Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1604/21.3T8TMR.L1-4
Relator: CELINA NÓBREGA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
DIREITOS INDISPONÍVEIS
FACTOS NOVOS
CONDENAÇÃO ULTRA PETITUM
DECISÃO SURPRESA
NULIDADE DA SENTENÇA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. É nula a sentença que aprecie questões que não lhe foram submetidas pelas partes e que não podiam ser oficiosamente conhecidas pelo juiz.
II. A aplicação do disposto no artigo 74.º do CPT não dispensa o cumprimento prévio do direito ao contraditório e, obviamente, não permite as decisões surpresa.
III. A inobservância do direito ao contraditório com a consequente decisão surpresa gera a nulidade da sentença por excesso de pronúncia.
(sumário da autoria da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:
Relatório

AA, residente na Rua..., veio, com o patrocínio do Ministério Público, propor acção especial emergente de acidente de trabalho contra ZZ, S.A., com sede na Rua..., pedindo que a Ré seja condenada a:
1- Reconhecer o evento dos autos, ocorrido em 06/11/2020, como acidente de trabalho;
2- Pagar ao Autor a pensão anual e vitalícia de €23,89 e, uma vez que é obrigatoriamente remível, o respetivo capital de remição, no montante de €298,53;
3- Pagar ao Autor a importância de €822,67, pelos períodos de incapacidade temporária;
4- A pagar juros de mora até integral pagamento das quantias referidas em 2 e 3.
Para tanto invocou, em suma, que:
- No dia 6 de Novembro de 2020, quando trabalhava sob as ordens, direção e fiscalização da Ré onde desempenhava as funções de motorista de veículos automóveis pesados de mercadorias, ao fazer força para fechar a porta de um contentor, sentiu uma forte dor no ombro esquerdo do que resultou, nomeadamente entorse desse ombro que lhe determinou períodos de incapacidade temporária parcial e absoluta e uma IPP de 3%;
- A responsabilidade emergente de acidentes de trabalho estava transferida para a “Generali Seguros, S.A.”;
-Na tentativa de conciliação a entidade seguradora e a Ré aceitaram a existência do acidente, a sua caracterização como de trabalho e o nexo causal entre o acidente e as lesões do Sinistrado, assim como o resultado do exame médico quanto aos períodos de incapacidades temporárias, a data da consolidação médico-legal e a IPP de 3%;
- A seguradora apenas aceitou a responsabilidade pela remuneração de €16.497,67 mas não aceitou a responsabilidade pelo subsídio de refeição, no montante de €1.137,40 (€4,70x22x11) e a Ré, por seu turno, reconheceu que não se encontrava transferida para a entidade seguradora a importância de €1.137,40, a título de subsídio de refeição, por entender que o Sinistrado não tem direito ao mesmo; e
- Nos termos da cláusula 55.ª n.º 1 e anexo 3 do CCT celebrado entre a Antram e a Fectrans, publicado no BTE n.º 45, de 08/12/2019, objecto da portaria de extensão n.º 49/2020, de 26/02, é devido ao Autor o subsídio de refeição no valor de €4,70 que releva para o cálculo das indemnizações por acidente de trabalho, sendo-lhe devidas as quantias que reclama a esse título.
Regularmente citada, a Ré contestou invocando, em resumo, que o Autor é um trabalhador móvel, que, no exercício efectivo da suas funções, encontra-se diariamente deslocado em Portugal e no estrangeiro, que, por isso, para fazer face às despesas com a alimentação, tem direito a receber ajudas de custo nos termos do disposto na cláusula 58.ª do CCTV e não a subsídio de alimentação, que nunca pagou ao Autor subsídio de refeição mas, sim, ajudas de custo e que o Autor não tem direito a subsídio de alimentação razão pela qual a responsabilidade pelo seu valor não estava transferida para a entidade seguradora.
Finalizou pedindo a absolvição do pedido.
Foi proferido despacho saneador, fixados os factos assentes, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.
A Ré reclamou dos factos assentes, reclamação que foi deferida.
Procedeu-se a julgamento e após foi proferida a sentença que finalizou com o seguinte dispositivo:
“Pelos fundamentos de facto e de direito supra expostos, o Tribunal julga a ação procedente porque provada e, em consequência:
a) reconhece como retribuição anual do Autor o valor de € 21.952,67.
b) Condena a Ré ZZ, S.A. a pagar ao Autor AA:
b1 – a quantia de € 3.934,32 (três mil e novecentos e trinta e quatro euros e trinta e dois cêntimos) correspondente ao valor devido a título da incapacidade temporária desde 07 de Novembro de 2020 a 30 de Novembro de 2021;
b2 - no pagamento do capital de remição correspondente a uma pensão anual e vitalícia de € 114,56 (cento e catorze euros e cinquenta e seis cêntimos), acrescida de juros moratórios vencidos à taxa legal sobre a referida quantia desde 30 de Novembro de 2021 e vincendos até efetivo e integral pagamento.
As custas ficam a cargo da Ré ZZ, S.A.
Valor da ação: € 5.365,86 (artigo 120.º n.º 1 e 2 do Código de Processo do Trabalho).
Registe e notifique.”
Inconformada com a sentença, a Ré recorreu e sintetizou as alegações nas seguintes conclusões:
“a) os conceitos de “subsídio de refeição” e “ajudas de custo” são distintos e têm consequências jurídicas próprias;
b) o recorrido/autor demandou a recorrente/ré pedindo a sua condenação na integração do valor do subsídio de refeição nas indemnizações a que tem direito por força da ocorrência do acidente de trabalho dos autos;
c) não obstante a causa de pedir e o pedido respeitarem ao subsídio de refeição, a decisão recorrida condenou a recorrente/ré a pagar ao recorrido/autor uma importância a título das indemnizações emergentes do acidente de trabalho dos autos respeitante às ajudas de custo por si auferidas, o que fez sem ter sido dada à recorrente/ré a possibilidade de se defender, como já fez em inúmeros processos, a respeito dessa matéria;
d) a decisão recorrida padece da nulidade prevista na segunda parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615º do CPC ( “o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”);
e) a decisão recorrida viola também o direito de defesa da recorrente/ré, pelo que não poderá produzir qualquer efeito;
f) o recorrido/autor, motorista de pesados afeto ao transporte internacional rodoviário de mercadorias, é considerado, nos termos e para os efeitos do disposto no CCTV, trabalhador móvel, tendo direito a receber ajudas de custo, nos termos do disposto na cláusula 58ª do CCTV, e não a subsídio de alimentação, que nunca lhe foi pago;
g) A recorrente/ré não alegou nem provou que as ajudas de custo pagas ao recorrido/autor destinavam-se a fazer face às despesas com a sua alimentação e ao seu efetivo reembolso ( custo aleatório ) apenas e só porque jamais lhe foi dada oportunidade para o efeito, já que a causa de pedir e o pedido dos autos reportavam-se a subsídio de refeição e não a ajudas de custo,
h) a atual redação da cláusula 55º do CCTV, que surgiu na última negociação do CCTV para esclarecer e clarificar a questão sub judice diz expressamente que “As empresas atribuirão um subsídio de refeição de valor igual para todos os trabalhadores abrangidos por este CCTV, independentemente da sua categoria profissional, o qual não fará parte da retribuição, exceto quando aplicável o regime previsto nas cláusulas 56.º, 57.º e 58.º do presente CCTV”; e,
i) ao decidir como decidiu, violou a decisão recorrida, entre outros, os artigos 3º e 609º do CPC, 71ª da LAT e as cláusulas 55ª e 58ª do CCTV, pelo que, como nula, ilícita, infundada e de nenhum efeito que é, deverá ser revogada e substituída por outra que absolva a recorrente/ré da quantia em que foi condenada e também da que lhe foi reclamada em sede de petição inicial, com o que se fará
JUSTICA!!!”
O Autor contra-alegou e formulou as seguintes conclusões:
“1.º- A recorrente sempre teve bem presente que a questão a dirimir nos autos respeitava ao facto de a parcela paga a título de ajudas de custo poder ser considerada, no todo ou pelo menos em parte, retribuição para efeitos de acidente de trabalho.
2.º- Mais, estava perfeitamente consciente que na fase conciliatória se entendeu que pelo menos parte da importância paga àquele título integrava o conceito de retribuição para efeitos de acidente de trabalho.
3.º- Acresce que, no despacho saneador, na matéria de facto dada como provada, a Mm.ª Juíza a quo deu como provado o CCT aplicável à relação laboral em causa, no qual se encontra prevista tal matéria.
4.º- Por outro lado, quanto aos temas de prova fez constar que importava apurar se o A./sinistrado recebia outros valores a título de remuneração, como ajudas de custo regulares/subsídio de alimentação e a sua regularidade e a quantificação desses valores.
5.º- Assim sendo, não só a decisão recorrida não pode ser considerada uma decisão surpresa para a recorrente, no sentido de que não teve oportunidade para se pronunciar quanto àquela matéria, as ajudas de custo (art.º 3.º, n.º 3, do CPC, aplicável por força do disposto no art.º 1.º, n. 2, al. a), do CPT), como inclusivamente indicou prova quanto à mesma, que foi produzida.
6.º- Com efeito, a testemunha BB, pronunciou-se quanto ao CCT aplicável, desde logo quanto ao facto de aquele CCT excluir a aplicação da cláusula relativa ao subsídio de alimentação quando é aplicável a cláusula relativa às ajudas de custo.
7.º- Por sua vez, a testemunha CC explicou a quem eram pagas as ajudas de custo, como eram calculadas e que não era exigido que os motoristas entregassem quaisquer documentos que comprovassem as despesas efetuadas (faturas, recibos, etc.).
8.º- Ora, como sabemos, no âmbito dos acidentes de trabalho encontramo-nos perante os chamados direitos indisponíveis.
9.º- Por isso, e em conformidade com a Lei, desde logo o disposto nos artigos 135.º e 74.º, ambos do CPT, a Mm.ª Juíza a quo deu como provada, atenta toda a prova produzida, a factualidade constante da douta sentença recorrida, parcialmente transcrita, condenando a R. em montante superior ao pedido.
10.º- Em suma, por resultar do peticionado, pois a questão fulcral era saber se para além dos valores transferidos para a seguradora o A. recebia outros a título de remuneração, e por na sua contestação a R. ter aludido às ajudas de custo e indicado prova, o que levou, de resto, a que no despacho saneador tal matéria fosse considerada como objeto do litígio e incluída nos temas de prova, afigura-se-nos que a douta sentença recorrida não padece da invocada nulidade de excesso de pronuncia ou de qualquer outra.
11.º- Pelo exposto, mais não resta do que referir que a douta sentença recorrida não violou qualquer preceito legal, nem enferma de qualquer nulidade ou irregularidade, pelo que deve ser mantida.
Por todo o exposto, deve a douta sentença recorrida ser mantida, negando se, consequentemente, provimento ao recurso interposto pela recorrente.
Porém, V. Ex.ªs decidindo farão JUSTIÇA.”
Foi proferido despacho que admitiu o recurso e apreciou a arguida nulidade da sentença nos seguintes termos:
“Veio a Ré, nas suas alegações de recurso, arguir a nulidade da sentença proferida, nos termos do artigo 615º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil, alegando que o Tribunal conheceu de questões que não podia conhecer e coartou o seu direito de defesa.
Cumpre apreciar, antes de fazer subir o recurso.
O Tribunal, no âmbito da jurisdição laboral e ao abrigo do disposto no artigo 74º do Código do Processo de Trabalho, pode condenar em quantidade superior ao pedido ou em objecto diverso, desde que tal decorra da matéria de facto provada. Pelo que não existe nenhuma nulidade no facto de o Tribunal ter condenado em quantidade superior e por referência a um elemento que não foi alegado pelo Autor.
No que concerne ao argumento de que foi violado o direito de defesa da Ré, por se ter condenado com base nas ajudas de custo, o que não constava da petição inicial, tal também não se verifica, pois foi a Ré, na sua contestação, que arguiu que o Autor não recebia qualquer valor a título de subsídio de alimentação, por receber um valor global, superior, que substituía/absorvia a necessidade de atribuir tal subsídio, a título de ajudas de custas.
Face ao exposto, julga-se não verificada qualquer nulidade na decisão proferida.”
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, foram colhidos os vistos.
Cumpre, agora, apreciar e decidir.
Objecto do recurso
O âmbito do recurso é delimitado pelas questões suscitadas pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635.º n.º 4 e 639.º do CPC, ex vi do nº 1 do artigo 87.º do CPT), sem prejuízo da apreciação das questões que são de conhecimento oficioso (art.608.º nº 2 do CPC).
Assim, no presente recurso, cumpre apreciar as seguintes questões:
1.ª- Se a sentença enferma de nulidade por se ter excedido na pronúncia, ter violado o direito de defesa/contraditório da Recorrente, constituindo uma decisão surpresa e por ter condenado em quantidade superior ao pedido.
2.ª-Se a Ré deve ser absolvida das quantias peticionadas e daquelas em que foi condenada.
Fundamentação de facto
A sentença considerou provados os seguintes factos:
1 - No dia 6 de Novembro de 2020, o Autor trabalhava sob as ordens, direção e fiscalização de “ZZ, S.A.”, com o NIPC ..., CAE Principal 49410, que tem por objeto, em suma, transportes rodoviários de mercadorias por conta de outrem, nacional ou internacional.
2 - O Autor desempenhava as funções de motorista de veículo automóveis pesados de mercadorias.
3 - O Autor auferia a retribuição anual composta pelas seguintes parcelas:
-Salário base €700,00 x 14 meses;
-Cláusula 59.ª €196,00;
-Trabalho noturno €910,00;
-Cláusula 61 €4.455,36;
-Serviço Ibérico €78,89;
-Feriados €561,68;
-Descanso compensatório €233,24;
-Subsídio de risco €262,50.
4 - No dia acima indicado, cerca das 15H00, quando se encontrava na zona de Riachos - Entroncamento, o Autor quando fazia força para fechar a porta de um contentor, sentiu uma forte dor no ombro esquerdo.
5 - Na sequência do referido em 4) resultou para o Autor entorse do ombro esquerdo, do que resultou entorse do ligamento glenoumeral inferior, rotura parcial da superfície articular, rotura intra-substancia do tendão do supraespinhoso e tendinopatia do supraespinhoso e do segmento intra-articular do bicipide.
6 - A responsabilidade emergente de acidentes de trabalho estava transferida para a “Generali Seguros, S.A.”, através da apólice n.º 4066417.
7 - Do acidente e das lesões que se lhe seguiram resultaram para o sinistrado, conforme o exame médico realizado no âmbito dos autos em epígrafe, um período de incapacidade temporária parcial de 20% de 07 a 15 de Novembro de 2020, um de incapacidade temporária absoluta de 16 de Novembro de 2020 a 23 de Novembro de 2021 e um de incapacidade temporária parcial de 10% de 24 a 30 de Novembro de 2021.
8 - No aludido exame médico considerou-se, ainda, que a alta ocorreu em 30 de Novembro de 2021, bem como que o sinistrado ficou com uma incapacidade permanente parcial de 3%.
9 - Em sede de tentativa de conciliação, junto da Procuradoria do Juízo do Trabalho do Barreiro o Autor concordou com o exame médico realizado e o seu resultado.
10 - A entidade seguradora “Generali Seguros, S.A.” e a Ré, no âmbito da tentativa de conciliação, aceitaram a existência do acidente, a sua caracterização como de trabalho e o nexo causal entre o acidente e as lesões do sinistrado, assim como o resultado do exame médico quanto aos períodos de incapacidades temporárias, a data da consolidação médico-legal e a IPP de 3%.
11 - A seguradora “Generali Seguros, S.A.”, aceitou proceder ao pagamento das despesas com transportes, no montante de €8,00.
12 - No que respeita à remuneração anual auferida pelo sinistrado, a seguradora “Generali Seguros, S.A.” apenas aceitou a responsabilidade pela remuneração de € 16.497,67, por ser a que se encontrava transferida para si, não aceitando, portanto, a responsabilidade pelo subsídio de refeição, no montante de € 1.137,40.
13 - A Ré “ZZ, S.A.”, reconheceu que não se encontrava transferida para a entidade seguradora a importância de €1.137,40, a título de subsídio de refeição, por entender que o sinistrado não tem direito ao mesmo.
14 - Foi obtido acordo parcial entre o Autor e a entidade seguradora, já homologado por decisão proferida nos autos em 03.11.2022, tendo prosseguido os autos para a fase contenciosa apenas relativamente à Ré “ZZ, S.A.”.
15 - Em virtude de o sinistrado não ser sindicalizado e a entidade empregadora/Ré “ZZ, S.A.” ser associada da ANTRAM, e como de resto informado por esta, é aplicável a esta relação de trabalho o CCT celebrado entre a Antram e a Fectrans, publicado no BTE n.º 45, de 08/12/2019, objeto da portaria de extensão n.º 49/2020, de 26/02.
16 - No anexo 3 do referido CCT, consta que o valor do subsídio de refeição é no montante de € 4,70.
17 – O Autor não recebe qualquer valor a título de subsídio de alimentação.
18 – O Autor recebe ajudas de custo ao abrigo da cláusula 58º do CCT celebrado entre a Antram e a Fectrans, publicado no BTE n.º 45, de 08/12/2019, objeto da portaria de extensão n.º 49/2020, de 26/02.
19 – O Autor recebeu os seguintes valores a título de ajudas de custo:
- Em Novembro de 2019 o valor de € 535,00;
- Em Dezembro de 2019 o valor de € 477,50;
- Em Janeiro de 2020 o valor de € 242,50;
- Em Fevereiro de 2020 o valor de € 260,00;
- Em Março de 2020 o valor de € 530,00;
- Em Abril de 2020 o valor de € 502,50;
- Em Maio de 2020 o valor de € 517,50;
- Em Junho de 2020 o valor de € 300,00;
- Em Julho de 2020 o valor de € 372,50;
- Em Agosto de 2020 o valor de € 635,00;
- Em Setembro de 2020 o valor de € 542,50;
- Em Outubro de 2020 o valor de € 540,00;
- Em Novembro de 2020 o valor de € 260,00.
Fundamentação de direito
Comecemos, então, por apreciar se a sentença enferma de nulidade por se ter excedido na pronúncia, ter violado o direito de defesa/contraditório da Recorrente, constituindo uma decisão surpresa e por ter condenado em quantidade superior ao pedido.
A este propósito invoca a Recorrente, muito sumariamente, que, não obstante a causa de pedir e o pedido respeitarem ao subsídio de refeição, a sentença condenou a Recorrente a pagar ao Recorrido um montante a título das indemnizações emergentes do acidente de trabalho calculadas com base nas ajudas de custo por aquele auferidas, o que fez sem ter dado à Recorrente a possibilidade de se defender e de alegar e provar que as ajudas de custo destinam-se a fazer face às despesas com a alimentação e efectivo reembolso, pelo que a sentença é nula nos termos da segunda parte da al. d) do n.º 1 do artigo 615º do CPC, bem como viola o direito de defesa da Recorrente e o disposto no artigo 609.º do CPC por ter condenado em quantidade superior ao pedido.
Vejamos.
O artigo 615.º do CPC enumera taxativamente as nulidades da sentença.
De acordo com o seu n.º 1, al.d), 2.ª parte, é nula a sentença por excesso de pronúncia quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Esta norma está em estreita relação com a 2.ª parte do n.º 2 do artigo 608.º do CPC que estatui que o juiz “ não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
Assim, como escrevem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre no “Código de Processo Civil Anotado”, Volume 2.º, 3.ª Edição, Almedina, pag. 737 “ Não podendo o juiz conhecer de causas de pedir não invocadas, nem de excepções não deduzidas na exclusiva disponibilidade das partes (art.608.º-2) é nula a sentença em que o faça”.
E como elucida Alberto dos Reis no “Código de Processo Civil anotado”, Volume V, (Reimpressão), Coimbra Editora, LIM, pag.143 e 144: “ O juiz conheceu na sentença, de questão de que não podia tomar conhecimento. Quando isso suceder, a sentença é nula.(…) Proíbe-se aqui ao juiz que se ocupe de questões que as partes não tenham suscitado, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso. Portanto, a nulidade prevista na 2.ª parte do n.º 4 do art.668.º desenha-se assim: A sentença conheceu de questão que nenhuma das partes submeteu à apreciação do juiz.
Mas não existe nulidade, se por lei o juiz tinha o poder ou o dever de conhecer ex officio da questão respectiva.”
Em suma, é nula a sentença que aprecie questões que não lhe foram submetidas pelas partes e que não podiam ser oficiosamente conhecidas pelo juiz.
Por outro lado, tendo a Recorrente invocado a violação do disposto no artigo 609.º do CPC, naturalmente que, implicitamente, está a apontar à sentença a causa de nulidade prevista na al.e) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
De acordo com esta disposição legal, a sentença é nula quando “O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.” No caso presente, está em causa condenação em quantidade superior ao pedido.
Como é sabido, esta causa de nulidade decorre do incumprimento ao disposto no artigo 609.º n.º 1 do CPC que determina que “A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir.”
Sobre esta nulidade da sentença escrevem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre na pag.737 da obra citada: “É também nula a sentença que, violando o princípio do dispositivo na vertente relativa à conformação objetiva da instância (ver o nº 6 da anotação ao art.5 e os nºs 2 e 3 da anotação ao art.552), não observe os limites impostos pelo artigo 609-1, condenando ou absolvendo em quantidade superior ao pedido ou em objeto diverso do pedido.”
Quando se pronunciou sobre a arguida nulidade da sentença, a Mma. Juíza referiu que, na jurisdição laboral, face ao disposto no artigo 74º do Código de Processo do Trabalho, podia condenar em quantidade superior ao pedido e por referência a um elemento que não foi alegado pelo Autor, ou em objecto diverso, desde que tal decorresse da matéria de facto provada.
É correcta essa afirmação.
Na verdade, o artigo 74.º do CPT consagra uma especialidade relativamente ao que estatui o artigo 609.º do CPC e prevê a denominada condenação extra vel ultra petitum.
Assim, de acordo com o mencionado artigo, “O juiz deve condenar em quantidade superior ao pedido ou em objeto diverso dele quando isso resulte da aplicação à matéria provada, ou aos factos de que possa servir-se, nos termos do artigo 412.º do Código de Processo Civil, de preceitos inderrogáveis de leis ou instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho”.
Esta norma, como se sabe, é de aplicação oficiosa e pode ser aplicada pelo Tribunal da Relação mesmo que não tenha sido avocada pelo Tribunal de 1.ª Instância, nem tenha sido suscitada pelas partes no recurso.
Conforme escreve Abílio Neto no “Código de Processo do Trabalho Anotado”, 5.ª Edição, Actualizada e Ampliada Janeiro de 2011, Ediforum, Edições Jurídicas, Lda Lisboa, pags.193 e 194:”O art.74.º do CPT, ao invés, constitui, precisamente, um caso em que a lei impõe ao julgador um dever oficioso de aplicar a lei aos factos de que possa servir-se, em homenagem ao interesse e ordem pública que constituem pressuposto das normas imperativas e indisponíveis de natureza laboral, interesse este que é mais vasto do que o interesse dos titulares dos inerentes direitos na sua satisfação efectiva e que justifica a impossibilidade do afastamento da aplicação destas normas por livre determinação da vontade das partes.
(…).
Com efeito, têm a doutrina e a jurisprudência feito uma distinção básica entre os direitos de existência necessária, mas que não são de exercício necessário, como é o caso do direito ao salário após a cessação do contrato, e os direitos cuja existência e exercício são necessários, aí situando justamente o caso dos direitos a reparação por acidente de trabalho-que nos termos do disposto no art.35.º da LAT são de natureza irrenunciável- e, também, do direito ao salário na vigência do contrato. É pacífico que a condenação “extra vel ultra petitum” só se justifica neste segundo tipo de direitos, que têm subjacentes interesses de ordem pública, cabendo ao juiz o suprimento dos direitos de exercício necessário imperfeitamente exercidos pelo seu titular (ou seu representante).
(…).
O facto de a questão da condenação “extra vel ultra petitum” não ter sido apreciada pelo tribunal a quo ou, mesmo, de se não ter feito referência a tal condenação nas alegações de recurso, não tem qualquer interferência na possibilidade de os tribunais superiores condenarem além do pedido.”
E como refere o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.10.2022, proferido no Processo n.º 13358/20.6T8LSB.S1, consultável em www.dgsi.pt “O regime excepcional do artigo 74.º do CPT só se justifica considerando que a condenação em quantidade superior ao pedido ou em objecto diverso dele, tem em vista o suprimento pelo juiz de um direito de “exercício necessário” não exercido ou imperfeitamente exercido pelo seu titular.”
Ora, de acordo com o artigo 78.º da Lei n.º 98/2009 de 04 de Setembro, os créditos provenientes do direito à reparação estabelecida naquela lei são inalienáveis, impenhoráveis e irrenunciáveis e gozam das garantias consignadas no Código do Trabalho, cominando o artigo 12.º da mesma Lei com a nulidade a convenção contrária aos direitos ou garantias por ela conferidos ou com eles incompatíveis e os actos e contratos que visem a renúncia aos direitos conferidos pela mesma.
Por isso, no âmbito dos presentes autos, seria possível a aplicação do disposto no artigo 74.º do CPT e uma condenação para além do pedido, caso esta resultasse da aplicação da lei aos factos de que o juiz se pudesse servir.
Sucede, porém, que a aplicação do disposto no artigo 74.º do CPT, não dispensa o cumprimento prévio do direito ao contraditório e, obviamente, não permite as decisões surpresa.
O artigo 3.º n.º 3 do CPC, aplicável ao caso ex vi do artigo 1.º nº 2 al.a) do CPT, consagra o princípio do contraditório nos seguintes termos:
“O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”
Proíbe-se, assim, as denominadas decisões surpresa.
A propósito das normas do artigo 3.º n.º3 e 4 do CPC, escrevem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre na pag.7 da obra que vimos citando:” Resultam estes preceitos duma conceção moderna do princípio do contraditório, mais ampla do que a do direito anterior à sua introdução no nosso ordenamento. Não se trata já apenas de, formulado um pedido ou tomada uma posição por uma parte, ser dada à contraparte a oportunidade de se pronunciar antes de qualquer decisão e de oferecida uma prova por uma parte, ter a parte contrária o direito de se pronunciar sobre a sua admissão ou de controlar a sua produção. Este direito à fiscalização recíproca das partes ao longo do processo é hoje entendido como corolário duma conceção mais geral da contraditoriedade, como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio (factos, provas, questões de direito) que se encontram em ligação direta ou indireta, com o objeto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.”
E como se escreve no sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10.09.2020, consultável em www.dgsi.pt, cujo entendimento acompanhamos, “I) A correcta compreensão do princípio do contraditório não se basta com a garantia de que as partes tenham a possibilidade de intervir no processo, tendo conhecimento e possibilidade de pronúncia quanto aos pedidos que deduzem ou contra si são deduzidos; implica ainda que as partes possam pronunciar-se quanto a questões determinantes para a decisão a proferir e que, constituindo novidade no processo, não tenham sido objecto de pronúncia no decurso do normal contraditório previsto na tramitação processual.
II) O princípio do contraditório assume-se, nesta dimensão, como garantia de participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio.
III) A efectiva possibilidade de pronúncia não exige a efectiva pronúncia e não impõe que a todo o tempo a prolação de uma decisão imponha a audição das partes quanto ao sentido da mesma, nomeadamente imponha a apresentação às partes de uma espécie de projecto de decisão.
(…).”
E quanto à decisão surpresa escreve-se na mesma obra, pags. 9 e 10: “ No plano das questões de direito, é expressamente proibida, desde a revisão do CPC de 1961, a decisão surpresa, isto é, a decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes.
Esta vertente do princípio tem fundamentalmente aplicação às questões de conhecimento oficioso que as partes não tenham suscitado, pois as que estejam na disponibilidade exclusiva das partes, tal como as que sejam oficiosamente cognoscíveis mas na realidade tenham sido levantadas por uma das partes, são naturalmente objeto de discussão antes da decisão, sem que o facto de a parte que as não tenha levantado não ter exercido o direito de resposta (desde que este lhe tenha sido facultado) implique falta de contraditoriedade. Antes de decidir com base em questão (de direito material ou de direito processual) de conhecimento oficioso que as partes não tenham considerado, o juiz deve convidá-las a sobre ela se pronunciarem, seja qual for a fase do processo em que tal ocorra (despacho-saneador, sentença, instância de recurso).
(…).”
E quais as consequências da violação do contraditório e da prolação da decisão surpresa?
Versando sobre este tema, embora sobre Acórdão da Relação, mas cujo entendimento tem aplicação às sentenças, afirma o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça citado supra: “Como se pode ler no Acórdão do STJ, de 17.03.2016, proc. 1129/09.5TBVRL-H.G1.S1 (relator Conselheiro Fonseca Ramos), “a decisão-surpresa alegada e verificada quanto ao acórdão da Relação constitui um vício intrínseco da decisão e não do iter procedimental, acarretando a nulidade do acórdão que assentou a sua decisão em dois fundamentos que não foram previamente considerados pela recorrente, que foram decisivos para a decisão e sobre os quais, antes, deveriam ter sido ouvidos recorrente e recorridos”.
E no mencionado acórdão do STJ, de 23.06.2016, proc. n.º 1937/15.8T8BCL.S1, foi consignado:
“(…), depara-se-nos uma nulidade processual traduzida na omissão de um acto que a lei prescreve, mas que se comunica ao despacho saneador, de modo que a reacção da parte vencida passa pela interposição de recurso da decisão proferida em cujos fundamentos se integre a arguição da nulidade da decisão por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º, nº 1, al. d), in fine, do CPC.
É esta a posição assumida por Teixeira de Sousa quando, no comentário ao Ac. da Rel. de Évora, de 10-4-14 (www.dgsi.pt), observou que ainda que a falta de audição prévia constitua uma nulidade processual, por violação do princípio do contraditório, essa “nulidade processual é consumida por uma nulidade da sentença por excesso de pronúncia (art. 615º, nº 1, al. d), do NCPC), dado que sem a prévia audição das partes o tribunal não pode conhecer do fundamento que utilizou na sua decisão” (em blogippc.blogspot.pt, escrito datado de 10-5-14).
Tal solução foi reforçada pelo mesmo processualista em comentário ao Ac. da Rel. do Porto, de 2-3-15 (www.dgsi.pt), concluindo que “o proferimento de uma decisão-surpresa é um vício que afecta esta decisão (e não um vício de procedimento e, portanto, no sentido mais comum da expressão, uma nulidade processual)”. Com efeito, como aí se refere, até esse momento, “não há nenhum vício processual contra o qual a parte possa reagir”, e que “o vício que afecta uma decisão-surpresa é um vício que respeita ao conteúdo da decisão proferida; a decisão só é surpreendente porque se pronuncia sobre algo de que não podia conhecer antes de ouvir as partes sobre a matéria” (em blogippc.blogspot.pt, em escrito datado de 23-3-15)”.
Por maioria de razão, aquando da aplicação do artigo 74.º do CPT dada a subjacente inconstitucionalidade considerada no citado Acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 605/95, de 8 de Novembro de 1995, proc. n.º 155/90.
No caso sub judice, dado que a invocada nulidade processual, pela decisão-surpresa da condenação extra vel ultra petitum, está coberta pelo próprio acórdão, já que foi com a sua prolação que a mesma foi cometida, é impugnável por via de recurso de revista, acabando por equivaler ou consubstanciar nulidade do acórdão recorrido.
Assim, e ao contrário do considerado pelo Tribunal da Relação de que a omissão do cumprimento do artigo 3.º, n.º 3, do CPC, constituiu uma simples nulidade processual secundária, a reclamar no prazo de 10 dias a contar da notificação do acórdão, é de afirmar que o não cumprimento do contraditório no âmbito da aplicação do artigo 74.º do CPT constitui uma nulidade substantiva do acórdão (cf. artigo 615.º, n.º 1, alínea d), 2.ª parte, do CPC), no sentido de a condenação extra vel ultra petitum estar condicionada à prévia audição dos interessados sobre a matéria em causa.
Como citado supra, “O escopo principal do princípio do contraditório é a influência, no sentido positivo de direito de influir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo”.
Aqui chegados importa, então, apurar se, como alega a Recorrente, não foi observado o contraditório e se foi proferida decisão surpresa que, como já vimos, gera a nulidade da sentença por excesso de pronúncia.
Os presentes autos iniciaram-se com a participação efectuada pela entidade empregadora do sinistrado onde são indicados, como valores auferidos pelo mesmo, os seguintes: Retribuição base: 700,00; Subsídio de refeição: 0,00; Outras retribuições (mês): 426,72; Subsídio de Natal: 714,00; subsídio de férias 1.126,72.
Fixado o Tribunal da residência do Sinistrado como o territorialmente competente, pelo Ministério Público foi proferido despacho que, além do mais, determinou a notificação da Empregadora para juntar aos autos cópia dos recibos de vencimento do Sinistrado de Novembro de 2019 a Novembro de 2020, indicar se a relação laboral estava abrangida por alguma convenção colectiva de trabalho e se estava inscrita em alguma associação de empregadores, o que esta cumpriu.
Posteriormente foi proferido despacho que determinou a notificação da Seguradora para “informar se quando da comunicação do sinistro não teve em conta alguma parcela à remuneração transferida, atendendo a que:
§-À data do acidente o sinistrado auferia as seguintes parcelas e retribuição fixa:
-Salário base de €700,00 mensais, portanto €9.800,00 (€700,00x14);
-Complemento salarial, cláusula 59.ª do CCT celebrado entre a Antram e a Fectrans, publicado no BTE n.º 45, de 08/12/2019, objeto da portaria de extensão n.º 49/2020, de 26/02, no valor mensal de €14,00, portanto, €196,00 (14,00x14);
-Subsídio Trabalho Noturno, cláusula 63.ª do referido CTT, no valor mensal de €70,00, portanto, €910,00 (70,00x13).
-Retribuição do regime específico do motorista, cláusula 61.ª do referido CTT, no montante mensal de €342,72, portanto, €4.455,36 (€342,72x13).
A título de retribuição variável, nos 12 meses anteriores ao do acidente, auferiu as seguintes importâncias:
-Proporcional serviço ibérico a importância total de €78,89;
-Trabalho dias de descanso semanal/feriados a importância total de €561,68;
-Descanso compensatório não gozado a importância total de €233,24;
-Subsídio de risco a importância total de €262,50;
-Ajudas de custo no valor total de €5.455,00, pagas todos os meses.”
O despacho foi notificado ao Sinistrado e à Empregadora a fim de se pronunciarem.
Em 15.03.2022, a Empregadora respondeu nos seguintes termos:
“1º- A retribuição salarial auferida pelo sinistrado encontrava-se integralmente transferida para a companhia de seguros aquando do acidente de trabalho autos; e,
2º- A verba entregue a título de ajudas de custo destinava-se a reembolsar o sinistrado dos seus custos aleatórios com a sua alimentação nas viagens, pelo que, e sem mais considerandos, não integra o conceito de retribuição para efeitos de responsabilidade infortunística emergente de acidente de trabalho (cf. pertinentes cláusulas doCCTV e jurisprudência existente sobre a questão que, por tão abundante, não carece de concretização).”
A Seguradora informou que “de acordo com as folhas de férias remetidas pela Entidade patronal, o valor anual assumido/transferido são 15.460,10€, cfr a documentação remetida aquando da participação do acidente e o mapa agora anexo.”
Posteriormente, em 01.04.2022, a Seguradora veio esclarecer que “Assumimos o valor anual de 16.497,67€, considerando que se encontram transferidos todos os itens da notificação, com exceção do item - ajudas de custo, no valor de 5.455,00€.”
Em 26.04.2022 realizou-se o exame médico tendo o Sr. Perito considerado que o Sinistrado estava afectado de uma IPP de 3% e sofreu os períodos de incapacidades temporárias como atribuídos pela Seguradora, acrescidos de ITP de 20% entre 07/11/2020 e 15/11/2020.
Em 03.05.2022, pelo Ministério Público, foi proferido o seguinte despacho:
“Com cópia de fls. 59, notifique o sinistrado para, no prazo de 3 dias, e atento o informado pela entidade empregadora, esclarecer em que se consubstanciaram as ajudas de custo que constam dos recibos de vencimento, isto é, que concretas despesas excecionais/aleatórias visaram fazer face.”
O Autor informou que “as ajudas de custo que constam dos recibos de vencimento se destinaram a cobrir os custos de alimentação e alojamento nas viagens.”
Em 14.06.2022, o Ministério Público proferiu o seguinte despacho:
“Nos termos da cláusula 55.ª, n.º 1, do CCT celebrado entre a Antram e a Fectrans, publicado no BTE n.º 45, de 08/12/2019, objeto da portaria de extensão n.º 49/2020, de 26/02, «(…) As empresas atribuirão um subsídio de refeição de valor igual para todos os trabalhadores abrangidos por este CCTV, independentemente da sua categoria profissional, o qual não fará parte da sua retribuição.(…)».
No anexo 3 do referido CCT consta que o valor do subsídio de refeição é no montante de €4,70.
Dos autos resulta que nos 12 meses anteriores ao do acidente foi sempre paga ao sinistrado uma importância variável, a título de ajudas de custo.
Notificados relativamente à importância paga por aquela parcela, quer a entidade empregadora quer o sinistrado referiram que a mesma se destinava a pagar, desde logo, custos com a alimentação do sinistrado nas viagens.
Neste contexto, ou nesta importância se encontram os referidos €4,70 diários relativos ao subsídio de alimentação, o que dá a importância anual de €1.137,40 (€4,70 x 22 x11), ou não, e então todas as ajudas de custo não podem ser consideradas como retribuição para efitos de acidente de trabalho, pelo que se trata de parcela autónoma, ao que tudo aponta, com os elementos de que se dispõe, da responsabilidade da entidade empregadora.
Pelo exposto, notifique a entidade empregadora e o sinistrado para, no prazo de 5 dias, informarem se o subsídio de alimentação se encontra, ou não, englobado nas ajudas de custo.
Pese embora o determinado no parágrafo que antecede, notifique a entidade seguradora do presente despacho, a fim de tomar conhecimento do mesmo e, sendo o caso, informar do que tiver por conveniente, no prazo de 5 dias, mormente se assume a responsabilidade pelo valor anual do subsídio de refeição.”
A Empregadora respondeu nos seguintes termos:
“1º- O sinistrado, motorista de pesados afeto ao transporte internacional rodoviário de mercadorias, é considerado, nos termos e para os efeitos do disposto no CCTV, trabalhador móvel,
2º- Que, no desempenho das suas funções, faz frequentes deslocações de serviço em Portugal e estrangeiro,
3º- Tendo direito, para fazer face às despesas com a sua alimentação, a receber ajudas de custo, nos termos do disposto na cláusula 58ª do CCTV,
4º- E não subsídio de alimentação,
5º- Não sendo, aliás, legalmente possível pagar concomitantemente subsídio de alimentação e ajudas de custo para a mesma refeição,
6º- Sendo que, a verba mensal entregue ao sinistrado a título de ajudas de custo visava efetivamente reembolsá-lo dos seus gastos com a sua alimentação nas viagens que regularmente efetuava a mando da expoente.
7º- De notar que, consta expressamente do CCTV que “O pagamento regular e reiterado de ajudas de custo, em caso de constantes deslocações, não é considerado retribuição” (cf. item 8 da cláusula 58ª do CCT ),
8º- Bem como que estão excluídos do “complemento de pensão por acidente de trabalho” os valores pagos a título de ajudas de custo ( cf. item 2 da cláusula 82ª do CCTV ).
9º- Por último, diga-se que, dos recibos de vencimentos do sinistrado não consta qualquer outra rubrica que se destine a satisfazer o direito que o CCTV lhe reconhece de ser reembolsado das suas despesas alimentares.
10º- Concluindo, uma vez que as ajudas de custo recebidas pelo sinistrado em cada mês não têm qualquer natureza retributiva, tendo apenas e só carácter aleatório, pois destinavam-se a compensá-lo por custos aleatórios ( cf. artigo 71º, n.º 2 da LAT ), as mesmas não podem ser consideradas retribuição in casu, aliás em conformidade com o decidido em todos os outros processos similares movidos contra a expoente ( citam-se, a título de exemplo, as sentenças proferidas no âmbito dos processos nºs 196/13.1TTVIS, do Juiz 1 do Juízo do Trabalho de Viseu, 129/10.7TTBGC, do Juízo do Trabalho da Guarda, 345/10.1TTGRD, do Juízo do Trabalho da Guarda, e 28/14.3T4AGD, do Juízo do Trabalho de Águeda ).”
O Sinistrado pronunciou-se dizendo que o subsídio de alimentação está englobado nas ajudas de custo.
Foi designada a tentativa de conciliação e no mesmo despacho foi dito: “Na notificação à entidade empregadora faça constar que é responsável pelo subsídio de alimentação, no valor anual de €1.137,40 (€4,70 x 22 x 11).”
No auto de tentativa de conciliação fez-se constar, além do mais, o seguinte:
“O sinistrado foi vítima de um acidente de trabalho, ocorrido no dia 06/11/2020, no Entroncamento, quando exercia a profissão de motorista de pesados, sob as ordens, direção e fiscalização de “ZZ, S.A.”.
Atento o disposto no art.º 71º, da LAT (Lei nº98/2009, de 04/09) a remuneração anual a atender para efeitos de cálculo de indemnização é no montante de €17.635,07 – dezassete mil seiscentos e trinta e cinco euros e sete cêntimos - (salário base €700,00 x 14 meses + subsídio de alimentação €4,70 x 22 x 11 meses + cláusula 59.ª €196,00 + trabalho noturno €910,00 + cláusula 61 €4.455,36 + serviço Ibérico €78,89 + feriados €561,68 + descanso compensatório €233,24 + subsídio de risco €262,50), e não se encontrava totalmente transferido para a entidade seguradora acima identificada.
Com efeito, estava transferida para a entidade seguradora pela importância de €16.497,67 (€700,00 x 14 + €196,00 + €910,00 + €4.455,36 + €78,89 + €561,68 + €233,24 + €262,50), não se encontrando assim transferida a importância de €1.137,40 (subsídio de alimentação).
(…).
Dada a palavra ao sinistrado, o mesmo declarou que:
Concorda com o exame médico do Tribunal, desde logo com os períodos de incapacidades temporárias fixados, a data da consolidação médico-legal e com a IPP atribuída.
Aceita que a retribuição anual para efeitos de cálculo da indemnização é a acima indicada, no valor de €17.635,07.
Pelos períodos de incapacidades temporárias nada reclama da seguradora a esse título, uma vez que lhe foi pago tudo o que era devido a esse título.
Reclama da Entidade Empregadora o montante de €820,34 (ITP20% 9 dias €3,93, ITA 374 dias 365 a 70% €796,18 e 9 a 75% 8 dias €18,70 e ITP 10% 7 dias €1,53), atento o montante do vencimento que não se encontrava transferido para a Seguradora (subsídio de alimentação €4,70 x 22 x 11 meses).
Reclama o pagamento da quantia de €8,00 (2 deslocações ao Tribunal), referente a despesas com transporte.
Reclama a pensão anual no valor de €370,34, sendo €23,89 da responsabilidade da entidade empregadora e €346,45 da responsabilidade da entidade seguradora.”
A Empregadora e a Seguradora aceitaram a existência do acidente, a sua caracterização como de trabalho e o nexo causal entre o acidente e as lesões do sinistrado, bem como aceitaram o resultado do exame médico, os períodos de incapacidades temporárias, a data da consolidação médico-legal e a IPP de 3%.
A Seguradora ainda aceitou como transferida a remuneração anual de €16.497,67 e aceitou pagar as despesas com transportes.
Por seu turno, a Empregadora declarou não aceitar a responsabilidade pelo valor indicado a título de subsídio de alimentação, no montante total de €1.137,40, por entender que o Sinistrado não tem direito ao mesmo.
Cessou a fase conciliatória e iniciou-se a fase contenciosa com a apresentação pelo Sinistrado da petição inicial na qual este formulou contra a Empregadora os seguintes pedidos: 1- Reconhecer o evento dos autos, ocorrido em 06/11/2020 como acidente de trabalho; 2- Pagar ao Autor a pensão anual e vitalícia de €23,89 e, uma vez que é obrigatoriamente remível, o respetivo capital de remição, no montante de €298,53; 3- Pagar ao Autor a importância de €822,67, pelos períodos de incapacidade temporária; e 4- A pagar juros de mora até integral pagamento das quantias referidas em 2 e 3.
O Sinistrado fundamentou os seus pedidos invocando a existência de um acidente de trabalho e ter direito, nos termos do CCT aplicável e do artigo71.º da LAT, ao subsídio de refeição, que não foi transferido para a Seguradora e que, em seu entender, por ser regular, integra a retribuição e deve ser considerado no cálculo da pensão e da indemnização por incapacidades temporárias.
E nessa sequência, nos artigos 27.º e 28.º da petição inicial alegou:
“27.Assim, o A. desde já reclama a pensão anual e vitalícia no montante de €23,89 (€1.137,40 x 70% x 3% = €23,89), uma vez que é obrigatoriamente remível, o respetivo capital de remição, no montante de €298,53 - (€23,89 x 12,496 {coeficiente para os 55 anos de idade, atento o aniversário mais próximo da data da alta} = €298,53 - art.º 48.º, n.º 3, da mesma lei).
28.º Por sua vez, a título de incapacidades temporárias, reclama o pagamento da importância de €822,67, atenta a parte da retribuição que não se mostrava transferida, montante de €1.137,40, e da responsabilidade da R., calculada nos seguintes termos: ITP20% 9 dias €3,93 (€1.137,40:365x70%x20%x9), ITA 374 dias 365 a 70% €796,18 (€1.137,40:365x70%x365) e 9 a 75% €21,03 (€1.137,40:365x75%x9) e ITP 10% 7 dias €1,53(€1.137,40:365x70%x10%x7).”
Na contestação a Ré invocou:
“1º- A ré não aceita que o valor do subsídio de alimentação tivesse que estar transferido
para a seguradora. Vejamos:
1º- O autor, motorista de pesados afeto ao transporte internacional rodoviário de mercadorias, é considerado, nos termos e para os efeitos do disposto no CCTV, trabalhador móvel,
2º- Que, no concreto e efetivo desempenho das suas funções, encontra-se diariamente deslocado ( em Portugal e estrangeiro ),
3º- No âmbito dos regulares serviços de transporte rodoviário de mercadorias que lhe são mandados fazer pela ré.
4º- Neste quadro, o autor tem direito, para fazer face às despesas com a sua alimentação, a receber ajudas de custo, nos termos do disposto na cláusula 58ª do CCTV,
5º- E não a subsídio de alimentação,
6º- Ao qual legalmente não tem direito, atento o que se deixou dito,
7º- Sendo que, a ré jamais pagou ao autor qualquer quantia a título de subsídio de alimentação,
8º- Sempre lhe tendo pago ajudas de custo,
9º- Não sendo, aliás, legalmente possível pagar concomitantemente subsídio de alimentação e ajudas de custo para a mesma refeição.
Termos em que, deve a presente contestação ser atendida em toda a sua extensão e, em consequência, a ré absolvida do pedido.”
Identificou-se o objecto do litígio nos seguintes termos:
“-Aferir da responsabilidade da Ré “ZZ, S.A.” por valores não transferidos para a seguradora;
- Aferir do direito do Autor a receber os montantes peticionados”.
E fixou-se os temas da prova nos seguintes termos:
“1 – Se além dos valores transferidos para a seguradora o Autor recebia outros valores a título de remuneração, nomeadamente, ajudas de custos regulares/subsídio de alimentação e a sua regularidade.
2 – Quantificação dos valores referidos em 1.”
Ora, os montantes peticionados (cfr. petição inicial) respeitam aos valores da pensão e da indemnização por incapacidades temporárias calculadas com base no valor do subsídio de alimentação de €4,70 dia, no montante anual de €1 137,40.
E não obstante nos temas da prova se ter feito referência a “outros valores a título de remuneração, nomeadamente, ajudas de custos regulares/subsídio de alimentação e a sua regularidade”, o que poderia fazer antever que o valor apurado a título de ajudas de custo seria considerado no cálculo das prestações devidas ao Sinistrado, o certo é que não se retira dos autos que foi dada à Recorrente a possibilidade de se defender dessa possibilidade, sendo certo que o que sempre se discutiu na acção era se o valor anual do subsídio de refeição (que o Autor considerava ser-lhe devido e que integraria as ajudas de custo) devia ser considerado, ou não, naqueles cálculos e só.
E foi desse prisma que a Recorrente se defendeu, sendo certo que não vemos que tenha sido colocada perante a possibilidade de o valor total das ajudas de custo ser tido em conta no cálculo da pensão e da indemnização por incapacidades temporárias, nem para tal foi notificada para se pronunciar. Por isso, impõe-se afirmar que a sentença recorrida assentou num fundamento que não foi nem era expectável que fosse considerado pela Recorrente.
E na sentença recorrida, quanto à questão a decidir, refere-se: “A questão a decidir prende-se com a questão se é, ou não, de incluir as ajudas de custo no conceito de retribuição para os efeitos de acidente de trabalho.” Mas não foi dada à Recorrente a oportunidade de se pronunciar sobre essa questão.
Assim, uma vez que foi omitida a audição da Recorrente sobre a possibilidade de as ajudas de custo integrarem o conceito de retribuição do Sinistrado com vista a serem consideradas no cálculo das prestações que lhe eram devidas, à luz do que acima referimos, é de concluir que a sentença padece de nulidade por excesso de pronúncia (art.615. n.º 1, al.d), 2.ª parte do CPC), por ter sido preterido o contraditório e, assim, consubstanciar uma decisão surpresa.
A nulidade em causa não pode ser suprida por este Tribunal da Relação nos termos do artigo 665.º n.º 1 do CPC, impondo-se a anulação da sentença recorrida com vista ao cumprimento do contraditório sobre tal matéria.
Prejudicada fica a apreciação da 2.ª questão suscitada no recurso.

Decisão
Face ao exposto, acordam as Juízas deste Tribunal e Secção em julgar procedente a apelação e, em consequência, anular a sentença recorrida com vista ao cumprimento do contraditório sobre se as denominadas ajudas de custo pagas pela Recorrente ao Recorrido devem ser atendidas no cálculo das prestações devidas ao Sinistrado em consequência do acidente de trabalho devendo, após, ser proferida nova sentença.
Custas pela parte vencida a final.
Baixem os autos ao Tribunal de 1.ª instância.
Registe e notifique.

Lisboa, 22 de Maio de 2024
Maria Celina de Jesus de Nóbrega
Paula Penha
Alda Martins