1, 324-3, 324-7 e 324-8 do Código Penal (branqueamento agravado, participação habitual numa operação de investimento, dissimulação ou conversão do produto de uma infração), que a autoridade ... inclui na categoria no campo E do formulário do MDE;
3. Crimes estes correspondentes aos artigos 103º, nº 1, alínea b) do Regime Geral das Infrações Tributárias (fraude fiscal), e 368º-A do Código Penal Português (branqueamento), puníveis com penas de prisão até três anos ou multa até 360 dias, e prisão até 12 anos;
4. A decisão condenatória respeita a 5 infrações cometidas pelo requerido, na qualidade de autor, de 01 de janeiro de 2009 a 28 de julho de 2020 em ..., departamento de ...), que levaram à sua condenação.
5. “De acordo com a queixa apresentada pela administração fiscal em 17 de janeiro de 2014, AA não fez nenhuma declaração de rendimentos para o ano de 2010 e não declarou pensões de reforma para os anos 2009, 2011 e 2012. Dessa forma, ele desvalorizou as suas declarações ao não declarar a conta bancária aberta nos ... em nome da empresa ... da qual ele é o gerente de fato. Os rendimentos de sua conta corrente de sócio da empresa ... e os rendimentos provenientes das fundações ... e ... constitutivas de trustes que ele criou, estavam sujeitos ao imposto de renda. Por outro lado, não apresentou a sua declaração do imposto de solidariedade sobre a fortuna obrigatória para um património de vários milhões de euros. No mesmo período, AA, era a origem de muitos fluxos financeiros entre contas bancarias, empresas e fundações com o objetivo de ocultar e branquear montantes não declarados”.
6. O MDE mostra-se inserido no Sistema de Informação Schengen (SIS) com o nº 0006.02PR0000206728700000001.01/FRA00000000069597300 e formulário A.
7. O requerido foi julgado à revelia, tendo, porém, sido informado oficialmente e efetivamente da data e do local fixados para o processo que conduziu à decisão, tendo ficado “inequivocamente estabelecido que a parte interessada teve conhecimento do processo previsto e foi informada de que podia ser proferida uma decisão em caso de não comparência”, sendo que “a parte interessada foi devidamente notificada por um oficial de justiça, tendo o ato sido entregue no endereço declarado em 3 de outubro de 2023”.
Da audição e dos documentos juntos com a oposição resulta:
8. O requerido apresentou, em 19.07.2024, perante o Tribunal de Recurso de ..., recurso relativo à sentença proferida em 03.07.2024 pela 11ª Câmara das Apelações Correcionais do Tribunal de Apelação de ...;
9. De acordo com a declaração emitida em 27.07.2024 pelo Serviço de Finanças ..., ao requerido foi atribuído o NIF ..., tendo domicílio fiscal em ...;
10. Por escritura pública celebrada em 17.11.2022, o requerido e a sua mulher, CC, declararam vender à sociedade ... (equiparável a sociedade por quotas de responsabilidade limitada) NIPC ... com sede em ..., para o efeito representada pela sua gerente, CC, a nua propriedade sobre a fração autónoma designada pela letra “...”, correspondente ao... destinado a habitação – Artº ..., pertencente ao prédio urbano sito em ... concelho de ..., descrito na ... sob o número ..., da freguesia de ..., e a nua propriedade sobre a fração autónoma designada pela letra “...” correspondente ao ...– um fogo, pertencente ao prédio urbano denominado ..., sito em ... concelho de ..., descrito na ... sob o número ..., reservando os outorgantes para si o uso e habitação vitalício, simultâneo e sucessivo, de ambos os imóveis;
11. O requerido reporta ter instituído, em ..., em ..., numa cidade dos ..., na província da ..., o «...» (...), e, em 2014, na região de ..., o «...» (...); e reporta, ainda, planear a instalação de um «...» na zona de ...;
12. O requerido sofreu ... em dezembro de 2022;
13. O requerido foi detido à ordem dos presentes autos em 17.07.2024 (14h20) e restituído à liberdade em 18.07.2024.
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Os factos dados como provados resultam, por um lado, do teor do MDE junto aos autos e, por outro, dos documentos juntos com a oposição do requerido (sendo consonantes com as declarações pelo mesmo prestadas aquando da sua audição neste Tribunal).
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ii.2. Fundamentos de direito
O MDE, como primeira concretização no domínio penal do princípio do reconhecimento mútuo no âmbito do espaço de segurança e justiça comunitária, traduz-se num procedimento judicial transfronteiriço simplificado, válido para os países membros da União Europeia, e assume a natureza de decisão judiciária emitida por autoridade de um Estado-Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado-Membro de uma pessoa procurada para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas da liberdade, sendo executado com base no princípio do reconhecimento mútuo3.
Como se enuncia nos considerandos da Decisão-Quadro do Conselho de 13 de junho de 2002 (2002/584/JAI), designadamente no respetivo ponto 5, tal princípio do reconhecimento mútuo, sendo visto como «pedra angular» da cooperação judiciária, tem como base a necessidade de superação da conceção tradicional do auxílio judiciário entre Estados-Membros, passando ao estabelecimento de um elevado grau de confiança entre os mesmos, o que se traduz essencialmente no facto de se reconhecer e aceitar que uma decisão tomada por uma autoridade judiciária competente num dos Estados-Membros, em conformidade com o ordenamento jurídico deste Estado, tem efeito pleno e direto, ou pelo menos equivalente, sobre o conjunto do território da União. Tal princípio “é fundado na premissa de que os Estados-Membros confiam mutuamente na qualidade dos seus procedimentos penais nacionais, facilitando, justificando mesmo, uma cooperação alargada no combate ao crime que adquiriu uma dimensão nova4.
Assim sendo, as autoridades competentes do Estado-Membro de execução devem prestar toda a sua colaboração à execução de tal decisão como se proviesse deste mesmo Estado5.
Para além deste princípio estruturante do reconhecimento mútuo e da confiança, a implementação do MDE obedece ainda a um princípio da judicialização, impondo que o processo de entrega seja da competência da autoridade judiciária, e ao princípio da celeridade que determina a estatuição de prazos curtos, quer para a decisão, quer para a entrega.
A simplificação dos procedimentos e celeridade inerente há-de, naturalmente, compaginar-se com o princípio da tutela das garantias de defesa, devendo na execução do MDE serem assegurados à pessoa procurada todos os direitos e garantias de defesa.
Atualmente, são precisas e detalhadas as causas que podem obstar à execução do MDE, constituindo causas de recusa obrigatória ou facultativa. Não se exige o controlo da dupla incriminação do facto, sempre que se trate de crimes incluídos no catálogo do artigo 2º, nº 2 do RJMDE e, por outro lado, inexiste já a regra da não entrega ou de não extradição de nacionais, sendo estes os dois pressupostos básicos do novo regime6.
Daí que à autoridade judiciária do país da execução compete verificar se o MDE contém as informações constantes do artigo 3º do RJMDE, bem como analisar se ocorre qualquer causa de recusa obrigatória (artigo 11º do RJMDE) ou facultativa (artigos 12º e 12º-A do RJMDE). A recusa obrigatória liga-se aos princípios fundamentais, considerados impostergáveis, tais como os ligados à amnistia, ao princípio ne bis in idem, à inimputabilidade em razão da idade, à punição da infração com pena de morte ou outra pena de que resulte lesão física irreversível ou à motivação política subjacente à procura e pedido de entrega de determinada pessoa. Já nos casos de recusa facultativa as suas causas prendem-se com um princípio de soberania penal, como resguardo último da mesma, conjugado, em harmonia prática, com as necessidades impostas pela constituição de um espaço comum de liberdade, segurança e justiça. A sua razão de ser está, deste modo, relacionada com a possibilidade deixada aos Estados-Membros de salvaguarda de alguns desses interesses ligados à soberania penal do Estado da execução, assim como à efetividade da sua jurisdição, ao respeito por princípios relevantes da natureza do seu sistema penal e a um campo (ainda) de resguardo e proteção dos seus nacionais ou de pessoas que relevem da sua jurisdição.
Por seu turno, a recusa facultativa constitui uma faculdade do Estado da execução, como resulta da expressão da lei – a execução pode ser recusada. Na falta de indicação de critérios legais de exercício da faculdade, será na enunciação de critérios de decisão, na perspetiva das valorações inerentes que imponham ou justifiquem a execução ou, diversamente, a recusa de execução, seja por motivos de política criminal, de eficácia projetiva sobre o melhor exercício, de ponderação com outros valores, ou da realização de direitos ou de interesses relevantes que ao Estado da execução cumpra garantir, que tal omissão terá de ser suprida, como vem sendo perfilhado pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça7.
Ou seja, preenchidos que estejam os requisitos formais, a função do ... é a de mero executor, na certeza de que “[a] sindicância judicial a exercer no Estado recetor é muito limitada, perfunctória, sem abandono, contudo, pese embora a sua celeridade, do respeito por aqueles direitos fundamentais, produzindo a decisão no Estado emitente efeitos pelo menos equivalentes a uma decisão tomada pela autoridade judiciária nacional (…)”.8
Em termos de âmbito de aplicação, o MDE pode ser emitido por factos puníveis, pela lei do Estado-Membro de emissão, com pena ou medida de segurança privativas de liberdade de duração máxima não inferior a 12 meses ou, quando tiver por finalidade o cumprimento de pena ou de medida de segurança, desde que a sanção aplicada tenha duração não inferior a 4 meses, sem controlo, em muitos casos, da dupla incriminação (artigo 2º, nº 1 do RJMDE). Também é admissível a emissão de MDE, sem controlo da dupla incriminação do facto, sempre que os factos, de acordo com a legislação do Estado-Membro de emissão, constituam o leque de infrações constantes do artigo 2º, nº 2 do RJMDE, puníveis no Estado-Membro de emissão com pena ou medida de segurança privativas de liberdade de duração máxima não inferior a três anos. E, ainda, fora dessas situações, é admissível a entrega da pessoa reclamada se os factos que justificam a emissão do MDE constituírem infração punível pela Lei portuguesa, independentemente dos seus elementos constitutivos ou da sua qualificação (artigo 2º, nº 1 do RJMDE).
No que tange à forma, o MDE deve obedecer ao formulário anexo ao RJMDE, contendo as informações relevantes (artigo 3º, nº 1 do RJMDE), entre as quais se destacam os elementos de identificação do visado, a natureza e qualificação jurídica da infração, tendo nomeadamente em conta o disposto no artigo 2º e a descrição das circunstâncias em que a infração foi cometida, incluindo o momento, o lugar e o grau de participação do visado. Elementos estes que, à face do princípio da suficiência que orienta o MDE, devem ter-se por bastantes uma vez que, por regra, permitem à autoridade judiciária de execução a efetiva compreensão do quanto lhe é solicitado e decidir.
Por último, os artigos 17º, nº 1 e 18º, nº 5 do RJMDE impõem que o conteúdo do MDE seja dado a conhecer ao requerido uma vez detido, para que o mesmo possa exercer o seu direito de audição e de oposição, como garantia do contraditório.
ii.2.1. O caso concreto
Postas estas premissas, vejamos então as questões suscitadas pelo requerido em sede de oposição.
Liminarmente, importa arredar duas objeções formuladas pelo requerido que resultam inverificadas, face ao próprio procedimento, a saber: a falta de tradução do MDE e a possibilidade de o mesmo ser entregue às autoridades da Noruega ou Islândia.
Quanto à suposta falta de tradução do MDE, resulta do relatório desta decisão que a mesma foi junta aos autos (em 23.07.2024), e o requerido foi dela notificado, nada tendo dito a tal respeito. Não há mais que dizer quanto a esta questão, relativamente à qual não se verifica qualquer irregularidade.
No que se refere à possibilidade de entrega do requerido às autoridades da Noruega ou Islândia, é manifesto que se verifica um lapso de escrita no preenchimento do campo 239 do Formulário A, que facilmente se apreende no cotejo com o MDE que o acompanha: o que vem pedido pelas autoridades ...s é a entrega do requerido para cumprimento de pena em que foi condenado em ..., inexistindo qualquer relação, factual ou processual, com qualquer outra jurisdição nacional (nomeadamente, … ou …). Tratando-se de evidente lapso de escrita, tem aplicação o disposto no artigo 380º do Código de Processo Penal, com as necessárias adaptações, por força da remissão operada pelo artigo 34º do RJMDE.
Não pode, pois, reconhecer-se que, por esta via, exista qualquer irregularidade impeditiva da entrega requerida pelas autoridades ....
No mais:
Sustenta o requerido que o Ministério Público «não alegou», no requerimento de apresentação do detido, qualquer facto concreto que seja apto a integrar alguma das hipóteses legais previstas nas alíneas a) a d) do nº 1 do artigo 12º-A do RJMDE, pelo que deverá prevalecer o que designa como regra legal estatuída no proémio do artigo em questão (a de que a execução do mandado de detenção europeu emitido para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas da liberdade pode ser recusada se a pessoa não tiver estado presente no julgamento que conduziu à decisão).
Existe aqui um equívoco do requerido: o que releva para efeitos de cumprimento do MDE pelo Estado de execução é o conteúdo do próprio MDE, nos termos nele inscritos pelo Estado de emissão: é perante esses elementos, e apenas esses, que o Tribunal competente do Estado de execução deverá avaliar se o Mandado está, ou não, em condições de ser executado, inexistindo qualquer «ónus de alegação» por parte do Ministério Público. É o que, de resto, decorre do disposto no artigo 16º do RJMDE.
Assim, tendo em conta que inexiste qualquer dúvida de que o requerido é a pessoa procurada tida em vista no presente MDE, resta verificar se existe fundamento para recusar a respetiva execução.
Não foi, a propósito, convocada qualquer causa de recusa obrigatória da execução do MDE, nem se vislumbra, à face do que se dispõe no artigo 11º do RJMDE, que um tal fundamento se verifique no caso concreto.
Posto isto, na oposição deduzida, o requerido sustenta que a decisão que se pretende fazer cumprir não tem força executiva, por não se mostrar transitada em julgado. Convoca em abono da sua posição, o disposto no artigo 258º do Código de Processo Penal e, «sem prescindir», o artigo 12º-A, nº 1 do RJMDE, concluindo, a final, que é passível de constituir causa de rejeição da execução do MDE a circunstância de não ter estado presente no julgamento que conduziu à decisão, e de ter, entretanto, interposto recurso da mesma.
Face a tal alegação, tem de dizer-se, em primeiro lugar, que não é aqui convocável o disposto no artigo 258º do Código de Processo Penal, na medida em que o RJMDE regulamenta, de forma exaustiva, as informações que devem constar do MDE (cf. artigo 3º do RJMDE) e as circunstâncias em que a respetiva execução deve, ou pode ser recusada (cf. artigos 11º e 12º do RJMDE).
Acresce que a previsão constante da alínea c) do nº 1 do artigo 3º do RJMDE exige, enquanto informação obrigatoriamente constante do MDE (para que o mesmo possa ser executado), a indicação da existência de uma sentença com força executiva, de um mandado de detenção ou de qualquer outra decisão judicial com a mesma força executiva nos casos previstos nos artigos 1º e 2º. O conceito de força executiva não se confunde com o de trânsito em julgado, tal como o mesmo é concebido no direito nacional.
Da informação constante do MDE apresentado a este Tribunal consta expressamente que a decisão proferida pelo tribunal de ... (que condenou o requerido no cumprimento de uma pena de 1 ano de prisão) tem força executiva – e tanto basta, atento o princípio da confiança mútua dos Estados nas decisões proferidas por qualquer deles (a que já fizemos referência), para se considerar respeitada a mencionada exigência legal9.
Por outro lado, é verdade que resulta do MDE que o requerido foi julgado, no processo nº 2024/1014 do Tribunal da Comarca de ..., à revelia. Tal é, ainda assim irrelevante se do MDE constar que o requerido, em conformidade com a legislação do Estado-Membro de emissão, se encontra numa das circunstâncias reportadas nas alíneas a) a d) do nº 1 do artigo 12º-A do RJMDE. Ora, na tese do requerido do MDE emitido não consta inequívoco esse preenchimento, mormente para os termos do quadro das respetivas alíneas a) e d).
Mas não lhe assiste razão.
Regressemos aos conceitos.
Dispõe o artigo 12º-A do RJMDE nas alíneas do seu número 1 que: “1 - A execução do mandado de detenção europeu emitido para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas da liberdade pode ser recusada se a pessoa não tiver estado presente no julgamento que conduziu à decisão, a menos que do mandado conste que a pessoa, em conformidade com a legislação do Estado-Membro de emissão:
a) Foi notificada pessoalmente da data e do local previstos para o julgamento que conduziu à decisão, ou recebeu informação oficial da data e do local previstos para o julgamento, de uma forma que deixou inequivocamente estabelecido que tinha conhecimento do julgamento previsto e de que podia ser proferida uma decisão mesmo não estando presente no julgamento; ou
b) Tendo conhecimento do julgamento previsto, conferiu mandato a um defensor por si designado ou pelo Estado para a sua defesa e foi efetivamente representado por esse defensor no julgamento; ou
c) Depois de ter sido notificada da decisão e expressamente informada do direito a novo julgamento ou a recurso que permita a reapreciação do mérito da causa, incluindo de novas provas, que pode conduzir a uma decisão distinta da inicial, declarou expressamente que não contestava a decisão ou não requereu novo julgamento ou recurso dentro do prazo aplicável; ou
d) Não foi notificada pessoalmente da decisão, mas na sequência da sua entrega ao Estado de emissão é expressamente informada de imediato do direito que lhe assiste a novo julgamento ou a recurso que permita a reapreciação do mérito da causa, incluindo apreciação de novas provas, que podem conduzir a uma decisão distinta da inicial, bem como dos respetivos prazos.”
Esta disposição, pelo seu conteúdo, diz somente respeito a situações em que o MDE visa a execução de pena ou medida de segurança privativas da liberdade. Consubstancia um motivo de não execução de caráter facultativo, de acordo com o qual um MDE emitido para os fins reportados pode ser recusado se o requerido não tiver comparecido ao julgamento do qual resultou a decisão. Contém esta opção de recusa facultativa, porém, quatro exceções, as quais são exaustivas10. É dizer, o Estado requerido não pode recusar a execução do MDE com base numa decisão proferida na ausência – à revelia – do requerido, uma vez que tenha operado o circunstancialismo reportado em qualquer uma das alíneas do artigo 12º-A, nº 1 do RJMDE11. Mas, mais, nada impede o Estado requerido de, mesmo que verificado esteja que as ditas circunstâncias são aplicáveis, ainda assim ter em conta outras circunstâncias que lhe permitam certificar-se que a entrega do requerido não implica violação dos seus direitos de defesa, consequentemente determinando a entrega12.
No caso sub iudice, com relação às mencionadas alíneas do dito artigo 12º-A, nº 1 do RJMDE, não se verifica qualquer fundamento de recusa facultativa, o que se deixa desde já expresso. Na verdade, tais alíneas não compõem uma situação de cumulação, antes revelam um quadro de alternatividade. O que vale por significar que uma vez que do MDE conste uma das mencionadas situações deve impor-se a sua execução.
Ora, do MDE resulta que efetivamente o requerido, ainda que não presente a julgamento, certo é que foi oficialmente informado da data e do local do julgamento que conduziu à decisão, achando-se estabelecido, de forma inequívoca, que teve conhecimento prévio do processo e de que uma decisão poderia ser proferida [Campo 3.1 B do MDE] – e, tal como se consignou a propósito da fundamentação de facto desta decisão, consta expressamente do MDE o modo como ocorreu tal conhecimento [vd. último ponto da casa d) do MDE].
E, do MDE consta ainda que, não tendo sido pessoalmente notificado da decisão condenatória, sê-lo-á prontamente após a entrega, dispondo então de prazo para interpor recurso [Campo 3.4 do MDE].
Mostram-se, pois, verificadas as circunstâncias previstas nas alíneas a) (2ª parte) e d) do nº 1 do artigo 12º-A do RJMDE, inexistindo, em consequência, fundamento para recusar a execução do MDE, apesar de o requerido não ter estado presente no julgamento.
De resto, faz-se notar que, como consta das circunstâncias de facto apuradas nos autos, o requerido encontra-se representado por advogado no Estado de emissão, tendo já interposto recurso da decisão condenatória.
No mais, cumpre firmar que os conceitos constantes das alíneas em causa, designadamente os de “notificada pessoalmente”, “julgamento que conduziu à decisão” e “recebeu efetivamente por outros meios”, são conceitos autónomos do direito da União Europeia e, como tal exige-se-lhes uma interpretação uniforme em todo o território da mesma, independentemente das qualificações dos Estados-Membros. É dizer, a significância de tais conceitos não se faz sob determinação do direito nacional13.
Tal é também o caso no que se refere à previsão constante do nº 4 do artigo 12º-A do RJMDE ([n]o caso de a pessoa ser entregue nas condições da alínea d) do nº 1 e ter requerido um novo julgamento ou interposto recurso, a detenção desta é, até estarem concluídos tais trâmites, revista em conformidade com a legislação do Estado membro de emissão, quer oficiosamente, quer a pedido da pessoa em causa), que corresponde à transposição do artigo 4º-A, nº 3 da Decisão-Quadro 2002/584/JAI do Conselho de 13 de junho de 2002, e que se reporta à revisão da detenção pelo Estado de emissão, de acordo com o seu direito nacional, posteriormente à entrega. É, pois, ao Estado de emissão que cabe proceder a tal reapreciação.
Improcede, assim, a invocada causa de recusa facultativa de execução do MDE.
Sem prejuízo, sustenta o requerido existir um outro fundamento de recusa facultativa da execução do MDE, qual seja a circunstância de residir em Portugal desde 2014 (a que associa a sua vontade declarada de aqui desenvolver um projeto museológico, e, ainda, a sua avançada idade e patologia cardíaca), nos termos previstos na alínea g) do artigo 12º do RJMDE.
De facto, considerando as declarações do requerido em sede de audição, a par dos documentos juntos aos autos, sendo o mesmo cidadão holandês, reporta possuir residência estável no nosso país, sem que, todavia, seja clara a proveniência dos rendimentos que sustentarão o seu modo de vida.
Diz-nos o artigo 12º, nº 1, alínea g) do RJMDE que “[a] execução do mandado de detenção europeu pode ser recusada quando: g) [a] pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal, desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o ... se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa.”
Importa, em primeira linha, deixar claro que a mera demonstração do facto de ser residente em Portugal nunca imporia a recusa de execução, porque se assim fosse, antes estaríamos perante uma recusa de execução automática ou mesmo obrigatória e não perante uma recusa facultativa, como meridianamente resulta da epígrafe do artigo 12º, e do termo “pode” usado no corpo do nº 1 do mesmo artigo. Importante será, isso sim, que à luz das finalidades e princípios subjacentes às penas se vislumbre que no país de execução opera uma maior eficácia na realização dessas finalidades de reinserção social, segundo as normas que regem a respetiva execução, do que haveria se a pena fosse cumprida no Estado requerente14. Para tanto, importante é que se conclua que o requerido demonstrou um grau de integração real na sociedade do referido Estado‑Membro, in casu em Portugal, em moldes tais que as expressões “residente” e “se encontrar” assumem, respetivamente, relevância somente nas situações em que o requerido ou fixou a sua residência real no Estado-Membro de execução ou criou, na sequência de uma permanência estável de uma certa duração nesse Estado, determinados laços com este último, de grau semelhante aos resultantes de uma residência15.
É, no mínimo, duvidoso que exista uma tal ligação do requerido ao nosso país.
E, por outro lado, nem as condições prisionais existentes em ..., nem os cuidados de saúde disponíveis naquele país justificam as objeções suscitadas pelo requerido. Sendo um dos mais avançados e prósperos países europeus, dificilmente a ... estará em piores condições do que Portugal para proporcionar ao requerido os cuidados de saúde de que o mesmo possa carecer, e não existe evidência de que as condições prisionais em Portugal sejam melhores do que em .... Adicionalmente, a idade do requerido não constitui fundamento para o não cumprimento da pena em que tenha sido condenado pela prática das infrações criminais acima elencadas (as quais, de resto, se enquadram no catálogo constante do artigo 2º do RJMDE, dispensando a verificação da dupla incriminação).
Porém, e mais decisivamente, há a relevar que a pretensão do requerido de cumprir a pena em Portugal se mostra manifestamente inviável, seja porque o Ministério Público não requereu que este Tribunal declarasse a sentença condenatória ... exequível em Portugal, confirmando as penas aplicadas, conforme exige o nº 3 do artigo 12º do RJMDE, seja porque está estabelecido nos autos que o requerido já impugnou a mesma no tribunal competente do Estado de emissão.
O requisito da definitividade ou trânsito em julgado e executoriedade da decisão condenatória constitui pressuposto necessário do reconhecimento de sentença penal estrangeira que aplique penas de prisão (ou outra medida privativa da liberdade), como decorre da aplicação conjugada dos artigos 12º, nº 4, do RJMDE e 1º, 2º, nos 1, alínea d) e 2, alínea j), 17º, nº 1, alínea i), § iii, e 26º da Lei nº 158/2015, de 17 de setembro, que “estabelece o regime jurídico da transmissão, (…) do reconhecimento e da execução, em Portugal, das sentenças em matéria penal que imponham penas de prisão ou outras medidas privativas da liberdade tomadas pelas autoridades competentes dos outros Estados membros da União Europeia (…)”, aqui aplicável, com as necessárias adaptações, ex vi daquele artigo 12º, nº 4.
Nos termos daquelas normas da Lei nº 158/2015, o reconhecimento da pena de prisão aqui em apreço na própria decisão a proferir neste processo, exigiria, sem margem para dúvidas, além da verificação das vantagens da sua execução em Portugal para a ressocialização da recorrente – que, como se viu, não se tem por demonstrado – e do pedido do Ministério Público nesse sentido, que se trate de uma “sentença”, que nelas se faz equivaler a uma decisão transitada em julgado, e que, nas situações como a presente, de julgamento na ausência da pessoa condenada, esta renuncie expressamente ao direito a requerer novo julgamento ou a interpor recurso, precisamente em vista do seu trânsito em julgado e, com ele, da respetiva definitividade, sem o que o reconhecimento não pode ter lugar16.
Pelo exposto, necessariamente tem de improceder também este segmento da oposição deduzida.
Assim sendo, resta concluir.
Sendo o requerido pessoa procurada pela autoridade judiciária do MDE, inexistindo causa obrigatória ou facultativa que obste à sua execução, estando cumpridas todas as exigências formais e processuais, resta ordenar a execução do MDE nos termos e para os fins solicitados.
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III. Decisão
Pelo exposto, após conferência, acordam os Juízes da 5ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar improcedente a oposição apresentada e em consequência, porque se mostram preenchidos os pressupostos legais:
a. Ordenam a execução do Mandado de Detenção Europeu emitido contra o requerido AA, melhor identificado nos autos, pela autoridade judiciária ... para efeitos de execução de pena privativa da liberdade, determinando-se a sua entrega ao Estado-Membro de emissão, consignando-se que o requerido não renunciou ao princípio da especialidade;
b. Ordenam a detenção, após trânsito, do requerido AA até execução do MDE, sem prejuízo do respetivo prazo legal máximo;
c. Ordenam as necessárias notificações ao Ministério Público junto deste Tribunal Superior, à autoridade judiciária de emissão (artigo 28º do RJMDE), através da Autoridade Central (PGR) (artigo 9º do RJMDE), ao requerido, ao Ilustre Mandatário, e ao Gabinete Nacional da Interpol;
d. Oportunamente, transitado este acórdão, no mais curto espaço temporal possível e sem exceder 10 dias (artigo 29º, nº 2 do RJMDE), ordenam que se proceda à entrega do requerido AA às autoridades judiciárias de ..., através da emissão dos devidos mandados de detenção e entrega.
Sem custas.
Notifique (artigo 425º, nº 6 do Código de Processo Penal).
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Lisboa, 24 de setembro de 2024
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)
Sandra Oliveira Pinto
João Ferreira
Ester Pacheco dos Santos
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1. Retificado pelo requerido para: “... sendo detida em 100 % pela sociedade ...”, no requerimento apresentado em 29.07.2024 (refª Citius 704707).
2. Retificado pelo requerido para: ..., perto de ..., sendo o mais completo Museu de Vinho do Mundo e não o maior em dimensão de área”, no requerimento apresentado em 29.07.2024 (refª Citius 704707).
3. Cf. artigo 1º do RJMDE e Decisão Quadro nº 2002/584/JAI, do Conselho de 13junho (cf. Anabela Miranda Rodrigues in O mandado de detenção europeu – Na via da construção de um sistema penal europeu: um passo ou um salto?, RPCC, Ano 13, n.º 1, Janeiro-Março, 2003, pág. 27; Ricardo Jorge Bragança de Matos, in O princípio do reconhecimento mútuo e o mandado de detenção europeu, RPCC, Ano 14, n.º 3, Julho-Setembro, 2004, pág. 325.
4. Neste sentido, António Pires Henriques da Graça, in A Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça na execução do regime relativo ao Mandado de Detenção Europeu, acessível em www.stj.pt.
5. Neste sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.06.2009, no processo nº 1087/09.6YRLSB.S1, Relator: Conselheiro Armindo Monteiro, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
6. Neste sentido, cf. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.09.2009, no processo nº 134/09.6YREVR, Relator: Conselheiro Henriques Gaspar, acessível em www.dgsi.pt/jstj
7. Sobre os seus limites, cf. o já referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.09.2009.
8. Neste sentido, o já referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.06.2009.
9. Neste sentido, cf. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.03.2006, no processo nº 06P782, Relator: Conselheiro Silva Flor, acessível em www.dgsi.pt/jstj)
10. Neste sentido, o acórdão do Tribunal de Justiça de 26.02.2013, Melloni, TR, C-399/11 PPU acessível em ECLI:EU:C:2013:107 ou www.curia.europa.eu/juris)
11. Neste sentido, o acórdão do Tribunal de Justiça de 17.12.2020, TR, C-416/20 PPU acessível in ECLI:EU:C:2020:1042 ou www.curis.europa.eu/juris
12. Neste sentido, o já referido acórdão do Tribunal de Justiça de 17.12.2020, , assim como o acórdão de 24.05.2016, Dworzecki, C-108/16 PPU, ECLI:EU:C:2016:346, ambos ou www.curia.europa.eu/juris
13. Neste sentido, o acórdão do Tribunal de Justiça de 10.08.2017, Tupikas, TR, C-224maio20160/176/20 PPU acessível in ECLI:EU:C:2017:628, assim como os de 10.08.2017, Zdziaszek, C-271/17 PPU, ECLI:EU:C:2017:629, o já referido de 24.05.2016, Dworzecki, C-108/16 PPU, ECLI:EU:C:2016:346, e o de 22.12.2017, Ardic, C-571/17 PPU, ECLI:EU:C:2017:1026, todos ou www.curia.europa.eu/juris)
14. Neste sentido, o acórdão do Tribunal de Justiça de 06.10.2009, Dominic Wolzenburg, TR, C-123/08 PPU acessível in ECLI:EU:C:2008:616 ou www.curia.europa.eu/juris
15. Neste sentido, o acórdão do Tribunal de Justiça de 17.07.2018, Szymon Kozłowski, TR, C-66/08 PPU acessível in ECLI:EU:C:2008:437 ou www.curia.europa.eu/juris) (com interesse para o âmbito da legislação nacional, cf. o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 03.10.2012, no processo nº 203/12.5TRPRT.P1, relatado pela, então, Desembargadora Maria do Carmo Silva Dias, acessível em www.dgsi.pt/jtrp)
16. Neste sentido se tem pronunciado o Supremo Tribunal de Justiça, como pode ver-se, entre outros, no acórdão de 09.07.2014, no processo nº 220/14.0YRLSB.S1, Relator: Conselheiro Oliveira Mendes, de 07.04.2022, no processo nº 30/22.1YRPRT.S1, Relatora: Conselheira Helena Moniz, e de 03.01.2024, no processo nº 3032/23.7YRLSB.S1, Relator: Conselheiro João Rato, todos acessíveis em www.dgsi.pt/jstj.