Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
| Processo: |
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| Relator: | CARLOS CASTELO BRANCO (VICE-PRESIDENTE) | ||
| Descritores: | ESCUSA | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 09/19/2024 | ||
| Votação: | DECISÃO INDIVIDUAL | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | ESCUSA | ||
| Decisão: | DEFERIMENTO | ||
| Sumário: | Mostra-se existir motivo justificado para que a Sra. Juíza requerente seja escusada de intervir no processo de promoção e proteção em questão, verificada a circunstância de os pais da criança se terem insurgido relativamente à sua pessoa (tendo-se o pai da criança apresentado à porta da residência da Sra. Juíza revelando comportamento agressivo e de fúria, batendo de forma insistente e perturbadora à porta da sua residência, manuseando garrafas de cerveja) bem como, proferindo expressões ameaçadoras da sua honra e consideração, sendo que, aqueles residem a poucos metros da residência da Sra. Juíza e família, situação que motivou que a Sra. Juíza passasse a ter proteção pessoal e participação criminal efetuada pela Sra. Juíza relativamente ao comportamento dos pais da criança. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | I. A Sra. Juiz de Direito A, a exercer funções no Juízo de Família e Menores do Barreiro – Juiz (…), veio requerer, ao abrigo do disposto no artigo 119.º, n.º 1 do CPC, lhe seja concedida escusa de intervenção no processo n.º (…)/23.0T8BRR. Para tanto, invocou, em suma, que: - O referido processo é de Promoção e Protecção, relativamente, entre outro, à menor B, filha de C e D; - No passado dia 4 de Setembro foram cumpridos nos mencionados autos mandatos de condução da criança em causa a família de acolhimento na sequência de despacho proferido a 23-08-2024, por um colega de turno, despacho esse que aplicou a favor da menor a medida provisória de acolhimento familiar; - Nesse dia, por volta das 09H00, quando a requerente se encontrava no seu local de trabalho, tomou conhecimento através de chamada telefónica, que o pai da menor se encontrava junto da sua residência com comportamentos agressivos e acessos de fúria descontrolada (batendo de forma insistente e perturbadora à porta da sua residência, manuseando garrafas de cerveja, bem como, proferindo expressões de modo audível e publicamente, tais como: "A cabra da A”, “Isto não fica assim”, “Vou dar cabo deles”, “Vão morrer”, “Vou incendiar os carros e vai tudo pelos ares”); - Até à presente data o pai da menor continua a proferir, na freguesia, tais expressões em voz alta e publicamente, freguesia essa onde a requerente reside com a sua família (marido e filho menor de 16 anos de idade), a poucos metros da residência dos pais da menor; - Também a mãe da menor tem, desde a data supra mencionada, proferido na freguesia em causa, em voz alta e publicamente, expressões de teor idêntico ao acima descrito; - Os factos indicados afectaram e afectam a tranquilidade da requerente e da sua família, e causaram-lhe e causam receio de que os pais da menor concretizem o mal que têm vindo a anunciar; - Tais expressões atingiram e atingem a honra e consideração da requerente; - Na sequência do conhecimento do comportamento dos pais da menor, aquando do cumprimento dos mandatos, a ora requerente, solicitou junto do Conselho Superior da Magistratura a adopção de medidas urgentes e adequadas a acautelar o perigo verificado, pedido que foi deferido, passando a zona da sua residência e dos pais da menor a ser patrulhada regularmente pela GNR e a partir do dia 10 de Setembro, a requerente passou a ter protecção pessoal assegurada pelo Corpo de Segurança Pessoal da PSP; e - A requerente participou junto do DIAP do Barreiro os factos relacionados com o comportamento dos pais da menor com vista à eventual abertura do correspondente inquérito criminal. Concluiu que as referidas circunstâncias são ponderosas, podendo por em causa a sua imparcialidade. * II. Nos termos plasmados no nº. 1 do artigo 119º do CPC, o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir que seja dispensado de intervir na causa quando se verifique algum dos casos previstos, no artigo 120.º do CPC e, além disso, quando, por outras circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade. O juiz natural, consagrado na Constituição da República Portuguesa, só pode ser recusado quando se verifiquem circunstâncias assertivas, sérias e graves. E os motivos sérios e graves, tendentes a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador resultarão da avaliação das circunstâncias invocadas. O TEDH – na interpretação do segmento inicial do §1 do art.º 6.º da CEDH, (“qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei”) - desde o acórdão Piersack v. Bélgica (8692/79), de 01-10-82 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57557) tem trilhado o caminho da determinação da imparcialidade pela sujeição a um “teste subjetivo”, incidindo sobre a convicção pessoal e o comportamento do concreto juiz, sobre a existência de preconceito (na expressão anglo-saxónica, “bias”) face a determinado caso, e a um “teste objetivo” que atenda à perceção ou dúvida externa legítima sobre a garantia de imparcialidade (cfr., também, os acórdãos Cubber v. Bélgica, de 26-10-84 (https://hudoc.echr.coe.int/ukr?i=001-57465), Borgers v. Bélgica, de 30-10-91, (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57720) e Micallef v. Malte, de 15-10-2009 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-95031) ). Assim, o TEDH tem vindo a entender que um juiz deve ser e parecer imparcial, devendo abster-se de intervir num assunto, quando existam dúvidas razoáveis da sua imparcialidade, ou porque tenha exteriorizado relativamente ao demandante, juízos antecipados desfavoráveis, ou no processo, tenha emitido algum juízo antecipado de culpabilidade. O pedido de escusa terá por finalidade prevenir e excluir situações em que possa ser colocada em causa a imparcialidade do julgador, bem como, a sua honra e considerações profissionais. Efectivamente, não se discute se o juiz mantém, ou não, a sua imparcialidade, mas visa-se, preventivamente, a defesa de uma suspeita, ou seja, o de evitar que sobre a decisão do julgador recaia qualquer dúvida sobre a sua imparcialidade. A imparcialidade do Tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo. O direito a um julgamento justo, não se trata de uma prerrogativa concedida no interesse dos juízes, mas antes, de uma garantia de respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, de modo a que, qualquer pessoa tenha confiança no sistema de Justiça. Do ponto de vista dos intervenientes nos processos, é relevante saber da neutralidade dos juízes face ao objeto da causa. “O pedido de escusa constitui, a par do incidente de recusa, um meio excepcional de afastar um Juiz de um processo. Tem, assim, de ser usado com ponderação, cautela e parcimónia, tanto mais que redunda num desvio ao princípio do Juiz natural, constitucionalmente consagrado, que visa assegurar precisamente a isenção e independência de um Magistrado quando toma uma decisão. Além disso há que ter presente que, no âmbito do pedido de escusa, não se pode sindicar a actividade jurisdicional da Juíza peticionante, ou seja, não interessa apurar se as decisões deste são ou não são justas, equilibradas e conformes ao direito, actividade essa reservada, como se sabe, aos recursos. Apenas interessa averiguar se ocorre alguma situação objectiva que, por fragilizar a independência e/ou a imparcialidade do Juiz, possa justificadamente minar a confiança pública na administração da justiça. O pedido de escusa de juiz tem de respeitar unicamente a processos concretos e não a todos os processos em que intervenham os advogados com os quais a Meritíssima Juíza mantém um litígio judicial” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11-12-2007, Pº 2222/07-1, rel. FERNANDO RIBEIRO CARDOSO). No n.º 1 do artigo 120.º do CPC consagram-se diversas situações em que ocorre motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, nomeadamente: a) Se existir parentesco ou afinidade, não compreendidos no artigo 115.º, em linha reta ou até ao 4.º grau da linha colateral, entre o juiz ou o seu cônjuge e alguma das partes ou pessoa que tenha, em relação ao objeto da causa, interesse que lhe permitisse ser nela parte principal; b) Se houver causa em que seja parte o juiz ou o seu cônjuge ou unido de facto ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta e alguma das partes for juiz nessa causa; c) Se houver, ou tiver havido nos três anos antecedentes, qualquer causa, não compreendida na alínea g) do n.º 1 do artigo 115.º, entre alguma das partes ou o seu cônjuge e o juiz ou seu cônjuge ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta; d) Se o juiz ou o seu cônjuge, ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta, for credor ou devedor de alguma das partes, ou tiver interesse jurídico em que a decisão do pleito seja favorável a uma das partes; e) Se o juiz for protutor, herdeiro presumido, donatário ou patrão de alguma das partes, ou membro da direção ou administração de qualquer pessoa coletiva parte na causa; f) Se o juiz tiver recebido dádivas antes ou depois de instaurado o processo e por causa dele, ou se tiver fornecido meios para as despesas do processo; g) Se houver inimizade grave ou grande intimidade entre o juiz e alguma das partes ou seus mandatários. De todo o modo, o magistrado tem de traduzir os escrúpulos ou as razões de consciência em factos concretos e positivos, cujo peso e procedência possam ser apreciados pelo presidente do tribunal (assim, Alberto dos Reis; Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. I, p. 436). O pedido será apresentado antes de proferido o primeiro despacho ou antes da primeira intervenção no processo, se esta for anterior a qualquer despacho. Quando forem supervenientes os factos que justificam o pedido ou o conhecimento deles pelo juiz, a escusa será solicitada antes do primeiro despacho ou intervenção no processo, posterior a esse conhecimento (n.º 2 do artigo 119.º do CPC). Definindo a lei que o Juiz não é livre de, espontaneamente e sem motivo, declarar a sua potencial desconfiança em relação ao conflito de interesses a dirimir na ação, o legislador logo se preocupou em identificar os casos em que razões de ética jurídica impõem que ele não deva intervir em determinada causa e condensadas no princípio de que não pode ser levantada contra o Juiz da causa a mais ténue desconfiança orientada no sentido de que, o juízo que vai fazer sobre a questão posta pelas partes, poderá estar envolto em interesses sombrios e difusos e, por isso, passível de estar eivado de imperfeições que condicionem a sua liberdade de decisão. “Para tanto, foi preciso estabelecer um regime legal que fizesse o necessário equilíbrio entre um possível posicionamento de puro absentismo - declarar a sua parcialidade para se eximir ao julgamento de um intrincado litígio (era este um sistema possível nas Ordenações, porquanto permitia que o juiz fosse afastado do pleito desde que, mesmo sem adiantar qualquer razão, mediante juramento asseverasse a sua suspeição) - e a situação, deveras desprestigiante, de o Juiz ter de esperar que algum dos litigantes viesse trazer este dado ao Tribunal, circunstancialismo que ele já havia conjecturado e ao qual nunca poderia deixar de dar o seu assentimento” (assim, a decisão do Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2004, Pº 329/04-1, em http://www.dgsi.pt). * III. No caso em apreço, a Sra. Juíza vem invocar, entre o mais, que, no âmbito do processo em questão, os pais da criança que identifica se insurgiram relativamente à sua pessoa (tendo-se o pai da criança apresentado à porta da residência da Sra. Juíza revelando comportamento agressivo e de fúria, batendo de forma insistente e perturbadora à porta da sua residência, manuseando garrafas de cerveja) bem como, proferindo expressões ameaçadoras da sua honra e consideração, sendo que, aqueles residem a poucos metros da residência da Sra. Juíza e família. Tal situação motivou a que solicitasse a adoção de medidas urgentes e adequadas a acautelar o perigo verificado (com patrulha policial na zona da residência e passando, a partir de 10 de setembro, a ter proteção pessoal). Relativamente aos aludidos factos, a requerente participou junto do DIAP do Barreiro os factos relacionados com o comportamento dos pais da menor com vista à eventual abertura do correspondente inquérito criminal. No caso em apreço, o motivo explanado pela Sra. Juíza e a sua concreta configuração, materializada na participação criminal visada contra os pais da criança a que respeita o processo em questão, indicia a existência de clara animosidade entre aqueles e a Sra. Juíza, concretizada nos aludidos comportamentos materiais (do pai da criança) e verbais (de ambos os pais), o que, em termos objetivos e subjetivos, é suscetível de colocar em causa, a imparcialidade e a independência do julgador, criando-lhe desconforto no desempenho da sua função de administração da justiça e podendo levantar suspeitas quanto à sua imparcialidade. Não é só a imparcialidade da Sra. Juíza que, caso se mantivesse com o encargo do processo em questão, poderia ser colocada em causa, mas também, a desconfiança sobre si, por banda das partes envolvidas no processo, ou seja, o poder gerar a ideia de que poderia não ser imparcial nas suas decisões. Ora, nos termos da al. g) do nº. 1 do art. 120.º do CPC., a existência, na situação em apreço, de uma participação criminal por parte da Sra. Juíza contra os aludidos sujeitos processuais dos autos em referência, constitui a materialização de uma inimizade que atingiu já um nível de relevância ou de gravidade tal, que se mostra conducente à justificação e deferimento de um pedido de escusa. Os pedidos de escusa pressupõem situações excecionais, excecionalidade que, no caso, se configura. Assim e sem mais considerandos, entendo existir motivo justificado para que a Sra. Juíza seja dispensada de intervir no processo. * IV. Face ao exposto, defiro o pedido de escusa de intervenção da Sra. Juíza de Direito A, no âmbito do processo n.º (…)/23.0T8BRR. Sem custas. Notifique. Lisboa, 19-09-2024, Carlos Castelo Branco (Vice-Presidente, com poderes delegados – cfr. Despacho 2577/2024, de 16-02-2024, D.R., 2.ª Série, n.º 51/2024, de 12 de março). |