Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
104/24.4YUSTR.L1-PICRS
Relator: CARLOS M. G. DE MELO MARINHO
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO ECONÓMICA
DOLO EVENTUAL
NEGLIGÊNCIA
ADMOESTAÇÃO
SUSPENSÃO DA COIMA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. Nos termos do regime especial de fixação da coima e sanções acessórias contido no n.º 1 do art.º 25.º do Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29.01 (Regime Jurídico das Contraordenações Económicas – RJCE), só pode ser proferida decisão de mera admoestação se «a infracção consistir em contra-ordenação classificada como leve»;
II. Para que seja proferida tal admoestação, deverá, de acordo com o mesmo preceito, ser «reduzida» a «culpa do arguido»;
III. O RJCE regula de forma exaustiva as sanções aplicáveis às infracções que prevê, sem que seja necessário recorrer à aplicação subsidiária das normas quer do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro que institui o ilícito de mera ordenação social e respectivo processo (RGCO) ou, por remissão, do seu art.º 32.º, do direito criminal;
IV. Contêm-se nesse diploma, com suficiência e sem necessidade de importações, (e, por vezes, também em regimes parcelares e sectorialmente focados relativos aos critérios de sancionamento) as necessárias instruções ao julgador para a definição da sanção;
V. O regime do RJCE, permite-nos concluir no sentido insucesptibilidade de suspensão da sanção principal;
VI. Não existe, no RGCO, preceito que preveja um instituto similar ao da suspensão da execução da pena de prisão, não havendo razão sólida que permita a ligação entre aquele regime e o de mera ordenação social;
VII. A suspensão da sanção nos moldes do que ocorre relativamente à pena de prisão é privativa das infracções de natureza criminal, não sendo, consequentemente, extensível à matéria das contra-ordenações;
VIII. Quando é o próprio legislador a, expressamente, num âmbito regulador especial, admitir a suspensão da coima, o mesmo não o faz sem impor condições muito concretas e definidas, entre as quais avulta a necessidade de fixação de sanções acessórias.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção de Propriedade Intelectual, Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa:
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I. RELATÓRIO                  
O MUNICÍPIO DE FORNOS DE ALGODRES, com os sinais identificativos constantes dos autos, impugnou judicialmente a decisão da ENTIDADE REGULADORA DOS SERVIÇOS DE ÁGUAS E RESÍDUOS (ERSAR) que lhe impôs sanção pela prática da infracção aí descrita («ausência de submissão, à ERSAR, da avaliação do risco destinada a suportar o PCQA de 2023»).
O Tribunal «a quo» descreveu os contornos da acção e as suas principais ocorrências processuais até à sentença nos seguintes termos:

Pelo presente recurso de contra-ordenação, veio o MUNICÍPIO DE FORNOS DE ALGODRES, pessoa colectiva n.º …, com sede em …, Fornos de Algodres, nos termos do disposto no artigo 59.º do Regime Geral das Contra-ordenações (Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro – adiante abreviadamente, RGCO), impugnar judicialmente a decisão da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR), que o condenou no pagamento de uma coima € 6.000,00 (seis mil euros), pela prática, a título de dolo eventual, de uma contra-ordenação, prevista e punida pela alínea m) do n.º 2 do artigo 31.º do Decreto-Lei n.º 306/2007, de 27 de Agosto, pela ausência de submissão, à ERSAR, da avaliação do risco destinada a suportar o PCQA de 2023. Para tanto, apresentou as seguintes conclusões:
“A – Tendo em conta o condicionalismo que deu origem à presente contra-ordenação, o recorrente não agiu com qualquer tipo de dolo. B – A actuação do recorrente apenas se pode enquadrar na prática contra-ordenacional a título de negligência simples.
C – Uma vez que o não cumprimento da obrigação que sobre si impendia ficou a dever-se única e exclusivamente a lapso dos seus serviços.
D – O arguido não se conformou com os resultados da sua omissão, não tendo agido, assim, com dolo eventual.
E – O que aconteceu é que os responsáveis sobre quem recaía o cumprimento de tal exigência legal se esqueceram de dar cumprimento oportuno à referida obrigação.
F – Sendo certo que só se vieram a aperceber da situação quando o recorrente foi notificado para os termos do processo.
G – A única justificação para o incumprimento por parte do recorrente ficou a dever-se unicamente a lapso decorrente do esquecimento dos responsáveis do serviço que deveriam ter procedido de acordo com o que era exigido.
H – Da omissão do recorrente não resultaram quaisquer danos, nem este obteve qualquer benefício económico ou de qualquer outra ordem.
I – Tal actuação não teve qualquer gravidade.
J – Por outro lado, é reduzida a culpa do arguido.
K – Em consequência, face à reduzida gravidade da actuação e culpa do arguido, e contrariamente ao decidido, deveria, salvo o devido respeito, ser aplicada sanção de admoestação.
L – O recorrente também não pode deixar de discordar da aplicação da coima de 6.000,00 € por ter sido decidido que agiu com dolo eventual.
M – Conforme já referido, o arguido agiu apenas e tão-só a título de negligência.
N –Tendo em conta o disposto no artigo 8º, nº 2 do RJCE, “[E]m caso de negligência, os limites mínimos e máximos das coimas aplicáveis são reduzidos para metade.”
O – Assim sendo, a coima a aplicar ao recorrente deveria ter sido reduzida a metade por ter agido de forma negligente.
P – Tendo em conta que a moldura sancionatória aplicável de acordo com o regulado no artigo 18º, alínea c), iii) do RJCE é punível com coima de 8.000,00 € a 30.000,00 €, deveria ter sido fixada a coima ao arguido no montante de 4.000,00 € (quatro mil euros).
Q – Encontra-se estabelecido no artigo 20º do RJCE que “[A] determinação da medida da coima deve atender à gravidade da contra-ordenação, à culpa do agente, à sua situação económica e ao benefício económico obtido com a prática do facto ilícito.”
R – Conforme acima alegado, a contra-ordenação praticada é de reduzida gravidade.
S – Do mesmo modo é reduzida a culpa do arguido.
T – Quanto à situação económica do recorrente é esta muitíssimo grave, pois como é do conhecimento do país todo, o Município de Fornos de Algodres é o mais endividado per capita.
U – Estando sujeito às normas do Fundo de Apoio Municipal para a restruturação da sua dívida.
V – O recorrente não teve qualquer benefício económico com a prática da mencionada 55 contra-ordenação.
X – De acordo com o estipulado no artigo 50º do Código Penal, a simples censura do facto e a ameaça da aplicação da coima, realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Y – Deste modo, por se encontrarem verificados os requisitos exigidos para a suspensão da execução da coima, deveria ter sido proferida decisão que suspendesse a execução da coima que lhe fosse aplicada.”
Recebido o recurso e enviados os autos ao Ministério Público, este apresentou-os nos termos do artigo 62.º, n.º 1 do RGCO, declarando, desde logo, a sua não oposição a que fosse proferida decisão por mero despacho.
Notificado o Recorrente para se pronunciar acerca da sua oposição ou não à decisão através de simples despacho, com a cominação de, nada sendo dito, se considerar que não se opõe, o mesmo declarou não se opor – vide requerimento entrado em juízo em 29.03.2024. A decisão por mero despacho poderá concretizar-se quando, em consonância com o n.º 2 do artigo 64.º do RGCO, não se considere necessária a audiência de julgamento e o Arguido ou o Ministério Público não se oponham.
Afigura-se ser esta a situação dos presentes autos, porquanto a solução a dar ao thema decidendum se apresenta como evidente e não carece da produção de provas.

Foi proferida sentença que decretou:
Face ao exposto e pelos fundamentos expendidos, julgo parcialmente procedente a impugnação judicial deduzida pelo Recorrente MUNICÍPIO DE FORNOS DE ALGODRES e, em consequência, altero a decisão administrativa impugnada da ERSAR, condenando o referido Recorrente pela prática da contra-ordenação prevista e punida pela alínea m) do n.º 2 do artigo 31.º do Decreto-Lei n.º 306/2007, de 27 de Agosto, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29 de Janeiro, pelo incumprimento da obrigação de submissão à ERSAR da avaliação do risco, nos termos do n.º 9 do artigo 14.º-A do mesmo diploma legal na coima de € 5.000,00 (cinco mil euros).


É dessa sentença que vem o presente recurso interposto por MUNICÍPIO DE FORNOS DE ALGODRES, que alegou e apresentou as seguintes conclusões:
A – O Recorrente confessou a prática dos factos de que se encontrava indiciado.
B – O incumprimento da obrigação legal que impendia sobre o Recorrente deveu-se a lapso dos seus serviços.
C – Pelo lapso dos responsáveis dos seus serviços o Recorrente muito se penitencia.
D – Os factos omitidos pelo Recorrente não resultaram de qualquer atitude dolosa por parte deste.
E – A prática da contra-ordenação assacada ao Recorrente, e pela qual foi condenado, apenas se pode enquadrar numa actuação negligente dos seus serviços.
F – Os quais não deram cumprimento a uma obrigação legal que o Recorrente estava obrigado a praticar.
G – Por força de tal omissão, não existiu qualquer tipo de dolo do Recorrente.
H – A falta de diligência dos serviços do Recorrente não pode enquadra-se em nenhuma prática de dolo.
I – A actuação do Recorrente apenas se pode enquadrar na prática contra-ordenacional a título de negligência simples.
J – Porquanto o não cumprimento da obrigação que sobre si recaía ficou a dever-se de forma exclusiva a lapso dos seus serviços.
K – O Recorrente não se conformou com os resultados da omissão por parte dos seus serviços.
L – Em conformidade, não agiu com dolo eventual ou qualquer outro tipo de prática dolosa.
M – O que aconteceu, repete-se, é que os responsáveis sobre quem recaía o cumprimento da exigência legal se esqueceram de dar cumprimento a tal observância.
N – Só se tendo apercebido da situação quando o Recorrente foi notificado para os termos da prática da contra-ordenação objecto dos autos.
O – A verdadeira e real justificação para o incumprimento da observância legal que recaía sobre o Recorrente deveu-se unicamente a lapso decorrente dos responsáveis dos serviços que deveriam ter agido em conformidade com o que lhes era exigido.
P – O Recorrente não retirou qualquer benefício económico, ou de qualquer outra espécie, com a prática da infracção.
Q – Da prática da contra-ordenação não resultaram quaisquer danos.
R – A contra-ordenação praticada pelos serviços do Recorrente, salvo o devido respeito, não teve qualquer gravidade.
S – O Recorrente agiu mediante erro desculpável quanto ao incumprimento em causa.
T – É certo que o Recorrente, através dos seus serviços, devia ter agido com outra diligência,
U – No entanto, por lapso destes, não agiram em conformidade com o que deles se expectava.
V – Salvo o devido respeito, contrariamente ao decidido, é entendimento do Recorrente que lhe deveria ter sido aplicada a pena de admoestação, prevista no artigo 51º do Dec. Lei Nº 433/82, de 27 de Outubro.
W – Determina o nº1 do referido normativo legal que “[Q]uando a reduzida gravidade da infracção e da culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação.”
X – Tendo em conta a reduzida gravidade da situação e face à reduzida culpa do Recorrente, está este em condições de lhe ser aplicada única e exclusivamente uma admoestação.
Y – A referida admoestação realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Z – Estabelece o artigo 32º do Dec. Lei Nº433/82, de 27 de Outubro, que em tudo o que não for contrário à presente lei aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contraordenações, as normas do Código Penal (CP).
AA – O artigo 60º do CP determina o seguinte: “1 – Se ao agente dever ser aplicada pena de multa em medida não superior a 240 dias, pode o tribunal limitar-se a proferir uma admoestação. 2 – A admoestação só tem lugar se o dano tiver sido reparado e o tribunal concluir que, por aquele meio, se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. 3 – Em regra, a admoestação não é aplicada se o agente, nos três anos anteriores ao facto, tiver sido condenado em qualquer pena, incluída a de admoestação.”
BB – Contrariamente ao decidido na sentença sob recurso, é entendimento do Recorrente que este está em condições de que lhe seja aplicada como única sanção, pela prática dos factos de que se encontra acusado, a admoestação.
CC – A ser outro o entendimento, apenas admitido por mero dever de patrocínio, e tendo em consideração o acima alegado, o Recorrente, através dos seus serviços, quando muito agiu com negligência.
DD – Estipula o artigo 8º, nº2, do Dec. Lei Nº9/2021, de 29 de Janeiro, Regime Jurídico das Contra-ordenações Económicas (RJCE), que “[E]m caso de negligência, os limites mínimos e máximos das coimas aplicáveis são reduzidos para metade.”
EE – Tendo em conta que a moldura sancionatória aplicável de acordo com o regulado no artigo 18º, alínea c), iii) do RJCE é punível com coima de 8.000,00 € a 30.000,00 €, é entendimento do Recorrente que a coima que lhe deveria ter sido fixada deveria ter sido de 4.000,00 € (quatro mil euros).
FF – O artigo 20º do RJCE estabelece que “[A] determinação da medida da coima deve atender à gravidade da contra-ordenação, à culpa do agente, à sua situação económica e ao benefício económico obtido com a prática do facto ilícito.”
GG – Deste modo, a ser sancionado o Recorrente noutra medida que não seja a admoestação, deverá a coima que lhe for aplicada ser reduzida a metade pelo facto de ter agido de forma negligente.
HH – Conforme já referido, a contra-ordenação praticada foi de reduzida gravidade.
II – É também reduzida a culpa do Recorrente.
JJ – A situação económica e financeira do recorrente é muitíssimo grave.
KK – O Município de Fornos de Algodres é o mais endividado per capita do país.
LL – Para a recuperação da sua dívida o Município de Fornos de Algodres teve de recorrer ao Fundo de Apoio Municipal.
MM – Em todo o caso, e de acordo com o estabelecido no artigo 50º do Código Penal, a simples censura do facto e a ameaça da aplicação da coima, realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
NN – É entendimento do Recorrente que se encontram verificados os requisitos exigidos para a suspensão da execução da coima.
OO – Em conformidade, deverá ser proferida decisão que suspenda a execução da coima que lhe possa vir a ser aplicada.
PP – Salvo o devido respeito, a sentença ora recorrida violou os artigos 51º e 32º do Dec. Lei Nº433/82, de 27 de Outubro, o artigo 8º, nº 2 e 18º, alínea c) iii) do RJCE.
NESTES TERMOS e nos melhores de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provada, e, em consequência, ser revogada a sentença recorrida, em conformidade com o acima alegado.

O Ministério Público respondeu ao recurso tendo concluído:
1ª Os factos provados na decisão recorrido impedem que a conduta do arguido seja considerada negligente, a qual, tendo sido classificada como grave, é insuscetível de ser sancionada com a mera admoestação.
2ª O RJCE também não prevê a possibilidade de suspensão da execução da coima ope judicis.
Face ao exposto, o recurso deverá improceder, assim se fazendo justiça.

Já neste tribunal de recurso, o Ministério Público limitou-se a apor visto nos autos.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
Dado que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes (cf. o n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal aplicável ex vi do disposto no n.º 1 do art.º 41.º do RGCO) – sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – é a seguinte a questão a avaliar:
1. Pelas razões indicadas pelo Recorrente nas suas alegações de recurso, deveria ter-lhe sido aplicada a pena de admoestação prevista no artigo 51.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro?
 2. Pelos motivos indicados nas alegações de recurso do Impugnante, deverá a coima ser reduzida a metade pelo facto de o mesmo ter agido de forma negligente?
3. Pelas razões referidas nas alegações de recurso, deverá ser proferida decisão que suspenda a execução da coima?
4. A sentença recorrida violou o disposto nos artigos 51.º e 32.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro e os artigos 8.º, n.º 2 e 18.º, alínea c), iii) do Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29 de Janeiro (Regime Jurídico das Contraordenações Económicas – RJCE)?

II. FUNDAMENTAÇÃO
Fundamentação de facto
Vem provado que:
1. O Arguido é uma entidade gestora de abastecimento público de água;
2. Não submeteu à apreciação da ERSAR a respectiva avaliação do risco na aplicação informática "Avaliação do Risco" do Portal ERSAR;
 3. O PCQA referente ao ano de 2023 não foi suportado nos resultados da avaliação do risco.
4. O Recorrente sabia que teria de submeter a avaliação do risco que permitisse suportar o PCQA para o ano de 2023 até ao dia 2 de Maio de 2022, no entanto não adoptou medidas tendentes à apresentação da mesma;
5. Ao saber dessa obrigação e ainda assim não a cumprindo, o Arguido previu o incumprimento da norma legal a que estava adstrito como resultado possível da sua conduta e, apesar disso, levou-a a cabo, conformando-se com os resultados da sua omissão;
6. No ano de 2021, o Recorrente apresentou os resultados económico-financeiros que decorrem da IES junta com o requerimento entrado em juízo em 29.03.2024, que aqui se considera integralmente reproduzida, por uma questão de economia processual;
7. O Programa de Ajustamento Municipal (PAM) do Município de Fornos de Algodres entrou em vigor em 2017, com um prazo de implementação de 35 anos, prevendo uma assistência financeira por parte do Fundo de Apoio Municipal (FAM), através de um empréstimo até ao montante de mais de € 30.000.000,00, sendo que o Município continua a manter o maior rácio da dívida total, representando mais de sete vezes a sua média das receitas líquidas.

Fundamentação de Direito
1. Pelas razões indicadas pelo Recorrente nas suas alegações de recurso, deveria ter-lhe sido aplicada a pena de admoestação prevista no artigo 51.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro?
A subsunção normativa do apurado quanto à ilicitude, feita pelo Tribunal «a quo», não foi validamente colocada em crise e mostra-se sustentada nos factos colhidos mediante instrução.
Efectivamente, o cristalizado em termos fácticos aponta, com a necessária segurança, para a prática, pelo Recorrente, de contra-ordenação prevista e punida pela alínea m) do n.º 2 do artigo 31.º do Decreto-Lei n.º 306/2007, de 27 de Agosto, nas redacções dadas pelos Decretos-Lei n.ºs 152/2017, de 7 de dezembro, e 9/2021, de 29 de Janeiro e no art.º 18.º, b) iii do Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29.01 (Regime Jurídico das Contraordenações Económicas – RJCE).
No regime jurídico aplicável à ponderação do relevo jurídico do facto ilícito apreciado no processo em que se gerou o recurso, tal ilícito é qualificado como «contraordenação económica grave» – vd. a referida alínea m) do n.º 2 do artigo 31.º.
Esta inserção classificativa afasta de imediato a possibilidade de cogitação da fixação de mera admoestação já que, nos termos do regime especial de fixação da coima e sanções acessórias contido no n.º 1 do art.º 25.º do RJCE que domina o quadro regulatório em que se insere o facto desviado, só pode ser proferida decisão de mera admoestação se «a infracção consistir em contra-ordenação classificada como leve» o que não é, como se viu, correspondente ao que ocorre no presente caso.
Por outro lado, para que seja proferida tal admoestação, deverá, de acordo com o mesmo preceito, ser «reduzida» a «culpa do arguido» o que, de novo, aqui não se materializa, atendendo aos seguintes factos demonstrados:
4. O Recorrente sabia que teria de submeter a avaliação do risco que permitisse suportar o PCQA para o ano de 2023 até ao dia 2 de Maio de 2022, no entanto não adoptou medidas tendentes à apresentação da mesma;
5. Ao saber dessa obrigação e ainda assim não a cumprindo, o Arguido previu o incumprimento da norma legal a que estava adstrito como resultado possível da sua conduta e, apesar disso, levou-a a cabo, conformando-se com os resultados da sua omissão;

Flui do exposto, com insofismável nitidez, ser negativa a resposta que se impõe dar à questão ora analisada.

2. Pelos motivos indicados nas alegações de recurso do Impugnante, deverá a coima ser reduzida a metade pelo facto de o mesmo ter agido de forma negligente?
É inadequada a referência à existência de uma conduta negligente, à luz dos factos provados e que este Tribunal de recurso não pode alterar – cf. o estabelecido no n.º 1 do art.º 75.º do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro que institui o ilícito de mera ordenação social e respectivo processo (RGCO) e n.º 2 do art.º 310.º Código de Processo Penal aplicável ex vi do disposto do mesmo RGCO.
Tais factos são os já indicados na resposta à questão anterior, ou seja:
4. O Recorrente sabia que teria de submeter a avaliação do risco que permitisse suportar o PCQA para o ano de 2023 até ao dia 2 de Maio de 2022, no entanto não adoptou medidas tendentes à apresentação da mesma;
5. Ao saber dessa obrigação e ainda assim não a cumprindo, o Arguido previu o incumprimento da norma legal a que estava adstrito como resultado possível da sua conduta e, apesar disso, levou-a a cabo, conformando-se com os resultados da sua omissão;

Estamos perante um contexto fáctico bem qualificado pelo Tribunal «a quo» como caracterizador de uma actuação com dolo eventual, nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 14.º do Código Penal – vd., por todos, a muito adequada caracterização jurisprudencial feita no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.07.2005 (documento n.º SJ200507130021223, in http://www.dgsi.pt) assim sumariado: «No dolo eventual (artigo 14º, nº 3 do Código Penal) há uma decisão contra valores tipicamente protegidos, mas como a produção de resultado depende de eventualidades ou condições incertas, o dolo eventual é construído sobre a base de factos de cuja insegurança o agente é consciente».
Não é possível sustentar, com adequação e boa técnica, que o Recorrente tenha actuado com mera negligência e, assim sendo, como seguramente é, desaparece a base de sustentação da pergunta proposta no recurso aqui sob análise, pelo que a resposta que lhe está destinada é a negativa.

3. Pelas razões referidas nas alegações de recurso, deverá ser proferida decisão que suspenda a execução da coima?
O Tribunal que proferiu a decisão questionada no recurso que se aprecia avaliou expressamente a problemática da possibilidade de suspensão da sanção.
Assentou a sua análise num conjunto de afirmações justificativas que se mostram intrínseca e intrinsecamente adequadas (ou seja, internamente coerentes e lógicas e suportadas no Direito constituído).
Teve razão quando afirmou que o RJCE regula de forma exaustiva as sanções aplicáveis às infracções que prevê, sem que seja necessário recorrer à aplicação subsidiária das normas quer do RGCO quer, por remissão, do seu art.º 32.º, do direito criminal. Assim é. Contêm-se nesse diploma, com suficiência e sem necessidade de importações, (e, por vezes, também em regimes parcelares e sectorialmente focados relativos aos critérios de sancionamento) as necessárias instruções ao julgador para a definição da sanção – cf. os arts. 17.º a 26.º.
No que tange à específica regulação sectorial – vd. os arts. 20.º a 35.º do RJCE – a sua precisão e abrangência reforça a referida noção de suficiência. Não há razão plausível para recorrer ao regime do Código Penal.
Quanto ao RJCE, é importante atender, também, a que o mesmo nos fornece um elemento interpretativo sólido no sentido da conclusão no sentido da insucesptibilidade de suspensão da sanção principal. Com efeito, por um lado, não se prevê a suspensão. Por outro, não se pode concluir que se tenha tratado de esquecimento ou confiança na aplicação suplectiva do regime penal já que, no art.º 35.º, se regulou a suspensão da sanção acessória mas não a principal. Ora, que sentido teria ter querido incidir sobre o acessório e não sobre o central? O que extrai, de forma linear e sem relevantes dúvidas, é que se quis permitir apenas a suspensão da referida sanção acessória proscrevendo qualquer outra suspensão.
Assistiu também razão ao Tribunal ao ponderar o facto de não existir no RGCO preceito que preveja um instituto similar ao da suspensão da execução da pena de prisão, não havendo razão sólida (que sempre deveria ser claramente apreensível, o que não ocorre) que permita a ligação entre aquele regime e o de mera ordenação social.
Aceita-se, no âmbito analisado, que se conclua, como fez o Tribunal, que a suspensão nos moldes do que ocorre relativamente à pena de prisão é privativa das infracções de natureza criminal, não sendo, consequentemente, extensível à matéria das contra-ordenações.
Tem relevo de reforço desta conclusão a noção também carreada pelo Tribunal «a quo» de que, mesmo no domínio criminal, a pena de multa não está abrangida pela referida possibilidade de suspensão – cf. a adequada invocação jurisprudencial feita na sentença criticada e os artigos 47.º a 49.º do Código de Processo Penal – o que reforça a convicção de que menos poderia decretar-se, sem norma expressa, a suspensão de outras sanções pecuniárias – as coimas.
Da mesma forma tem sentido atender a que a suspensão da execução da pena de prisão depende da ponderação de exigências de prevenção especial e da imposição de deveres e regras de conduta, o que não importável no contexto fáctico avaliado e no quadro geral regulador do Direito de mera ordenação social.
Por outro lado, não o disse o Tribunal mas merece referência que, quando é o próprio legislador a, expressamente, num âmbito regulador especial, admitir a suspensão da coima, não o faz sem impor condições muito concretas e definidas, entre as quais avulta a necessidade de fixação de sanções acessórias – vd. o estabelecido no art.º 20.º-A da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto (Lei Quadro das Contra-Ordenações Ambientais).
Tem também inteira razão o Tribunal ao afirmar não existir «analogia substancial entre os regimes primário e subsidiário», o que veda qualquer impulso de importação de regime.
Idêntico acerto tem atender-se a que o regime sancionatório das contra-ordenações aponta para o esgotamento dos tipos de sanções eleitas nessa área temática, valendo o silêncio, pois, com o sentido afirmativo de vontade de exclusão.
Aceita-se como relevante, da mesma forma, pelo valor lógico e técnico intrínsecos do afirmado a consequente conclusão no sentido de que esse silêncio só poderia ter como significado espelhar a vontade tacitamente expressa de não inclusão.
Pela sua focagem na suspensão da pena de prisão, o art.º 50.º do Código Penal suscitaria muito fundas dificuldades de extrapolação para o regime sancionatório da mera ordenação social, conforme bem referido pelo Tribunal.
Pelo exposto, impõe responder negativamente à questão avaliada, o que ora se concretiza.

4. A sentença recorrida violou o disposto nos artigos 51.º e 32.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro e os artigos 8.º, n.º 2 e 18.º, alínea c), iii) do Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29 de Janeiro (Regime Jurídico das Contraordenações Económicas – RJCE)?
Flui directa e claramente do exposto que não ocorreu violação do disposto no art.º 32.º do RGCO, que impõe o recurso subsidiário ao regime emergente do Código dPenal mas só quando se revelar necessário recorrer a normas subsidiárias, o que não acontece no caso ajuizado.
Quanto ao regime da admoestação, não havia que recorrer à norma genérica corporizada pelo art.º 51.º do mesmo encadeado normativo mas ao preceito apontado quando, supra, se avaliou a possibilidade de ser proferida tal censura. Não se concretizou, assim, a violação do estabelecido nesse artigo.
 Não há violação do disposto no n.º 2 do art.º 8.º do RJCE quando não se provaram factos indicativos da actuação negligente.
Não se materializa nos autos, à luz do neles demonstrado, situação que aponte a violação do disposto no art.º 18.º, alínea c), iii) do mesmo RJCE (aliás não aplicável in casu).
A coima mostra-se adequadamente fixada em primeira instância, tendo sido devidamente ponderadas as circunstâncias referidas no art.º 20.º do RJCE.
Tal como as restantes, esta questão só pode receber a resposta negativa que agora se dá.

III. DECISÃO
Pelo exposto, julgamos improcedente o recurso e, em consequência, negando-lhe provimento, confirmamos a sentença impugnada.
Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCS.
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Lisboa, 19-12-2024
Carlos M. G. de Melo Marinho
Bernardino J. Videira Tavares
Alexandre Au-Yong Oliveira