Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | TERESA PARDAL | ||
| Descritores: | MÚTUO RESERVA DE PROPRIEDADE | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 12/17/2015 | ||
| Votação: | MAIORIA COM UM VOT VENC | ||
| Texto Integral: | N | ||
| Texto Parcial: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
| Sumário: | - É inválida, por ser contra a lei, a cláusula de reserva de propriedade a favor da mutuante num contrato de mútuo, pois tal cláusula visa proteger o contraente que transmite a propriedade do incumprimento da contraparte e no contrato de mútuo não está em causa a transmissão do direito de propriedade, existindo meios próprios para garantir o crédito do mutuante. - Ao mover-se dentro do princípio da liberdade contratual, as partes têm de atender aos limites impostos pela lei, não podendo, mediante uma reserva de propriedade a favor do mutuante, fixar restrições à tipicidade que vigora no âmbito dos direitos reais. (Sumário elaborado pela Relatora) | ||
| Decisão Texto Parcial: | Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa. RELATÓRIO: S…, SA intentou contra M…, Lda acção com processo comum alegando, em síntese, que celebrou com a ré um contrato de financiamento por via do qual lhe disponibilizou a quantia de € 19 592,60 para esta adquirir um veículo automóvel, com a constituição e registo a favor da autora de uma reserva de propriedade sobre o referido veículo, como garantia do pagamento das prestações do contrato de financiamento, não tendo a ré pago parte de uma prestação mensal no valor de € 148,86 e cinco prestações mensais no valor de € 403,40 cada, nem depois de ser interpelada para pagar em prazo que lhe foi fixado e com a cominação de ver o contrato resolvido. Concluiu pedindo: (i) ser decretada a resolução do contrato celebrado entre a autora e a ré; (ii) ser a ré condenada a reconhecer que o referido veículo pertence à S…, SA; (iii) ser a ré condenada a restituir à autora a viatura de marca Volvo, modelo S40 Diesel com a matrícula …, bem como os respectivos documentos; (iv) ser ordenado o cancelamento da menção de registo a favor da ré. Regulamente citada, a ré não contestou, tendo sido proferido despacho considerando provados os factos alegados na petição inicial e tendo a autora alegado, pedindo a procedência da acção. Seguidamente, foi proferida sentença que julgou procedente o primeiro pedido formulado pela autora, declarando resolvido, por motivo imputável à ré, o contrato de financiamento celebrado entre as partes e julgou improcedentes os restantes pedidos formulados pela autora, deles absolvendo a ré. * Inconformada, a autora interpôs recurso e alegou, formulando conclusões onde levanta a seguintes questões: - o artigo 409º do CC foi pensado inicialmente para os contratos de compra e venda, mas comporta na sua letra e espírito as situações, como a dos autos, em que existe uma conexão entre o contrato de mútuo e o contrato de compra e venda; - foi convencionada a cláusula de reserva de propriedade a favor da autora ao abrigo do princípio da liberdade contratual previsto no artigo 405º do CC; - foi estipulado expressamente que seria constituída a reserva de propriedade e que a autora ficaria subrogada nos direitos do credor, alienante do veículo; - o pagamento do preço ao vendedor foi feita com o dinheiro disponibilizado à ré pelo contrato de mútuo celebrado com a autora apelante, pelo que lhe assiste direito de ser colocada na posição do alienante, como titular da reserva de propriedade do bem garante do seu crédito; - a sentença recorrida violou os artigos 409º e 591º do CC e o artigo 18º do DL 54/75 de 12/2. A questão a decidir é a de saber se é válida a cláusula de reserva de propriedade constituída a favor da entidade que financiou a compra do veículo automóvel pela ré a terceiro. FACTOS. A sentença recorrida considerou confessados e, consequentemente, provados, os seguintes factos da petição inicial: A autora é uma sociedade comercial que tem por objecto a prática de operações permitidas aos bancos, com excepção da recepção de depósitos (1º). Em 06 de Junho de 2009, a ré celebrou com a autora um contrato de financiamento para aquisição a crédito com o nº656890 (2º). O contrato referido em 2º supra tinha por objecto um financiamento de € 15 00,00 (sendo o valor total do financiamento de € 19 592,60) montante esse que se destinou à aquisição, por parte da ré, de uma viatura de marca Volvo, modelo S40 Diesel, com a matrícula … (3º). Como condição da celebração do referido contrato e como garantia do seu bom cumprimento, foi exigido pela autora à ré a constituição de uma reserva de propriedade a seu favor e sobre o referido veículo, como garantia do financiamento prestado e do bom cumprimento do contrato (4º). Foi convencionado que a autora ficaria subrogada nos direitos do credor/fornecedor do veículo (6º). Por força do contrato já referido, a ré obrigou-se a pagar à autora 48 (quarenta e oito) prestações mensais e sucessivas no valor de € 404,95 cada (9º). Sucede que a ré deixou de efectuar os pagamentos referentes às seguintes prestações: Prestação Data Valor 16ª 28/11/10 € 148,86 (apenas liquidou 254,58) 17ª 28/12/10 € 403,44 18ª 28/01/11 € 403,44 19ª 28/02/11 € 403,44 20ª 28/03/11 € 403,44 21ª 28/04/11 € 403,44 (10º). Até à presente data não foi regularizada a situação (11º). Em face desta situação, a autora interpelou a ré para proceder ao pagamento das quantias que à data se encontravam em débito, por carta com A/R datado de 09 de Maio de 2010 (12º). Na qual concedeu um prazo de 15 dias úteis para liquidação das importâncias em atraso, findo o qual a mora se converteria em incumprimento definitivo (13º). Carta essa que foi efectivamente recebida, conforme resulta do respectivo AR (14º). Após tal carta e no prazo concedido para o efeito, a ré não procedeu ao pagamento da quantia em dívida (15º). Nem muito menos entregou a viatura, cuja reserva de propriedade se encontra inscrita a favor da autora, o que obrigou esta a requerer procedimento cautelar (16º). Apreensão esta que foi ordenada (17º). * * ENQUADRAMENTO JURÍDICO. Dos factos provados resulta que a autora celebrou com a ré um contrato de mútuo previsto no artigo 1142º do CC, através do qual a autora entregou à ré uma quantia pecuniária que esta se obrigou a devolver, destinando-se este financiamento à aquisição de um veículo pela ré a um terceiro. Não tendo sido pagas as prestações mensais acordadas, veio a autora intentar a presente acção, pedindo a resolução do contrato por incumprimento definitivo da ré e pedindo também que seja reconhecido o seu direito de propriedade sobre o veículo adquirido pela ré a terceiro, uma vez que, por acordo com a ré e como garantia do contrato de mútuo, foi constituída e registada a seu favor uma cláusula de reserva de propriedade sobre o veículo. A sentença recorrida julgou procedente o pedido de resolução do contrato de mútuo, por entender estarem verificados os respectivos pressupostos previstos nos artigos 432º e 808º do CC. Contudo, julgou improcedentes os pedidos relativos ao reconhecimento do direito de propriedade da autora sobre o veículo, por entender que a cláusula de reserva de propriedade é nula, assistindo à autora apenas o direito de exigir o cumprimento coercivo das prestações acordadas, ou, tendo optado pela resolução do contrato de mútuo, o direito de exigir a restituição do prestado acrescido de indemnização devida pelo incumprimento. É desta decisão de improcedência que a autora vem recorrer. Como é sabido, a validade da cláusula de reserva de propriedade a favor do mutuante tem sido discutida na jurisprudência e na doutrina. Estabelece o artigo 409º nº1 do CC que “nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento”. A lei prevê, assim, a constituição de reserva de propriedade a favor do alienante do bem, que é o titular do direito de propriedade sobre o bem objecto de transmissão, não sendo esse o caso do mutuante, que se limita a emprestar uma quantia em dinheiro, mas não detém qualquer direito sobre o bem transmitido, a menos que seja um dos direitos reais de garantia previstos no artigo 604º nº2 do CC. Tem entendido, porém uma corrente jurisprudencial que, apesar de a reserva de propriedade estar prevista no artigo 409º do CC como um instituto ligado ao contrato de compra e venda, deverá ser interpretar-se o artigo 18º do DL 54/75 extensivamente e de forma actualista, de modo a considerar-se que a “resolução do contrato de alienação com reserva de propriedade” aí mencionada, engloba o contrato de mútuo, como resultado da evolução das práticas comerciais, em que é cada vez mais frequente as instituições de crédito, ao abrigo da liberdade contratual contemplada no artigo 405º do CC, usarem a cláusula de reserva de propriedade como garantia de cumprimento do contrato de mútuo e do financiamento da compra do veículo (neste sentido, entre outros, acs STJ 30/08/2014, P. 844/09, com voto de vencido, RL 14/11/2013, p.844/09, 12/10/2010, p.1129/10, 18/03/2010 com voto de vencido, p.4847/09, 12/02/2009, P.10927/2008, todos em www.dgsi.pt). Tal entendimento não se afigura o mais correcto, pois, conforme se referiu, a cláusula de reserva de propriedade só poderá ser outorgada a favor do proprietário alienante, sendo nula por força do artigo 294º do CC, se for constituída a favor da instituição de crédito que não é proprietária do bem transmitido (neste sentido, entre outros, acs STJ 12/07/2011, p.403/07, 31/03/2011, p. 4849/05, 7/07/2010, p.117/06, 10/07/2008, p.08B1480, 2/10/2007, p.07A2680, RL 28/02/2013, p.84/13, 15/05/2012 com voto de vencido, p.2261/12, 5/7/2012 com voto de vencido, p.2490/12, 6/12/2011, p. 1652/11, 25/01/2011, p.39017/03, 14/12/2010, p.1384/10, 4/03/2010, p.4614/07, todos em www.dgi.pt e, na doutrina, Paulo Faria, “A reserva de propriedade constituída a favor de terceiro financiador”, revista Julgar, 16, páginas 30 e seguintes). Com efeito, nos termos do artigo 408º do CC, a transferência do direito de propriedade dá-se por mero efeito do contrato, que tem assim eficácia real, prevendo o artigo 409º uma situação excepcional a esta regra, ou seja, a possibilidade de constituição da reserva de propriedade, destinada a proteger o alienante, garantindo o cumprimento do contrato de alienação por parte do adquirente da coisa transmitida, alienação essa que não está em causa no contrato de mútuo e existindo institutos próprios a que o mutuante pode recorrer para garantir o seu crédito. Não pode, pois, deixar de se concluir que a cláusula prevista no artigo 409º do CC só pode ser outorgada a favor de quem tem a propriedade, não podendo o mutuante obter a seu favor a reserva da propriedade que não tem. A liberdade contratual está consagrada no artigo 405º do CC e é definida como a faculdade que as partes têm “de fixar livremente o conteúdo dos contratos, de celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver”, mas esta faculdade existe “dentro dos limites da lei”, pois, se tais limites forem desrespeitados, o negócio é física ou legalmente impossível, ou contrário à lei e nulo, nos termos do artigo 280º do mesmo código. E, no domínio dos direitos reais vigora o princípio da tipicidade, ou do “numerus clausus”, proibindo o artigo 1306º do CC a constituição, com carácter real, de restrições ao direito de propriedade a não ser nos casos expressamente previstos na lei. Não pode, pois, o direito de propriedade, transmitido para o comprador da coisa por força do artigo 408º do CC, ser restringido com uma reserva de propriedade a favor de mutuante, sob pena de violação do referido artigo 1306º. Também não procede o argumento de que a cláusula de reserva de propriedade se pode transmitir por cessão da posição contratual do alienante ou por sub-rogação dos seus direitos (artigo 577º ou artigo 591º do CC), porque o alienante, ao receber o preço da compra, deixa de gozar do direito conferido pelo artigo 409º, não podendo transmitir ao mutuante a reserva de um direito de propriedade que já não tem e que já foi transmitida para o comprador mutuário. Como expõe Paulo Faria no artigo citado da revista “Julgar” (página 42) “Estas sociedades financeiras já protegem os seus créditos com um vasto arsenal de garantias, pelo que a sub-rogação se destina a obter a única garantia de que não podem beneficiar: a titularidade da propriedade. Evidencia-se, assim, que, nesta suposta sub-rogação no crédito (e na propriedade reservada), estamos perante uma conduta que visa defraudar o numerus clausus previsto nos artigos 604 nº2 e 1306º, proibida por força do disposto no artigo 294º”. A cláusula de reserva de propriedade fixada a favor do mutuante ora apelante é, assim, nula, nos termos do artigo 294º do CC, improcedendo as alegações da apelante. DECISÃO. Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida. Custas pela apelante. Lisboa, 2015-12-17 Maria Teresa Pardal Carlos Marinho Anabela Calafate (vencida, por perfilhar o entendimento de que é possível clausular a reserva de propriedade a favor do mutuante, por acordo entre este, o vendedor e o comprador, conforme a orientação defendida no ac. do STJ proferido no P.844/09) | ||
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