Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | MANUELA ESPADANEIRA LOPES | ||
Descritores: | CONHECIMENTO DO MÉRITO DA CAUSA OBRIGATORIEDADE DA AUDIÊNCIA PRÉVIA OPOSIÇÃO À DISPENSA DE AUDIÊNCIA PRÉVIA NULIDADE SECUNDÁRIA NULIDADE POR EXCESSO DE PRONÚNCIA | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 10/17/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
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Sumário: | I- Nas acções de valor superior a metade da alçada da Relação, findos os articulados, impõe o artigo 591º do C.P.Civil, a necessidade de ser convocada audiência prévia. II- Entendendo o tribunal que, na referida fase, os autos dispõem de todos os elementos para que seja conhecido imediatamente do mérito da causa, para que a possa haver lugar à dispensa de tal audiência, é necessário que: - as razões de facto e de direito respeitantes a todas as questões a decidir já se mostrem debatidas nos articulados e que as partes sejam notificadas dessa intenção e tenham a possibilidade de sobre ela tomarem posição, de forma a garantir o cumprimento do contraditório. III- Opondo-se alguma das partes alguma das partes à dispensa de realização da audiência prévia, esta deve obrigatoriamente realizar-se. IV- A prolação de despacho saneador-sentença com inobservância do procedimento supra descrito configura uma nulidade secundária, nos termos previstos no art.º 195º, nº 1 do CPC, susceptível de ser invocada no recurso de apelação interposto daquela sentença, uma vez que se verificará igualmente a nulidade desta, por excesso de pronúncia (art.º 615º, nº 1, al. d)) - ao proferir a decisão, o Tribunal conheceu de matéria de que, naquelas circunstâncias, não podia apreciar. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa: I- Relatório Por sentença proferida em 12/04/2021 foi declarada a insolvência de N… Por apenso à acção de insolvência, J…, interpôs acção de verificação ulterior de créditos, pedindo a verificação de créditos no montante de €16.776,76. Foi lavrado termo de protesto. Alega o autor ser irmão do devedor e ter assumido, no ano de 2005, como fiador do seu irmão, a responsabilidade pelo pagamento de um empréstimo bancário junto do Banco M… para compra de uma casa em Vila Nova de Gaia. Empréstimo que o insolvente incumpriu, entregando o imóvel no ano de 2011. O insolvente declarou ao A. que o Banco M… lhe iria conceder um novo empréstimo de valor equivalente ao referido remanescente, permanecendo o autor como fiador do mesmo. Desde então, o insolvente insistia diariamente com o autor por forma a que o mesmo aceitasse outorgar esse segundo empréstimo. Face à pressão emocional exercida pelo insolvente, passadas 3 semanas, o autor deslocou-se ao Banco M…, balcão de …, com o intuito de se informar convenientemente do referido novo empréstimo e aí falou brevemente com a funcionária que lhe forneceu de imediato os documentos respeitantes ao empréstimo, documentos esses que o autor assinou sem ler convenientemente. Só volvidos 3 dias, ao examinar o seu extrato bancário, se apercebeu que tinha contraído um empréstimo junto do Banco M… como mutuário, figurando o insolvente como fiador, contrariamente àquilo que lhe tinha sido transmitido por este. No entanto e na verdade, o real mutuário deste segundo empréstimo era o insolvente, sendo ele quem liquidava as prestações do mesmo, depositando, por altura do vencimento de cada prestação, o respectivo valor em numerário na conta do autor, o que não sucedeu com a última das referidas prestações, no valor de €31.503,81 (trinta e um mil, quinhentos e três euros e oitenta e um cêntimos). Por seu turno, o autor, em virtude de figurar como mutuário nesse segundo empréstimo, não conseguiu liquidar também ele essa última prestação e em consequência, no dia 24 de Fevereiro de 2014, viu-se forçado a contrair junto do Banco M… um novo empréstimo, no valor de €31.648,45, a pagar em 96 prestações, no valor de €541,17 cada, contrato a que o insolvente deu aval. O autor tem vindo a liquidar as prestações cujo pagamento peticiona ao insolvente, por comissões, prestações liquidadas entre Fevereiro de 2014 a Julho de 2020, de Julho a Setembro de 2021, no total de €5.994,34 e as 17 prestações por liquidar, no valor de €10.782,42. Indicou como valor da acção €16.776,76. Citada a Massa Insolvente apresentou contestação, na qual defendeu a improcedência da acção por o contrato referido pelo autor ter sido celebrado com um terceiro, o Banco M… que veio reclamar créditos com base num contrato de crédito em que o insolvente é fiador. O autor, notificado, apresentou o requerimento de 24.01.2022, invocando a sua “legitimidade” para reclamar o crédito invocado. Após a junção de e-mail enviado pela Segurança Social, informando que o pedido de apoio judiciário requerido pela Massa Insolvente tinha sido deferido, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e nomeação e pagamento da compensação de patrono, foi proferido despacho saneador-sentença, julgando a acção improcedente. No final desse despacho consta: “Valor o indicado na petição inicial – artigos 297º e 306º, nº2, do C.P.Civil”. Notificado desta Decisão, o ora recorrente apresentou requerimento junto do tribunal a quo invocando a nulidade do despacho proferido, nos termos do disposto no art.º 195º do CPC, com fundamento na falta de realização da audiência prévia e da audiência final. * Interpôs também recurso da sentença em causa, apresentando as seguintes CONCLUSÕES: 1.ª - A verificação ulterior de créditos é efectuada por meio de acção judicial, que segue os termos do processo comum de declaração, pelo que, findos os articulados, deveria ter sido designada data para realização da audiência prévia ou, caso assim não se entendesse, audiência final - vd. art.º 148.º CIRE e Ac. TR Guimarães, de 06.05.2021, proc. n.º 8755/15.1T8VNF-J.G1 e ainda art.ºs 591º e ss e 599º e ss CPC, ex vi art.º 17.º e art.º 148.º CIRE. 2.ª - In casu, nunca foi designada data para realização da audiência prévia ou dispensada a sua realização, bem como, nunca foi designada data para a realização da audiência de discussão e julgamento, limitando-se o tribunal “a quo” a proferir, sem mais, a sentença recorrida - vd. art.ºs 591.º, 592.º e 599.º e ss. CPC, ex vi art.º 17.º CIRE. 3.ª - Em sede de petição inicial, o recorrente requereu vários meios de prova, aptos a sustentar a respectiva factualidade alegada, que nunca chegaram a ser apreciados pelo tribunal recorrido, o que constitui, irregularidade susceptível de influir no exame ou na decisão da causa, geradora de nulidade - vd. art.º 195.º CPC, ex vi art.º 17.º CIRE. 4.ª - O tribunal “a quo” nunca proferiu qualquer decisão de admissão ou rejeição de qualquer prova requerida pelo recorrente, deixando de se pronunciar sobre questões que deveria ter apreciado - vd. 1.ª parte, al. d), n.º 1, art.º 615.º CPC, ex vi art.º 17.º CIRE 5.ª - O tribunal “a quo” conheceu de questões que não podia tomar conhecimento sem antes ser dada a oportunidade ao recorrente de as demonstrar comprovadamente - vd. 2.ª parte, al. d), n.º 1, art.º 615.º CPC, ex vi art.º 17.º CIRE. 6.ª - A sentença recorrida é nula, o que se invoca com todos os devidos efeitos legais - vd. al. d) n.º 1, art.º 615.º CPC, ex vi art.º 17.º CIRE. AINDA QUE ASSIM NÃO SE ENTENDA, 7.ª - Regularmente citado para os termos da ação, o Administrador de Insolvência, em representação da Massa Insolvente, não impugnou, conforme lhe competia, os factos invocados em sede de petição inicial, nem carreou para os autos qualquer prova susceptível de contradizer o alegado pelo recorrente - vd. n.ºs 1 e 2, art.º 574.º CPC, ex vi art.º 17.º CIRE 8.ª - O facto de o recorrente figurar como mutuário no empréstimo em causa em nada relava em referência aos valores pagos por si em nome do insolvente, que se constituiu, pois, devedor do recorrente do montante reclamado nos autos 9.ª - Não tendo o Administrador de Insolvência ou o próprio insolvente impugnado concretamente os factos alegados em sede de petição inicial, referentes ao pagamento pelo recorrente, em nome do insolvente, dos montantes reclamados nos autos, deveria ter o tribunal “a quo” considerado provada a respetiva factualidade - vd. n.º 2, art.º 574.º CPC, ex vi art.º 17.º CIRE 10.ª - À matéria de facto provada na sentença recorrida devem ser aditados os seguintes pontos de facto: “6. O real mutuário dos empréstimos referidos em 1. e 3. antecedentes é o insolvente. 7. Foi e é o autor quem procede ao pagamento de todas as prestações e demais encargos desses empréstimos, em nome do insolvente. 8. Até à data da entrada da petição inicial em juízo, o autor liquidou, em nome do insolvente, os seguintes valores: - €41,52 de comissões, quanto ao empréstimo referido em 18.º da petição inicial - €124,79, de acertos, quanto ao empréstimo referido em 18.º da petição inicial - €121,10 de comissões, quanto ao empréstimo referido em 25.º e 26.º da petição inicial - €3.804,15 de prestações e comissões, relativas ao período de Fevereiro de 2014 a Julho de 2020, quanto ao empréstimo referido em 25.º e 26.º da petição inicial - €1.902,78 de prestações e comissões, relativas ao período de Julho a Setembro de 2021, quanto ao empréstimo referido em 25.º e 26.º da petição inicial 9. O que perfaz o total de €5.994,34 (cinco mil, novecentos e noventa e quatro euros e trinta e quatro cêntimos). 10. À data da entrada da petição inicial em juízo, encontravam-se por liquidar 17 (dezassete) prestações do empréstimo referido em 25.º e 26.º da mesma. 11.O que, incluindo o valor das prestações, comissões e demais encargos perfaz o total de € 10.782,42 (dez mil, setecentos e oitenta e dois euros e quarenta e dois cêntimos). 12. O pagamento do valor referido no ponto anterior foi assumido pelo autor, em nome do insolvente, pelo que, este constituiu-se devedor perante o autor do respetivo montante.” 10.ª - A sentença recorrida viola os princípios do dever de gestão processual, do inquisitório, da cooperação, da igualdade das partes e o princípio supremo da busca pela verdade material - vd. art.ºs 6.º, 7.º e art.º 411.º CPC, ex vi art.º 17.º CIRE 11.ª - A sentença recorrida viola direito à prova, legal e constitucionalmente consagrado - vd. art.º 20.º CRP - vd. art.º 341.º CC 12.ª - O recorrente cumpriu a prestação do devedor insolvente, o que lhe é permitido por lei e dependente apenas da vontade real dos respetivos declarantes - vd. art.º 236.º e n.º 1, art.º 767.º CC 13.ª - O facto de o recorrente figurar, formalmente, num contrato de crédito enquanto mutuário, em nada afecta o seu respectivo direito de crédito sobre o real devedor, sendo a sentença recorrida contrária à vontade real do recorrente e do insolvente 14.ª - Tendo o recorrente procedido ao pagamento de uma dívida do insolvente, na esfera daquele constituiu-se um direito de crédito sobre este no respectivo montante, pelo que, a sentença recorrida interpreta e aplica erroneamente a lei - vd. art.º 236.º e n.º 1, art.º 767.º CC Terminou peticionando que seja declarada verificada a irregularidade processual, derivada da não realização da audiência prévia, a nulidade da sentença recorrida, a qual deve ser revogada e substituída por outra que designe data para a realização da audiência prévia ou, caso assim não se entenda, para realização de audiência de julgamento e, no caso de assim não se decidir, que seja revogada e substituída a decisão recorrida por outra que julgue procedente a acção. * A Massa Insolvente de N… contra-alegou, CONCLUINDO que: A) A sentença não é nula; B) O juiz “a quo” pode decidir o mérito da causa no despacho saneador; C) O tribunal “ad quem” não pode reapreciar a matéria de facto, por o recorrente não ter cumprido o disposto no artigo 640º do C.P.C.; D) A sentença recorrida não merece qualquer censura, de facto e de direito; E) O recurso interposto não merece provimento. * A Mmª Juíza a quo proferiu despacho admitindo o recurso, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo e determinou a remessa dos autos a este Tribunal da Relação de Lisboa. Não se pronunciou relativamente à invocada nulidade da sentença. Considerando o que consta dos autos, não se julga indispensável a baixa do processo à 1ª instância para os efeitos do disposto no art.º 617º, nº1, do C.P.Civil, pelo que não se determinou tal procedimento. O tribunal a quo também não se pronunciou sobre o requerimento apresentado pelo autor, perante aquele tribunal, invocando a nulidade nos termos do artigo 195º do C.P.Civil. * II– OBJECTO DO RECURSO É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do mesmo Código). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido. Assim, em face das conclusões apresentadas pelo recorrente, há que decidir se: 1- o tribunal a quo, ao não designar nova data para a realização da audiência prévia, cometeu nulidade processual enquadrável no art.º 195º, nº 1, do CPC, se ocorreu a violação do princípio do contraditório e se tal vício determina a nulidade da sentença proferida. * III – FUNDAMENTAÇÃO A) De Facto O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos: 1. J… subscreveu a 13.02.2012 um contrato de crédito pessoal com o Banco M…, no montante total de 32.530,55€, a liquidar em 24 prestações. 2. O insolvente N… subscreveu o contrato, na qualidade de fiador – contrato junto com a petição inicial. 3. A 24.02.2014, J… subscreveu, juntamente com M…, na qualidade de mutuários um contrato de crédito pessoal com o Banco …, pelo montante total de 31.648,45€, a pagar em 96 prestações mensais de 541,17€. 4. Contrato que o insolvente subscreveu como avalista, avalizando a livrança subscrita em branco pelos mutuários – contrato junto com a petição inicial. 5. Ao Banco … foi reconhecido um crédito sob condição no valor de 9.642,39€, de que o insolvente é avalista. * B) Da invocada nulidade da Sentença A presente acção trata-se de uma acção de verificação ulterior de créditos, a qual segue a forma de processo comum - artigo 148.º do CIRE. Aplicam-se, por via da remissão constante do nº 1 do art.º 17º do CIRE, as regras dos art.ºs 590º a 598º do CPC. Começou o A. por invocar, nas Conclusões do Recurso, que se o juiz entendia, após a fase dos articulados, que os autos continham os elementos necessários a habilitá-lo a proferir decisão de mérito, deveria, nos termos e para os efeitos previstos na alínea b), do n.º 1, do art.º 591º do CPC, convocar audiência prévia. Disse igualmente que a não realização de audiência prévia nas situações em que, como in casu, a lei o impõe, constitui nulidade processual, que determina a anulação da decisão final de mérito proferida em saneador-sentença. Esta decisão não foi precedida da realização da referida diligência, o que consubstancia omissão de um acto que a lei impõe, com influência na decisão da causa, enquadrável na previsão do n.º 1, do art.º 195º, do CPC e que gera a nulidade da sentença recorrida nos termos do disposto na alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º CPC. Coloca-se, assim, a questão de saber se a sentença é nula, por estar inquinada pela nulidade processual derivada da não realização da audiência prévia. Para este efeito, importa distinguir entre nulidades processuais e nulidades da sentença. As nulidades processuais respeitam à prática de actos que a lei não admite, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreve. A prática de tais actos só produz nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa – art.º 195º, nº1, do C.P.Civil. Caracterizando esta nulidade, diz Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil, 2º vol., p. 484 (anterior artigo 201º do C.P.C. revogado), que «O que (nelas) há de característico e frisante é a distinção entre infracções relevantes e infracções irrelevantes. Praticando-se um acto que a lei não admite, omitindo-se um acto ou uma formalidade que a lei prescreve, comete-se uma infracção, mas nem sempre esta infracção é relevante, quer dizer, nem sempre produz nulidade. A nulidade só aparece quando se verifica um destes casos: a) quando a lei expressamente a decreta; b) quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa». Relativamente às nulidades da sentença, atento o disposto no art.º 615º, nº1, do C.P.Civil, a sentença será nula: a) se o juiz não a assinar; b) se não especificar os fundamentos, de facto e de direito, que justificam a decisão; c) se ocorrer oposição entre fundamentos e decisão ou se verifique alguma obscuridade ou ambiguidade que torne a decisão ininteligível; d) se o juiz conhecer questões que não devia ou deixe de conhecer questões que tinha de conhecer; e) ou condenar em objecto diverso ou em quantidade superior ao pedido. Conforme se refere no Ac. da Relação de Lisboa, de 04/02/2021, relator: Desemb. Adeodato Brotas, Proc. nº 4739/18.6T8LSB.L1, ao que sabemos não publicado, diferentes destas nulidades são as nulidades processuais que “consistem em desvios ao formalismo processual prescrito na lei, quer por se praticar um acto proibido, quer por se omitir um acto prescrito na lei, quer por se realizar um acto imposto ou permitido por lei mas sem o formalismo estipulado e, a que a lei faça corresponder, ainda que de modo não expresso, uma invalidade, mais ou menos extensa, dos actos processuais (cf. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, 1993, pág. 176; Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª edição, pág. 52). Assim, as nulidades da sentença respeitam directamente aos vícios da peça decisória e estão previstas no art.º 615º, nº1, do CPC e resultam da violação da lei processual pelo juiz ao proferir alguma decisão circunscrevendo-se no âmbito restrito da elaboração das decisões judiciais e desde que essa violação preencha um dos requisitos previstos naquele art.º 615º, nº1, do CPC. Já as nulidades processuais incidem sobre os restantes actos processuais e estão previstas nos art.ºs 186º e segs do CPC. (…) importa também ter presente que, por regra, sem prejuízo das que são de conhecimento oficioso (art.º 196º do CPC), das nulidades processuais reclama-se perante o juiz onde tenham sido (alegadamente) cometidas (art.º 197º CPC), pela parte que revele interesse na eliminação ou na repetição do acto (art.º 197º, nº1, CPC), estabelecendo a lei prazos para a respectiva arguição (art.ºs 198º e 199º, nº1). Arguida a nulidade perante o tribunal onde tenha tido lugar, compete ao juiz decidi-la e, dessa decisão cabe, então, recurso, embora com as limitações mencionadas no art.º 630º, nº2, do CPC (Cf Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Processo Civil, 3ª edição, pág. 24). Esta solução de reclamação perante o juiz do tribunal onde foi cometida a nulidade deve ser igualmente aplicada nos casos em que tenha sido praticada uma nulidade processual que se projecte na sentença, mas que não se reporta a nenhuma das alíneas do art.º 615º, nº1, do CPC. Assim, embora a mesma afecte a sentença, deve ser objecto de prévia reclamação que permita ao próprio juiz reparar as consequências que, precipitadamente, foram extraídas ainda que com prejuízo da decisão que foi proferida (Cf Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Processo Civil, 3ª edição, pág. 24, sublinhado nosso). Pensamos que um dos critérios que permite aferir se um desvio ao formalismo processual, ou a prática de acto proibido, ou a omissão de acto pescrito constitui uma nulidade processual – que deve ser reclamada perante o juiz do processo em que se verificou - ou se constitui uma nulidade da sentença – que deve ser arguida por via de recurso – passará por se perceber se a nulidade é intrínseca à própria sentença ou se se trata de uma nulidade extrínseca à sentença. E, como critério que ajuda (também) a definir se se trata de nulidade processual – que, repete-se, deve ser reclamada perante o juiz do processo em que se verificou – ou se de uma nulidade da sentença – a arguir por via de recurso – passa por ter em conta a oportunidade da arguição. Quer dizer, se a parte interessada na arguição da nulidade teve oportunidade de a invocar antes da prolação da sentença, não se trata de uma nulidade intrínseca da sentença; mas se, pelo contrário, a parte interessada na eliminação ou repetição do acto não teve processualmente oportunidade de arguir a nulidade antes da prolação da sentença, então, estamos perante uma nulidade intrínseca da sentença e, por isso, apenas pode ser impugnada por via de recurso.”. Como se refere no CPC Anotado, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Sousa (GPS), Vol. I, 2ª ed., p. 762: “Ocorre, porém, que nem sempre esta distinção é evidente, como sucede nos casos em que a omissão de determinada formalidade obrigatória (à cabeça, o cumprimento do contraditório) acaba por se traduzir numa nulidade da própria decisão, ajustando-se então a interposição de recurso no âmbito do qual essa nulidade seja suscitada.” Neste mesmo sentido pode ver-se o Ac. do STJ de 13.10.2020, relator: António Magalhães, o qual pode ser consultado in: www.dgsi.pt: “A violação do princípio do contraditório do art.º 3º, nº 3 do CPC dá origem não a uma nulidade processual nos termos do art.º 195º do CPC, que origina a anulação do acórdão, mas a uma nulidade do próprio acórdão, por excesso de pronúncia, nos termos art.ºs 615º, nº 1, al. d), 666º, n.º 1, e 685º do mesmo diploma”. Em relação ao princípio do contraditório encontra-se o mesmo previsto no art.º 3º do C.P.Civil e segundo Miguel Teixeira de Sousa, em anotação a este artigo em CPC ONLINE, versão de 2021.02, o qual pode ser consultado in https://blogippc.blogspot.com/: “(a) O princípio do contraditório é um dos corolários do processo equitativo (art.º 20º, nº 4, e, no âmbito do processo penal, 32º, nº 5, CRP; art.º 26º, nº 3, LOSJ; TC 1193/96; TC 358/98; TC 259/2000; TC 298/2005). (b) A garantia do contraditório exprime dois direitos fundamentais: (i) um direito de resposta de uma parte perante a outra parte, dado que qualquer das partes tem o direito a pronunciar-se sobre as alegações da parte contrária (nº 1 in fine); (ii) um direito à audição prévia da parte perante o tribunal, dado que, antes de decidir, o tribunal deve ouvir sempre ambas as partes (audiatur et altera pars; rechtliches Gehör: nº 3 - 1ª parte; no âmbito da prova, art.º 415º). Este direito à audição prévia implica a proibição da indefesa, ou seja, a proibição do proferimento de uma decisão contra quem antes não teve a possibilidade de se pronunciar sobre a matéria (TC 298/2005). (c) Atendendo à importância do princípio do contraditório, só em casos excepcionais é possível proferir uma decisão contra alguém sem a sua auscultação prévia. É o que sucede, atendendo à necessidade da produção de um efeito-surpresa, no âmbito dos procedimentos cautelares (art.º 366º, nº1, 378º e 393º), embora, naturalmente, esteja garantido um contraditório diferido (art.º 366º, nº 6, 372º, nº1 e 376º, nº 1).” A propósito do vício em que se traduzirá a prolação de uma decisão surpresa, diz o mesmo autor e no mesmo local, no escrito de 22.9.2020 em comentário ao Ac. do STJ de 2.06.2020, proferido no Proc. nº 496/13.0TVLSB.L1.S1: “(...) A audição prévia das partes é um pressuposto ou uma condição para que a decisão não seja considerada uma decisão-surpresa. Quer dizer: a decisão-surpresa é um vício único e próprio: a decisão é uma decisão-surpresa quando tenha sido omitida a audição prévia das partes. Noutros termos: há um vício (que é a decisão-surpresa), e não dois vícios independentes (a omissão da audiência prévia das partes e a decisão-surpresa). Em concreto: há um vício processual que é consequência da omissão de um acto. Se assim é, claro que o que há que considerar é o vício em si mesmo (a decisão-surpresa), e não separadamente a causa do vício e o vício. Em parte alguma do direito processual ou do direito substantivo se considera a causa do vício e o vício como duas realidades distintas. A única distinção que é possível fazer é ontológica: é a distinção entre a causa e a consequência. Dado que a decisão-surpresa corresponde a um único vício e porque este nada tem a ver com a decisão como trâmite, o vício de que padece a decisão-surpresa só pode ser um vício que respeita à decisão como acto. Em concreto, a decisão-surpresa é uma decisão nula por excesso de pronúncia (art.º 615.º, n.º 1, al. d), CPC), dado que se pronúncia sobre uma questão sobre a qual, sem a audição prévia das partes, não se pode pronunciar.” Ora, in casu, o recorrente invocou que a não realização da audiência prévia se traduz na omissão de uma formalidade processual com influência na decisão da causa. Considerando o que fica referido, o vício invocado, consistente na preterição do contraditório, a verificar-se, traduzir-se-á numa nulidade intrínseca da sentença e o meio pelo qual pode ser atacada é, efectivamente, por via de recurso. No sentido que a não realização de audiência prévia, nos casos em que a lei impõe tal realização, constitui uma nulidade processual que pode ser arguida em sede de recurso e determina a anulação da decisão que dispensou a sua convocação, ou do saneador-sentença que se seguiu a essa decisão ou à omissão dessa decisão podem ver-se, entre outros, os Acs. do TRP de 27/09/2019 (Aristides Rodrigues de Almeida), 11/12/2021 (Joaquim Correia Gomes), do TRL de 20/12/2018 (Luís Espírito Santo), 11/07/2019 (Ana Azeredo Coelho), 22/10/2020, de 26/02/2021 (Fernando Cabanelas) e do TRC de 03/03/2020 (Maria Catarina Gonçalves), todos disponíveis in www.dgsi.pt. Vejamos se se verifica a invocada nulidade. Estabelece o art.º 591º do C.P.Civil: “1 - Concluídas as diligências resultantes do preceituado no n.º 2 do artigo anterior, se a elas houver lugar, é convocada audiência prévia, a realizar num dos 30 dias subsequentes, destinada a algum ou alguns dos fins seguintes: a) Realizar tentativa de conciliação, nos termos do artigo 594.º; b) Facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa; c) Discutir as posições das partes, com vista à delimitação dos termos do litígio, e suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto que ainda subsistam ou se tornem patentes na sequência do debate; d) Proferir despacho saneador, nos termos do n.º 1 do artigo 595.º; e) Determinar, após debate, a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo 547.º; f) Proferir, após debate, o despacho previsto no n.º 1 do artigo 596.º e decidir as reclamações deduzidas pelas partes; g) Programar, após audição dos mandatários, os atos a realizar na audiência final, estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e designar as respetivas datas. 2 - O despacho que marque a audiência prévia indica o seu objeto e finalidade, mas não constitui caso julgado sobre a possibilidade de apreciação imediata do mérito da causa. 3 - Não constitui motivo de adiamento a falta das partes ou dos seus mandatários. 4 - A audiência prévia é, sempre que possível, gravada, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 155.º.” Dispõe o art.º 592º do mesmo diploma que: “1 - A audiência prévia não se realiza: a) Nas ações não contestadas que tenham prosseguido em obediência ao disposto nas alíneas b) a d) do artigo 568.º; b) Quando, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de exceção dilatória, esta já tenha sido debatida nos articulados. 2 - Nos casos previstos na alínea a) do número anterior, aplica-se o disposto no n.º 2 do artigo seguinte.” Não cabendo o caso dos autos em nenhuma das situações aqui previstas, importa ainda ter em consideração que o art.º 593º do Código de Processo Civil prevê a dispensa da Audiência Prévia nos seguintes casos: “1 - Nas ações que hajam de prosseguir, o juiz pode dispensar a realização da audiência prévia quando esta se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591.º. 2 - No caso previsto no número anterior, nos 20 dias subsequentes ao termo dos articulados, o juiz profere: a) Despacho saneador, nos termos do n.º 1 do artigo 595.º; b) Despacho a determinar a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo 547.º; c) O despacho previsto no n.º 1 do artigo 596.º; d) Despacho destinado a programar os atos a realizar na audiência final, a estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e a designar as respetivas datas. 3 - Notificadas as partes, se alguma delas pretender reclamar dos despachos previstos nas alíneas b) a d) do número anterior, pode requerer, em 10 dias, a realização de audiência prévia; neste caso, a audiência deve realizar-se num dos 20 dias seguintes e destina-se a apreciar as questões suscitadas e, acessoriamente, a fazer uso do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 591.º.” Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Sousa, in ob cit, pág. 709, referem: “Do confronto art.ºs 591º, nº 1, 592º, nº 1, 593º, nº 1, 593º, nº 3, e 597º resulta claro que a tramitação de uma ação declarativa comum de valor superior a metade da alçada da Relação (€15.000,00) incluirá, em curso normal, a realização de uma audiência prévia, regra que apenas comporta duas exceções tipificadas: quando a lei assim o estabeleça, o que sucede nos casos indicados no art.º 592º, nº l; quando o juiz dispense a realização da audiência, ao abrigo do art.º 593º, nº 1. Com tais ressalvas, a audiência prévia é obrigatória, decorrendo da sua dispensa uma nulidade (regime diverso está previsto, no entanto, para as ações cujo valor não supere metade da alçada da Relação, ou seja, €15.000.00, nos termos do art.º 597º).” Nas acções de valor superior a metade da alçada da Relação, como é o caso, findos os articulados e entendendo o juiz que os autos reúnem todos os elementos para que seja proferida decisão de mérito, deverá convocar a audiência prévia. Caso entenda, no entanto, que a questão a decidir já se encontra debatida nos articulados, poderá dispensar a realização de tal diligência ao abrigo do disposto no art.º 547º do C.P.Civil – adequação formal. Esta decisão de dispensa deve, todavia, ser precedida da audição das partes (art.º 3.º, n.º 3), assim se garantindo o contraditório sobre a gestão do processo – cfr neste sentido Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Em Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil; Vol. I, Almedina, 2013, pg. 494. In casu, findos os articulados, a Mma Juíza a quo não designou dia para a realização de audiência prévia, nem notificou as partes para se pronunciarem quanto ao conhecimento do mérito da causa em sede de despacho saneador. Proferiu desde logo decisão de mérito, julgando a acção improcedente. Dispensou (tacitamente) a audiência prévia, sem previamente ter anunciado o seu entendimento sobre a circunstância de os autos disporem já de todos os elementos para que fosse conhecido o mérito da causa e sem ter concedido às partes a oportunidade de se pronunciarem no que a tal concerne e sobre se se opunham à dispensa da audiência em questão. Atento o referido e tendo a acção valor superior a metade da alçada da Relação, impunha-se que tivesse sido proferido despacho designando data para a realização da audiência prévia ou nos termos e para os efeitos imediatamente supra referidos - anunciado o entendimento sobre a circunstância de os autos disporem já de todos os elementos para que fosse conhecido o mérito da causa e determinando a notificação das partes para, querendo, se pronunciarem no que concerne às questões a decidir e sobre se se opunham à dispensa da audiência. Opondo-se alguma das partes à dispensa, a audiência prévia devia obrigatoriamente realizar-se. Temos, pois, que concluir que às partes não foi dada a possibilidade de se pronunciarem sobre as questões a decidir, nomeadamente, que o tribunal a quo iria proferir decisão final. Não tendo sido facultado às partes o direito ao exercício do contraditório, isto é, de se pronunciarem sobre o conhecimento do mérito da causa, por o tribunal a quo entender que os autos ofereciam os elementos necessários à prolação de decisão final, findos que estavam os articulados, foi proferida, nesta óptica, uma decisão surpresa. Proferida tal decisão nos termos em que o foi, foi vedada às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a desnecessidade de produção de prova relativamente à matéria controvertida e, sobretudo, de produzirem alegações finais sobre o mérito da causa. Tem, pois, que se concluir pela procedência da nulidade invocada neste recurso, a qual se traduz na violação do contraditório, que é um dos pilares fundamentais do processo civil (art.º 3º, nº 3) -, sendo certo que a omissão de audiência prévia influiu no exame e decisão da causa. Considerando o que supra ficou referido, o vício em questão torna a sentença intrinsecamente nula por excesso de pronúncia, nos termos da alínea d) do nº 1 do art.º 615º do C.P.Civil. Há, assim, que anular a sentença proferida e demais actos dela dependentes, devendo a tramitação do processo ser retomada no momento imediatamente anterior à prolação do despacho saneador-sentença. A procedência deste fundamento do recurso prejudica o conhecimento das demais questões objecto do mesmo. Cumpre, por último, referir que, face ao decidido no presente acórdão, fica também prejudicado o conhecimento da nulidade processual invocada pelo apelante junto do tribunal a quo igualmente com fundamento na preterição da realização da audiência prévia e que não foi ali conhecida. * IV- Decisão Pelo exposto, julga-se procedente a apelação, declarando-se nula a sentença recorrida, a qual deve ser substituída por despacho que, em respeito pelo princípio do contraditório e tendo em consideração que nos presentes autos, findos os articulados e ainda que o tribunal entenda que estes dispõem de todos os elementos para que seja conhecido imediatamente o mérito da causa, tem que haver lugar à realização da audiência prévia, convoque tal diligência, a menos que a sua realização seja dispensada sem oposição de qualquer das partes e que os motivos da dispensa e a intenção de proferir despacho saneador-sentença, bem como os elementos que serão considerados para tal efeito, sejam previamente comunicados às partes. Custas pela massa insolvente, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário que lhe foi concedido. Registe e Notifique. Lx, 17/10/2023 Manuela Espadaneira Lopes Nuno Teixeira Amélia Rebelo |