Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
978/20.8T9LSB.L1-9
Relator: EDUARDO DE SOUSA PAIVA
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
CONFLITO DE DEVERES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/30/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I. Para que a conduta seja justificada ao abrigo do art.º 36º, nº 1 do Código Penal, para além da verificação de pelo menos dois deveres jurídicos diferentes, cujo cumprimento de um inviabiliza o cumprimento do outro, é também necessário que os deveres sejam de igual valor ou, sendo um de valor superior, ser este cumprido em detrimento do dever de menor valor.
II. O dever dos arguidos de pagar aos seus trabalhadores e o seu dever de pagar as contribuições devidas à Segurança Social são de diferente valor jurídico, já que um visa a realização do interesse público e outro visa a realização de interesses de natureza privada, e um tem tutela penal enquanto o outro não.
III. A tutela penal do dever de pagar as contribuições à Segurança Social permite-nos concluir que o legislador atribuiu a este dever um valor muito superior ao dever de pagar os salários aos trabalhadores e de, por via destes, a empresa continuar a laborar, porquanto, constituindo a tutela penal uma última ratio na tutela de bens jurídicos, esta é reservada à preservação dos bens jurídicos tidos pelo legislador como os mais valiosos.
IV. Por outro lado, o dever de pagar as contribuições para a Segurança Social visa a concretização do interesse público do Estado em, arrecadando receitas, afetá-las à realização da satisfação das necessidades coletivas. Ao passo que, o dever de pagar os salários aos trabalhadores visa a realização do interesse privado de satisfação dos créditos laborais e de manter a empresa em funcionamento.
V. Tendo os arguidos, perante conflito de deveres de diferente valor, optado por satisfazer o do menor valor (pagar aos trabalhadores), a ilicitude da sua conduta (omissiva e integradora do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social), não está excluída.
(sumário da responsabilidade do relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
No processo comum singular nº 978/20.8T9LSB do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 5, foi proferida sentença, a 29/05/2024, em cuja parte decisória consta o seguinte (transcrição, na parte relevante):
«C) Condeno a sociedade arguida “S.F..., Lda. pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 6.º, 7.º, n.º1, e 107.º, n.º1, e 2, por referência ao artigo 105.º, n.º1, 4, e 5, do Regime Geral das Infrações Tributárias, numa pena de 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de €6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz um total de €1.950 (mil novecentos e cinquenta euros).
D) Condeno o arguido J.R… pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 6.º, 7.º, n.º1, e 107.º, n.º1, e 2, por referência ao artigo 105.º, n.º1, 4, e 5, do Regime Geral das Infrações Tributárias, numa pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspendendo-se a execução da pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão pelo período de 2 (dois) anos, subordinando-a a regime de prova.
(…)
F) Condeno a sociedade arguida S.F….,Lda. e o arguido J.R… no pagamento, solidariamente, ao Instituto da Segurança Social, I.P., da quantia de €75.208,18 (setenta e cinco mil duzentos e oito euros e dezoito cêntimos), acrescida dos respetivos juros de mora vencidos e vincendos desde a data da prática dos factos e até efetivo e integral pagamento.»
***
Inconformados, os arguidos S.F…, Lda. e J.R… interpuseram o presente recurso (conjunto), concluindo:
«A) Segundo Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, in 4.ª edição 2010, regime Geral das Infrações Tributárias, Anotado, pág. 744 “é nula, por omissão de pronúncia, a sentença que condene o arguido pelo crime de abuso de confiança fiscal, na sua forma continuada, sem se referir à organização da empresa e à concreta participação do arguido no quadro dessa organização, sem descriminar cada uma das importâncias objeto de apropriação, e sem fazer a menor demonstração de um quadro de circunstâncias exógenas que diminuíram consideravelmente a culpa do agente (AcRP de 19/07/2066, proc. n.º 0611763).”
B) Neste mesmo sentido Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo n-º 0611763 esclarece ainda que “Muito embora não seja seu objecto, não se deixa de anotar que a sentença recorrida não procede à indicação de cada um dos valores tributários em causa, optando antes por indicar um valor total (3.º e 4.º § dos factos provados) e remetendo para os mapas de fls. 1054 a 1057, que corresponde à acusação, o que não é certamente o mais indicados dos métodos. De resto e como se referiu no Ac. desta Relação de 2005/Mai./05 [Relatado pelo Des. Manuel Braz], divulgado em www.dgsi.pt “I - O crime continuado é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação. II - No crime de abuso de confiança fiscal continuado, a quantia relevante para a determinação do tipo previsto no art.º 24º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras corresponde ao valor da apropriação mais elevada e não ao produto da soma de todas elas.” Aliás o actual RGIT, que a sentença recorrida acabou por aplicar, faz menção expressa no seu art.º 105.º, que “Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devem constar de cada declaração a apresentar à administração”. Sendo assim dever-se-á atender a cada declaração fiscal e a cada um dos vários tipos de impostos e nunca à totalidade dos mesmos, quando dizem respeito a vários períodos fiscais ou a diversos tipos de impostos – neste sentido “Comentários al Nuevo Código Penal”, sob a direcção de Gonzalo Quintero Olivares (2005), p. 1545. Também não se deixa de anotar que a própria sentença, no seguimento da mesma acusação, sustenta, como já se referiu, que se trata de um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada, sem contudo precisar, no dizer do art.º 30.º, n.º 2 do C. Penal, qual é o “quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa”. Não será certamente o facto de existir o dever de deduzir uma prestação tributária e depois de entregá-la tendo-se, entretanto, a disponibilidade da mesma, que configura essa circunstância exterior não criada pelo agente que facilita a prática deste ilícito fiscal, porquanto é ai que reside a génese da própria relação jurídico-tributária. Nem as mesmas constam, seja de modo explícito ou implícito, dos factos provados. Isto significa que a sentença recorrida não se pronuncia sobre várias questões que deviam ser abordadas na mesma, o que também não deixa de constituir uma omissão de pronúncia, que conduz à nulidade da sentença, por via do disposto no art.º 379.º, n.º 1, al. c), do C. P. Penal.”
C) Por aqui resulta que era obrigação do Tribunal ad quo procede à indicação de cada um dos valores tributários em causa.
D) O que não aconteceu.
E) Aquele Tribunal preferiu ao invés, e baseando-se exclusivamente no depoimento de L.P…, por indicar um valor total (ponto M dos factos provados) sem indicar em momento algum quais os meses, valores e ou juros devidos, bem como, sem saber ao certo – já que estava a ser cumprido um plano prestacional – qual o valor em dívida em 29 de Maio de 2024, uma vez que, o valor de referência que havia sido indicado por L.P… em 4 de Abril de 2024 certamente que já não se encontra correto.
F) Isto significa que a sentença recorrida não se pronuncia sobre várias questões que deviam ser abordadas na mesma, o que também não deixa de constituir uma omissão de pronúncia, que conduz à nulidade da sentença, por via do disposto no art.º 379.º, n.º 1, al. c), do C. P. Penal
G) Motivo pelo qual devem os Arguidos serem totalmente absolvidos da instância, sendo a Sentença de fls… revogada.
Caso assim não se entenda, deve considerar-se que:
H) Os deveres – dever de liquidar retribuição a trabalhadores e pagar impostos - pretendem proteger bens jurídicos de alto valor, bens estes que sempre a Lei pretendeu ver cumpridos, de tal forma que entre os dois não se pode estabelecer uma hierarquia, precisamente porque não é possível afirmar que um se revela mais importante que o outro.
I) Quando um devedor, por insuficiência de rendimentos, usa a prestação tributária exclusivamente para pagamento dos salários dos trabalhadores, em vez de proceder ao pagamento de impostos, poderá o mesmo estar perante uma situação de conflito de deveres, tal como prevista no artigo 36.º do Código Penal, reconhecendo-lhe a lei uma total liberdade de escolha para o cumprimento de um ou outro dever.
J) Estando os Recorrentes perante um caso típico de conflito de deveres, como é o caso dos autos, qual a postura que deve ser adotada pelos Recorrentes
K) Nestes casos, a lei não exige que o sujeito escolha cumprir o dever que se lhe afigure mais custoso, já que, pelo contrário, antes lhe reconhece uma total liberdade de escolha.
L) Não existe razão alguma para proibir ao devedor que, perante a impossibilidade de cumprimento de deveres iguais, opte por aquele que também prossegue um interesse próprio, uma vez que a lei não contempla qualquer imposição ao sujeito no sentido de este, ante uma colisão de deveres iguais, escolher aquele que prossegue um interesse alheio - pura e simplesmente porque é alheio, note-se -, pelo que também não se pode defender que a causa justificativa não pode actuar nessas situações.
M) As causas de exclusão da ilicitude encontram-se previstas na lei precisamente para que sejam aplicadas pelo respectivo aplicador, o Tribunal, de forma a que, verificadas certas condições (e no que toca ao conflito de deveres: cumprindo-se um dever legal superior ou, pelo menos, de valor igual, ao dever sacrificado) se considere que esse comportamento é lícito e, por isso, aprovado pela ordem jurídica na sua totalidade.
N) Acrescenta-se ainda que, tal como resulta do ponto A) dos factos dados como provados que “A arguida “S.F…, Lda.” é, atualmente, uma sociedade por quotas, com sede na Avenida A.A…, em Lisboa, registada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa sob o NIPC ???.???.??? e que tem por objeto social a construção, gestão e exploração de unidades de saúde para a terceira idade, de exames, análises e diagnósticos; projeto, construção, gestão e exploração de clínicas e hospitais, centros de dia para a terceira idade, health clubs e spas; turismo e atividades turísticas; exploração, administração e promoção de empreendimentos turísticos e de alojamento local; administração e gestão de hotéis e todas as atividades conexas com a hotelaria; catering; exploração, administração e promoção de empreendimentos de restauração e comerciais; venda de imóveis e terrenos para construção e revenda dos adquiridos para esse fim; compra, venda, gestão, exploração de administração de bens imóveis e móveis; compra e venda de bens e produtos; restauração, organização de eventos; lavandaria; cabeleireiro; serviços de limpeza; prestação de serviços; importação e exportação.”
O) A questão que se coloca é: Sendo a sociedade Recorrente uma sociedade que explora residências de terceira idade, qual o bem jurídico que deve prevalecer? Pagar o vencimento aos colaboradores para que estes continuem a desempenhar as suas funções, nomeadamente, cuidar dos idosos que se encontram debilitados, ou
P) Não liquidar os vencimentos por forma a ser possível liquidar as cotizações, o que levaria a que os colaboradores deixassem de colaborar com a Recorrente e que levaria a que os idosos que se encontram ao cargo da Recorrente deixassem de ter tratamentos e cuidados?
Q) A resposta parece fácil!
R) Parece-nos que o direito à velhice, saúde, vida e dignidade humana que são asseguradas pelo pagamento dos vencimentos é superior ao dever de pagar impostos.
S) Assim, quando a um sujeito se imponham dois deveres jurídicos de valor, no mínimo, igual - e a cujo cumprimento, simultâneo e pontual, o mesmo se encontra obrigado-, in casu o dever de pagar impostos e o dever de retribuição do trabalho, optando o empregador pelo dever de pagar os salários, assistir-se-á a uma verdadeira neutralização da ilicitude da conduta, por intervenção da causa de exclusão da ilicitude do conflito de deveres, tal como prevista no artigo 36.º do Código Penal.
T) Posto isto, existindo uma causa de exclusão da ilicitude da ação praticada pelos Recorrentes, devem os Recorrentes serem totalmente absolvidos, bem como, ser a douta Sentença de fls… revogada.
Caso assim não se entenda, ainda assim deve considerar-se que:
U) Se a sociedade Recorrente não quisesse cumprir com as suas obrigações não teria procedido à outorga de um plano prestacional junto da Segurança Social, bem como, não estaria a cumprir esse plano de forma escrupulosa.
V) Inexiste a verificação de dolo por parte dos Recorrentes, uma vez que, os Recorrentes não agiram com «intenção de se apropriar», e a consciência da ilicitude, pois não sabiam que a sua atuação «era penalmente censurável».
W) Os Recorrentes não tinham a consciência do dolo e consciência da ilicitude, sendo esses factos concretamente deduzíveis da restante matéria de facto provada.
X) No caso, o dolo consiste na vontade livre e consciente de não entregar as contribuições legalmente devidas, o que não se encontra descrito na matéria de facto. O que se encontra descrito é que a sociedade Recorrida não tem capacidade para proceder ao pagamento daquelas cotizações
Y) Quanto à consciência da ilicitude, para a mesma basta a consciência de que essas contribuições são devidas à Segurança Social. Consciência essa que também não existia, uma vez que, foram celebrados diversos acordo de pagamento com a Segurança Social.
Z) Acordos esses que se encontram a ser integralmente cumpridos.
AA) Em face do exposto, dúvidas não existem que os Recorrentes não praticaram um alegado crime de forma dolosa, quanto muito, cometeram o crime de forma negligente, acontece que, o crime de abuso de confiança contra a segurança social é um crime doloso, o que quer dizer que, se não existe dolo não podem os Recorrentes serem condenados, pelo mesmo.
BB) Motivo pelo qual vimos pelo presente requerer a absolvição dos Recorrentes, bem como, requerer a revogação da Sentença de fls…
CC) No que diz respeito ao pedido de indemnização civil cumpre referir que, no domínio da responsabilidade extracontratual por factos ilícitos são pressupostos, cumulativos, dessa responsabilidade (que impõe ao lesante a obrigação de indemnizar): a existência de um facto voluntário praticado pelo agente lesante, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano. Acontece que, nos presentes autos não se verifica o preenchimento de nenhum dos pressupostos da responsabilidade civil. Senão vejamos:
DD) A douta Sentença de fls… considerou ilícito reter as contribuições devidas à Segurança Social, acontece que, os Recorrentes não retiveram contribuições, na verdade, não tendo a sociedade Recorrida capacidade financeira para proceder ao pagamento das cotizações, e estando a mesma numa situação de conflito de deveres, procedeu ao pagamento dos vencimentos em detrimento das cotizações. Assim, não é verdade que os Recorrentes tenham retido valores, a sociedade Recorrente não tinha valores para reter, a sociedade Recorrente não tinha dinheiro.
EE) Assim sendo, para além de existir um claro conflito de deveres também não existe retenção de valores, uma vez que não existiam valores disponíveis na tesouraria da sociedade Recorrente.
FF)Quanto ao pressuposto da culpa, esclarece-se que a actuação dos Recorrentes foi realizada ao abrigo de um conflito de deveres e onde não existe – como já referido – dolo dos Recorrentes, sendo o crime de abuso de confiança contra a segurança social um crime doloso, e não existindo dolo, não é a conduta merecedora de reprovação e censurabilidade, pelo que, também o pressuposto da culpa não se encontra preenchido.
GG) Quando ao pressuposto do dano, cumpre referir – tal como foi dado como provado na pág. 11 da Sentença de fls… - que existe um acordo de pagamento para as cotizações devidas, bem como, para os juros, o que quer dizer que, no presente momento não existe um qualquer dano, perda ou diminuição ou interesses protegidos pelo direito, nem tãopouco existe um prejuízo patrimonial, uma vez que, o plano prestacional foi aprovado pela Segurança Social.
HH) Quanto ao pressuposto do nexo de causalidade, cumpre referir que a conduta dos Recorrentes não determinou um dano para a Segurança Social, mas mais, mesmo que existisse dano, que não existe, também não era esse dano quantificável, uma vez que, à data de prolação da Sentença de fls… não sabia o Tribunal ad quo qual o real valor em dívida.
II) Qual o valor de capital devido, qual o valor de juros devido?
JJ) Veja-se que no ponto G) dos factos dados como provados é alegado que é devido € 106.311,34, no ponto M) é alegado que a 4 de Abril de 2024 é devido o montante de € 75.208,18 e na pág. 11 da Sentença é dito que está a ser cumprido o plano prestacional.
KK) Daí que se questione, qual o valor devido à data da prolação da Sentença, que teve lugar em 29 de Maio de 2024?
LL) Onde é que está o mapa das cotizações, qual o capital devido e quais os juros? Ninguém sabe, não existe um único documento que faça prova de tais factos.
MM) Esses factos não foram minimamente demonstrados nos presentes Autos, pelo que, inexiste um facto ilícito, culposo, danoso tal como inexiste nexo de causalidade, pelo que, devem os Recorrentes serem totalmente absolvidos do pedido, bem como, ser a Sentença de fls… revogada.»
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O recurso foi admitido com subida imediata, nos autos e efeito suspensivo.
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O Ministério Público respondeu, pugnando pela improcedência do recurso (não apresentando conclusões), pelas seguintes razões (em síntese):
«I - Primus, cumpre referir que, ao arrepio do invocado pelos recorrentes, o Tribunal a quo discriminou, de forma exímia, as cotizações retidas nas remunerações efectivamente pagas, conforme consta do facto provado G) da sentença recorrida.
(…).
Ora, contrariamente ao invocado pelos recorrentes, o Tribunal a quo não incorreu em qualquer omissão de pronúncia por não ter especificado na douta sentença qual o montante em dívida à data da respetiva prolação (ou seja, em 29/05/2024). O Tribunal a quo discriminou, e bem, na sentença recorrida o valor que em sede de audiência de discussão e julgamento se logrou provar encontrar-se em dívida, e o qual se reportava ao dia 04/04/2024.
(…)
Face ao acima explanado, afigura-se-nos que não assiste razão aos recorrentes, falecendo, consequentemente, a sua pretensão de absolvição da prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, considerando que a sentença recorrida não padece de qualquer nulidade, designadamente a prevista no art.º 379.º/1 alínea c) do Código de Processo Penal.
II - Secundus, importa esclarecer que a jurisprudência é já farta no que concerne ao entendimento dominante relativo à invocada causa de exclusão de ilicitude.
(…)
De facto, “Não se verifica conflito de deveres, e de direito ou de estado de necessidade, na circunstância em que o gerente e a entidade empregadora retêm os valos deduzidos a título de contribuição para a Segurança Social, utilizando-os para pagamento de salários e de fornecedores, vale dizer, para manter a empresa em funcionamento” (negrito nosso) – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 12/04/2016, relator Clemente Lima, Processo n.º 1153/12.0TASTR.E1, disponível em www.dgsi.pt.
Mais, “O interesse, público, do Estado em arrecadar as contribuições para a Segurança Social releva sobre o interesse particular, da sociedade arguida, tendo em conta a força com a lei protege os bens jurídicos, critério este relacionado com o princípio ético-social vigente, no sentido da prevalência dos interesses de carácter público” (negrito nosso) – cfr. Ac. supra citado
(…)
Consequentemente, “No confronto entre o dever de entregar à Segurança Social as quantias descontadas nos salários dos trabalhadores da sociedade e o dever de manter esta em actividade, pagando as despesas correntes de funcionamento, mormente os salários, prevalece aquele” (negrito nosso) – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 20/06/2012, relatora Maria Leonor Esteves, Processo n.º 6651/08.8TAVNG.P1, disponível em www.dgsi.pt.
(…)
Do supra exposto flui que, não assiste qualquer razão aos recorrentes, naufragando, por conseguinte, a sua pretensão de absolvição da prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, considerando que, no caso sub judice, inexiste a verificação da invocada causa de exclusão da ilicitude.
III - Tercius, vêm os recorrentes pugnar que não atuaram com “consciência do dolo e da ilicitude, pois não sabiam que a sua atuação era penalmente censurável”.
(…)
Ora, conforme supra aduzido, “a existência de um acordo de pagamento celebrado entre o devedor da prestação contributiva e a Segurança Social (…) não afasta o preenchimento do crime de abuso de abuso de confiança contra a segurança social”, (negrito nosso) – cfr. Ac. supra citado.
Reitera-se que, “A existência de pagamento parcial da dívida contributiva, no âmbito de acordo celebrado naqueles termos, apenas poderá relevar como circunstância atenuante, na determinação da medida concreta da pena a aplicar.” – Ac. supra citado.
Mais, a celebração do sobredito acordo de pagamento ocorreu em momento posterior ao cometimento do ilícito criminal em escrutínio.
De facto, face ao circunstancialismo do caso concreto e recorrendo às mais elementares regras de experiência comum, não se afigura verosímil que o arguido J.R…, aquando da prática dos factos, se encontrava em erro!
Note-se que, o arguido não invocou, em sede de audiência de discussão e julgamento, nenhuma situação de erro sobre a ilicitude (cfr. Art.º 17.º do Código Penal).
Ademais, não foi produzida qualquer prova de que o arguido padecia, ou padece, de qualquer dificuldade de compreensão ou expressão susceptível de se repercutir na percepção da ilicitude da sua conduta.
Ora, as condições pessoais e sócioeconómicas do arguido vertidas nos factos provados nos pontos o) a s) não revelam que este padecia, ou padece, de fraco desenvolvimento cognitivo ou de qualquer outra patologia capaz de inferir na respectiva percepção da ilicitude da sua conduta.
Por outro lado, é inegável o debate frequente e a ampla divulgação pública da temática em torno das contribuições devidas à Segurança Social.
Ora, tais factos obstaculizam, indubitavelmente, à verificação do invocado estado de erro!
(…)
Destarte, o arguido, perante temas que estão muito longe de ser axiologicamente neutros, não pode colocar a consciência da ilicitude e a percepção do valor destas questões atinentes às contribuições devidas à Segurança Social, fora da sua representação mental.
Consequentemente, dúvidas não subsistiram em como o arguido J.R… bem sabia das obrigações que sobre si impendiam – e, bem assim, sobre a sociedade arguida – e, não obstante, optou, de forma voluntária e consciente, por não entregar as quantias retidas e devidas à Segurança Social, dando-lhes, de resto, outro destino que viabilizasse – como viabilizou – a manutenção da actividade desenvolvida pela empresa em causa.
Não existem, assim, dúvidas de que os recorrentes actuaram com culpa e de modo censurável.»
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Neste Tribunal da Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.
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Foi proferido despacho a efetuar o exame preliminar, mantendo o efeito e regime de subida do recurso.
Corridos os vistos, foram os autos à conferência.
Nada obsta à prolação de acórdão.
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II. OBJETO DO RECURSO
Em conformidade com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do S.T.J. de 19/10/1995 (in D.R., série I-A, de 28/12/1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo, das questões de conhecimento oficioso.
Atendendo às conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a apreciar:
1. - Nulidade da sentença (omissão de pronúncia);
2.- Exclusão da ilicitude (conflito de deveres);
3. - Falta de dolo e de consciência da ilicitude; e
4. - Falta dos pressupostos do dever de indemnizar.

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III. FUNDAMENTAÇÃO
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A) A DECISÃO RECORRIDA
A sentença recorrida estabeleceu os seguintes factos provados:
«A) A arguida “S.F…, Lda.” é, atualmente, uma sociedade por quotas, com sede na Avenida A.A…, em Lisboa, registada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa sob o NIPC ???.???.??? e que tem por objeto social a construção, gestão e exploração de unidades de saúde para a terceira idade, de exames, análises e diagnósticos; projeto, construção, gestão e exploração de clínicas e hospitais, centros de dia para a terceira idade, health clubs e spas; turismo e atividades turísticas; exploração, administração e promoção de empreendimentos turísticos e de alojamento local; administração e gestão de hotéis e todas as atividades conexas com a hotelaria; catering; exploração, administração e promoção de empreendimentos de restauração e comerciais; venda de imóveis e terrenos para construção e revenda dos adquiridos para esse fim; compra, venda, gestão, exploração de administração de bens imóveis e móveis; compra e venda de bens e produtos; restauração, organização de eventos; lavandaria; cabeleireiro; serviços de limpeza; prestação de serviços; importação e exportação.
B) O arguido J.R… exerce as funções de gerente de facto da sociedade arguida desde a sua constituição, em Abril de 2015, até à presente data, sendo que assumiu as funções de Administrador Único no dia 1 de Julho de 2016 e de gerente no dia 2 de Outubro de 2017.
C) Como gerentes competia ao arguido J.R…, em exclusivo, a direção da atividade da “S.F…, Lda.”, atuando sempre em nome e no interesse desta concretamente, cabia àquele proceder ao preenchimento mensal das folhas de remuneração e correspondente entrega das mesmas junto da Segurança Social.
D) Competia-lhe, de igual forma, proceder à entrega dos montantes deduzidos das remunerações pagas aos trabalhadores da sociedade arguida, a título de contribuições para a Segurança Social.
E) Porém, em setembro de 2016 o arguido J.R…, em representação da sociedade arguida, decidiu deixar de pagar as quotizações devidas à Segurança Social.
F) Com efeito, no período compreendido entre Setembro de 2016 e Julho de 2019, a sociedade arguida e o arguido J.R… procederam ao desconto das contribuições devidas à Segurança Social pelos trabalhadores, nas remunerações efetivamente pagas, mas não procederam à sua entrega junto da Segurança Social, nos prazos legalmente estipulados, isto é, até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitavam, nem decorridos os 90 dias posteriores.
G) As referidas cotizações retidas nas remunerações efetivamente pagas totalizavam o montante de €106.311,34, assim discriminado:



H) Notificados para proceder ao pagamento das quotizações retidas e respetivos juros de mora, no prazo de 30 dias, nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 105.º, ex vi artigo 107.º, n.º 2, do RGIT, não existiu entrega de qualquer prova de pagamento.
I) J.R… atuou em nome e no interesse da arguida “S.F…, Lda.”, bem como no seu próprio interesse.
J) Ao não entregar à Segurança Social o montante mencionado, integrando-o na esfera patrimonial da sociedade arguida, agiu o arguido J.R… de forma livre e com o propósito concretizado, único e reiterado, de prejudicar a Segurança Social e de assim, obter vantagem patrimonial a que sabia não ter direito, resultado que representou.
K) A sociedade arguida e o arguido J.R… agiram sempre de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que a conduta era proibida e punida por lei.
L) O arguido J.R…. e a sociedade arguida não entregaram as quantias devidas à Segurança Social devido a problemas financeiros da sociedade arguida.
M) A sociedade arguida procedeu ao pagamento parcial da quantia não entregue à Segurança Social ascendendo o montante em dívida, em 04 de Abril de 2024, a €75.208,18.
N) A sociedade arguida encontra-se activa sendo o resultado líquido do exercício do ano de 2023 um lucro de €7.000, tendo pendente um processo especial de revitalização.
O) O arguido J.R… é empresário encontrando-se igualmente reformado, auferindo, a título de pensão de reforma, a quantia mensal de pelo menos €1.800, incidindo sobre a mesma penhora de montante mensal não concretamente apurado.
P) O arguido J.R… é casado com a arguida M.M…, a qual é empresária encontrando-se igualmente reformada, auferindo mensalmente, a título de pensão de reforma a quantia de pelo menos €620.
Q) Os arguidos J.R… e M.M… têm dois filhos, o arguido D… com ?? anos de idade e outro filho com ?? anos de idade, sendo ambos independentes.
R) Os arguidos J.R… e M.M… residem em habitação própria, a qual se encontra paga.
S) O arguido J.R… é licenciado em e…
T) O arguido D… é gerente de duas empresas, sendo remunerado pelas mesmas com quantia mensal não concretamente apurada.
U) O arguido D… é divorciado, vivendo maritalmente com a sua ex-esposa, a qual é funcionária de uma das empresas geridas pelo arguido D…, auferindo, mensalmente, quantia não concretamente apurada.
V) O arguido D… tem dois filhos com ?? e ?? anos de idades, os quais residem com o arguido e com a ex-esposa em habitação emprestada pela avó do arguido, não suportando o casal qualquer quantia a título de residência.
W) O arguido D… é licenciado em e…
X) Os arguidos não têm averbada qualquer condenação aos respetivos certificados do registo criminal.»
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E os seguintes factos não provados:
«1) A arguida M.M… exerce as funções de gerente de facto da sociedade arguida desde a sua constituição, em Abril de 2015, até à presente data.
2) O arguido D… exerce as funções de gerente de facto da sociedade arguida desde a sua constituição, em Abril de 2015, até à presente data.
3) Que os arguidos M.M… e D… tenham atuado conforme descrito em C) a K).»
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B) APRECIAÇÃO DO RECURSO
Conforme acima enunciado, face às conclusões do recorrente, são as seguintes as questões a apreciar:
1. - Nulidade da sentença (omissão de pronúncia);
2.- Exclusão da ilicitude (conflito de deveres);
3. - Falta de dolo e de consciência da ilicitude; e
4. – Falta dos pressupostos do dever de indemnizar.
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1. Da nulidade da sentença (por omissão de pronúncia).
Os recorrentes defendem que a sentença é nula, por omissão de pronúncia, uma vez que devia ter procedido à indicação dos “meses, valores e juros devidos”, bem como “ao valor em dívida em 29 de maio de 2024”.
Vejamos.
Nos termos do art.º 379º, nº 1, al a) do Código de Processo Penal, a sentença é nula quando não contiver as menções referidas no nº 2 do art.º 374º do Código de Processo Penal.
De acordo com esta última norma, “ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de factos e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do julgador”.
É igualmente nula a sentença, “quando o Tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar”, por força do disposto na alínea c) do citado art.º 379º, nº 1.
Importa, assim, na conjugação das citadas normas, apurar quais os factos relativamente aos quais a sentença tem que se pronunciar, dando-os como provados ou não provados.
Em termos de aquisição processual, é pacífico que os factos sobre os quais deve recair o julgamento são tanto os trazidos pela acusação ou pronúncia, pelo pedido de indemnização civil e pela contestação, como os que resultem da discussão da causa.
Todos os referidos conjuntos de factos, nos termos do art.º 358º, nº n.º 2 do Código de Processo Penal, têm de ser “relevantes para as questões de saber:
a) Se se verificam os elementos constitutivos do tipo de crime;
b) Se o arguido cometeu crime ou nele participou;
c) Se o arguido atuou com culpa;
d) Se se verifica alguma causa que exclua a ilicitude ou a culpa;
e) Se se verificaram quaisquer outros pressupostos de que a lei faça depender a punibilidade do agente ou a aplicação a este de uma medida de segurança;
f) Se se verificaram os pressupostos de que depende o arbitramento da indemnização civil”.
De igual modo e com igual âmbito, o art.º 124º do Código de Processo Penal delimita os factos que podem ser objeto de prova em processo penal, ao estabelecer, no seu nº 1, que “constituem objeto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou medida de segurança aplicáveis”, a que acrescem, nos termos do seu nº 2, “os factos relevantes para a determinação da responsabilidade civil”.
Pelas razões expostas, não são, assim, todos os factos constantes das referidas peças processuais ou que resultem da discussão da causa que têm de ser objeto de prova e decisão (como provados ou não provados) na sentença, mas apenas os factos essenciais, sendo estes os relevantes enquanto constitutivos do tipo de crime, do seu cometimento ou participação pelo arguido, da culpa deste, que constituem alguma causa que exclua a ilicitude ou a culpa, que constituam pressupostos de punibilidade do agente, que permitam a escolha e determinação da pena ou a aplicação de medida de segurança e os relativos aos pressupostos de que depende o arbitramento da indemnização civil (neste sentido se pronunciou, entre outros, o Ac. RP de 13/09/2021, relatado por Jorge Langweg e proferido no processo nº 7695/19.0T9PRT.P1).
De fora (do dever de serem elencados nos factos provados ou não provados da sentença) ficam todos os outros factos, designadamente os irrelevantes, supérfluos e acessórios, mas também os próprios meios de prova e os factos instrumentais para a valoração das provas (nomeadamente as razões que possam levar a atribuir maior ou menor credibilidade aos depoimentos, como por exemplo a razão de ciência de determinada testemunha). Estes dois últimos elementos serão considerados na motivação da decisão sobre a matéria de facto, mas não têm, nem devem ser levados aos factos provados ou não provados da sentença.
Neste sentido se pronunciou o Ac. S.T.J. de 11/2/1998 (in B.M.J. nº 474, p 151), nos termos do qual “não existe violação do artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal por nem todos os factos constantes da acusação/pronúncia e da contestação terem sido enumerados como provados ou não provados. Só os factos essenciais para a decisão da causa têm de constar dessa enumeração”.
De igual modo, quanto a quais são os referidos factos essenciais, também o S.T.J. se pronunciou no sentido acima referido, no seu Ac. de 15/01/1997 (in C.J., tomo I, pág. 181), nos termos do qual “a obrigação legal de na sentença se fazer a descrição dos factos provados e não provados refere-se aos que são essenciais à caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes, o que exclui os factos inócuos, irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido, mesmo que descritos na acusação ou na contestação”.
Vertendo ao caso em apreciação, verificamos que a sentença recorrida se pronunciou sobre todos os referidos factos essenciais, não padecendo de qualquer omissão de pronúncia.
Importa não esquecer que os factos imputados aos arguidos e integradores do crime de que vinham acusados, estavam balizados na acusação e assim resultaram provados, conforme consta da alínea F) dos factos provados, como situados no “período compreendido entre Setembro de 2016 e Julho de 2019”, em que a “sociedade arguida e o arguido J.R… procederam ao desconto das contribuições devidas à Segurança Social pelos trabalhadores, nas remunerações efetivamente pagas, mas não procederam à sua entrega junto da Segurança Social, nos prazos legalmente estipulados, isto é, até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitavam, nem decorridos os 90 dias posteriores”.
Era, pois, relativo a tal período temporal que a sentença recorrida deveria discriminar os valores retidos e não entregues à Segurança Social, com referência aos seus montantes e meses a que respeitavam.
E na verdade, da leitura dos factos provados contantes da sentença recorrida, em especial da sua alínea G), resulta, de forma cristalina, que a sentença recorrida assim fez.
Com efeito, e diversamente do que pretendem os recorrentes, a sentença recorrida discriminou, na alínea G) dos factos provados, cada uma das quotizações devidas à Segurança Social e não pagas, o mês (e respetivo ano) a que respeita, as remunerações relativas a cada período temporal, a taxa aplicável, os valores de cada uma das quotização retidas relativas a cada período temporal, o valor relativo às contribuições da entidade patronal, o montante pago relativo a cada um dos períodos em causa, os respetivos valores em dívida, no momento em que o crime em apreciação se consumou, e o regime aplicável.
E concluiu - e bem (em resultado da simples operação aritmética de soma das respetivas parcelas mensais discriminadas nas tabelas constantes da alínea G) dos factos provados) - que relativamente a tal período temporal “as referidas cotizações retidas nas remunerações efetivamente pagas totalizavam o montante de €106.311,34”. Este valor, constitui, não o valor ainda em dívida (na atualidade), mas o valor que foi retido nas remunerações efetivamente pagas aos trabalhadores e, sendo devido, não foi entregue à Segurança Social, no prazo legal, nem nos 90 dias subsequentes, nem ainda no prazo de 30 dias após os arguidos terem sido notificados para pagarem tais montantes, com o que, respetivamente, se consumou o crime e se verificou a condição objetiva de punibilidade.
Facto diverso, que nada tem a ver com o preenchimento dos elementos constitutivos do crime, mas que releva para a determinação da medida concreta da pena (neste sentido: Ac. Relação de Évora, de 12/10/2021, proferido proc. nº 1192/16.2T9STR.E2 e relatado por Fátima Bernardes; acessível em dgsi.pt), e para a fixação do montante da indemnização, é constituído pelos pagamentos parciais dos montantes devidos, efetuados posteriormente à consumação do crime e à verificação da referida condição objetiva de punibilidade.
Também estes foram objeto de pronúncia pela sentença recorrida e levados aos factos provados, na data mais recente em que o podia fazer, que assim considerou provado, na alínea M) dos factos provados que “a sociedade arguida procedeu ao pagamento parcial da quantia não entregue à Segurança Social ascendendo o montante em dívida, em 04 de abril de 2024, a €75.208,18”.
E a data mais recente em que o podia fazer foi a mais próxima do encerramento da discussão da causa.
Como bem refere o Ministério Público, na resposta ao recurso, “contrariamente ao invocado pelos recorrentes, o Tribunal a quo não incorreu em qualquer omissão de pronúncia por não ter especificado na douta sentença qual o montante em dívida à data da respetiva prolação (ou seja, em 29/05/2024).
O Tribunal a quo discriminou, e bem, na sentença recorrida o valor que em sede de audiência de discussão e julgamento se logrou provar encontrar-se em dívida, e o qual se reportava ao dia 04/04/2024.
Não se olvide, pois, que a última sessão de julgamento foi realizada no dia 21/05/2024, tendo a Mm.ª Juiz declarado finda a produção de prova. Pelo que, não poderia o Tribunal a quo fazer constar da sentença recorrida, mormente da factualidade dada como provada, um facto que não foi objeto de apreciação e análise em sede de produção de prova”.
A sentença recorrida não omitiu, pois, pronuncia sobre tais factos essenciais, pelo que não sofre da invocada nulidade, improcedendo, assim, nesta parte, o recurso interposto.
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2. Exclusão da ilicitude, por conflito de deveres;
Invocam os recorrentes que, na impossibilidade, por limitações financeiras, de pagarem simultaneamente os salários aos seus trabalhadores e as contribuições para a Segurança Social, optaram pelo pagamento daqueles em detrimento destas, para que a empresa continuasse a prestar os seus serviços, nomeadamente a idosos.
Entendem que, tendo atuado no quadro de um conflito entre os dois referidos deveres, ao não pagaram as contribuições à Segurança Social, está excluída a ilicitude da sua conduta.
Vejamos.
Nos termos do art.º 36º, nº 1 do Código Penal, “não é ilícito o facto de quem, em caso de conflito no cumprimento de deveres jurídicos ou de ordens legítimas da autoridade, satisfizer dever ou ordem de valor igual ou superior ou do valor ou ordem que sacrificar”.
Para que a conduta seja justificada, para além da verificação de pelo menos dois deveres jurídicos diferentes, cujo cumprimento de um inviabiliza o cumprimento do outro, é também necessário que os deveres sejam de igual valor ou, sendo um de valor superior, ser este cumprido em detrimento do dever de menor valor.
No caso em apreciação estamos efetivamente em presença de dois diferentes deveres. Por um lado, o dever de pagar aos seus trabalhadores e, por outro lado, o dever de pagar as contribuições devidas à Segurança Social.
O cumprimento simultâneo dos dois deveres era incompatível, porquanto devido a “problemas financeiros da sociedade arguida” (conforme resultou provado na alínea L) dos factos provados), os arguidos não procederam ao pagamento das quantias devidas à Segurança Social, tendo pago, apenas, os salários dos seus trabalhadores (conforme resulta dos factos constantes das alíneas F) e G) dos factos provados).
Estamos, porém, perante deveres de diferente valor jurídico, já que um visa a realização do interesse público e outro de natureza privada, e um tem tutela penal enquanto o outro não.
A tutela penal do dever de pagar as contribuições à Segurança Social permite-nos concluir que o legislador atribuiu a este dever um valor muito superior ao dever de pagar os salários aos trabalhadores e de, por via destes, a empresa continuar a laborar, porquanto, constituindo a tutela penal uma última ratio na tutela de bens jurídicos, esta é reservada à preservação dos bens jurídicos tidos pelo legislador como os mais valiosos.
Por outro lado, o dever de pagar as contribuições para a Segurança Social visa a concretização do interesse público do Estado em, arrecadando receitas, afetá-las à realização da satisfação das necessidades coletivas. Ao passo que, o dever de pagar os salários aos trabalhadores visa a realização do interesse privado de satisfação dos créditos laborais e de manter a empresa em funcionamento.
Como bem se refere na sentença recorrida, o “bem jurídico tutelado pelo crime em apreço prende-se com o regular funcionamento do sistema contributivo para a Segurança Social (cujo modo de financiamento é singular), e a natureza dos interesses (humanos e sociais) que as receitas àquela afetas visa satisfazer (afiançar a solidariedade social, com particular destaque para os mais desfavorecidos)”, daí que, “a criminalização desta conduta transcende, pois, o carácter meramente patrimonial da prestação social a entregar”.
Tendo os recorrentes, perante conflito de deveres de diferente valor, optado por satisfazer o do menor valor, a ilicitude da sua conduta (omissiva e integradora do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social), não está excluída.
Como bem se refere no Ac. TRE de 12/04/2016 (proferido no processo nº 1153/12.0TASTR.E1, relatado por Clemente de Lima, acessível in dgsi.pt), “não se verifica conflito de deveres, e de direito ou de estado de necessidade, na circunstância em que o gerente e a entidade empregadora retêm os valos deduzidos a título de contribuição para a Segurança Social, utilizando-os para pagamento de salários e de fornecedores, vale dizer, para manter a empresa em funcionamento”.
Na verdade, “o interesse, público, do Estado em arrecadar as contribuições para a Segurança Social releva sobre o interesse particular, da sociedade arguida, tendo em conta a força com a lei protege os bens jurídicos, critério este relacionado com o princípio ético-social vigente, no sentido da prevalência dos interesses de carácter público”. Sendo certo que, “o interesse dos arguidos em pagar os salários aos seus trabalhadores, bem como em pagar aos fornecedores, emerge da satisfação, em primeiro plano, do interesse próprio em assegurar a colaboração daqueles, em suma, o funcionamento do negócio”.
Em igual sentido se pronunciaram, entre muitos outros, o Ac. TRP de 20/06/2021 (proferido no processo nº 6651/08.8TAVNG.P1, relatado por Leonor Furtado), o Ac. TRL de 04/05/2021 (proferido no processo nº 2002/17.9T9LSB.L1-5, relatado por Agostinho Torres) e o Ac TRL de 06/12/2017 (proferido no processo nº 16/14.0TAOER.L1-3 e relatado por Jorge Raposo), todos acessíveis in dgsi.pt e proficientemente citados na resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público.
Não está, assim, a ilicitude da conduta dos arguidos excluída, por não verificação dos requisitos do instituto do conflito de deveres, pelo que improcede, nesta parte, o recurso interposto.
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3. Falta de dolo e de consciência da ilicitude
Entendem os recorrentes que agiram sem dolo e sem consciência da ilicitude, pelo que não lhes pode ser imputado o crime pelo qual foram condenados.
A sentença recorrida deu como provados, a este respeito, os seguintes factos:
I) J.R… atuou em nome e no interesse da arguida “S.F…, Lda.”, bem como no seu próprio interesse.
J) Ao não entregar à Segurança Social o montante mencionado, integrando-o na esfera patrimonial da sociedade arguida, agiu o arguido J.R… de forma livre e com o propósito concretizado, único e reiterado, de prejudicar a Segurança Social e de assim, obter vantagem patrimonial a que sabia não ter direito, resultado que representou.
K) A sociedade arguida e o arguido J.R… agiram sempre de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que a conduta era proibida e punida por lei.
Destes factos provados resulta, de forma indubitável, quer o dolo, quer a consciência da ilicitude dos arguidos.
A decisão da matéria de facto não foi impugnada recursivamente, pelo que se sedimentou.
Por outro lado, a celebração de acordo de pagamento e o seu cumprimento, ainda que parcial, não só não excluiu o dolo e a consciência da ilicitude, pois que estes são contemporâneos da conduta penalmente punível, e aquele acordo e pagamentos parciais são posteriores à consumação do crime, como também não releva para o preenchimento do tipo de crime, mas apenas para a determinação da medida concreta da pena.
Ora, o segmento da medida concreta da pena, por não impugnado recursivamente, está fora do objeto deste recurso e, como tal, do conhecimento deste Tribunal.
É quanto basta para se concluir pela improcedência, aliás manifesta, do recurso, também nesta parte.
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4. Falta dos pressupostos do dever de indemnizar.
Defendem os recorrentes que não devem ser condenados a pagar qualquer valor a título de indemnização cível, uma vez que a sua atuação não foi ilícita nem culposa, inexistindo um facto ilícito, culposo e danoso e inexistindo, também, nexo causal.
Entendem os recorrentes que não há conduta lesiva, uma vez que não foram retidas as quantias devidas à Segurança Social, porque a sociedade arguida nem sequer as tinha, já que pagou os salários aos trabalhadores, tendo ficado sem valores disponíveis na tesouraria.
Para tanto invocam que:
- “A atuação dos Recorrentes foi realizada ao abrigo de um conflito de deveres e onde não existe dolo dos Recorrentes e não existindo dolo, não é a conduta merecedora de reprovação e censurabilidade, pelo que, também o pressuposto da culpa não se encontra preenchido”.
- “Quanto ao pressuposto do dano”, face ao “acordo de pagamento para as cotizações devidas, bem como, para os juros (…) quer dizer que, no presente momento não existe um qualquer dano, perda ou diminuição ou interesses protegidos pelo direito, nem tão-pouco existe um prejuízo patrimonial, uma vez que, o plano prestacional foi aprovado pela Segurança Social”.
- “Quanto ao pressuposto do nexo de causalidade, cumpre referir que a conduta dos Recorrentes não determinou um dano para a Segurança Social, mas mais, mesmo que existisse dano, que não existe, também não era esse dano quantificável, uma vez que, à data de prolação da Sentença (…) não sabia o Tribunal ad quo qual o real valor em dívida”.
Vejamos.
Nos termos do art.º 129º do Código Penal, a indemnização por perdas e danos emergentes de um crime é regulada na lei civil, quantitativamente e nos seus pressupostos. Por conseguinte, são aplicáveis as normas constantes dos arts 483º e segs. do Código Civil.
De acordo com o disposto no art.º 483º, nº 1 do Código Civil, aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos provenientes da violação.
Os pressupostos do dever de indemnizar são: um facto ilícito e culposo do lesante, um dano para o lesado e um nexo de causalidade entre aquele e este (Prof. Antunes Varela, Das Obrigações em geral, 8ª edição, vol. I, pág. 533 e Ac. S.T.J. de 13/2/96, C.J., tomo I, pág. 95).
Face à factualidade provada, não restam dúvidas de que os arguidos/demandados, ao agirem da forma descrita, violaram dolosamente o direito às prestações sociais da Segurança Social, pelo que se constituíram na obrigação de indemnizar os danos sofridos decorrentes dessa violação.
O dever de indemnizar compreende todos os danos patrimoniais (e não patrimoniais) resultantes do evento lesivo (art.º 562º do Código Civil), visando-se, deste modo, e segundo a teoria da diferença, repor o lesado na situação em que se encontraria se não ocorresse o evento lesivo (art.º 562º do Código Civil).
A regra geral, em sede de obrigação de indemnizar, é a reconstituição natural (art.º 566º, nº 1 do Código Civil).
Quando não for possível a reconstituição natural, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor, é a indemnização fixada em dinheiro, e tem como medida, a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo Tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos, nos termos do art.º 566º, nº 2 do Código Civil (cfr. Ac. R.E. de 14/7/83, B.M.J., nº 331, pág. 618). Trata-se da consagração legal da chamada teoria da diferença (A. Varela, ob. cit., vol. I, pág. 920).
Pelas razões acima já expostas, a conduta omissiva dos arguidos, não só é ilícita, como até é crime, é dolosa, culposa e danosa, havendo um nexo de causalidade entre o dano e a respetiva conduta omissiva, tendo o Tribunal determinado, reportado à data mais recente que antecedeu o encerramento da discussão da causa - e bem (conforme acima já vimos) -, o valor concreto ainda em dívida à Segurança Social, consistindo este no montante do dano, sendo neste montante fixado o valor da indemnização.
Acresce que, o argumento de que a arguida não reteve ,por não ter dinheiro, não procede, uma vez que o tinha, só que optou por pagar aos trabalhadores com esse dinheiro, em vez de pagar as contribuições que devia à Segurança Social, como os recorrentes bem refere noutro segmento do seu recurso, onde lhes convinha invocarem o conflito de deveres.
Como bem se refere na sentença recorrida:
No caso dos autos existe um facto voluntário do arguido J.R… e, na medida em que era gerente da sociedade arguida, também desta última, que se traduziu na omissão de entrega à Segurança Social das quantias deduzidas nas remunerações dos trabalhadores relativas às contribuições àquela devidas.
Tal facto é ilícito porquanto o (s) arguido (s) estava (m) obrigado (s) a proceder à retenção, sobre os vencimentos dos trabalhadores, das contribuições devidas para a Segurança Social e à entrega dessas quantias nesta entidade, não as tendo, porém, entregue no prazo legalmente fixado para o efeito.
Esta conduta é também culposa uma vez que a conduta em questão é merecedora de um juízo de reprovação e censurabilidade por parte da nossa ordem jurídica.
O arguido pessoa singular, e por via dele a sociedade arguida, podiam e deviam ter agido de outro modo, evitando a prática da conduta, não o tendo, porém, feito e ainda agindo com dolo direto.
Também se verificou um dano, entendendo-se este como a perda ou diminuição de bens, direitos ou interesses protegidos pelo Direito.
No caso dos autos, o demandante sofreu um prejuízo patrimonial que ascende ao montante peticionado - artigos 562.º e 564.º, do Código Civil.
Existe, finalmente, nexo de causalidade, aplicando-se, nesta sede, a teoria da causalidade adequada entre os factos e o dano - cfr. artigo 563.º do Código Civil. Com efeito, foi a conduta dos arguidos que determinou o dano patrimonial do demandante.
Assim, o demandante tem direito ao pagamento da indemnização pelo valor do seu prejuízo, no montante de €75.208,18 atenta a factualidade demonstrada.
Relativamente aos juros de mora, e uma vez que estamos em face de obrigações de prazo certo, sendo os créditos em questão líquidos (pelo que, nos termos do disposto no artigo 805.º, n.º 2, alínea b), do Código Civil, existe mora independentemente de interpelação), a constituição em mora ocorreu a partir do 20.º dia do mês seguinte àquele a que cada uma das contribuições dizem respeito (já que os 90 dias a que se refere o artigo 105.º, n.º4, alínea a) do Regime Geral das Infracções Tributárias, devem ser considerados como condição de procedibilidade do procedimento criminal), sendo as taxas de juros de mora as legais”.
Nenhuma censura nos merece, assim, a douta sentença recorrida, na parte relativa ao pedido de indemnização civil.
Improcede, pois, também nesta parte, o recurso interposto.
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IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordamos em negar provimento ao recurso, confirmando, na íntegra, a douta sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes, fixando-se em 4 (quatro) UC a taxa de justiça de justiça devida por cada um dos recorrentes.
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Lisboa, 30 de janeiro de 2025.
Os Juízes Desembargadores,
Eduardo Sousa Paiva
Paula Cristina Bizarro
Nuno Matos