Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5958/18.0T8FNC.L1-2
Relator: SOUSA PINTO
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
CADUCIDADE DO CONTRATO
COMUNICABILIDADE AO CÔNJUGE SOBREVIVO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/21/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. A comunicabilidade do arrendamento ao cônjuge que não figura no contrato, prevista no art.º 1068.º do CC, quando reportada a situação em que quer o contrato de arrendamento, quer o casamente com o cônjuge contraente, tenham ocorrido em data anterior a 27-06-2006 (data da entrada em vigor do NRAU), não é admissível, pois que a situação de incomunicabilidade já se encontrava anteriormente estabelecida, não podendo ser alvo agora de alteração, salvo se tivesse existido (e tal não aconteceu) determinação legal expressa nesse sentido.
2. A comunicabilidade apenas poderia verificar-se, na eventualidade, que aqui se não regista, de um dos factos constitutivos - o casamento - ter ocorrido em data posterior à entrada em vigor da NRAU (e no caso daquele obedecer a um dos regime de comunhão de bens ). A não ser assim, como não foi, há que concluir, repete-se, pela inexistência da comunicação do contrato à Ré.
3. Na base desta posição, está a circunstância de se entender (ao contrário do que se considerou na decisão recorrida) que pese embora o art.º 1068.º do CC, disponha directamente sobre o conteúdo da relação jurídica arrendatícia, não o faz “abstraindo dos factos que lhes deram origem”, como vem referido no artigo 12.º, n.º 2, do CC, antes pelo contrário, fá-lo tendo em consideração tais factos.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes desembargadores que integram o presente colectivo do Tribunal da Relação de Lisboa,

I – RELATÓRIO
MS…, MÂ… e AJ… intentaram a presente acção declarativa condenatória contra Man…, peticionando a condenação da Ré a reconhecer que a herança indivisa de MR…, por elas representada, é a legítima proprietária do prédio urbano, situado no Beco …, n.ºs …-C e …-D, no Funchal, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o número …, da freguesia de São Pedro e entregá-lo, livre de pessoas e bens, à referida herança.
Mais peticionaram a condenação da Ré no pagamento de uma indemnização pelos prejuízos que a ocupação que a Ré vem fazendo do prédio tem causado à dita herança.
Para tanto, alegaram ter a sua mãe celebrado contrato de arrendamento incidente sobre parte do referido prédio, com AA… (marido da Ré), tendo este falecido em … de Abril de 2018.
Mais alegaram que, não obstante a Ré ter a qualidade de cônjuge do arrendatário falecido, o contrato de arrendamento não se lhe transmitiu, por força da circunstância de possuir um outro imóvel, no concelho do Funchal, assim se mostrando impossibilitada a transmissão prevista pelo artigo 57º, do Novo Regime do Arrendamento Urbano.
Referiram, igualmente, as Autoras que devidamente interpelada para o efeito, a Ré não deixou o imóvel livre de pessoas e bens, o que lhes vem causando prejuízos, já que não podem usufruir do imóvel na sua plenitude, pretendendo ser dos mesmos ressarcidas.
Regularmente citada para contestar, a Ré apresentou contestação em que impugnou, fundamentadamente, a alegação das Autoras, referindo ser arrendatária do imóvel por força da circunstância de ser cônjuge do arrendatário, razão pela qual entende que a excepção alegada pelas Autoras não se aplica ao seu caso, na medida em que a sua qualidade de arrendatária advém, não de uma transmissão, mas sim de uma comunicabilidade estabelecida por lei.
Mais alegou que, ainda que assim não fosse, sempre a excepção do artigo 57º, do Novo Regime do Arrendamento Urbano se não aplicaria ao seu caso, na medida em que o imóvel de que é proprietária se encontra arrendado a pessoa com mais de 65 anos de idade, revelando-se impossível proceder ao seu despejo e, assim, obter a disponibilidade da habitação para seu uso próprio.
Procedeu-se à realização de audiência de discussão e julgamento.
Proferiu-se sentença, onde, a final, foi decidido julgar a acção totalmente improcedente e, em consequência, absolver a Ré de todos os pedidos contra si deduzidos.
Inconformadas com tal decisão vieram as AA. recorrer da mesma, tendo apresentado as suas alegações, nas quais exibiram as seguintes conclusões:
«A. O presente recurso vem interposto da douta Sentença de 02.07.2019, nos autos n.º 5958/18.0T8FNC, mais precisamente por entendermos que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, quanto à seleção da matéria de facto e quanto à interpretação e aplicação do Direito;
B. Em concreto, as Apelantes impugnam a matéria de facto, pretendendo a reapreciação da prova gravada, com o consequente aditamento de dois novos factos à matéria assente;
C. Finalmente, as Apelantes entendem que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento quanto à interpretação e aplicação do Direito, ao ter considerado que, no presente caso, se verificou uma “concentração” do direito ao arrendamento no casal, mediante a comunicabilidade desse direito a favor da Ré/cônjuge pelo facto de estar casada, no regime da comunhão geral de bens, com o primitivo inquilino, aquando da entrada em vigor da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, que alterou a redação do artigo 1068.º, do Código Civil;
D. Desse modo, incorreu em erro de julgamento quanto à interpretação e aplicação, ao caso concreto, do disposto no artigo 57.º, do Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro e nos artigos 334.º, 1051.º, 1068.º e 1079.º, do Código Civil;
E. Salvo melhor entendimento, as Apelantes entendem que uma melhor interpretação das normas concretamente previstas no artigo 57.º, do NRAU e nos artigos 334.º, 1051.º, 1068.º e 1079.º, do Código Civil, permitiriam concluir pela caducidade do contrato de arrendamento que existiu com AA…, mais a mais quando resulta provado nos autos que a Ré é proprietária de outro imóvel de natureza habitacional situado no mesmo concelho e na mesma freguesia, o qual até está arrendado a terceiros com uma renda mensal equivalente ao dobro (!!) daquela que paga às Apelantes;
Vejamos;
F. No que respeita à matéria de facto, as Apelantes conformam-se e aceitam os factos selecionados pelo Tribunal a quo, pretendendo apenas que sejam aditados os dois novos factos seguintes que, pela sua relevância para a boa decisão da causa, devem ser levados à matéria assente:
- Pelo arrendamento do prédio referido em A., a Ré tem vindo a pagar às Autoras uma renda mensal quantificada no montante de € 152 (cento e cinquenta e dois euros);
- Pelo arrendamento do prédio referido em I., a Ré tem vindo a receber uma renda mensal quantificada no montante de € 300 (trezentos euros);
G. Relativamente ao primeiro facto, as Apelantes entendem que beneficiavam da regra prevista no artigo 574.º, n.º 2, do CPC, tendo esse facto sido alegado no artigo 6.º, da petição inicial, e admitido por acordo, na falta de impugnação;
H. Quanto ao segundo facto, foi o mesmo confessado nos artigos 24.º e 25.º, da Contestação, acrescido dos depoimentos da própria inquilina MC…, e da filha da Ré, AL…, que transcrevemos nas alegações supra;
Por outro lado,
I. Do acervo factual relevado na douta Sentença do Tribunal a quo, resulta provado que o prédio identificado em A., foi dado de arrendamento apenas a AA…, no ano de 1963 e ainda no estado de solteiro; (cfr. facto B.)
J. Mais resulta provado que só mais tarde (em 1964) veio, então, a Ré a contrair casamento com o identificado AA…, acabando, assim, por passar a habitar no imóvel pertencente às Autoras; (cfr. factos C. e D.)
K. À luz da norma imperativa prevista no artigo 1733.º, n.º 1, al. c), do Código Civil, o direito ao arrendamento é um direito estritamente pessoal excluído da comunhão geral de bens, à semelhança do usufruto, uso ou habitação; (Vd. Acórdão de 03.06.2003, do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no processo n.º 03A1462, disponível em www.dgsi.pt);
L. A norma prevista no artigo 1068.º, do Código Civil, que veio instituir o princípio da comunicabilidade conjugal do direito do arrendatário é aplicável apenas aos contratos celebrados na vigência da nova lei (Vd. Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, (i) de 29-05-2012, proferido no processo n.º 1321/11.2YXLSB.L1-1, (ii) de 23-09-2014, proferido no processo n.º 738/11.7YXLSB.L1-1, e (iii) de 19-12-2014, proferido no processo n.º 414/12.36TVLSB.L1, disponíveis em www.dgsi.pt);
M. Isto porque, conforme estabelece o artigo 59.º, do NRAU, as alterações introduzidas pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, aplicam-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, “sem prejuízo do previsto nas normas transitórias”, entre as quais as normas previstas no Capítulo II, relativas aos contratos habitacionais celebrados antes da vigência do RAU, que condicionam o direito à transmissão do arrendamento para o cônjuge sobrevivo nos termos dos artigos 57.º e 58.º do NRAU (ex vi, artigo 28.º, n.º 1, da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro);
N. E estabelece o número 3, do artigo 57.º, do NRAU, que: “O direito à transmissão previsto nos números anteriores não se verifica se, à data da morte do arrendatário, o titular desse direito tiver outra casa, própria ou arrendada, na área dos concelhos de Lisboa ou do Porto e seus limítrofes ou no respetivo concelho quanto ao resto do País.”, tal como acontece no presente caso;
O. Contrariamente à interpretação da Mma. Juiz a quo, entendemos que não se verifica nenhum “vazio legal” quanto ao âmbito temporal de aplicação da norma atualmente prevista no artigo 1068.º, do Código Civil, posto que o legislador foi suficientemente claro no regime transitório introduzido no artigo 57.º, do NRAU, conforme melhor desenvolvido nas alegações acima apresentadas;
P. De resto, estão devidamente salvaguardados os direitos constitucionais de ambas as partes, por um lado o direito à habitação, previsto no artigo 65.º, da Lei Fundamental, e por outro lado o direito à propriedade privada, previsto no artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa;
Q. Pelo que, sendo a Ré proprietária de um outro imóvel afecto a habitação, situado no mesmo concelho e até na mesma freguesia (cfr. Ponto I., de factos provados), o falecimento do primitivo arrendatário determinou a imediata caducidade do contrato de arrendamento;
R. Mas mais; salvo melhor opinião, mal se compreenderia, à luz dos princípios gerais do Direito, que alguém que é proprietário de um outro prédio habitacional situado no mesmo concelho pudesse continuar a habitar em prédio arrendado, com uma renda exígua e contra a vontade do(s) seu(s) proprietário(s), mais a mais no presente caso em que a Ré até consegue fazer negócio de arrendamento do seu próprio prédio, cobrando uma renda predial mensal correspondente ao dobro (!!) do valor da renda que paga às Apelantes pelo uso do respetivo prédio;
S. Razão pela qual, entendemos que o contrato de arrendamento existente entre as aqui Apelantes e AA… cessou definitivamente, por caducidade, nos termos dos artigos 1079.º e 1051.º do Código Civil e da norma especial transitória prevista artigo 57.º, do NRAU, não podendo a norma prevista no artigo 1068.º, do Código Civil, aplicar-se ao caso concreto, por violação do «princípio da especialidade» (artigo 57.º, do NRAU), enquanto princípio geral do direito – «lex specialis derogat legi generali» – igualmente previsto no artigo 7.º, n.º 3, do Código Civil;
T. Finalmente, e a título meramente subsidiário, as Apelantes entendem ainda que nos presentes autos resultaria um manifesto abuso de direito, na justa medida em que a Ré tem vindo a auferir (há cerca de 4 anos) uma renda predial imobiliária pelo arrendamento do apartamento de que é proprietária de valor equivalente ao dobro da renda que paga às Apelantes;
U. É que o exercício potestativo do direito ao arrendamento, mediante a aplicação do artigo 1068.º, do Código Civil, ao caso concreto, excederia – quanto a nós, é claro – os limites impostos pela boa-fé, na medida em que a Ré está dessa forma a comprimir desmesuradamente o direito à propriedade privada das Apelantes, em seu próprio, único e exclusivo benefício, posto que assim consegue continuar a rentabilizar o imóvel de que é proprietária auferindo uma renda predial mensal equivalente ao dobro (!!) daquela que paga às Apelantes;
V. Está, por isso, a exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé e pelo próprio fim social e económico do direito a que se arroga (i.e., o direito à comunicabilidade do arrendamento, conferido pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro), tornando ilegítimo o exercício desse direito, nos termos do artigo 334.º, do Código Civil;
W. Por conseguinte, entendemos que também assim não poderia o Tribunal a quo ter desconsiderado a aplicação da norma prevista no artigo 57.º, do NRAU, lançando mão de uma norma (artigo 1068.º, do Código Civil) cujo direito seria ilegitimamente reclamado pela Ré, no caso concreto;
X. Pelo que, fazendo uma melhor subsunção da factualidade provada e melhor interpretação das normas previstas no artigo 57.º, do NRAU, e nos artigos 334.º, 1051.º, 1068.º e 1079.º, do Código Civil, deve a douta Sentença de que se recorre ser revogada e substituída por outra que declare a caducidade do direito ao arrendamento e ordene a restituição do prédio às ora Apelantes, assim repondo o necessário equilíbrio norteador do Direito e da Justiça!
Termos em que, com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta Sentença recorrida e proferindo-se douta decisão que reconheça a caducidade do direito ao arrendamento e ordene a restituição do prédio às ora Apelantes, tal como oportunamente peticionado nos autos, fazendo-se a acostumada JUSTIÇA!»
A Ré, recorrida, apresentou contra-alegações, onde concluiu da seguinte forma:
«A) As Recorrentes duplicam as alegações e não fazem qualquer apelo ao poder de síntese, pelo que, a duplicação em sede de conclusões, das alegações apresentadas, deverá ter como consequência a não apreciação do recurso.
Sem embargo e por razões de patrocínio, assim não se entendendo, deverão as Recorrentes ser convidadas a aperfeiçoar as suas conclusões, com as legais consequências.
B) As Recorrentes pretendem aditar à matéria de facto provada, o valor da renda paga pela Ré às mesmas, com fundamento neste facto ter sido articulado na Petição Inicial (artigo 6.º) e não ter sido impugnado, aplicando-se o artigo 574.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
No artigo 2.º da Contestação a Ré impugna este artigo e as Autoras não fizeram qualquer prova, documental ou testemunhal, que comprovasse o valor pago a título de renda;
C) As Recorrentes pretendem que seja aditado à matéria assente que a Ré recebe uma renda mensal de €300,00, por este facto ter resultado da prova testemunhal.
Este facto é totalmente irrelevante para a boa decisão da causa, e a sua inclusão em nada alteraria o sentido da sentença final, onde apenas deve constar os facos essenciais
D) Não há qualquer fundamento que justifique uma reapreciação da decisão sobre a matéria de facto e o aditamento de novos factos que em nada alterariam a decisão da causa.
E) Com a redacção do artigo 1068.º do Código Civil, introduzido pela Lei n.º 6/2006, acabaram-se as dúvidas sobre a inclusão ou não do direito de arrendamento como um direito estrictamente pessoal e não comunicável nos termos da al. c) do artigo 1733.º
F) O legislador ao estabelecer imperativamente que este direito se comunicava ao cônjuge do arrendatário, nos casos do regime de bens da comunhão geral ou da comunhão de adquiridos desde que o casamento fosse anterior, excluiu a sua inclusão nos bens incomunicáveis do artigo 1733.º do Código Civil
G) Ao contrário do defendido pelas Recorrentes, este artigo 1068.º do Código Civil aplica-se não só aos contratos celebrados após a entrada em vigor da Lei n.º 6/2006 como também aos contratos celebrados anteriormente mas que ainda continuem em execução.
H) Na verdade, a Lei n.º 6/2006 não estabeleceu nenhuma norma transitória específica sobre este regime da comunicabilidade do artigo 1068.º, mas apenas sobre os casos da transmissão do direito de arrendamento para o cônjuge sobrevivo (artigo 57.º do NRAU).
Este artigo 57.º do NRAU aplica-se exclusivamente aos casos em que não tenha havido comunicabilidade, por as partes não serem casadas ou por o serem em regime de separação de bens ou comunhão de adquiridos após a outorga do arrendamento.
I) Não existindo norma especial, aplica-se ao regime da comunicabilidade a regra geral do artigo 59.º do NRAU e o artigo 12.º do Código Civil que dispõem que a lei nova se aplica aos contratos que ainda estejam em vigor na sua entrada.
J) Tendo a Ré casado em regime da comunhão geral de bens, o direito de arrendatário do seu marido foi-lhe necessariamente comunicado, com a entrada em vigor da Lei n.º 6/2006, passando esta a ser também arrendatária, e concentrou-se em si com a morte deste. Assim, o arrendamento passou de singular para plural, com o artigo 1068.º do Código Civil, e novamente de plural para singular com a morte do primitivo arrendatário (neste sentido acórdão do STJ de 1-03-2018).
K) Inexistiu, assim, qualquer transmissão do contrato de arrendamento para a Recorrida, por força do disposto pelo artigo 57º do Novo Regime do Arrendamento Urbano. Houve antes, sim, uma concentração do direito de arrendamento que a Recorrida já detinha!
L) A argumentação as Recorrentes para justificar a eventual existência de um abuso de direito por parte da Recorrida em ocupar o imóvel onde habita, pelo qual paga uma renda que entendem ser “mísera”, enquanto recebe uma renda mensal por um prédio seu correspondente ao dobro, vai além de uma tentativa de alterar/ampliar o pedido e a causa de pedir do presente litígio: e quase tornam esta ação numa verdadeira ação de despejo.
M) Não existe nenhuma proibição legal, nem nenhum principio jurídico de um arrendatário ser proprietário de outros prédios e os arrendar a preços superiores à renda que paga.
N) A circunstância da morte de AA…, no ano de 2018, não é suscetível de alterar o caráter legal da ocupação que a Recorrida, arrendatária do imóvel, faz do mesmo. Esta continua a ser arrendatária, como já o era antes da morte, com a única diferença que agora é a única inquilina.
O) A convicção do tribunal formou-se com base nas alegações efetuadas pelas Autoras e Ré, respetivamente Recorrentes e Recorrida, nos documentos juntos aos autos, cotejados com o teor do depoimento apresentado pelas testemunhas arroladas e inquiridas, tudo analisado à luz do princípio da livre apreciação da prova, em conformidade com o disposto no artigo 607º, nº 5, do Código de Processo Civil, pelo que resta concluir como na douta sentença, não deve ser dado provimento ao recurso dela interposto e, em consequência confirmar a decisão do Tribunal a quo.
Nestes termos, e nos mais de Direito que V.ª Exas. doutamente suprirão, requer-se que V.ª Exas. se dignem negar provimento ao recurso interposto pelas Recorrentes e, consequentemente, decidir pela manutenção e confirmação da decisão do Tribunal a quo
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Cumpre apreciar e decidir as questões suscitadas pelas apelantes, sendo certo que o objecto dos recursos se acha delimitado pelas conclusões das respectivas alegações.
São as seguintes as questões a apreciar:
1. Questão prévia suscitada pela recorrida – do excesso das conclusões do recurso das recorrentes
2. Da impugnação da matéria de facto – adição de dois novos factos
3. Erro de direito – Inadequada interpretação das normas jurídicas atinentes ao caso
4. Do abuso de direito por parte da Ré/recorrida
III – FUNDAMENTOS
1. De facto
Vejamos de seguida os factos dados por provados e por não provados na sentença.
Factos Provados:
A. O prédio urbano situado no Beco …, no Funchal, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o número …, da freguesia de São Pedro, composto por duas partes autónomas, sendo (i) uma com entrada pelo número de porta “…-D”, situada ao nível do rés-do-chão, e (ii) outra com entrada pelo número de porta “…-C”, situado ao nível do 1.º andar, mostra-se registado, pela Ap. 1272 de 2010/07/08 e por sucessão hereditária, a favor das aqui Autoras MS…, MÂ… e AJ…;
B. No ano de 1963, MR… deu de arrendamento a AA… a parte habitacional do prédio referido em A., com entrada pelo número n.º …-C;
C. A 01 de Fevereiro de 1964, AA… e MAn… celebraram, entre si, casamento católico, sem convenção antenupcial;
D. AA… habitou a parte da casa referida em B. com MAn…, sua mulher e aqui Ré, desde o início do casamento e até à sua morte;
E. Após o falecimento da mãe das Autoras, estas comunicaram o arrendamento referido em B. à Autoridade Tributária, tendo como inquilino AA… e tendo como objecto a parcela correspondente ao 1.º andar do prédio referido em A.;
F. Em 19 de Novembro de 2013, as Autoras enviaram missiva escrita a actualizar o número de identificação bancária para pagamento da renda, endereçada a AA… e à Ré MAn…;
G. AA… faleceu a … de Abril de 2018;
H. Em 23 de Julho de 2018, a Ré comunicou, por escrito, às Autoras o falecimento de AA…;
I. O prédio urbano sito ao Caminho …, no Funchal, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o número …/…, encontra-se registado em nome da Ré MAn…, pela Ap. 22 de 10/05/2001;
J. Por carta datada de 8 de Agosto de 2018, remetida por correio registado com Aviso de Recepção, as Autoras comunicaram à Ré entender não haver direito à transmissão do arrendamento por à data da morte do primitivo arrendatário a Ré ser proprietária de casa própria no respectivo concelho do Funchal;
K. A Ré recebeu a comunicação referida em J. em 10 de Agosto de 2018;
L. Até à presente data a Ré não entregou a chave do imóvel referido em A.;
M. A fracção referida em I. encontra-se habitada por uma cunhada da Ré e tia das Autoras, regressada da Venezuela.
Factos Não Provados:
1. A fracção referida em I. é minúscula e tem fracas condições de habitabilidade;
2. A pessoa referida em M. tem mais de 65 anos.
2. De direito
Apreciemos as questões suscitadas, quer pela recorrida (questão prévia), quer pelas Apelantes.
1. Questão prévia suscitada pela recorrida – do excesso das conclusões do recurso das recorrentes
Entende a recorrida que “A[a]s Recorrentes duplicam as alegações e não fazem qualquer apelo ao poder de síntese, pelo que, a duplicação em sede de conclusões, das alegações apresentadas, deverá ter como consequência a não apreciação do recurso.
Sem embargo e por razões de patrocínio, assim não se entendendo, deverão as Recorrentes ser convidadas a aperfeiçoar as suas conclusões, com as legais consequências.”
Refere o art.º 639.º do CPC:
«1 - O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2 - Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar: 
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas; 
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada. 
3 - Quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o número anterior, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada.
(…).»
Vejamos.
No caso e apreço, a recorrente apresenta 24 conclusões.
O artigo 639.º, n.º 1 do CPC, impõe que as conclusões devam representar uma síntese do que se alegou, delimitativa dos fundamentos por que se pretende ver alterada a decisão recorrida, sendo certo, porém, que não estabelece um “numerus clausus” das conclusões.
Relevante torna-se sim que as conclusões não surjam como deficientes, obscuras ou complexas, pois que serão essas as razões que poderão levar a que se convide o recorrente a aperfeiçoá-las e, no limite, caso o convite não seja respeitado, venha o recurso a não ser conhecido na parte afectada.
Refere o Conselheiro Abrantes Geraldes[1], na caracterização desses distintivos:
«As conclusões são deficientes designadamente quando não retratem todas as questões sugeridas pela motivação (insuficiência), quando revelem incompatibilidade com o teor da motivação (contradição), quando não encontrem apoio na motivação, surgindo desgarradas (excessivas), quando não correspondam a proposições logicamente adequadas às premissas (incongruentes), ou quando surjam amalgamadas, sem a necessária discriminação, questões ligadas à matéria de facto e questões de direito (…) Obscuras serão as conclusões formuladas de tal modo que se revelem ininteligíveis, de difícil inteligibilidade ou que razoavelmente não permitam ao recorrido ou ao tribunal percepcionar o trilho seguido pelo recorrente para atingir o resultado que proclama (…) As conclusões serão complexas quando não cumpram as exigências de sintetização a que se refere o nº 1 (prolixidade) ou quando, a par das verdadeiras questões que interferem na decisão do caso, surjam outras sem qualquer interesse (inocuidade) ou que constituem mera repetição de argumentos anteriormente apresentados. Complexidade que também poderá decorrer do facto de se transferirem para o segmento que deve integrar as conclusões, argumentos, referências doutrinais ou jurisprudenciais propícias ao segmento da motivação.»[2]
Ora, na situação em apreço, pese embora se reconheça que o número das conclusões pudesse ser um pouco menor (mais sintetizadas), o que é facto é que as mesmas se revelam claras, retratando todas as questões que as recorrentes pretendem sejam abordadas, não se apresentando confusas nem inócuas, permitindo apreender as questões de facto e de direito que as recorrentes pretendem suscitar, não se nos afigurando exorbitantes. Tenha-se presente que o recurso abarca também a impugnação da matéria de facto, o que desde logo impõe que no cumprimento do disposto no art.º 640.º do CPC, sejam vertidas nas conclusões elementos essenciais para que esse possa ser apreciado.
Pelo que se deixa dito concluímos serem de aceitar as conclusões apresentadas, não se justificando o convite ao aperfeiçoamento, como sustentado pela recorrida.
2. Da impugnação da matéria de facto – adição de dois novos factos
As apelantes entendem deverem ser aditados aos factos que foram dados como provados os seguintes dois:
a) Pelo arrendamento do prédio referido em “A” a Ré tem vindo a pagar às AA. uma renda mensal quantificada no montante de 152,00€.
b) Pelo arrendamento do prédio referido em “I” a Ré tem vindo a receber uma renda mensal quantificada no montante de 300,00€.
Para sustentarem a sua pretensão quanto ao facto indicado em a), referem as recorrentes:
«Este facto foi alegado no artigo 6.º, da petição inicial, não tendo sido impugnado nem feita qualquer contra-prova por parte da Ré;
Dispõe o artigo 574.º, n.º 2, do CPC, que: “Consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito”.
Acresce que este mesmo facto se encontra provado pelo DOC. 3, junto à petição inicial, o qual não mereceu qualquer impugnação.»
No que concerne ao facto pretendido, indicado sob b), referem:
«Quanto ao segundo facto, foi o mesmo confessado nos artigos 24.º e 25.º, da Contestação, acrescido dos depoimentos da própria inquilina MC…, e da filha da Ré, AL…, que transcrevemos nas alegações supra.»
Como é referido, e bem, na sentença «… o ónus estabelecido no nº 4 do artigo 607º, do Código de Processo Civil - no sentido de que “na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados” - apenas respeita aos factos (provados ou não provados) que sejam relevantes para a decisão da causa, que não a todos e quaisquer factos que, independentemente da sua relevância, tenham sido alegados pelas partes. – Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 10/08/2015, com o n.º de processo 1136/14.6TBEVR.E1, disponível in www.dgsi.pt.»
Vejamos então o facto indicado sob a).
Concordamos com as recorrentes no sentido de que tal facto deveria figurar no âmbito da factualidade dada como provada.
Efectivamente esse facto foi alegado pelas AA., sendo que a Ré na sua contestação, pese embora o tenha impugnado genericamente (vejam-se os artgs. 1.º e 2.º da contestação), não o fez especificamente, sendo certo que se tratava de facto que não poderia deixar de o conhecer, até porque na sua versão as rendas seriam também pagas por si.
Desta forma, conjugando essa realidade, com o que resulta expresso do doc. n.º 3 apresentado com a petição inicial, que não foi impugnado, há que concluir que o mesmo deverá ser aditado à matéria de facto, embora com a redacção com que foi alegado na indicada petição inicial que é algo diverso do que é agora referido pelas Apelantes.
Assim, aditar-se-á à matéria de facto o seguinte facto, que passará a constituir o facto “N.”:
As Autoras têm vindo a receber uma renda mensal no valor de EUR 152,00 (cento e cinquenta e dois euros), que lhes era paga pelo identificado inquilino [AA…], pelo arrendamento do referido imóvel.”
Vejamos agora a questão inerente ao facto pretendido aditar indicado sob b) - «Pelo arrendamento do prédio referido em “I” a Ré tem vindo a receber uma renda mensal quantificada no montante de 300,00€».
As apelantes sustentam a sua pretensão baseadas na circunstância de tal facto ter sido “confessado nos artigos 24.º e 25.º, da Contestação, acrescido dos depoimentos da própria inquilina MC…, e da filha da Ré, AL…, que transcrevemos nas alegações supra”.
Os indicados artgs. 24.º e 25.º da contestação referem:
«24.º - Depois da sua morte o apartamento foi arrendado para habitação de uma cunhada da Ré e tia das Autoras regressada da Venezuela, face à crise com que esse País se debate.
25.º - O apartamento é muito reduzido na sua dimensão e está hoje arrendado a servir de acolhimento a uma pessoa regressada da Venezuela, com mais de sessenta e cinco anos.»
Ora, como se pode ver, a factualidade avançada não revela a alegação do valor da renda referente a este arrendamento, sendo certo que nos termos do disposto nos artgs. 552.º, n.º 1, al. d) e 572.º, al. c) do CPC compete às partes a alegação dos factos (sejam eles essenciais, instrumentais ou complementares) integrantes da causa de pedir e das matérias com relevo no seio da acção, sendo certo que, no caso, tal não foi feito, não foi cumprido esse ónus.
Daqui resulta não ser de aditar o facto ínsito na apontada al. b), pois que o mesmo não foi alegado.
Procede assim, em parte, a questão atinente à impugnação da matéria de facto, havendo que aditar o indicado ponto “N” à factualidade dada como provada.    
3. Erro de direito – Inadequada interpretação das normas jurídicas atinentes ao caso
Na sentença entendeu-se que o que se impunha apreciar era «(…) saber se efectivamente ocorreu uma concentração do arrendamento na aqui Ré (por este se lhe ter transmitido por força do artigo 1068º, do Código Civil) ou se, pelo contrário, face à data da celebração do contrato de arrendamento, tal normativo se não aplica à aqui Ré, sendo que o único mecanismo que lhe permitiria manter-se como arrendatária seria o previsto pelo artigo 57º, da Lei 6/2006, na sua redacção em vigor à data da morte do arrendatário primitivo).»
A Exma. Juíza, na apreciação de tal matéria entendeu que, no caso, não houve lugar a qualquer transmissão do arrendamento do inicial arrendatário para a Ré, por via da morte daquele, dado que se considerou ter havido a comunicabilidade do arrendamento do inicial arrendatário para a sua esposa em momento anterior ao decesso daquele, mais propriamente com a entrada em vigor da Lei n.º 6/2006 de 27/02 - NRAU - (28-06-2006), pelo que então se terá registado a passagem da situação de arrendatário singular para plural, retomando-se a situação de arrendatário singular (na pessoa da Ré) com a morte do co-arrendatário seu defunto marido.
Por via de tal construção jurídica, entendeu-se então, que não haveria lugar à aplicação dos normativos inerentes à transmissão do arrendamento, pois que sendo a Ré já arrendatária, não se poderia transmitir um direito que já era seu.
As AA., nas suas alegações, perfilham entendimento diverso, designadamente no que concerne à possibilidade de comunicabilidade do contrato de arrendamento em causa e, assim, abordam de novo a questão da transmissão, defendendo que esta não se poderia registar atento o disposto, designadamente, no n.º 3 do art.º 57.º do NRAU.
Comecemos então por apreciar se, no caso, se terá registado a comunicabilidade do arrendamento, com a entrada em vigor do NRAU.
Esta questão, sobre a comunicabilidade do arrendamento entre cônjuges, tem sido alvo de discussão e de entendimentos distintos, sendo que na esteira do que foi defendido na sentença, poderemos encontrar em sede jurisprudencial o acórdão do STJ de 01-03-2018[3] e doutrinariamente, Rita Lobo Xavier[4] e Maria Olinda Garcia[5] (que, aliás, são expressamente citadas naquele acórdão).
Em tal acórdão[6], desenvolveu-se o seguinte raciocínio:
«A Lei nº 6/2006, de 27/2, com as alterações introduzidas pela Lei nº 31/2012, de 14/8, aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) e introduziu normas aplicáveis a arrendamentos anteriores.
No seu art. 59º, definindo o regime de aplicação deste diploma no tempo, consignou-se a aplicação do NRAU – Título I do diploma, com a epígrafe “Novo Regime do Arrendamento Urbano” – aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor e às relações contratuais constituídas que subsistissem nessa data, sem prejuízo do estabelecido nas normas transitórias.
As normas transitórias, por sua vez, constam do seu Título II, estando divididas em dois capítulos – o Capítulo I, destinado aos “Contratos habitacionais celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano e contratos não habitacionais celebrados depois do Decreto-Lei nº 257/95, de 30 de Setembro”, e o Capítulo II, destinado aos “Contratos habitacionais celebrados antes da vigência do Regime do Arrendamento Urbano e contratos não habitacionais celebrados antes do Decreto-Lei nº 257/95, de 30 de Setembro”.
(…).
No campo das ditas normas transitórias, importa considerar as constantes da Secção I – “Disposições gerais”, arts. 27º a 29º –, as da Secção II – “Arrendamento para habitação”, arts. 30º a 49º – e as da Secção IV, comum a arrendamentos habitacionais e não habitacionais – “Transmissão”, arts. 57º e 58º.
Nenhuma, de entre este conjunto de normas, rege especificamente a questão da comunicabilidade do direito ao arrendamento ou exclui a aplicação do art. 1068º do CC.
Por isso, impõe-se, em princípio, concluir pela aplicabilidade desta norma aos contratos coevos do aqui contemplado e ponderar a sua aplicação ao caso dos autos, questão que, embora sem ter sido suscitada pelas partes, foi resolvida pela afirmativa no acórdão sob recurso, em termos e com efeitos determinantes para a solução adotada que inverteu o sentido do julgamento da acção feito pela 1ª instância.
(…).»
E, um pouco mais adiante, depois de fazer uma incursão sobre a tradição jurídica quanto a esta matéria (…) contrária ao regime actualmente consagrado neste art. 1068º, pode ainda ler-se em tal acórdão:
«(…).
A reviravolta desta orientação legislativa ocorreu em 2006, com a publicação da Lei nº 6/2006, que aditou ao Código Civil[7] o art. 1068º[8], instituindo a regra da comunicabilidade para todos os arrendamentos  de prédios urbanos, dada a sua inserção nas disposições gerais e comuns[9], e que ainda assim se mantém, já que não foi alterado pela reforma operada pela Lei nº 31/2012, de 14.08.
Já acima fizemos menção ao art. 59º do NRAU que estatui a aplicação deste Regime, não só aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, mas também às relações contratuais já constituídas que nesse momento subsistissem.
Deste comando resulta, pois, a nosso ver – e como acima adiantámos já -, a aplicação do art. 1068º a contratos anteriores, e não apenas aos constituídos após a sua entrada em vigor[10]/[11].
Todavia, para tal será, nomeadamente, necessário que exista um casamento actual do arrendatário, pois se não concebe que, de outra maneira, este possa comunicar ao cônjuge o seu direito ao arrendamento.
Note-se que não se trata de uma aplicação retroativa, antes sendo uma aplicação imediata da lei nos termos previstos no art. 12º, nº 1 e 2, 2ª parte do CC, pressupondo a vigência da relação jurídica em causa.
Aliás, como bem salienta Rita Lobo Xavier[12], “A aplicação da lei nova aos contratos de arrendamento já em curso está em conformidade com o princípio formulado no art. 12º, nº 2. Na verdade, as disposições do NRAU constituem manifestamente normas que versam o conteúdo das relações jurídicas, abstraindo do facto que lhe deu origem e, por isso, na falta de disposição em contrário, sempre se aplicariam aos contratos de arrendamento já existentes.”
Ou no dizer claro de Maria Olinda Garcia[13], “(…) a aplicação do art. 1068º não introduz efeitos retroativos na relação de arrendamento, pois todos os efeitos inerentes à qualidade de arrendatário singular produzidos antes da entrada em vigor desta norma não são alteráveis.”
(…)
 Pese embora se compreenda o raciocínio desenvolvido, a interpretação que fazemos sobre a questão da aplicação da lei (NRAU) no tempo, aos casos, como o presente, em que quer o contrato de arrendamento, quer o casamento, ocorreram em datas anteriores à data da entrada em vigor da NRAU, é diferente da sustentada no indicado acórdão e na sentença recorrida.
Vejamos.     
Efectivamente o art. 59º, define o regime de aplicação da NRAU no tempo, referindo que o mesmo se aplicará aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor e às relações contratuais constituídas que subsistissem nessa data, sem prejuízo do estabelecido nas normas transitórias. 
As normas transitórias, no que ao caso importa – contrato de arrendamento para fins habitacionais celebrados antes da vigência do RAU – encontram-se no Capítulo II do diploma, sendo de considerar as constantes dos arts. 27º a 29º (Secção I – “Disposições gerais”), 30.º a 49.º (Secção II – “Arrendamento para habitação”) e 57.º e 58.º (Secção IV, – “Transmissão”).
No que concerne à questão do comunicabilidade, há que ter presente que o contrato de arrendamento foi celebrado no ano de 1963, tendo como contratante arrendatário unicamente AA…, o qual veio a contrair matrimónio com a Ré, sob o regime de comunhão de bens, em 01-02-1964, sendo que ambos viveram no arrendado até ao decesso daquele, ocorrido em 12-04-2018. 
À data da celebração do contrato de arrendamento e do indicado casamento, a lei consagrava o princípio da incomunicabilidade do direito ao arrendamento para habitação ao cônjuge do arrendatário, atento o que então dispunha o art.º 1110.º, n.º 1 do CC.
Tal princípio foi mantido até à entrada em vigor do NRAU (28-06-2006)[14].
Esta Lei, trouxe efectivamente a “novidade” da comunicabilidade do arrendamento aos cônjuges não arrendatários, ao consagrar no art.º 1068.º do CC a seguinte estatuição: “O direito do arrendatário comunica-se ao seu cônjuge, nos termos gerais e de acordo com o regime de bens vigente.”
Mas como inserir essa norma em sede de aplicação de lei no tempo?
É sabido que o art.º 12.º do CC rege os princípios gerais sobre a aplicação da lei no tempo, consagrado no seu n.º 1, que «A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.»
Sendo que no seu n.º 2 estipula que «Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.»
Ora, no âmbito do NRAU, o legislador consagrou norma expressa sobre a aplicação da lei no tempo – o já referido art.º 59.º - sendo que o seu n.º 1, ao referir que o NRAU se aplica também aos contratos de arrendamento cujas relações contratuais constituídas subsistam à data da entrada em vigor do diploma, não contraria nem diverge das regras de aplicação da lei no tempo consagradas no art.º 12.º do Código Civil.
Na realidade, como é referido no acórdão desta Relação de Lisboa de 23-03-2017[15] em que foi relator o Exmo. Senhor Juiz Desembargador Jorge Leal, 2.º adjunto deste nosso acórdão:
«(…).
Explicitando o teor do n.º 1 [do art.º 59.º do NRAU], o n.º 2 do art.º 12.º vem como que definir o que são e o que não são factos passados e efeitos dos factos passados, sendo certo que aos factos passados e aos efeitos dos factos passados aplica-se a lei antiga (J. Baptista Machado, “Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil”, Livraria Almedina, 1968, pág. 354). Esse número estipula que “quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem[16], entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.”
Assim, no n.º 2 do art.º 12.º distinguem-se, “dum lado, as normas relativas à validade de quaisquer factos ou aos efeitos de quaisquer factos (entendendo por efeitos não só os efeitos imediatos sob todos os aspectos, mas ainda o conteúdo duma situação jurídica duradoira que seja definido ou intrinsecamente modelado em função dos respectivos factos constitutivos), do outro lado, as normas que dispõem directamente sobre o conteúdo das situações jurídicas abstraindo dos factos que lhes deram origem[17].” (Baptista Machado, obra citada, pág. 354).
A solução contrária à adotada na primeira instância e aceite pelas partes implicaria atribuir um novo e diferente efeito jurídico a factos ocorridos antes da vigência do novo regime legal (celebração do contrato de arrendamento e, antes dele, celebração de casamento), aos quais já havia sido, à luz da lei em vigor à data da sua ocorrência, determinado o efeito correspondente (incomunicabilidade do direito ao arrendamento ao cônjuge do arrendatário)[18]. O legislador, no art.º 59.º n.º 1 da Lei n.º 6/2006, não diverge das regras de aplicação da lei no tempo consagradas no art.º 12.º do Código Civil.
Repete-se, nos termos do n.º 1 do art.º 12.º do Código Civil, a lei nova só dispõe para o futuro e, ainda que lhe seja atribuída eficácia retroativa, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular[19].
Assim, à data do facto a regular, ou seja, à data da celebração do contrato de arrendamento, em que vigorava também o contrato de casamento celebrado entre o arrendatário e o respetivo cônjuge, fixou-se, à luz da lei então vigente, a adstrição da situação jurídica de arrendatário exclusivamente à esfera jurídica do cônjuge que interveio na celebração do contrato, com exclusão do seu cônjuge.
Tal regra não é afastada, salvo disposição em contrário, pela que se contém na segunda parte do n.º 2 do art.º 12.º do Código Civil: a aplicabilidade da lei nova às relações jurícas já constituídas não afetará os efeitos jurídicos já produzidos pelos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor.
(…).»
Entendemos, efectivamente, que a comunicabilidade do arrendamento ao cônjuge que não figura no contrato, prevista no art.º 1068.º do CC, quando reportada a situação em que quer o contrato de arrendamento, quer o casamente com o cônjuge contraente, tenham ocorrido em data anterior a 27-06-2006 (data da entrada em vigor do NRAU), não é admissível, pois que a situação de incomunicabilidade já se encontrava anteriormente estabelecida, não podendo ser alvo agora de alteração, salvo se tivesse existido (e tal não aconteceu) determinação legal expressa nesse sentido.
A comunicabilidade apenas poderia verificar-se, na eventualidade, que aqui se não regista, de um dos factos constitutivos - o casamento - ter ocorrido em data posterior à entrada em vigor da NRAU (e no caso daquele obedecer a um dos regime de comunhão de bens[20]). A não ser assim, como não foi, há que concluir, repete-se, pela inexistência da comunicação do contrato à Ré.
Na realidade, na base desta nossa posição está a circunstância de se entender (ao contrário do que se considerou na decisão recorrida) que pese embora o art.º 1068.º do CC, disponha directamente sobre o conteúdo da relação jurídica arrendatícia, não o faz “abstraindo dos factos que lhes deram origem”, como vem referido no artigo 12.º, n.º 2, do CC, antes pelo contrário, fá-lo tendo em consideração tais factos.
No sentido que aqui se deixa expresso, decidiram também os acórdãos, já citados, da Relação de Lisboa de 23-03-2017 e da Relação de Coimbra de 09-04-2013, e ainda o da Relação de Lisboa de 10-10-2019 (P.º 381/16.4YLPRT.L1-2, em que foi relator o Exmo. Juiz Desembargador Carlos Castelo Branco), bem como, doutrinariamente, Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e Caldeira Jorge in “Arrendamento Urbano”, Quid Juris, 3.ª edição, Almedina, páginas 300 e 301.
Ora, inexistindo tal comunicação do arrendado, restará agora ajuizar se terá havido a invocada transmissão.
A este propósito, teremos de ter presente que face à alegação das AA., ora recorrentes, de que o contrato de arrendamento não se transmitiu à Ré, na qualidade de cônjuge do arrendatário falecido, dada a circunstância de possuir um outro imóvel no concelho do Funchal, referiu a mesma que a excepção do artigo 57º, do NRAU se não aplicaria ao seu caso, na medida em que o imóvel de que é proprietária se encontra arrendado a pessoa com mais de 65 anos de idade, revelando-se impossível proceder ao seu despejo e, assim, obter a disponibilidade da habitação para seu uso próprio, e, por outro lado que sendo ela própria pessoa com mais de 65 anos não poderia haver lugar à sua saída do arrendado.
No caso em apreço, uma vez que nos encontramos face a um arrendamento anterior à vigência do RAU, por via do que estipulam os artgs. 27.º, 28.º e 26.º, n.º 2 do NRAU é aplicável o disposto no art.º 57.º deste diploma e não o art.º 1051.º do CC (que será aplicável aos arrendamentos celebrados após a vigência do NRAU).
O art.º 57.º, n.º 1, al. a) do NRAU estipula que “O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva:
a) Cônjuge com residência no locado;
(…).
Certo é, porém, que o n.º 3 desse mesmo preceito refere que “O direito à transmissão previsto nos números anteriores não se verifica se, à data da morte do arrendatário, o titular desse direito tiver outra casa, própria ou arrendada, na área dos concelhos de Lisboa ou do Porto e seus limítrofes ou no respetivo concelho quanto ao resto do País.
Ora, tendo presente a matéria dada como provada, verificamos que a possível transmissão do arrendamento prevista na apontada al. a) do n.º 1 do art.º 57.º, no caso, não poderá operar, posto que ficou comprovado que a Ré, à data da morte do arrendatário detinha casa própria no concelho onde se encontra situado o imóvel que habita (vide factos I., J.), havendo assim que aplicar a excepção consignada no n.º 3 do preceito.
Sucede que a Ré, ora recorrida, sustentou então a inaplicabilidade de tal excepção, com fundamento no facto do seu imóvel se encontrar arrendado a pessoa com mais de 65 anos, o que tornava impossível o despejo do mesmo. Ora, dos autos não resulta provada a idade da Ré, razão pela qual se torna absolutamente inútil, a discussão sobre a aplicabilidade dessa excepção.
O mesmo se diga quanto à que menciona relativamente à arrendatária do seu imóvel (a que se refere ao ponto “I.” dos factos dados como provados), pois que, nesse caso, resultou não provado que a mesma tivesse mais de 65 anos (vide facto não provado 2.).   
Vale isto por dizer que, na situação em apreço, há que considerar, por força do já apontado art.º 57.º, n.º 1, al. a) e n.º 3 do NRAU (na redacção aplicável à data do decesso do primitivo arrendatário – introduzida pela Lei n.º 79/2014, de 19 de Dezembro – com início de vigência a 18 de Janeiro de 2015), que não se registou a transmissão do arrendamento para a aqui Ré, dado a mesma, à data da morte do arrendatário deter casa própria no concelho onde se encontra situado o imóvel que habita (vide factos I., J.).
A ser assim, como é, há que concluir que, efectivamente, o arrendamento a que se referem estes autos caducou com a morte de AA…, ocorrida em 12 de Abril de 2018. Com efeito, é nessa altura, de acordo com a lei aplicável ao contrato, que opera a caducidade do mesmo, já que esta não carece de reconhecimento judicial para produzir os seus efeitos[21]. Na realidade, a caducidade constitui causa legal de extinção imediata do contrato de arrendamento e opera “ipso jure” ou “ope legis”, levando à extinção do contrato de arrendamento sem necessidade de qualquer declaração das partes ou do tribunal nesse sentido.
Perante este cenário haverá que ajuizar das suas consequências perante a acção que foi deduzida pelas AA..
Deparamo-nos perante uma acção de reivindicação, em que as proprietárias do imóvel (as AA.) exigem que a Ré reconheça o direito de propriedade daquelas sobre o prédio e lho restituam, dado não ter esta título que legitime a sua ocupação (vide art.º 1311.º do CC).  
Perante o que vem de expor, mostra-se evidente a obrigação impendente sobre a Ré de, por um lado, reconhecer o direito de propriedade sobre o prédio e, por outro, entregá-lo às AA. livre e desocupado.
Sucede, porém, que as AA./recorrentes formularam também pedido de indemnização decorrente da ocupação abusiva do imóvel após o falecimento do arrendatário.
Com efeito, a este propósito, na petição inicial é formulado o seguinte pedido:
Ser a Ré condenada «No pagamento de uma indemnização a favor da mesma herança, pelos prejuízos que lhe vem causando com a ocupação ilegal e ilegítima do prédio objeto desta ação, designadamente, pelo atraso na comunicação prevista no artigo 1107.º do Código Civil, em valor a fixar pelo tribunal com recurso à equidade ou, a título subsidiário, a relegar para execução de sentença
No que concerne a este pedido, acompanharemos muito de perto o recente ac. da Relação de Lisboa de 02-07-2019[22], transcrevendo as partes que reputamos mais significativas:
«(…).
Dispõe o artigo 1045.º do Código Civil, nos seus números 1 e 2, que se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado, excepto se houver fundamento para consignar em depósito a coisa devida; acresce que logo que se constitua em mora, a indemnização é elevada ao dobro.
Todavia, a restituição da coisa locada findo o contrato constitui uma obrigação do locatário, como decorre do artigo 1038.º, alínea i) do Código Civil - o que é uma consequência da natureza temporária da locação (artigo 1022.º do mesmo Código). A previsão do artigo 1045.º está em correlação com aquela disposição legal, ali se prevendo a indemnização devida pelo locatário se a coisa locada não for restituída logo que finde o contrato - essa indemnização é a devida pelo locatário, por aquele que tinha a obrigação de restituir a coisa findo o contrato.
Ora, no caso que nos ocupa, embora o contrato haja cessado (por caducidade, como vimos), o Réu não é (ou foi) locatário do imóvel.
Não estamos, pois, no âmbito da previsão do artigo 1045.º do Código Civil, nem mesmo por interpretação extensiva a situação dos autos sendo a tal reconduzível.
Como entendido no Acórdão do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA, de 1 de Junho de 2004 (disponível em www.dgsi.pt), “concebendo-se nesse dispositivo legal um caso de indemnização de natureza claramente contratual, o mesmo só poderá ter aplicação quando esteja em causa a falta de restituição da coisa locada, por quem no respectivo contrato, já findo, tinha a posição de locatário, a quem nesse mesmo contrato assumia a posição de locador.
Estando assente no princípio do sinalagma e no equilíbrio das prestações convencionadas, este mesmo dispositivo legal assegura que a manutenção entre as partes de uma situação idêntica à convencionada, continue a proporcionar ao locador, enquanto o objecto do arrendamento lhe não for restituído, aquilo que pelo contrato, já findo, lhe seria devido.
E, pela mesma razão, está excluída a possibilidade da sua aplicação analógica, dada a inexistência de qualquer acordo celebrado com o ocupante ilegítimo”.
(…).
 Efectivamente, a razão de ser da norma do artigo 1045.* é a de que o convencionado no contrato terminado continuaria a ser uma referência, baseando-se no pressuposto de que a renda, resultando da auto-regulação das partes, representaria o justo valor do lucro cessante derivado da indisponibilidade da coisa locada.
No caso dos autos, todavia, estamos à margem daquele campo, tendo a responsabilidade do Réu para com o Autor natureza extracontratual.
Pelo que, nada obstaria a que o mesmo fosse condenado no pagamento de uma indemnização pelo atraso na restituição do imóvel com base nas disposições referentes à responsabilidade civil extracontratual, não sendo aplicáveis os valores fixados no artigo 1045.º do Código Civil.
De qualquer modo, atento o preceituado no artigo 1053.º do Código Civil a restituição do prédio só poderia ser exigida passados seis meses sobre o facto que determinara a caducidade, ou seja logo que se completaram seis meses sobre o óbito da arrendatária.
A partir daí, não tendo a fracção sido restituída, é necessário analisar se se encontram reunidos os pressupostos que determinam a obrigação de indemnizar fundada em responsabilidade extracontratual, consoante previsto no artigo 483.º do Código Civil.
Assim, encontramo-nos perante uma acção ilícita do Réu – a retenção da casa contra a vontade do Autor, violando o seu direito de propriedade – acção essa, pelo menos, culposa.
(…).
De acordo com o preceituado nos artigos 562.º, 564.º e 566.º, todos do Código Civil, visa-se, “reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”, aí se compreendendo, “não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão”, sendo a indemnização “fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor”, tendo “como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos”, devendo o tribunal julgar “equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”, se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos.
(…).
Para tanto, é necessário que o Autor prove a verificação dos prejuízos?
Esta questão pressupõe a ponderação sobre a reparabilidade do dano da privação do uso, cuja solução não tem sido unívoca, quer na doutrina, quer na jurisprudência, com maior incidência a propósito da responsabilidade civil automóvel.
Os mesmos argumentos e valores podem ser aduzidos às situações decorrentes da violação do direito de propriedade e derivadas da prática de facto ilícito.
Na verdade, a clivagem jurisprudencial não se limita à qualificação da natureza do dano de privação do uso, como dano não patrimonial ou patrimonial, posto que mesmo quando se aceita a sua natureza patrimonial, existe divergência.
É que, para uma corrente de opinião, basta, para que seja reparável, a demonstração do não uso do bem atingido, já que a indemnização é quase co-natural a essa mesma privação, defendendo-se que a simples privação do uso é causa adequada de uma modificação negativa na relação entre o lesado e o seu património que pode servir de base à determinação da indemnização, constituindo ainda a opção pelo não uso uma manifestação dos poderes do proprietário, também afectado pela privação do uso (ANTÓNIO ABRANTES GERALDES, TEMAS DA RESPONSABILIDADE CIVIL – INDEMNIZAÇÃO DO DANO DA PRIVAÇÃO DO USO, Almedina e também para LUÍS MENEZES LEITÃO, DIREITO DAS OBRIGAÇÕES, Volume I, página 317, o simples uso constitui uma vantagem susceptível de avaliação pecuniária, pelo que a sua privação constitui naturalmente um dano”).
(…).
Para outra corrente, é insuficiente essa demonstração, sendo ainda necessária a prova de um autónomo ou específico dano patrimonial.
Como se defendeu no Acórdão do SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, de 18 de Novembro de 2008 que: “A mera privação do uso de um imóvel, decorrente de ocupação ilícita, por ofensiva do direito de propriedade do reivindicante (art° 1305° n°1 do CC), não confere a este, sem mais, direito a indemnização em «quantum» correspondente ao do apurado valor locativo daquele, ou outro, mesmo apelando às regras da equidade, ao autor, antes, sopesados os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual que pretende efectivar e o exarado nos artes 342° n°1, 483° n°1, 487°, 562° a 564° e 566°, todos do CC, cumprindo alegar e provar facticidade donde ressaltem danos consectários da mora na restituição da coisa sua pertença”.
Como se defendeu no Acórdão do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA, de 11 de Outubro de 2012, a privação do uso de um bem é susceptível de constituir, por si, dano patrimonial, visto que se traduz na lesão do direito real de propriedade correspondente, assente na exclusão de uma das faculdades que é lícito ao proprietário gozar, de acordo com o preceituado no artigo 1305.° do Código Civil, isto é, o uso e fruição da coisa.
A supressão dessa faculdade, impedindo o proprietário de extrair do bem todas as suas utilidades constitui, juridicamente, um dano que tem uma expressão pecuniária e que, como tal, deverá ser passível de reparação.
Refere-se, no Acórdão do SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, de 22 de Janeiro de 2013, “É inquestionável que, enquanto a posse intitulada subsistir, os direitos plenos de uso, fruição e disposição de que o proprietário goza, nos termos do art° 1305° CC, ficam fortemente limitados, não podendo ser exercidos na sua plenitude; e estando demonstrado que os réus tinham plena consciência de que o gozo dos imóveis tinha um determinado valor (tanto assim que, celebrando os contratos de arrendamento, se dispuseram a pagar uma renda), afigura-se justo e razoável quantificar o correspondente dano da privação do uso no valor locativo dos imóveis que o autor logrou provar. Se a lei expressamente reconhece ao senhorio o direito a indemnização pelo atraso na restituição da coisa, findo o contrato, mesmo que em concreto nenhum dano se comprove – art.º 1045° CC - indemnização essa que tem por base o valor da renda estipulada, nenhuma razão se vislumbra para que num caso essencialmente análogo como é o presente não se proceda de igual modo; efectivamente o “atraso na restituição da coisa” é aqui a “ocupação ilícita”, conduta cuja anti juridicidade se apresenta tão ou mais evidente do que naquela disposição legal.”.
Aliás, ainda que se considerasse que seria inaplicável o regime da responsabilidade civil, por inexistência, em concreto, de um dano reparável inerente à privação do uso – o que se não entende – ainda assim se justificaria o apelo ao instituto do enriquecimento sem causa, na esteira dos Acórdãos do SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, de 23 de Março de 1999 e de 26 de Maio de 2009.
No caso dos autos, ficou provado que o Réu deixou de ter título que legitimasse a sua permanência no imóvel pertencente ao Autor, assim o impedindo de extrair do bem todas as suas utilidades.
Posto isto, não restam dúvidas que o Réu deve ressarcir o Autor, pelo impedimento que este teve de fruir do imóvel.
(…).»
Como referimos supra, encontramo-nos inteiramente de acordo com a abordagem acabada de transcrever. Importa agora aquilatar qual o montante da indemnização a atribuir.
Dos autos, como contributos para tal fixação temos apenas os factos reveladores de que nos encontramos perante uma casa que foi arrendada em 1963, cuja renda mensal à data do falecimento do arrendatário, tinha o valor de 152€.
Como foi acima referido, pode o tribunal fixar uma indemnização, de acordo com a equidade, e dentro dos limites que tiver como provados, caso não se alcance o valor exacto dos danos (art.º 566.º, n.º do CC).
O tribunal deve recorrer a tal prorrogativa nas situações em que sendo certo que se revela demonstrada a verificação de dano indemnizável, mas não o montante exacto do mesmo, inexistam de todo elementos que permitam estabelecer os limites da sua fixação.
Ora, no caso em apreço, tendo presentes os indicados elementos - antiguidade do imóvel, hoje com mais de 57 anos (posto que tratar-se-á necessariamente de prédio edificado em data anterior a 1963, ano em que ocorreu o arrendamento ao marido da ré) e o valor da renda que era paga – 152,00€, e perante o pedido formulado pelas AA., traduzível na compensação resultante do dano decorrente da impossibilidade que vêm tendo de utilizar o imóvel que é seu, e da caducidade do arrendamento datar de Abril de 2018, ignorando-se qual seja, no caso, o valor de mercado dum arrendamento equivalente ao 1.º andar em causa, considera-se equilibrado fixar a indemnização no valor de 180,00€ (cento e oitenta euros) mensais, atendendo a que a taxa de inflação no ano de 2018 foi de 1%, no ano de 2019 foi de 0,3% e que é do conhecimento geral que o mercado de arrendamento habitacional tem sofrido nos últimos anos uma elevada valorização.
Esse valor (180,00€) é devido desde Outubro de 2018 (seis meses após o falecimento do arrendatário – art.º 1053.º do CC) até à data da entrega do imóvel. A esse valor mensal deverá ser descontado o valor que, entretanto, a Ré tenha vindo a pagar.
4. Do abuso de direito por parte da Ré/recorrida
Entendem as Apelantes que, no caso, se verificará uma situação de abuso de direito, “na justa medida em que a Ré tem vindo a auferir (há cerca de 4 anos) uma renda predial imobiliária pelo arrendamento do apartamento de que é proprietária de valor equivalente ao dobro da renda que paga às Apelantes”.
Limitar-nos-emos a referir que inexistem factos bastantes que possam suportar tal alegação, pela justa medida em que não se comprovou o valor da renda que a Ré aufere pelo seu imóvel.
Com efeito, não é questionado (e bem) que tal casa esteja arrendada, coloca-se a questão, sim, no facto do valor de tal arrendado ser o dobro do valor pago pelo imóvel das AA..
Por tudo o que se deixa dito, concluímos que o recurso terá de proceder.   
IV – DECISÃO
Assim, acorda-se em julgar a apelação procedente e, nessa medida, condena-se a Ré, ora recorrida:
a) A reconhecer a herança de que as Autoras são únicas interessadas, como únicas proprietárias do prédio o prédio urbano indiviso, situado no Beco …, n.ºs …-C e …-D, no Funchal, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o número …, da freguesia de São Pedro.
b) A restituí-lo à herança indivisa, da qual as Autoras são únicas titulares, em bom estado de manutenção e livre de pessoas e bens;
c) A pagar uma indemnização a favor da mesma herança, no valor de 180,00€ (cento e oitenta euros) mensais, desde Outubro de 2018 (seis meses após o falecimento do arrendatário – art.º 1053.º do CC) até à data da entrega do imóvel. A esse valor mensal deverá ser descontado o valor que, entretanto, a Ré tenha vindo a pagar.
Custas pela Ré.

Lisboa, 23-03-2020
José Maria Sousa Pinto
João Vaz Gomes
Jorge Leal
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[1]Recursos no Novo CPC” (2013), pags. 116/117.
[2] Sublinhados nossos.
[3] P.º 4685/14.2T8FNC.L1.S1, em que foi relatora a Exma. Juíza Conselheira Rosa Ribeiro Coelho.
[4]Concentração ou Transmissão do Direito ao Arrendamento Habitacional em caso de divórcio ou de morte, em Estudos em Honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascenção”, Volume II, p. 1019, 1027 e 1028
[5] “O arrendatário invisível – A comunicabilidade do direito ao cônjuge do arrendatário no arrendamento para habitação, SCIENTIA IVRIDICA”, Setembro/Dezembro 2016, Tomo LXV, n.º 342, p. 417 e 418.
[6] Que terá inspirado a sentença recorrida.
[7] Diploma a que respeitam as normas de ora em diante referidas sem menção de diferente proveniência.
[8] Então inexistente no CC; este art. 1068º, na versão original do diploma, estava incluído na regulamentação do arrendamento rural, que foi revogada pelo DL nº 201/75, de 15.4.
[9] Neste sentido Rita Lobo Xavier, “Concentração” ou Transmissão do Direito ao Arrendamento Habitacional em caso de divórcio ou de morte - em Estudos em Honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascenção, vol. II, pág. 1019; ainda Baltazar Coelho, “O art. 1068º do CC segundo o NRAU”, Scientia Ivridica, Tomo LVII, nº 317, Janeiro/Março, 2009, pág. 62.
Diversamente, Pinto Furtado, em interpretação restritiva do preceito, exclui do seu âmbito de aplicação os arrendamentos para habitação - “Manual do Arrendamento Urbano”, 5ª edição, Almedina, 2009, vol. I, págs. 366 a 368.
[10] Assim, não se acolhe a afirmação feita em Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, Coordenação de António Menezes Cordeiro, Almedina, 2014, pág. 155, segundo a qual seria de seguir, a este respeito, o princípio afirmado no art. 12º, nº 2, 1ª parte do CC.
Igualmente se não acolhe o entendimento que foi adotado nos acórdãos da Relação de Lisboa de 23.09.2014, Relatora Des. Maria Adelaide Domingos, e de 9.12.2014, Relator Des. Gouveia de Barros, acessíveis em www.dgsi.pt.
[11] Acompanha-se, pois, tese defendida, entre outros, por Maria Olinda Garcia, O arrendatário invisível – A comunicabilidade do direito ao cônjuge do arrendatário no arrendamento para habitação, SCIENTIA IVRIDICA, Setembro/Dezembro 2016, tomo LXV, n.º 342, pg. 418, já adotada no acórdão recorrido; Rita Lobo Xavier, local citado, págs. 1027 e 1028.
[12] Local citado, págs. 1027 e 1028.
[13] Ibidem, pág. 417.
[14] Sendo que mesmo a RAU (DL n.º 321-B/90, de 15 de Outubro) manteve tal incomunicabilidade.
[15] P.º 5042/14.6TCLRS-L1-2, disponível em ww.dgsi.pt 
[16] Sublinhado nosso.
[17] Sublinhado nosso.
[18] Sublinhado nosso.
[19] Sublinhado nosso.
[20] Como se refere no acórdão da Relação de Coimbra de 09-04-2013 (P.º 1346/11.8TBCVL-A.C1), em que foi relatora a Exma. Juíza Desembargadora Albertina Pedroso:
 “– no regime da separação de bens, o direito do arrendatário não se comunica ao seu cônjuge, pois não há património comum do casal (cfr. art.º 1735.º do CC);
– no regime da comunhão de adquiridos, o direito do arrendatário comunica-se ao seu cônjuge, ingressando no património comum, se o contrato for celebrado na constância do casamento [cfr. art.ºs 1724.º, al. b), 1725.º e 1730.º do CC];
– no regime da comunhão geral, o direito do arrendatário comunica-se ao seu cônjuge, integrando o património comum do casal, mesmo que o contrato de arrendamento seja anterior ao casamento (cfr. art.º 1732.º do CC)”. [Cfr. anotação da ora Relatora, em co-autoria com Laurinda Gemas e João Caldeira Jorge, in “Arrendamento Urbano – Novo Regime Anotado e Legislação Complementar”, 3.ª Edição Revista, Actualizada e Aumentada, Quid Juris 2009, pág. 300.]
[21] Neste mesmo sentido, entre muitos outros, veja-se o ac. da Relação do Porto de 18-12-2018, no âmbito do P.º 1037/18.9T8MAI.P1, em que foi relatora Alexandra Pelayo, disponível em www.dgsi.pt .
[22] P.º 21543/17.1T8LSB.L1-7, em que foi relator Diogo Ravara, disponível em www.dgsi.pt