Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
286/23.2SKLSB.L1-3
Relator: MARGARIDA RAMOS DE ALMEIDA
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
MEDIDA DA PENA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I. A respeito da determinação da pena, rege o princípio da pessoalidade. Tal princípio impõe que a pena seja aplicada de um modo individualizado, tendo em conta a situação pessoal, económica, social específica da pessoa visada, bem como a apreciação crítica de todo o seu circunstancialismo actuativo. A pessoalidade e individualização da pena são uma consequência do princípio da culpa e valem para qualquer sanção penal.
II. No que concerne à dosimetria da pena imposta, como afirma o Prof. Cavaleiro de Ferreira (in Direito Penal Português, II, Lisboa, 1982, pgs. 309 e 310), procurando conciliar a natureza repressiva da pena e a sua justiça, com a reintegração social do agente do crime, a pena não constitui intrinsecamente um mal. Enquanto restringe a esfera jurídica dos condenados, é castigo e como tal deve ser sentida. O castigo, porém, na sua essência, está na reprovação do crime pela condenação. A pena, na sua aplicação e execução, deve ao invés apontar para a redenção da culpa (repressão), através da readaptação social. A pena não será, portanto, um mal ou sofrimento equivalente ao mal cometido ou sofrimento causado; mas o meio adequado a suscitar a restituição à sociedade pelo delinquente do bem equivalente ao mal cometido, presuntivamente correspondente à extinção da culpa, a qual reage à pena.
III. Neste tipo de crime de tráfico de estupefacientes, as exigências de prevenção geral são fortíssimas, pois o tráfico de estupefacientes é das actividades que mais profundamente corrói e corrompe a sociedade em que vivemos, potenciando o cometimento de numerosos outros tipos de crimes – roubos, furtos, receptações –, tornando um verdadeiro flagelo a vida dos consumidores, das suas famílias, gerando instabilidade social, problemas de saúde pública e de desenquadramento laboral e familiar, que acabam por ser suportados por todos os restantes cidadãos.
IV. Assim, na fixação da pena a impor, em casos como o presente, haverá que sopesar as necessidades de estratégica nacional e internacional de combate a este tipo de crime, que reforçam ainda mais os imperativos de prevenção geral e especial, no sentido de a dosimetria penal não frustrar, não desacreditar, as expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada. Lembremo-nos que Portugal, através dos seus aeroportos ou linha costeira é, infelizmente, um local de entrada de estupefacientes, vindos dos países produtores, quer para o mercado nacional, quer para a Europa.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 3a secção do Tribunal da Relação de Lisboa
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I.- RELATÓRIO
1. Por acórdão de 15 de Julho de 2024, foi a arguida AA condenada, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei 15/93, de 22/01, na pena de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão.
2. Inconformada, veio a arguida apresentar recurso, considerando que a pena imposta deve ser reduzida, devendo ainda ser suspensa na sua execução.
3. O recurso foi admitido.
4. O Ministério Público respondeu à motivação apresentada, defendendo a improcedência do recurso.
5. Neste tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto acompanhou a resposta do seu Exº Colega.
II. - QUESTÃO A DECIDIR.
Redução e suspensão da pena imposta.
III. - fundamentação.
O tribunal “a quo” deu como assente a seguinte matéria fáctica:
1. No dia ... de ... de 2023, a arguida AA deslocou-se ao Aeroporto Humberto Delgado, de Lisboa, a fim de embarcar no voo W9, operado pela companhia aérea ..., com destino a ..., no Reino Unido, levando consigo uma mochila, marca Quechua, que no seu interior tinha três placas de Cocaína Cloridrato com o peso líquido de 3.009,00 gramas, uma embalagem de Cocaína Cloridrato com o peso líquido de 996,900 gramas, sete embalagens de amido em pó com o peso líquido de 3.372,40 gramas e um bacalhau graúdo de Asa Branca.
2. Pelas 19h54m do mesmo dia, a arguida AA dirigiu-se para a fila de acesso ao controlo de Raio-x nº 8 das bagagens de mão dos passageiros, do Terminal 2.
3. A arguida AA colocou os seus pertences, nos quais incluiu a mochila da marca Quechua com a cocaína cloridrato e o amido, em três tabuleiros, os quais depositou no tapete rolante.
4. A arguida transpôs o pórtico do Raio-x nº 8, para levantar os seus pertences numa das extremidades do tapete rolante.
5. O terceiro tabuleiro, onde estava a mochila Quechua, a qual tinha no interior a cocaína cloridrato, levantou suspeitas aos elementos da segurança, e em consequência, esse tabuleiro foi retirado, enquanto os outros seguiram no tapete rolante.
6. A arguida quando se apercebeu que a sua mochila tinha sido selecionada para inspeção visual ao seu conteúdo, abandonou o ponto de rastreio, deixando a bagagem para trás.
7. De seguida, a arguida AA dirigiu-se para o exterior do aeroporto.
8. No dia 31 de Maio de 2023, a arguida AA tinha na sua posse um telemóvel Iphone 14 PRO Max, e um telemóvel Iphone 11.
9. A arguida encontra-se registada no Instituto da Segurança Social como trabalhadora por conta de outrem, na entidade ..., tendo auferido no mês de 2022-12 a remuneração no valor base de €92,67, e não apresentando registo de auferir prestações sociais.
10. A arguida é a única titular da conta bancária nº 9.000.001 no ..., à qual está associado o cartão de débito VISA ELECTRON nº ....
11. No dia 6.02.2023, a arguida realizou uma viagem de avião entre Lisboa e Londres, através da reserva com o ..., na companhia aérea ....
12. No dia 25.02.2023, a arguida efectuou uma reserva com o PNR U2, de uma viagem de avião entre Lisboa e Londres para o dia 26-02-2023, a qual realizou na companhia aérea ....
13. No período entre o dias 6.02.2023 e o dia 12.03.2023, a arguida procedeu ao depósito, em numerário, do valor total de €7.605,00, os quais foram efectuados no dia das viagens que a mesma realizou entre Lisboa e Londres.
14. O telemóvel Iphone ll apreendido à AA e acima indicado foi utilizado na actividade de tráfico de estupefaciente.
15. A arguida agiu com o propósito concretizado de transportar desde Lisboa, por via área, no interior de uma mochila as embalagens de produto estupefaciente apreendidas, cuja natureza e características estupefacientes conhecia e não podia desconhecer, com o objectivo de obter quantias monetárias de valor elevado, as quais se traduziriam em lucro.
16. A arguida só não transportou até ao destino final, as embalagens de cocaína cloridrato por a sua mochila ter sido selecionada para inspecção visual e, a mesma, ter abandonado a mesma, no portal de raio-x 8 do terminal 2 do Aeroporto de Lisboa.
18. As embalagens contendo cocaína destinavam-se a serem transportadas, em viagem de avião, para Londres, onde seriam entregues a terceiros, para serem transacionadas a troco de quantias monetárias
19. A AA agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a detenção e o transporte de cocaína lhe era proibido e punido por lei.
20. A arguida nasceu em Bissau, onde viveu a sua infância e onde concluiu o 11º ano de escolaridade, aos 17 anos de idade.
21. Aos 20 anos, AA veio, definitivamente, viver para Portugal e passou a integrar o agregado familiar de sua irmã.
22. Durante esse período, trabalhou durante um ano como ajudante de cozinha no refeitório de estabelecimento de ensino; tendo depois trabalhado como auxiliar de assistente a pessoa idosa e após este serviço ainda trabalhou como funcionária de hotel, nos serviços da cozinha e refeitório.
23. Em 2017, foi para Inglaterra, onde já se encontrava a sua irmã, tendo trabalhado inicialmente como empregada de limpezas, em escritórios.
24. Sempre se mostrou profissionalmente activa, trabalhando na área das limpezas.
25. A arguida tem dois filhos, com 15 e 9 anos de idade.
26. Nao tem antecedentes criminais registados.

2. O tribunal “a quo” fundamentou a dosimetria e a tipologia da pena que aplicou, nos seguintes termos:

Determinação da Medida de Pena:
Subsumidos os factos à sua dignidade criminal, importa, agora, determinar a natureza e medida da sanção a aplicar.
O crime de tráfico de estupefacientes, previsto no Artigo 21º do Decreto-lei 15/93 de 22 de Janeiro é punível com pena de prisão entre 4 a 12 anos.
A escolha e medida da pena determina-se, nos termos dos Artigos 40º e 71º nº 1 do Código Penal em função das exigências da prevenção, no caso concreto, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, deponham a favor ou contra o arguido.
As finalidades das penas, na previsão, na aplicação e na execução, são, assim, na filosofia da lei penal portuguesa expressamente afirmada, a protecção de bens jurídicos e a integração de agente do crime nos valores sociais afectados.
Na protecção de bens jurídicos vai ínsita uma finalidade de prevenção de comportamentos danosos que afectem tais bens e valores, ou seja, de prevenção geral. A previsão, a aplicação ou a execução da pena devem prosseguir igualmente a realização de finalidades preventivas, que sejam aptas a impedir a prática pelo agente de futuros crimes, ou seja uma finalidade de prevenção especial.
Em suma, as finalidades das penas (de prevenção geral positiva e de prevenção especial de integração) conjugam-se na prossecução do objectivo comum de, por meio da prevenção de comportamentos danosos, proteger bens jurídicos comunitariamente valiosos cuja violação constitui crime.
Assim, o limite superior da pena é o da culpa do agente. O limite abaixo do qual a pena não pode descer é o que resulta dos princípios de prevenção geral positiva segundo os quais a pena deve neutralizar o efeito negativo do crime na comunidade e fortalecer o seu sentimento de justiça e de confiança na validade das normas violadas, além de constituir um elemento dissuasor. A medida exacta da pena é a que resulta das regras de prevenção especial de socialização. É a medida necessária à reintegração do indivíduo na sociedade causando-lhe apenas o mal necessário. (Vd. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, reimpressão, Coimbra Editora, pclg.238 ss).
Descendo ao caso dos autos, mostram-se muito elevadas as necessidades de prevenção geral. Com efeito, a dependência de substâncias estupefacientes é uma realidade efectiva com grande repercussão na sociedade e nos cidadãos. Não só ao nível da saúde pública; que sai francamente prejudicada com tal actividade; mas igualmente no que respeita a questões de segurança dos cidadãos intrinsecamente ligadas ao tráfico. Com efeito, são sobejamente conhecidos os crimes praticados na decorrência da dependência das drogas, como sejam os pequenos furtos, com vista a alcançar dinheiro rápido necessário à compra da dose necessária à satisfação da dependência.
No que respeita às exigências de prevenção especial, as mesmas encontram-se também num patamar mediano.
Com efeito, a arguida não tem antecedentes criminais, confessou a prática dos factos, denotando arrependimento e interiorização do desvalor da sua conduta.
Na medida concreta da pena a aplicar terão ainda que ser tidos em consideração os seguintes factores, atento o estabelecido no artigo 71 n.2 do Código Penal:
O dolo directo, o grau já expressivo de ilicitude, atendendo à quantidade e qualidade do produto estupefaciente; as suas concretas condições pessoais e económicas.
Assim, tudo visto e ponderado, entende-se como adequada a pena de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão.
3. Alega a recorrente, em sede de conclusões, o seguinte:
A. Vem o presente recurso interposto do douto acórdão depositado a 15-07-2024 (Refa Citius 437247081), que condenou a Recorrente pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo artigo 21º do Decreto-lei 15/93 de 22 de janeiro, numa pena de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão.
B. Entende a Recorrente que, a pena em que foi condenada não é adequada à intensidade e grau de culpabilidade que resulta dos elementos que constam dos autos, assim como não cumpre as finalidades que presidem à aplicação das penas, da proteção dos bens jurídicos e da reintegração do agente na sociedade - nos termos do art.º 40º/1 do CP - em função das exigências de prevenção de futuros crimes - nos termos do art.º 71 º do CP.
C. Entende a Recorrente que, atendendo aos elementos que constam dos autos, a pena de prisão a aplicar não deveria ser superior a 5 (cinco) anos de prisão. Entende ainda a Recorrente que, existem condições para ser decidida a suspensão da execução da pena.
D. Os danos que o crime de tráfico de droga provoca na saúde pública e na vida em sociedade são irrefutáveis, exigindo-se por isso que o direito, para a melhor tutela dos bens jurídicos a proteger, atue de modo a prevenir a ocorrência deste género de criminalidade; no entanto, a pena aplicada não é a mais adequada às finalidades da pena e às exigências de prevenção especial, e excede a medida da culpa, configurando-se, por isso, como injusta.
E. De facto, como é referido pelo tribunal a quo na decisão proferida, a Recorrente “[...] não tem antecedentes criminais, confessou a prática dos factos, denotando arrependimento e interiorização do desvalor da sua conduta.”
F. Sucede que, o tribunal a quo, ficou aquém da avaliação exigida pelos elementos que foram carreados para os autos.
G. A Recorrente carreou para os autos prova bastante em como tem uma atividade laboral intensa e regular na cidade de Londres, onde reside desde 2017, como ficou demonstrado pelas declarações das testemunhas ouvidas em sede de audiência de discussão e julgamento, e também a prova documental, que atesta a longevidade e regularidade do trabalho prestado como empregada de limpeza, na escola ... e para a empresa ...
H. A Recorrente conseguiu também demonstrar nos autos que está inserida numa família estruturada, beneficiando de forte apoio da irmã mais velha, com quem reside em Londres, e do cunhado, que representam as figuras dos pais, falecidos precocemente.
I. A Recorrente demonstrou ainda que, é mãe de dois menores, BB e CC, de 9 e 16 anos, para quem a presença materna revela-se essencial, designadamente para a saúde, segurança, formação e educação dos menores, por forma a garantir o bem-estar e desenvolvimento integral dos mesmos.
J. A Recorrente conseguiu demonstrar que a prática dos factos cometidos e assumidos reveste natureza absolutamente excecional na sua vida, como veio a ficar registado no Relatório Social elaborado, em que se considera “que a arguida poderá vir a dispor de condições para firmar o seu projeto de vida pessoal que vise a continuidade e sustentabilidade de um modo de vida pró- social.”,
K. Em conclusão, entende a Recorrente ter ficado demonstrado, pela ausência de antecedentes criminais, pela confissão dos factos, que denota arrependimento e interiorização do desvalor da sua conduta, e também pelas suas condições pessoais, pela sua situação económica, laboral, social e familiar, que as necessidades de prevenção especial estão atenuadas.
L. Mais se diga que, o artigo 40º do Código Penal estabelece também como uma das finalidades determinantes da medida da pena a necessidade de reintegração do agente na sociedade.
M. Ora, tendo ficado demonstrado que a Recorrente, antes da detenção, mantinha uma vida laboral, social e familiar organizada, a que pretende dar continuidade, importa proteger estas estruturas de vida já consolidadas, porque é o que melhor se adequada às exigências de prevenção especial e também à necessidade de reintegração do agente na sociedade.
N. Esta proteção das estruturas de vida já consolidadas apenas é possível se a Recorrente não estiver ausente delas por um período demasiado extenso, que sempre acarretaria o enfraquecimento gradual das mesmas.
O. Entende por isso a Recorrente que, para a melhor realização das finalidades da pena, o quanto não poderia ir além dos 5 anos de prisão.
P. Entende ainda a Recorrente que, a sua personalidade, as suas condições de vida, a conduta que manteve antes e depois dos factos, e as circunstâncias em que os praticou, permitem a realização de um juízo de prognose antecipado em seu benefício, em como não voltará a cometer novos crimes.
Q. Até porque, o facto de estar privada da liberdade há mais de 1 ano e 2 meses, a faz ter plena consciência das consequências dos seus atos.
R. A Recorrente entende estarem verificados os pressupostos para a determinação da suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do disposto nos artigos 50º e seguintes do Código penal, ainda que eventualmente subordinada à condição de a mesma efetuar o pagamento de um montante adequado a instituições de apoio à recuperação toxicodependente e de apoio à criança, e ainda que se faça acompanhar essa suspensão da execução da pena, de regime de prova.
4. Apreciando.
i. Comecemos pela primeira questão proposta, que se reporta ao pedido de alteração da dosimetria da pena imposta, pugnando a arguida pela imposição de pena não superior a 5 anos de prisão.
ii. Pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, foi a arguida condenada na pena de 5 anos e 3 meses de prisão.
A moldura penal prevista para este ilícito é a de 4 a 12 anos de prisão.
iii. Em primeira sede cabe realçar que, a respeito da determinação da pena, rege o princípio da pessoalidade. Tal princípio impõe que a pena seja aplicada de um modo individualizado, tendo em conta a situação pessoal, económica, social específica da pessoa visada, bem como a apreciação crítica de todo o seu circunstancialismo actuativo. A pessoalidade e individualização da pena são uma consequência do princípio da culpa e valem para qualquer sanção penal.
iv. No que concerne à dosimetria da pena imposta, como afirma o Prof. Cavaleiro de Ferreira (in Direito Penal Português, II, Lisboa, 1982, pgs. 309 e 310), procurando conciliar a natureza repressiva da pena e a sua justiça, com a reintegração social do agente do crime, a pena não constitui intrinsecamente um mal. Enquanto restringe a esfera jurídica dos condenados, é castigo e como tal deve ser sentida. O castigo, porém, na sua essência, está na reprovação do crime pela condenação.
A pena, na sua aplicação e execução, deve ao invés apontar para a redenção da culpa (repressão), através da readaptação social. A pena não será, portanto, um mal ou sofrimento equivalente ao mal cometido ou sofrimento causado; mas o meio adequado a suscitar a restituição à sociedade pelo delinquente do bem equivalente ao mal cometido, presuntivamente correspondente à extinção da culpa, a qual reage àpena.
Importa, pois, desde logo, para além dos fins de repressão e de reintegração, atender ainda às exigências de prevenção geral e especial, que regem igualmente os fins das penas.
Na prevenção geral utiliza-se a pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos - prevenção geral negativa - e para incentivar a convicção na sociedade, de que as normas penais são válidas, eficazes e devem ser cumpridas, - prevenção geral positiva. Na prevenção especial, a pena é utilizada no intuito de dissuadir o próprio delinquente de praticar novos crimes e com o fim de auxiliar a sua reintegração na sociedade.
5. Apreciemos, então, o caso presente.
Neste tipo de crime as exigências de prevenção geral são fortíssimas, pois o tráfico de estupefacientes é das actividades que mais profundamente corrói e corrompe a sociedade em que vivemos, potenciando o cometimento de numerosos outros tipos de crimes - roubos, furtos, receptações -, tornando um verdadeiro flagelo a vida dos consumidores, das suas famílias, gerando instabilidade social, problemas de saúde pública e de desenquadramento laboral e familiar, que acabam por ser suportados por todos os restantes cidadãos.
Assim, na fixação da pena a impor, em casos como o presente, haverá que sopesar as necessidades de estratégica nacional e internacional de combate a este tipo de crime, que reforçam ainda mais os imperativos de prevenção geral e especial, no sentido de a dosimetria penal não frustrar, não desacreditar, as expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada. Lembremo-nos que Portugal, através dos seus aeroportos ou linha costeira é, infelizmente, um local de entrada de estupefacientes, vindos dos países produtores, quer para o mercado nacional, quer para a Europa.
6. Alega a recorrente ter hábitos de trabalho, ter apoio familiar na Grã-Bretanha, ser mãe de dois filhos ainda menores, bem como não ter antecedentes criminais, encontrar-se social e familiarmente integrada, encontrando-se detida há mais de um ano, o que a faz ter consciência das consequências dos seus actos.
Ora, tendo em atenção as considerações acabadas de enunciar, será que, no caso desta arguida se poderá concluir que as circunstâncias que a mesma invoca serão de molde a determinarem imposição de pena mais próxima do limite mínimo do que a fixada pelo tribunal “a quo”?
7. A resposta é claramente negativa, desde logo atentas as fortíssimas exigências em sede de prevenção geral, que supra deixámos expostas. Para além destas, a verdade é que da matéria fáctica apurada não resulta qualquer circunstância de assinalável relevo que determine, que imponha, que induza, ocorrer uma assinalável diminuição da sua culpa ou da ilicitude dos seus actos.
i. Efectivamente, a ausência de antecedentes criminais e o seu entorno familiar, assim como a existência de hábitos de trabalho, foram elementos já tidos em ponderação no momento da determinação da dosimetria da pena.
Para além do mais, o restante circunstancialismo relativo à sua situação pessoal, familiar e profissional, já ocorria no momento em que a arguida praticou os factos, tendo o mesmo sido absolutamente incapaz de a impedir de os realizar.
ii. Assim, não só se verificam fortes exigências de prevenção geral como, igualmente, graves necessidades de prevenção especial, pois a arguida agiu movida pela exclusiva procura de obtenção de benefícios económicos rápidos e muito significativos.
iii. Diga-se, aliás, que uma das razões que justificam e exigem o cumprimento de uma pena de prisão efectiva e com algum grau de consistência radicam, precisamente, na imperiosa necessidade de se desmotivar o tipo de actuação que a arguida protagonizou, isto é, é absolutamente essencial que seja entendido que o exercício de uma actividade com tão nefastas consequências societárias e que permite obter, com muito pouco esforço, significativas quantias monetárias, não é tolerada.
iv. Não fossem as circunstâncias atenuantes que, quer a recorrente, quer o tribunal “a quo” referem, seguramente não lhe teria sido imposta uma pena que foi fixada muito abaixo do meio da moldura penal (que rondaria os 8 anos de prisão), já que a ilicitude e a culpa se mostram na mediania, como bem realça o tribunal “a quo”.
v. Na verdade, a quantidade de produto estupefaciente que a arguida detinha e transportava - cerca de 4 quilos - , bem como a natureza do mesmo - cocaína - são elementos em si mais do que suficientes para se ter de entender revelar o facto um grau de ilicitude média, sendo certo que o dolo com que actuou se situa igualmente nesse grau.
vi. Finalmente, e no que concerne à sua admissão da prática dos factos, embora circunstância de carácter atenuante, a verdade é que a mesma não revestiu a forma de confissão integral, pois a recorrente apresentou em julgamento uma versão diversa da que resultava das suas declarações em 1º interrogatório, com as quais foi confrontada, pretendendo fazer crer que havia deixado o estupefaciente no aeroporto, porque se havia arrependido, quando efectivamente o fez por se aperceber que havia suspeitas quanto ao conteúdo das suas malas e, contactado por si, telefonicamente, o dono do produto, este lhe disse para abandonar o aeroporto, o que fez.
8. Face a tudo o que se deixa dito, conclui-se que na fixação da pena foram atendidas e sopesadas todas as circunstâncias legalmente previstas, incluindo as de natureza atenuante, mostrando-se a mesma adequada e proporcional, pelo que não nos merece censura quer a sua natureza quer o seu quantum, razão pela qual deve ser mantida. Não ocorreu, pois, violação dos dispositivos legais que a recorrente invoca.
9. Tendo em atenção o disposto no art.º 50 do C. Penal, é manifesto que o pedido de suspensão da pena se mostra prejudicado.
i. Não obstante e ainda que assim não fosse, sempre se dirá, sucintamente, que à opção pela suspensão da execução da pena de prisão, enquanto medida de reacção criminal autónoma, são alheias considerações relativas à culpa do agente, valendo essencialmente, no juízo a realizar, as exigências resultantes das finalidades preventivas da punição, sejam as de prevenção geral positiva ou de integração, sejam as de prevenção especial de socialização (art.º 40º n.º 1 do CP). Assim, a opção por esta pena terá de assentar, em primeira sede, na formulação de um juízo positivo ou favorável à recuperação comunitária do agente através da censura do facto e da ameaça da prisão, sem a efectiva execução da mesma, já que ficaria suspensa. Todavia, chegado a este ponto, tal opção apenas se mostrará aplicável caso não prejudique ou contrarie a necessidade de reafirmar a validade das normas comunitárias, ou seja, desde que o sentimento comunitário de crença na validade das normas infringidas não seja contrariado ou posto em causa com tal suspensão.
ii. Para além de ser este o enquadramento geral que rege a operação de apreciação da possibilidade de opção por este tipo de pena, a verdade é que as exigências acima referidas se mostram ainda mais prementes, nos casos em que estamos perante um crime de tráfico de estupefacientes, atendendo às robustas razões de saúde pública que se pretendem preservar através da criminalização de tal tipo de actuação.
10. A premência de exigências a que acima nos referimos verifica-se, de tal modo, que tem vindo a ser jurisprudência senão unânime, pelo menos esmagadoramente maioritária, a nível dos tribunais superiores e, em especial, do STJ, a noção de que, quando estamos perante um crime de tráfico, simples ou agravado, só razões especialmente ponderosas, que resultem da avaliação global da actividade da arguida, poderão eventualmente sobrepor-se a tais exigências de prevenção geral, podendo vir a permitir (caso seja possível a formulação de um juízo de prognose favorável), a suspensão de penas punitivas de tais tipos de ilícitos, como aliás se mostra consignado em múltiplos acórdãos exarados pelo STJ (cfr., de entre outros e, apenas a título de exemplo, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17.01.2013; de 09.05.2012; de 13.01.2011; de 09.12.2010; de 10.02.2010; de 15.07.2009; de 13.11.2008; de 09.04.2008; de 20.02.2008; de 23.01.2008; de 19.12.2007; de 15.11.2007; de 14.11.2007; de 03.10.2007; de 27.09.2007 todos disponíveis in www.dgsi.pt.)
11. Esclarecedores do raciocínio que subjaz a este entendimento, são os seguintes excertos de decisões proferidas pelo STJ (in site www.pgdl.pt):
Mas não é de suspender a execução dessa pena de prisão, não só por ser a matéria apurada insuficiente para formular um juízo de prognose social favorável, como o combate ao tráfico de droga em que Portugal internacionalmente se comprometeu, impõe que não seja suspensa a execução da pena nos casos de tráfico comum e de tráfico agravado de estupefacientes, em que não se verifiquem razões muito ponderosas, que no caso se não postulam; seria atentatória da necessidade estratégica nacional e internacional de combate a esse tipo de crime; faria desacreditar as expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada e não serviria os imperativos de prevenção geral. Proc. n.º 825/08 -5 a Secção
- Para aplicação da pena de suspensão de execução da pena de prisão é necessário, em primeiro lugar, que a mesma não coloque irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias, ou seja, o sentimento de reprovação social do crime ou sentimento jurídico da comunidade. Em segundo lugar, é necessário que o tribunal se convença, face à personalidade da arguida, comportamento global, natureza do crime e sua adequação a essa personalidade, que o facto cometido não está de acordo com essa personalidade e foi simples acidente de percurso, esporádico, e que a ameaça da pena, como medida de reflexos sobre o seu comportamento futuro, evitará a repetição de comportamentos delituosos. Proc. n. º 3206/07 -3.a Secção
I.- A suspensão da execução da pena “deverá ter na sua base uma prognose favorável ao réu, a esperança que o condenado sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime” - Proc. n.º 1092/01 -5 a.
II. - Contudo, antes de se partir para uma avaliação desse juízo de prognose - que se prende essencialmente com a personalidade e o modo de vida evidenciados pela arguida -, há que verificar se a suspensão da execução da pena salvaguarda as demais e não menos importantes finalidades das penas, quais sejam as de reafirmar a necessidade da existência da norma punitiva e as de prevenção geral. Proc. n.º 3219/07 -5a Secção.
Bem como o acórdão do STJ, de 15.01.2014 (www.dgsi.pt), que se debruça, precisamente, sobre a questão da suspensão de pena, relativamente aos chamados “correios de droga”:
O transporte intercontinental de droga por via aérea, a cargo de pessoas contratadas para o efeito, que viajam como vulgares passageiros de avião e que levam a droga disfarçada na bagagem, na roupa ou mesmo no interior do próprio corpo, não permite a passagem de grandes quantidades de estupefacientes, mas, em compensação, possibilita a rápida introdução dos estupefacientes nos mercados de consumo. Os correios de droga, muito embora não sejam os donos do produto que transportam e estejam normalmente desligados do circuito comercial dos estupefacientes, constituem uma peça importante, porventura cada vez mais importante, para fazer a conexão entre a produção e o consumo, sem a qual não existe negócio. […] As extremas exigências de prevenção geral levam a rejeitar, face ao disposto no n.º 1 do art.º 50. º do CP, a possibilidade de suspensão da execução desta pena de prisão. A suspensão da pena envolveria necessariamente um enfraquecimento inadmissível da protecção do bem jurídico tutelado, sabido que é que este fenómeno constitui um meio intensivamente utilizado pelas organizações que controlam a produção de estupefacientes para a sua colocação expedita nos países de maior consumo e que Portugal surge como um país normalmente utilizado como plataforma de entrada na Europa de droga provinda normalmente da América do Sul, quando se trata de cocaína. [...] ”.
13. Ora, tendo em atenção as considerações acabadas de enunciar, será que, no caso desta arguida se poderia concluir ocorrerem razões de tal forma ponderosas, que afastassem as prementes necessidades de prevenção geral, que apontam para a imposição de pena de prisão efectiva?
A resposta é claramente negativa, como resulta do que atrás se deixa exposto. A verdade é que da matéria fáctica apurada não advém qualquer circunstância de assinalável relevo que determinasse, que impusesse, a suspensão da sua pena (ainda que sujeita a qualquer tipo de dever ou obrigação).
14. Face a tudo o que se deixa dito, conclui-se que se não mostra violado nenhum dos dispositivos a que a recorrente alude e que, ainda que o pedido de redução de pena para 5 anos de prisão tivesse sido considerado procedente (e não foi) mostrar- se-ia inaplicável à arguida o disposto no artº 50 do C.Penal, pelo que a decisão proferida não merce censura, razão pela qual deve ser mantida.
IV. - DECISÃO.
Pelo exposto, acorda-se em considerar improcedente o recurso interposto pela arguida AA e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Condena-se a recorrente no pagamento da taxa de justiça de 3 UC..
Dê imediato conhecimento ao tribunal “a quo” do teor deste acórdão, advertindo que a decisão ainda se não mostra transitada em julgado.

Lisboa, 9 de Outubro de 2024
Margarida Ramos de Almeida
Maria da Graça dos Santos Silva
João Bártolo