Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4/22.2AALSB-B.L1-5
Relator: MAFALDA SEQUINHO DOS SANTOS
Descritores: MEIOS DE OBTENÇÃO DE PROVA
LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICA (GPS)
CASO JULGADO FORMAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I – Não viola o caso julgado formal a decisão do JIC que, após o decurso do prazo da anterior autorização concedida, indefere promoção do Ministério Público com vista à renovação do recurso a meio de obtenção de prova.
II – A colocação de aparelhos físicos de localização geográfica, vulgarmente designados de GPS (Global Positioning System), em viaturas utilizadas por suspeitos, para efeitos de investigação de criminalidade grave, autorizada e controlada judicialmente, não constituí meio proibido de obtenção de prova.
(Sumariado e confidencializado pela relatora).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1 – Relatório
1.1 Decisão recorrida
Por despacho de 12/07/2022, proferido no processo de Inquérito n.º 4/22.2AALSB, foi indeferida a autorização para instalação física de aparelhos de localização geográfica, vulgarmente designados de GPS, em veículos utilizados pelos suspeitos.
1.2 Recurso
O Ministério Público interpôs recurso desta decisão, sustentando que a mesma deve ser revogada e substituída por outra que mantenha a utilização anteriormente concedida para recurso à colocação de GPS nos veículos dos suspeitos na investigação e que considere válidos os dados já obtidos por esse meio, concluindo, nas suas alegações:
«…
1. Por douto despacho proferido em 19.04.2022 o Ministério Público remeteu os presentes autos de inquérito à Mma. JIC a quem promoveu, entre o mais, pela autorização para utilização de meios de controlo à distância e em tempo real, através da colocação física de aparelhos de localização geográfica em determinadas viaturas utilizadas pelos suspeitos, vulgo GPS, o que veio a ser deferido;
2. Estando tais meios de obtenção de prova a ser utilizados desde então, sempre sujeitos ao necessário controlo judicial, em prazo de 15 dias, sujeito ao regime do disposto no artigo 187.º do Código de Processo Penal;
3. Não obstante o douto despacho de deferimento, vem agora a Mma. JIC a decidir que tal meio de obtenção de prova é inadmissível, não podendo ser usado, o que decide em sentido diametralmente oposto ao que anteriormente havia sido decidido, em clara violação do caso julgado formal;
4. Por outro lado, tal meio de obtenção de prova é admissível e a prova assim obtida não constitui prova proibida, desde que tenha havido autorização judicial, como foi, e que tal tenha sido submetido a regular controlo judiciário, como foi, nos termos do regime jurídico previsto no dito artigo 187.º, do CPP, devidamente adaptado;
5. No caso concreto, tai meio de obtenção de prova respeita os princípios de necessidade, adequação e proporcionalidade com os interesses da investigação e em contraposição aos direitos, liberdades e garantias dos suspeitos;
6. Pelo que se entende que, ao decidir como decidiu, a Mma. JIC fez uma incorreta interpretação quer do regime do caso julgado formal, quer do disposto no artigo 187.º , do CPP, posto que a utilização de dados obtidos através da colocação em veículos de aparelhos de GPS, não constitui meio proibido de obtenção de prova;
7. Razão pela qual o douto despacho deverá ser revogado e substituído por outro que mantenha o anteriormente decidido, permitindo-se a utilização de tais dados, por um lado, e a validade daqueles que foram recolhidos.”
1.3 Nesta Relação, o Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, acompanhando a argumentação já apresentada na primeira instância acrescentando que a intervenção processual da Mma. JIC carecia previamente da apresentação de requerimento por parte do Ministério Público, nos termos do disposto nos artigos 268.º, n.º 2 e 269.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
1.4  Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
*
2. Questões a decidir no recurso
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da motivação que o recorrente produziu para fundamentar a sua impugnação da decisão da primeira instância (artigos 403º, 410.º e 412º, nº 1, do Cód. Processo Penal), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (AUJ n.º 7/95, de 19/10/95, in D.R. 28/12/1995) , pelo que, no presente caso, cumpre apreciar e decidir se existiu violação do caso julgado formal e se o recurso à colocação de aparelhos de localização GPS constituí meio proibido de obtenção de prova em sede de processo penal (e sem prejuízo da questão prévia que nesta sede iremos tratar).
*
3. Fundamentação
3.1 Decisão recorrida:
É o seguinte o teor da decisão recorrida:
«Relativamente à instalação de GPS:
Numa síntese clara e impressiva, Joana Fuzeta da Ponte Nunes Capela, na dissertação de Mestrado intitulada “O GPS como método oculto de investigação no Direito Processual Penal e no Direito do Trabalho”, Julho de 2018, disponível in ulfd140157_tese.pdf., refere, a propósito, o seguinte:
«I. No que respeita à utilização do GPS no Direito processual penal: 
(i) O Direito penal assistiu, nos últimos anos, a novas formas de cometer os crimes já existentes e assistiu à prática de novos crimes, o que se deve à utilização de novos instrumentos tecnológicos; 
(ii) Perante o desenvolvimento tecnológico surgiu a necessidade de criação de novos meios de investigação, nomeadamente o GPS, para a descoberta dos ilícitos criminais; 
(iii) Não existindo consagração legal, tem havido uma tentativa de legitimação da sua utilização, nomeadamente através da analogia com outros regimes jurídicos; 
(iv) A admissibilidade deste meio não pode ter por base uma aplicação analógica de regras legais que regulam outros meios de investigação, nomeadamente a localização celular;   
(v) A doutrina portuguesa não apresenta uma posição consensual quanto à admissibilidade do GPS no ordenamento jurídico português. Neste sentido, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE assume uma posição clara de que não poderá assistir-se a uma aplicação analógica do regime da localização celular. No mesmo sentido, não equacionado a possibilidade de aplicação de outros regimes, por via da interpretação analógica, encontram-se as posições de BRUNO CARVALHO PEREIRA E MANUEL DA COSTA ANDRADE; 
Não obstante, a doutrina questiona-se também sobre a viabilidade da admissibilidade de utilização do GPS, à luz do disposto no artigo 125.º do CPP. Deste modo, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, DAVID RAMALHO, MANUEL DA COSTA ANDRADE e BENJAMIM DA SILVA RODRIGUES consideram que tal não se afigura possível; 
Por outro lado, SANTOS CABRAL e DUARTE NUNES consideram esta situação admissível; 
(vi) Não menos importante se apresenta a análise efetuada pelos tribunais portugueses, quanto a esta temática. Assim, e apresentando visões antagónicas, os nossos tribunais não apresentam uma sequência constante e uniforme das suas decisões. 
Em 2008, o Tribunal da Relação de Évora considerou não ser necessário qualquer enquadramento normativo que permitisse a utilização do GPS, assemelhando-o à tradicional vigilância policial. Por outro lado, o Tribunal da Relação do Porto, em 2013, seguiu uma linha diferente, tentando assemelhar esta utilização com a da localização celular, pelo que considerou aquela abrangida pelo regime desta;
(vii) Esta temática é também objeto de análise por parte do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem; 
(viii) Neste sentido, em 2010, este tribunal, perante uma concreta situação de utilização de aparelhos de GPS no veículo de um suspeito, considerou que não é tida como necessária a redação exaustiva, na lei, de todos os meios de prova passíveis de utilização. Mais acrescentou que apena se revelariam como necessárias a definição das circunstâncias e dos limites de utilização destes meios; 
(ix) Posteriormente, em 2018, no famoso caso Ben Faiza vs France, o mesmo tribunal, numa semelhante situação, considerou que a utilização do dispositivo GPS se afigurava também como ilícita, não existindo norma expressa que a consagrasse, bem como por existir violação do artigo 8.º da CEDH; 
(x) A utilização do GPS num veículo particular constitui uma ingerência no direito à reserva da intimidade da vida privada, permitindo traçar um perfil do sujeito em causa; 
(xi) O direito à reserva da intimidade da vida privada é um direito fundamental positivado na Constituição; 
(xii) Contudo, não constitui um direito absoluto, pelo que poderá ter de ceder, e ser restringido, em detrimento de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos 
As restrições a efetuar dependem da verificação de certos requisitos, nomeadamente da reserva de lei. Por outras palavras: uma restrição a este direito fundamenta depende de uma lei geral e abstrata que a autorize de forma expressa. Logo, por aqui concluímos que sendo o GPS um meio de obtenção de prova atípico, é necessário concluir, a título de regra geral, pela sua inadmissibilidade no sistema jurídico penal português; 
(xiii) Mesmo existindo consagração expressa que preveja um regime jurídico para o GPS, a licitude da sua utilização fica dependente do princípio da proporcionalidade; 
(xiv) Tendo em consideração que a utilização do GPS é suscetível de lesar os direitos fundamentais do sujeito visado, a competência para a sua autorização deverá, em nossa opinião, caber sempre ao juiz de instrução; 
(xv) O artigo 126.º do Código de Processo Penal contém um elenco não taxativo de métodos proibidos de prova; 
(xvi) O número 3 da suprarreferida disposição especifica que “ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada (..) sem o consentimento do respetivo titular”; 
(xvii) Esta norma atribui duas vias de legitimação, teoricamente possíveis, para a utilização do GPS:
(i)previsão legal expressa e (ii) consentimento do titular;  
Contudo, para que o sucesso de investigação seja alcançado, o GPS tem de necessariamente ser utilizado sem o conhecimento do visado. Para além disso, não há norma expressa que regule este meio de obtenção de prova, nem regime em que o possamos considerar como incluído, pelo que também não se encontra verificada a possibilidade da prova obtida não ser considerada nula, à luz do disposto do número 3 do artigo 126.º».
E efectuado este enquadramento, impõe-se consignar que não vislumbramos admissível/defensável, “prima facie”, à luz das regras da hermenêutica contemporânea, designadamente, da interpretação sistemática e axiológica das normas, equiparar um GPS à tradicional vigilância policial, colocando, assim, na total disponibilidade dos OPC a utilização de tal meio (oculto) de obtenção de prova.
Na verdade, concordando-se com a posição e argumentos aduzidos por Joana Fuzeta da Ponte Nunes Capela, ob. e loc. cit., e tal como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13/4/2016, proferido no processo n.º 2903/11.8TACSC.L1-3, in www.dgsi.pt., a questão originária/substantiva consiste em «(…) saber se um meio de obtenção de prova com estas características, que não se confunde nem se equipara minimamente com a intercepção das comunicações, é, entre nós, permitido, dada a ausência de lei que legitime a sua utilização, delimite os crimes que permitem essa utilização, estabeleça o procedimento a adoptar e fixe a competência para autorizar o seu uso e controlar todo o procedimento que tiver lugar.
E, a nosso ver, a resposta é claramente negativa. Em primeiro lugar, porque um aparelho de geolocalização, no caso, um “GPS tracker”, é um meio oculto de investigação que, por isso mesmo, só poderia ser admitido se existisse lei que o consagrasse como um meio de obtenção de prova legítimo e regulasse todos os referidos aspectos do seu regime. Não se compreenderia, de resto, que a localização celular de um telemóvel estivesse sujeita aos apertados limites traçados pelos artigos 252.º-A e 189.º, n.º 2, do Código de Processo Penal e a geolocalização através de meios muito mais precisos fosse admitida sem qualquer limitação e sem controlo.
Para além disso, porque a utilização destes aparelhos viola de uma forma nítida a vida privada dos utilizadores dos veículos em que se encontrem instalados. 
Embora o conceito de vida privada seja amplo e insusceptível de uma exaustiva definição, o seu conteúdo «vai para além dos estreitos limites inerentes à ideia anglo-americana de privacidade, que põe a ênfase no secretismo da informação pessoal e no recato do acto», abrangendo muitos âmbitos que extravasam a habitação e os domínios privados, atingindo mesmo «a zona de interacção de uma pessoa com os outros, mesmo num contexto público».
Partindo de um entendimento abrangente da vida privada como o enunciado, não podemos deixar de considerar que a utilização destes aparelhos, pelo sistemático e permanente registo de dados que propicia, cujo tratamento permite, e pela natureza dos mesmos, é susceptível de violar, tal como se disse, a vida privada dos utilizadores dos veículos em que se encontrem instalados.
Para além da violação deste direito fundamental, protegido pelo n.º 1 do artigo 26.º da Constituição, o artigo 35.º, n.º 3, da Lei Fundamental impede que os dados obtidos através desses aparelhos sejam objecto de tratamento informático, a não ser nos casos ressalvados na parte final desse preceito, o que constitui uma forma indirecta de proteger a própria privacidade».
Em suma, como conclui Joana Fuzeta da Ponte Nunes Capela, ob. e loc. cit., «(…) à luz do nosso ordenamento jurídico, consideramos inadmissível a utilização deste meio de obtenção de prova. A sua licitude depende da existência de lei expressa que legitime a sua utilização, definindo pressupostos legais e um catálogo de crimes face aos quais se afigura admissível o seu uso».
Com tais fundamentos, indefere-se, pois, a requerida autorização para instalação de GPS.»
3.2 – Do mérito do recurso
a) Da violação do caso julgado formal:
Vistos os autos, constata-se que em 27/04/2022, foi proferido despacho no processo de inquérito de que os presentes são apenso, pela Juíza de Instrução Criminal  (distinta titular), autorizando a colocação de equipamentos de rastreio GPS (Global Positioning System - tracker, portable vehicle tracking system-GPS), nas viaturas automóveis com as matrículas (…), até 31 de maio de 2022, a cumprir pelo opc encarregue da investigação deferindo, assim, promoção do Ministério Público (Ref.7866483).
Por despacho da Juíza de Instrução Criminal de 25/05/2022, foi esta autorização prorrogada até 30 de junho de 2022 (Ref. 7916614).  Em 20/06/2022, indeferiu-se a prorrogação que vinha promovida pelo Ministério Público, na medida em que o mesmo não havia logrado providenciar pela apresentação traduzida dos dados das interceções recolhidos na sequência das anteriores autorizações concedidas, não podendo, por isso, o juiz tomar conhecimento efetivo do respetivo conteúdo.
Após nova apresentação, com as traduções asseguradas, veio a promoção do Ministério Público de 20/06/2022 a merecer o despacho de 12/07/2022 que apreciou, nomeadamente, o pedido de prorrogação de utilização de aparelhos de GPS nas viaturas de matrícula(…).
Desta feita, afigura-se-nos evidente que a decisão do Tribunal recorrido aqui em apreço surge no momento em que a decisão anteriormente proferida (e que havia deferido o recurso ao meio de obtenção de prova em causa) já não produzia efeitos, por delimitada no tempo, e surge na sequência de promoção do Ministério Público no momento em que o mesmo logrou assegurar a apresentação dos dados recolhidos em condições de serem efetivamente conhecidos.
O caso julgado formal traduz a força obrigatória da decisão no próprio processo em que é proferida, sendo ineficaz decisão posterior que a contrarie [1].
Sendo o Ministerio Público o titular da fase processual de inquérito, a quem compete a respetiva direção, a lei reserva a ordem ou autorização para a prática de determinada categoria de atos ao Juiz de Instrução Criminal (JIC). Estão em causa atos e diligências suscetíveis de afetar de modo mais intenso os direitos, liberdades e garantias dos visados.
De entre os atos a ordenar ou autorizar por juiz de instrução, durante o inquérito, encontram-se a interceção, gravação ou registo de conversações ou comunicações nos termos dos arts. 187.º e 189.º do Cód. Processo Penal (art. 269.º, n.º 1, al. e) do mesmo diploma).
Nesta matéria, prevê a lei um regime de autorização prévia ao ato, ou recurso ao meio de obtenção de prova, sujeito a diversos pressupostos de admissibilidade, e um regime de controlo posterior, de execução da autorização já concedida e do meio de prova assim obtido (art. 187.º e 188.º do Cód. Proc. Penal).
Equivale isto por dizer, que uma vez concedida a autorização para recurso da investigação a um meio de prova particularmente invasivo, como é o caso dos previstos nos arts. 187.º a 189.º do Cód. Processo Penal, o Ministério Público e o opc não adquirem o direito, sem mais, a dispor desse meio de obtenção de prova, indefinidamente e sem controlo judicial dos respetivos pressupostos. O despacho é sempre limitado no tempo (e não o sendo, a lei estabelece o seu limite temporal máximo – 3 meses - 187.º, n.º 6 do Cód. Proc. Penal) impondo a permanente verificação da persistência, da atualidade dos respetivos pressupostos.
E se é o próprio legislador a determinar que o julgador reaprecie os pressupostos em que anteriormente decidiu, ultrapassado o prazo da anterior autorização concedida (como acontece na situação que nos ocupa, tendo expirado os efeitos do anterior despacho em 31/06/2022) não se encontra coartado o poder jurisdicional. É certo que o entendimento da Senhora Juíza subscritora do despacho recorrido (que considera o recurso à colocação do GPS como meio proibido de prova) é diametralmente oposto ao entendimento da Senhora Juíza que havia anteriormente despachado o processo e que não viu obstáculo ao recurso a esse meio de obtenção de prova.
Não obstante, a anterior decisão já não produzia efeitos no que concerne à respetiva autorização, que agora foi requerida e indeferida, e não tem, quanto a esta questão, força de caso julgado formal (o contrário é defender que nem seria necessária nova autorização ou que a mesma se teria de limitar a definir o prazo legal, refém do anterior entendimento sufragado, o que não é consentâneo com o rigor exigido no recurso a meios de obtenção de prova restritivos dos direitos fundamentais).
E nesta matéria, de recurso a métodos ocultos de investigação, a provas proibidas, o legislador sancionou com o vício da nulidade e proibição da respetiva utilização (art. 126.º do Cód. Processo Penal) e até previu uma derrogação efetiva do caso julgado material, constituindo fundamento da revisão de sentença condenatória transitada em julgado a descoberta que a mesma se fundou em provas proibidas (art. 449.º, n.º 1, al. e) do Cód. Processo Penal).
Não se verifica, por isso, a invocada violação do caso julgado formal, tendo o Tribunal a quo se pronunciado sobre matéria constante de promoção do Ministério Público (e não seria concebível o contrário, a menos que a pretensão do Ministério Público seja a de uma autorização intemporal, que não foi concedida nem assim foi percecionada, a não ser em sede de alegações de recurso).          
b) Do meio proibido de obtenção de prova:
O recorrente termina as suas alegações solicitando a revogação do despacho recorrido e a substituição por outro que mantenha o anteriormente decidido, permitindo-se a utilização dos dados obtidos com a colocação de aparelhos GPS nos veículos dos suspeitos, por um lado, e a validade daqueles que já foram recolhidos ao abrigo das anteriores autorizações, por outro.
Existe, contudo, uma limitação prévia, objetiva, ao recurso, que é anterior a este, que o condiciona e que aqui convêm relembrar: é a própria decisão recorrida! É entendimento unânime na jurisprudência que o objeto do recurso é a decisão, ou seja, os recursos visam modificar decisões tomadas pelo tribunal a quo e não criar soluções sobre matéria nova pelo tribunal ad quem.
E nesta medida importa salientar que o despacho recorrido, e que baliza o âmbito de apreciação deste Tribunal, não se pronuncia sobre a possibilidade de utilização dos dados recolhidos na sequência das anteriores autorizações concedidas no processo nem sobre a validade dos mesmos. O despacho apenas se pronuncia sobre o que vinha promovido pelo Ministério Público, ou seja, sobre o pedido de prorrogação/autorização de utilização de GPS nas viaturas automóveis dos suspeitos até ao termo da época de pesca, indeferindo-a.
É isto que está em causa e não a amplitude que o Ministério quer aqui introduzir.
O nosso sistema processual penal assume os recursos como remédios jurídicos, que se destinam a sujeitar a decisão (no todo ou em parte) a um novo juízo de apreciação, agora por parte de um Tribunal hierarquicamente superior, visando corrigir erros expressamente indicados pelo recorrente e não como mecanismos de refinamento jurisprudencial [2], que levem a um novo julgamento, a uma nova reapreciação sem a baliza da decisão tomada na primeira instância. Como se refere no Ac. do STJ de 25/05/2016[3] «Na verdade, os recursos, como remédios jurídicos que são, não se destinam a conhecer questões novas não apreciadas pelo tribunal recorrido, mas sim a apurar da adequação e legalidade das decisões sob recurso (cfr., por todos os Acs do STJ de 12-07-1989, BMJ 389-510, de 07-10-1993, Proc. n.º 43879, de 09-03-1994, Proc. n.º 43402, de 12-05-1994, , Proc. n.º 45100, de 01-03-2000, Proc. n.º 43/2000, de 05-04-2000, Proc. n.º 160/2000, de 12-04-2000, Proc. n.º 182/2000, de 28-06-2001, Proc. n.º 1293/01-5, de 26-09-2001, Proc. n.º 1287/01-3, de 08-11-2001, Proc. n.º 3142/01-5, de 16-01-2002, Proc. n.º 3649/01-3, de 27-02-03, proc. n.º 255/03 e de 2.2.06, proc. n.º 4409/05-5). Os recursos são remédios jurídicos que se destinam a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente, com referência expressa e específica aos meios de prova que impõem decisão diferente, quanto aos pontos de facto concretamente indicados (quanto à questão de facto), ou com referência à regra de direito respeitante à prova, ou à questão controvertida (quanto à questão de direito) que teria sido violada, com indicação do sentido em que foi aplicada e qual o sentido com que devia ter sido aplicada. Assim, o julgamento em recurso não o é da causa, mas sim do recurso e tão só quanto às questões concretamente suscitadas e não quanto a todo o objecto da causa, em que estão presentes, face ao Código actual, alguns apontamentos da imediação (somente na renovação da prova, quando pedida e admitida) e da oralidade (através de alegações orais, se não forem pedidas e admitidas alegações escritas) (cfr., neste sentido, por todos, o Ac. de 17.2.05, proc. n.º 58/05).
Não pode, assim, o Tribunal Superior conhecer de questões que não tenham sido colocadas ao Tribunal de que se recorre.»
A decisão recorrida não se pronuncia quanto à validade da prova recolhida por GPS, na sequência das anteriores autorizações concedidas, nem tinha que o fazer uma vez que a questão não foi suscitada (e pode nem vir a ser, dependendo da relevância dos dados recolhidos para a investigação) pelo que não pode este Tribunal debruçar-se sobre a mesma.
Posto isto, na parte em que o recorrente pretende que este Tribunal determine a validade dos dados já recolhidos ao abrigo das anteriores autorizações (se é que as mesmas produziram efetivamente qualquer resultado) o recurso, ao introduzir questão nova, cuja apreciação não foi suscitada na primeira instância, não pode proceder.
Cumpre apreciar o mais requerido e que diz respeito à renovação da autorização para colocação de aparelhos GPS nas viaturas utilizadas pelos suspeitos.
Saber se o recurso à colocação de aparelhos físicos de localização geográfica, vulgarmente designados de GPS (Global Positioning System), em viaturas utilizadas por suspeitos é admissível à luz do nosso Direito Processual Penal está longe de ser consensual. É questão que não tem merecido resposta jurisprudencial [4] e doutrinária concordante, oscilando entre os que recusam o recurso ao mesmo e os que o admitem, ainda que subordinado a um regime de fiscalização paralelo ao de outros meios de localização celular[5].
A par dos demais meios ocultos de obtenção de prova, coloca recorrentes problemas de novação legislativa, para os que consideram inexorável a cobertura das exigências de reserva de lei.
Refere Costa Andrade que “(…) os métodos ocultos de investigação representam uma intromissão nos processos de acção, interação e comunicação das pessoas concretamente visadas, sem que estas tenham conhecimento do facto nem dele se apercebam. Que, por causa disso, continuam a agir, interagir, a expressar-se e a comunicar de forma “inocente”, fazendo ou dizendo coisas de sentido claramente auto-incriminatório ou incriminatório daqueles que com elas interagem ou comunicam. De forma simplificada e reducionista, os meios ocultos de investigação levam as pessoas atingidas – normalmente o suspeito – a “ditar” inconscientemente para o processo “confissões” não esclarecidas nem livres.” [6].
E como o Ilustre Professor refere, não escamoteando a realidade, os métodos ocultos de investigação vieram para ficar e revelam-se imprescindíveis, insubstituíveis na perseguição e repressão de uma importante franja de criminalidade, mais sofisticada, mais imune aos meios tradicionais de investigação.
Aportam, contudo, uma reconhecida maior danosidade social.
“No plano material-substantivo, os métodos ocultos de investigação sacrificam, à passagem, um espetro de bens jurídicos ou de direitos fundamentais tão iminentes como: privacidade/intimidade, palavra, imagem, sigilo profissional, inviolabilidade do domicilio, segredo de Estado, sigilo das telecomunicações, confidencialidade e integridade dos sistemas técnico-informacionais (…) autodeterminação informacional.
No plano estritamente adjetivo-processual, os meios ocultos sacrificam inter alia e directamente: o direito a recusar testemunho ou depoimento (arts. 134.º e 135.º), o princípio nemo tenetur se ipsum acusare, o direito ao silêncio. E permitem a obtenção fraudulenta de “confissões” inconscientes e, como tais, não livres. Para além disso, o recurso sistemático aos meios ocultos de investigação induz e provoca tropismos na dinâmica processual, com reflexos significativos no plano orgânicos-estrutural e institucional”.
E não deixa de ser pertinente, e continuar atual pese embora reportada à revisão do Cód. Processo Penal de 2007, a crítica vertida por Costa Andrade ao direito português «Tomado no seu conjunto, o direito português dos meios ocultos de investigação caracteriza-se pelas lacunas e descontinuidades, incongruências e inconsistências e, sobretudo, por insustentáveis contradições e assimetrias normativas, axiológicas e politico-criminais. São, por exemplo, frequentes e comuns as situações em que se faz depender o recurso a um dado meio oculto de um conjunto de pressupostos ou requisitos mais largo e exigente do que aqueles de que depende a admissibilidade de um outro meio comparativamente menos gravosos e invasivo. E, por isso, em clara e frontal violação do princípio de proporcionalidade.»
Numa resenha, que não pretendemos exaustiva, das distintas posições, defende a inadmissibilidade de recurso a este meio de obtenção de prova, nomeadamente, Joana Fuzeta da Ponte Nunes Capela, na dissertação de Mestrado intitulada “O GPS como método oculto de investigação no Direito Processual Penal e no Direito do Trabalho”[7], em que se fundamenta a decisão recorrida e pelas razões acima expostas na transcrição da mesma (para que remetemos por economia de exposição) e Maria Beatriz Seabra de Brito, “Novas Tecnologias e Legalidade da Prova em Processo Penal”[8] .
Acompanham a posição de Paulo Pinto de Albuquerque[9] que defende que «No direito Português, a colocação de um receptor de GPS no veículo do suspeito e do arguido não é admissível como meio atípico de obtenção de prova, uma vez que semelhante meio de obtenção de prova deve ser previsto por uma lei expressa, dado o seu elevado grau de intrusão na privacidade do suspeito».
E também do Professor Costa Andrade[10] para quem a intransponível exigência de reserva de lei determina que os meios ocultos de investigação criminal só são admissíveis e válidos se e na estrita medida em que gozem de expressa e específica consagração legal. Apelando à jurisprudência dos tribunais germânicos refere que a lei “(…) tem de prever expressa e explicitamente a medida de compressão dos direitos fundamentais, fixar a sua compreensão, extensão e vinculação finalístico-teleológica bem como definir os seus limites. (…)
Sendo a previsão legal pressuposto insuprível da validade das medidas, as lacunas e silêncios da lei não podem ser ultrapassados por recurso à analogia. Como não podem sê-lo em nome de uma suposta Schwellentheorie (escala ou graduação de gravidade), que permitiria fazer decorrer da autorização legal de uma dada medida a legitimidade de outra ou outras de menor ofensividade ou devassa.
Os silêncios da lei nem sequer podem ser ultrapassados por apelo directo à Constituição e ao seu horizonte de autorização (…). O campo de abertura da lei constitucional a uma mais ou menos alargada compressão dos direitos fundamentais só pode ser actualizado mediante intervenção do legislador ordinário.
Por força das exigências decorrentes da reserva de lei, o regime de cada uma das singulares medidas de investigação secreta há-de ser aplicado no escrupuloso e intransigente respeito pelos pertinentes dispositivos legais.(…) se um qualquer dispositivo legal legitimar a recolha de dados associados à comunicação (efetivamente) realizada por telemóvel, tal não legitima, só por si, a recolha de dados na posição de stand-by. Como não autoriza o recurso às técnicas de IMSI-catcher ou de SMS-Blaster.”
Delineando um conjunto de exigências ou pressupostos de índole material, formal-procedimental e orgânica, de cujo procedimento cumulativo depende a legitimidade e validade desses meios de recolha de prova no quadro do Estado de Direito e no atual estádio da experiência jurídica[11], refere Costa Andrade estar a admissibilidade dos meios ocultos de investigação sujeitos:
a) a reserva de lei, que deverá regulamentar com clareza e determinabilidade, rigor e segurança, o bem jurídico ou direito fundamental lesado, a forma e modalidade técnica de invasão. Referindo que e debruçando-se, especificamente sobre o GPS, meio que aqui nos ocupa, “De forma apodítica, o recurso a um novo meio técnico (oculto e invasivo) de investigação em processo penal (v.g.,GPS) só é possível depois de prévia – explícita e autónoma -legitimação legal”;
b) Preordenados à investigação de um catálogo de crimes particularmente restrito e definido segundo critérios de proporcionalidade;
c) A admissibilidade do meio dependerá de uma suspeita fundada da ocorrência da infração, baseada em factos concretos e reportada ao momento da decisão;
d) Deverá obedecer ao princípio da subsidiariedade, não devendo recorrer-se a meios ocultos quando for possível alcançar os mesmos resultados de investigação com a aplicação de meios “descobertos”;
e) E subordinar-se ao princípio da proporcionalidade, balanceando os direitos e sujeitos atingidos, isto é, a gravidade da intromissão, face ao peso das razões que a justificam;
f) Por último, o direito dos meios ocultos deverá integrar soluções normativas indispensáveis para garantir a salvaguarda e a inviolabilidade da área nuclear da intimidade e, em última instância, a proibição da respetiva valoração.              
Mais recentemente, encontramos a posição sufragada na dissertação de mestrado de António Sousa Novais Saúde Penha[12]. Percorrendo as divergências dogmáticas e jurisprudenciais, e expressando a sua posição pessoal, refere (pág. 46 e ss.)  não concordar que a “…a localização e monitorização de um veículo através da tecnologia GPS se possa equiparar à vigilância policial clássica de seguimento ou à interceção de comunicações”, sustentando que “a utilização dos dados obtidos por essa via constituem uma clara intromissão no direito à vida privada (art.26.º, n.º 1, da CRP) e no direito à autodeterminação informacional (art.35.º, nº 3, da CRP) - dos utilizadores do veículo visado por esta medida investigatória fruto do “sistemático e permanente registo de dados que propicia, cujo tratamento permite, e pela natureza dos mesmos”.
Sustentando, do ponto de vista do direito a constituir, o princípio da reserva jurisdicional, sem prejuízo de intervenção em casos de urgência e de periculum in mora, do opc, sujeito a validação judicial posterior, acaba concluindo que o mesmo não encontra previsão legal no art. 189.º do CPP. «Assim, realizar esta extensão à cláusula de extensão parece-nos abusivo. Em termos gerais, entendemos que não basta que se adaptem novas soluções, a estas novas tecnologias, por via de “remissões ou aproximações de institutos”.
(…) a admissibilidade de tal método de obtenção de prova atípico esbarra na barreira da reserva de lei. A colocação de um recetor de GPS, no veículo do suspeito ou arguido, é crucial na investigação e combate à criminalidade altamente organizada, porém, tal meio de obtenção de prova, subreptício, claramente atentatório de direitos fundamentais, “continua sem cobertura legal expressa” – ao contrário do que acontece em alguns ordenamentos jurídicos europeus, como vimos. O não preenchimento da exigência de reserva de lei impede que este possa ser admissível e sejam válidas as informações probatórias obtidas por via deste.
Este meio de obtenção de prova é, como acima mencionamos, atentatório e limitador de alguns direitos fundamentais (arts.26.º, n.º 1 e 35.º, nºs 1 a 4, da CRP). As compressões de direitos fundamentais devem obedecer a determinados pressupostos, um deles é que “exista uma norma clara e previsível”. A falta de disposição normativa expressa e a impossibilidade do recurso à extensão (art.189.º, n.º2, do CPP) - como vimos anteriormente - obsta à sua admissibilidade.
Portanto, a restrição de direitos fundamentais para fins de investigação criminal só será legítima e só serão válidas as informações probatórias obtidas, caso se mostre respeitado quer a reserva de lei - que não acontece relativamente à localização GPS - quer a reserva de juiz e quer a proporcionalidade, à luz das normas constitucionais (cfr.arts.18.º, n.ºs 2 e 3, 32º, n.º 4, e, 165.º, n.º 1, al. b), todos da CRP). Impende sobre o legislador a tarefa de regular a localização GPS, fixando determinados pressupostos formais e materiais, que conjugados com a reserva de juiz constituem garantia suficiente contra o arbítrio na limitação dos direitos fundamentais. Num Estado de Direito, os cidadãos não podem ser controlados, secretamente e remotamente, pelos OPC de forma arbitrária.
De facto, não está previsto legalmente como é que este método pode ser utilizado, o que acaba por gerar diversas decisões e entendimentos, não dando assim uma salvaguarda devida aos cidadãos que podem ser objecto desta medida investigatória oculta e de “danosidade social polimórfica”. Regulando esta matéria, o legislador acompanharia o progresso tecnológico e não o deixaria ao livre arbítrio do julgador.»
E segue esta linha o Acórdão da RL de 13/04/2016[13],  também referido pela decisão recorrida: « A questão que se coloca é, porém, outra. É a de saber se um meio de obtenção de prova com estas características, que não se confunde nem se equipara minimamente com a intercepção das comunicações, é, entre nós, permitido, dada a ausência de lei que legitime a sua utilização, delimite os crimes que permitem essa utilização, estabeleçaeça o procedimento a adoptar e fixe a competência para autorizar o seu uso e controlar todo o procedimento que tiver lugar.
E, a nosso ver, a resposta é claramente negativa.
Em primeiro lugar, porque um aparelho de geolocalização, no caso, um “GPS tracker”, é um meio oculto de investigação que, por isso mesmo, só poderia ser admitido se existisse lei que o consagrasse como um meio de obtenção de prova legítimo e regulasse todos os referidos aspectos do seu regime. Não se compreenderia, de resto, que a localização celular de um telemóvel estivesse sujeita aos apertados limites traçados pelos artigos 252.º-A e 189.º, n.º2, do Código de Processo Penal e a geolocalização através de meios muito mais precisos fosse admitida sem qualquer limitação e sem controlo.
Para além disso, porque a utilização destes aparelhos viola de uma forma nítida a vida privada dos utilizadores dos veículos em que se encontrem instalados.
Embora o conceito de vida privada seja amplo e insusceptível de uma exaustiva definição, o seu conteúdo «vai para além dos estreitos limites inerentes à ideia anglo-americana de privacidade, que põe a ênfase no secretismo da informação pessoal e no recato do acto», abrangendo muitos âmbitos que extravasam a habitação e os domínios privados, atingindo mesmo «a zona de interacção de uma pessoa com os outros, mesmo num contexto público».
Partindo de um entendimento abrangente da vida privada como o enunciado, não podemos deixar de considerar que a utilização destes aparelhos, pelo sistemático e permanente registo de dados que propicia, cujo tratamento permite, e pela natureza dos mesmos, é susceptível de violar, tal como se disse, a vida privada dos utilizadores dos veículos em que se encontrem instalados.»
Já Benjamim Silva Rodrigues [14], numa posição algo mitigada, refere “A lei não previu, de forma expressa, este tipo de ingerência nos direitos fundamentais implicados, de tal modo que não julgamos, sem mais, que a cláusula (relativamente) aberta, do art. 125.º, do CPP, possa legitimar, sem mais, este tipo de investigação criminal. De qualquer forma, a considerar-se que ela é ainda compatível com os mandamentos constitucionais do art. 18.º, ns. 2 e 3, da CRP 1976 – proporcionalidade da medida face aos resultados a obter -, sempre haverá que referir que, por força dos artigos 32.º, n.º 4, e 202.º, ns. 1 e 2, da CRP 1976, a constrição ou limitação de tais direitos fundamentais tem de ser aferida e avaliada pela bitola dos “juiz das liberdades” de tal modo que, a requerimento dos órgãos de policia criminal, junto do Ministério Público e, consequentemente, deste junto daqueloutra autoridade judiciária, e havendo decisão favorável, será possível – no nosso entendimento – a colocação de um dispositivo eletrónico-digital de GPS com vista a possibilitar-se a localização geográfica em tempo real, da sua posição. Todavia, tal deve ocorrer em sede uma criminalidade com uma especial gravidade (média ou grande criminalidade), nunca no seio da “pequena criminalidade”.
Ao invés, no sentido da admissibilidade de recurso a este meio de obtenção de prova, temos o Acórdão da RP de 21/03/2013[15] e o Acórdão do STJ de 24/10/2013[16]. Refere o último estes arestos, sobre o uso de aparelhos de GPS, estarmos perante um meio oculto de vigilância, que pelo secretismo que representa traduz uma intromissão na vida privada em consequência do que o seu uso só será admissível se previsto na lei. E encontra o respaldo legal da mesma no art. 189.º, n.º 2 do Cód. Processo Penal - «A disposição não fala nos dados de localização de um alvo obtidos por GPS, mas deve fazer-se dela uma interpretação extensiva, de modo a abranger esses dados. De facto, o art. 189.º traduz o propósito do legislador de regular, além do mais, a localização de alvos por meios eletrónicos, referindo um desses tipos de localização, a celular. Dada a similitude de alcance dos dois meios de obtenção de prova, as razões que levaram a prever a localização celular aplicam-se ao GPS. (…) Donde a conclusão de que nesta matéria a letra da lei ficou aquém do seu espírito. Da própria razão de ser da lei resulta que o legislador, querendo referir-se a um género – meios eletrónicos de localização geográfica de um alvo – mencionou apenas uma espécie desse género. Dizendo a letra da lei menos do que se pretendia, há que alargar o texto legal fazendo-o corresponder ao seu espírito.»
E continuou o STJ nessa mesma linha, no Acórdão de 25/05/2016 [17], a respeito da localização celular «Mas, mesmo admitindo por mera hipótese, que nos encontramos perante o recurso a um meio com inexistência legal tal não significa necessariamente a sua proibição pois que este conceito não converge necessariamente com o de prova atípica. Efectivamente este tipo de prova assume hoje uma particular importância em função das constantes inovações tecnológicas e do desenvolvimento do conhecimento científico. A mesma é admissível face ao disposto no artigo 125 do Código de Processo Penal. A atipicidade será um princípio legítimo, respeitadas determinadas condições, para recorrer a meios de prova que não se encontrem, de todo, regulados pela lei, permitindo o legislador que se utilizem, nomeadamente, meios de aquisição de prova que o progresso tecnológico desvende.
Pressuposto para a assunção de uma prova atípica é a falta de um meio probatório típico apto a alcançar um resultado cognoscitivo. Consequentemente, a necessidade de recurso à prova atípica constitui condição da admissibilidade da mesma, reconhecendo-se a existência duma subsidiariedade face aos meios tipificados. (…)
Na verdade, muitos dos saberes importados para o processo corporizam-se através duma aquisição probatória que não está previamente determinada na lei o que convoca o tema da prova atípica e, nomeadamente, da prova atípica de natureza cientifica. A admissibilidade desta filia-se num critério de proporcionalidade, que parametriza toda a produção de prova, do ponto de vista da sua adequação à finalidade com a mesma prosseguida: a descoberta da verdade. Consequentemente, a necessidade de recurso a meio atípico de prova dá corpo e expressão ao do princípio da investigação, consagrado no art. 340 do CPP, ou seja, toda a prova, seja oficiosamente ordenada, seja requerida pelos sujeitos processuais, terá de se afigurar necessária, apropriada e idónea para se alcançar a verdade judicial.
À idoneidade, e necessidade, do meio junta-se o requisito do respeito pela dignidade da pessoa humana, ou seja, a consideração fundamental em que assentam as liberdades, direitos e garantias dos cidadãos e pilar essencial do sistema processual penal. Considerada como relevante, e admissível, a mesma prova atípica fica sujeita ao exercício do contraditório que consubstancia uma garantia da defesa e uma forma de construção da verdade judicial.
Verificados tais pressupostos deve atribuir-se à prova atípica a mesma eficácia probatória que é reconhecida à prova típica, não sendo legítimo estabelecer qualquer hierarquia quanto aos efeitos e resultados probatórios obtidos através de uma e outra prova, sob pena de se limitar abusivamente o princípio da liberdade de prova. Consequentemente, os efeitos probatórios da prova atípica, tal como acontece com os meios típicos de prova, serão concretamente apreciados pelo juiz, de acordo com a liberdade, legalmente conferida, de formação da sua convicção, na qual influem regras de experiência comum.
Em função da evolução tecnológica serão os meios técnicos científicos que mais frequentemente justificarão a aplicação do princípio da liberdade de prova consagrado no art. 125 do CPP na medida em que é a ciência que vai desvendando os métodos e instrumentos técnicos cuja inovação não permitiu uma previsão legal. Importa aqui diferenciar os métodos e instrumentos técnico-científicos que assumem natureza meramente instrumental derivada da experiência consolidada na prática judiciária, particularmente através da perícia ou de exames, daqueles meios que consubstanciam algo de inovador sem paralelo nem complementaridade no já existente».
O relator desta decisão, Conselheiro Santos Cabral, sustenta na anotação ao art. 189.º do Código Processo Penal [18] que não encontramos cobertura legal para o meio de obtenção de prova nesta “extensão”, mas entende «que a colocação de tal dispositivo de localização constitui um meio de prova que não contende, ou contende apenas de forma superficial, com o direito à intimidade (…). Se a colocação do dispositivo de localização assume uma dimensão meramente superficial, não valorizável, de violação da intimidade, os elementos obtidos pelo mesmo devem ser valorados nos termos do art. 125.º do CPP.» Não carecendo, segundo o respetivo entendimento, de autorização judicial o uso pelos órgãos de polícia criminal de localizadores GPS.
Também no sentido da admissibilidade (por associação lógica entre a localização celular e o uso de GPS em veículos e ainda que com algumas reservas decorrentes da falta de regulamentação legal expressa), sustenta Bruno Carvalho Pereira [19]:«Prosseguindo então a positivação do uso do GPS enquanto meio de obtenção de prova, sugerirmos que se vá mais longe e, à semelhança do regime francês e alemão, se alargue a admissibilidade de utilização de técnicas de localização espacial como o GPS para fins de localização de suspeitos, prevendo-se que seja uma ferramenta de dupla acção ou duplo alcance teleológico, não achando que seja necessário reajustar o epíteto sistemático do Título III «Dos meios de obtenção de prova», por considerarmos que a localização do suspeito é em si uma necessidade por ser ele o epicentro de toda a actividade investigatória.»
Mais recentemente, o acórdão proferido no âmbito do Processo n.º 3/20.9XDLSB-A.L1, deste Tribunal da Relação e desta secção [20], em que se fundamentam as alegações do recorrente, bem como Duarte Rodrigues Nunes[21] defendem a admissibilidade do recurso a este meio de obtenção de prova. Transcrevemos, na parte relevante:
« No mais, quanto a este meio de obtenção de prova, sempre se dirá que:
A possibilidade de obtenção de localização geográfica através do recebimento em tempo real de dados de "GPS" tem sido bastante discutida na jurisprudência e na doutrina, sendo atualmente, ao que sabemos, entendimento pacífico que o mesmo é de admitir, desde que devidamente acompanhado e controlado pelo juiz de instrução, seguindo o regime jurídico das interceções telefónicas.
(.. ..Com efeito, e meramente a título de exemplo, referimos o estudo realizado pelo Sr. Doutor Duarte Rodrigues Nunes, publicado na Revista Julgar Online
(…)
Nele se conclui, em síntese, que:
(. ..)Deste modo, tal como já havíamos concluído em estudo anterior:
«1. A obtenção, diretamente pelas autoridades, de dados de localização por meio de sistema GPS é admissível no Direito português, como meio de obtenção de prova atípico, à luz do art. 125.º do CPP.
2. Porém, de jure condito, por igualdade de razão face ao regime da obtenção de dados de localização celular diretamente pelas autoridades, a obtenção, diretamente pelas autoridades, de dados de localização por meio de sistema GPS está sujeita ao regime das escutas telefónicas, embora levando-se em conta aquilo que possa resultar da circunstância de o art. 189.º , n.º 2, do CPP não operar uma remissão para a totalidade do regime do art. 187.º. Tendo sido respeitado o aludido regime jurídico, tendo os dados assim obtidos sido controlados e validados pela Mma. JIC, tal método de obtenção de prova é lícito, razão pela qual, também neste conspecto, não merece provimento o alegado pelos recorrentes.
(…)”
*
Ora, como bem se examinou já no caso decidido no acórdão do TRP de 21-03-2013, embora ali a situação fosse diferente da dos autos, que passamos a citar por economia de exposição:
 “(...)A Constituição estabelece no seu artigo 32.º n.º 1 que:
"O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso", precisando depois desta cláusula geral de garantias de defesa e no seu n.º8, no que concerne ao regime da prova proibida, que "São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações".
Mais à frente e no artigo 34.º exprime que "O domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis (n.º 1), sendo "[É] proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvo nos casos previstos na lei em matéria de processo criminal".
Para o efeito e no que concerne à utilização da informática, estabelece no artigo 35.º , n.º 5 que "É proibido o acesso a dados pessoais de terceiros, salvo em casos excepcionais previstos na lei". Este bloco constitucional normativo, em conjugação com o disposto no artigo 25.º da constituição, que estabelece o direito fundamental à integridade pessoal e física, é a afirmação plena do princípio à integridade pessoal das pessoas, designadamente na dimensão de preservação da reserva da sua vida privada e contra a obtenção e utilização abusiva da informação em relação a essas mesmas pessoas.
A Constituição, mas agora no seu artigo 18.º, n.º 2, ao estatuir que "A Lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos", veio dirigir um princípio de intervenção mínima na contrição dos direitos fundamentais e nas liberdades públicas, assim como nos respectivos mecanismos jurídicos que os asseguram.
Mas também daqui resulta um nítido princípio da proporcionalidade, nas suas três variantes: da idoneidade ou adequação (i), da necessidade ou exigibilidade (ii), ambos respeitantes à optimização relativa do que é factualmente possível, e da proporcionalidade em sentido estrito ou da justa medida (iii), o qual se reporta à optimização normativa (AC. TC 11/83, 285/92, 17/84, 86/94, 99/99, 302/2006, 158/2008, acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt, assim como os demais a que se fizerem referência deste tribunal). Por sua vez, o Código de Processo Penal, depois de definir o objecto de prova, começando por dizer que são "todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime" (124.º, n.º 1), estabelece o princípio da legalidade da prova, ao consagrar no seu artigo 125.º que "São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei".
Não existe, no entanto, um regime de tipicidade de meios de prova nem de obtenção de prova, podendo, por isso, as mesmas estar ou não indicadas no Código de Processo Penal, havendo até regimes específicos de obtenção de prova, como sucede com a videovigilância, seja a realizada pelas autoridades policiais (Lei n.º 1/2005, de 10/Jan., ultimamente alterada pela Lei n.º 9/2012, de 23/Fev.; Dec-Lei n.º 205/2005, 29/Nov.), seja pelos serviços de segurança privada ou então como autoprotecção (Dec.-Lei n.º 35/2004, de 21/Fev.), incluindo o sistema de vigilância rodoviária (Lei n.º 51/2006, de 29/Ago.) ou nos casos específicos dos táxis (Lei n.º 33/2007, de 29/Ago.; Port. n.º 1164-A/2007, de 12/Set.).
 Depois e na concretização daquilo que se considera ser prova proibida o Código de Processo Penal estabelece um catálogo de métodos proibidos de prova no subsequente artigo 126.º, preceituando-se que "São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas" (n.º 1 ), acrescentando que "Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular" (n.º 3).
No que concerne à Lei de Protecção dos Dados Pessoais (Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro, que transpôs a Directiva n.º 95/46/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de Outubro de 1995) passou aí considerar-se como sendo "Dados pessoais" "qualquer informação, de qualquer natureza e independentemente do respectivo suporte, incluindo som e imagem, relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável ("titular dos dados"); é considerada identificável a pessoa que possa ser identificada directa ou indirectamente, designadamente por referência a um número de identificação ou a um ou mais elementos específicos da sua identidade física, fisiológica, psíquica, económica, cultural ou social" (art. 3.º, a)).
Tal lei "aplica-se ao tratamento de dados pessoais por meios total ou parcialmente automatizados, bem como ao tratamento por meios não automatizados de dados pessoais contidos em ficheiros manuais ou a estes destinados" (4.º, n. º 1). Mais será de referir que no regime jurídico de tratamento de dados pessoais e à protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas (Lei n.º 41/2004, de 18/Ago., que transpõe para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 2002/58/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Julho), consideram-se "Dados de localização" "quaisquer dados tratados numa rede de comunicações electrónicas que indiquem a posição geográfica do equipamento terminal de um assinante ou de qualquer utilizador de um serviço de comunicações electrónicas acessível ao público" ( l.º, al. e)).
Também o regime jurídico para a conservação e a transmissão dos dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e a pessoas colectivas, bem como dos dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, para fins de investigação, detecção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes (Lei n.º 32/2008, de 17/Jul., que transpôs a Directiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março), define dados como sendo "os dados de tráfego e os dados de localização, bem como os dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador" (2.º , n.º 1, al. a)).
Para o efeito de acesso a esses dados passou a ficar expresso que "A transmissão dos dados às autoridades competentes só pode ser ordenada ou autorizada por despacho fundamentado do juiz, nos termos do artigo 9.º".
Assim, dispõe-se neste artigo 9.º que "A transmissão dos dados referentes às categorias previstas no artigo 4.º só pode ser autorizada, por despacho fundamentado do juiz de instrução, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter no âmbito da investigação, detecção e repressão de crimes graves" (n.º 1), logo se acrescentando que "Só pode ser autorizada a transmissão de dados relativos:
a) Ao suspeito ou arguido; b) A pessoa que sirva de intermediário, relativamente à qual haja fundadas razões para crer que recebe ou transmite mensagens destinadas ou provenientes de suspeito ou arguido; ou c) A vítima de crime, mediante o respectivo consentimento, efectivo ou presumido" (n.º 3).
Mais se consignou que "A decisão judicial de transmitir os dados deve respeitar os princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade, designadamente no que se refere à definição das categorias de dados a transmitir e das autoridades competentes com acesso aos dados e à protecção do segredo profissional, nos termos legalmente previstos" (n.º 4), sendo certo que "O disposto nos números anteriores não prejudica a obtenção de dados sobre a localização celular necessários para afastar perigo para a vida ou de ofensa à integridade física grave, nos termos do artigo 252.º-A do Código de Processo Penal" (n.º 5). Nestes casos de autorização o juiz deve sempre proceder à comunicação da sua decisão, através da aplicação informática denominada "sistema de acesso ou pedido de dados às operadoras de comunicações" (SAPDOC), especificamente disponibilizada para o efeito (Portaria n.º 694/2010, de 16/Ago.).
O Tribunal Constitucional na sua leitura sobre aquele direito fundamental à autodeterminação informacional (35.º Constituição) veio considerar que a admissão e valoração de provas documentais relativas a dados pessoais dos arguidos provenientes de uma base informatizada e disponibilizados pela empresa "Via Verde" para efeitos de investigação criminal não necessitavam de autorização judicial, podendo o Ministério Público solicitar tais meios de prova, desde que o fizesse ao abrigo do disposto no artigo 182.º do Código de Processo Penal e não lhe fosse negado esse acesso mediante a invocação do sigilo profissional.
Para o efeito concluiu que "é permitida a admissão e valoração de provas documentais relativas a listagens de passagens de um veículo automóvel nas portagens das auto-estradas, que foram registadas pelo sistema de identificador da "VIA VERDE", armazenadas numa base de dados informatizada e ulteriormente juntas ao processo criminal, sem o consentimento do arguido e por mera determinação do Ministério Público, não viola qualquer parâmetro constitucional, nomeadamente o disposto nos artigos 35.º, n.º 4, e 32.º, n.º 4 e 8, da C.R.P." (TC 213/2008).
Mas posteriormente veio considerar que "o artigo 187.º, n.º 1, do C.P.P./87, ao permitir a intercepção e gravação das conversações ou comunicações telefónicas, permite também, inevitavelmente, o acesso a todos os dados de tráfego inerentes à concretização dessa técnica de ingerência nas telecomunicações, onde se incluem os dados da facturação detalhada cobertos pelo sigilo das telecomunicações e a localização celular. E, sendo esses dados de tráfego apenas uma parte dos dados facultados pela realização de "escutas telefónicas", nada obstará, e até imporá a exigência que as técnicas de intromissão nas comunicações telefónicas se limitem à medida necessária para alcançar o objectivo de investigação criminal visado, que o acesso a esses dados de tráfego seja efectuado, dispensando a realização duma "escuta telefónica", quando esta não se revele necessária aos fins da investigação." (TC 486/2009).
A propósito as Relações têm vindo a aceitar a admissibilidade da requisição da facturação detalhada de números de telefone desde que sujeitos às garantias do disposto no artigo 187.º do Código de Processo Penal (AC. TRCoimbra 2001/Mar./07, CJ 11/44; Ac. TG 2005/Jan./10; Ac. TRLisboa de 2006/Set./27; Ac. TRCoimbra 2006/Mai/17, 2006/Nov./16, acessíveis em www.dgsi.pt), sendo esse entendimento extensível à localização celular (AC. TRLisboa 2004/Jun./23, www.dgsi.p.t). Mas já se sustentou que o uso de localizador GPS (Global Positioning System) pelos órgãos de polícia criminal, colocados em veículos de pessoas investigadas em inquérito, não está sujeito a autorização judicial, considerando este sistema como um "irmão gémeo electrónico do clássico seguimento do alvo de pessoas a bordo de um carro" (AC. TRÉvora 2008/0ut./07, www.dgsi.pt).
Não cremos no entanto que a clássica vigilância convencional de seguimento seja equivalente à localização através do localizador GPS e à sua monitorização, através do registo dos respectivos dados, porquanto esta última permite traçar o perfil detalhado da vida pública e privada de uma pessoa, como ainda recentemente foi sublinhado (AC. Supremo Tribunal dos E. U.A., caso USA v. Jones, de 2012/Jan./23).
Por outro, lado não faria sentido que apenas fosse sujeita a autorização judicial a localização celular através dos dados telefónicos e já não o fosse o acesso a dados de localização através do mecanismo GPS, uma vez que se tratam de dados sensíveis, que dizem respeito à vida íntima e encontram-se no âmbito do direito fundamental à autodeterminação informativa.
Nesta conformidade e sempre que esteja em causa a localização através da tecnologia GPS (Global Positioning System) a mesma deve ser sujeita a autorização judicial, aplicando-se, por interpretação analógica, o disposto no artigo 187.º do Código de Processo Penal."
*
Efectivamente, consideramos que a localização de veículos por GPS foi não só devidamente autorizada por despacho judicial, pressuposto que não está cm causa como o estava naquele aresto, mas também que se entende na remissão para a promoção solicitante nos presentes autos as razões ali indicadas como sendo as razões do despacho e que estas são claramente compreensíveis quanto à sua oportunidade, necessidade e proporcionalidade.
O meio de detecção foi utilizado por não se encontrar outra forma de controle dos movimentos suspeitos dos visados e no quadro legal que o permitiu.
Os arguidos podem não concordar com as razões invocadas, e estão no seu direito, mas dizer que o despacho não foi fundamentado é manifestamente falso e inconsequente, pois dele se alcançam com facilidade os motivos da autorização para a localização por intermédio de localizadores GPS.
A sua proporcionalidade esteve em linha com a natureza da actividade investigada e, concordantemente, não se vislumbra que outra fundamentação seria de exigir, por esta corresponder à realidade e à própria natureza das coisas, posto que uma vigilância a todo o tempo e para as várias viaturas não se mostrava viável ou de muito difícil execução, para além da fortíssima probabilidade da mesma vir a ser detetada pelos suspeitos, através das invariáveis manobras de contra vigilância que sempre foram executando, e que bem constam descritas nos autos.
Por fim, não se alcança minimamente que a fundamentação encontrada no despacho recorrido, apesar da sua sobriedade, não haja cumprido o mínimo exigido na sua "função de controle judicial" do pedido de localização por gps.»
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), chamado a pronunciar-se nos casos Acórdão Uzun c. Alemanha, de 2/9/2010 e Acórdão Ben Faiza c. França, de 8 de maio de 2018[22], quanto à legalidade da utilização do GPS em veículos dos suspeitos, respondeu positivamente na primeira situação, por a lei alemã acolher o mencionado meio de obtenção de prova na sua legislação, e negativamente na segunda situação, por a lei francesa (anterior à alteração operada em 2014) não o fazer.
Na primeira situação, o TEDH considerou que a obtenção de dados de localização por meio de sistema GPS constitui uma ingerência no direito ao respeito da vida privada e familiar, do domicílio e da correspondência, garantido pelo art. 8.º, §1, da CEDH, mas suscetível de ser restringido nos termos previstos na lei interna dos Estados. Mais concluiu que o §100c I 1 b) StPO[23] constituía base legal suficiente para a previsão legal, compreensível para os seus destinatários, compatível com a rule of law (oferecendo uma proteção adequada contra intervenções arbitrárias dos poderes públicos) e o recorrente podia contar com as consequências que lhe poderiam advir da aplicação dessa norma.
O TEDH considerou, ainda que a ingerência visava um fim legítimo e era necessária numa sociedade democrática, perante a gravidade do crime, de molde a salvaguardar a segurança nacional e a segurança pública, prevenir a prática de crimes e proteger os direitos das vítimas. Sendo proporcional ao fim visado, por implementada em período de tempo muito limitado.
Já na segunda decisão  (Acórdão Ben Faiza c. França), considerou o TEDH que, ao contrário do que sucedia com o direito alemão, a obtenção de dados de localização por meio de sistema GPS não possuía base legal suficiente no direito francês vigente no momento em que tais dados foram obtidos, uma vez que a norma invocada pelas autoridades para lançar mão desse meio de obtenção de prova, o art. 81 do Code de procédure pénale, apenas continha uma referência muito genérica, ao dispor que «O Juiz de Instrução determina, de acordo com a lei, a realização de todos os atos de investigação que considerar necessários para a descoberta da verdade».
O TEDH entendeu, também, que no momento em que ocorreu a ingerência, a Jurisprudência francesa não permitia colmatar tais insuficiências da lei, dado que não existia Jurisprudência consolidada da Cour de Cassation em matéria de obtenção de dados de localização por meio de sistema GPS.
Mas também o Tribunal Constitucional sufragou entendimento, mais lato diríamos, do princípio da reserva de lei no Acórdão 486/2009[24] que julgou compreendida na anterior redação do art. 187.º/CPP 87 o acesso à faturação detalhada e localização celular. Refere este Tribunal que  “A imposição constitucional (artigo 34.º, n.º 4, da C.R.P.) duma previsão legal prévia para as técnicas de ingerência das autoridades públicas nas telecomunicações no domínio do processo penal, visa limitar ao máximo a existência de espaços de discricionariedade daquelas autoridades, numa área de elevado risco de lesão grave dos direitos e liberdades dos cidadãos, enfatizando a exigência das leis restritivas do artigo 18.º, n.º 2 e 3, da C.R.P.
O legislador constituinte procurou salvaguardar simultaneamente, por um lado, a segurança e a realização da justiça, e por outro lado, os direitos e liberdades individuais do cidadão, atribuindo a arbitragem entre ambos ao legislador: as medidas limitativas daqueles direitos que as entidades públicas que se movem no processo penal podem adoptar são apenas aquelas que o legislador tenha autorizado, e não todas as que se considerem necessárias e ajustadas ao caso. A medida das agressões aos direitos fundamentais dos cidadãos no âmbito do processo penal não é definida por aquelas autoridades públicas, nos seus actos concretos de ingerência, sendo obrigatório que corresponda aos modelos e técnicas de actuação previamente estabelecidos na lei.
 Neste domínio essas entidades só podem fazer o que o legislador lhes tiver permitido fazer.
(…)
A exigência de uma previsão legal expressa de qualquer compressão do direito fundamental ao respeito pela vida privada, em especial do direito ao sigilo das telecomunicações, foi estabelecida há muito tempo pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a respeito do art. 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem de 1950, não obstante as telecomunicações não aparecerem aí expressamente mencionadas (V. Decisão do TEDH de 6 de Setembro de 1978 – Caso Klass v. Alemanha; Decisão do TEDH de 2 de Agosto de 1984 – Caso Malone v. Reino Unido; Decisão do TEDH de 24 de Outubro de 1990 – Caso Huvig v. França; Decisão do TEDH de 6 de Dezembro de 2005 – Caso Agaoglu v. Turquia; Decisão do TEDH de 1 de Março de 2007 – Caso Heglas v. República Checa, todas acessíveis em www.echr.coe.int).
Mas o TEDH já acentuou que a verificação da existência da lei em questão conta não apenas com os textos legislativos propriamente ditos, como também com o sentido constante da jurisprudência dos tribunais superiores tirada a partir da interpretação desses textos, independentemente da matriz continental ou anglo-saxónica dos ordenamentos jurídicos em presença (V. Decisão do TEDH de 24 de Outubro de 1990 – Caso Huvig v. França; Decisão do TEDH de 1 de Março de 2007 – Caso Heglas v. República Checa).
A decisão recorrida perfilhou a opinião que a permissão de efectuar intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas, para recolha de prova, no âmbito do processo penal, expressa no n.º 1, artigo 187.º, do C.P.P., na versão anterior à Reforma de 2007, abrangia o acesso à facturação detalhada e a localização celular.
Importa observar que a decisão recorrida não foi propriamente inovadora quanto ao sentido da interpretação normativa adoptada, sendo possível detectar a existência de outras decisões de tribunais superiores que perfilharam a mesma solução hermenêutica por referência à mesma disposição legal, sendo ainda de realçar que nestes casos o pomo da discórdia incidia mais sobre a determinação da autoridade judiciária competente para a autorização destes tipos de intromissão nas telecomunicações – Ministério Público ou juiz de instrução – do que propriamente sobre a possibilidade legal de realização dessas intromissões (Vide, por exemplo, Ac. TRC de 14-3-2001 (Barreto do Carmo), na CJ, Ano XXVI, tomo II, p. 44; Ac. TRL de 23-6-2004 (Clemente Lima); Ac. TRG de 10-1-2005 (Francisco Marcolino); Ac. TRC de 17/5/2006 (Orlando Gonçalves); Ac. TRL de 27/9/2006 (João Sampaio); Ac. TRC de 15/11/2006 (Jorge Dias), todos disponíveis em  www.dgsi.pt).
O n.º 1, do artigo 187.º, do C.P.P., na redacção anterior à Reforma de 2007, dispunha o seguinte:
 “1. A intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas só podem ser ordenadas ou autorizadas, por despacho do juiz quanto a crimes:
a) Puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a três anos,
b) Relativo ao tráfico de estupefacientes;
c) Relativo a armas, engenhos, matérias explosivas e análogas;
d) De contrabando; ou
e) De injúria, ameaça, de coacção, de devassa da vida privada e perturbação da paz e sossego, quando cometidos através de telefone;
se houver razões para crer que a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova”.
Na verdade, no plano puramente literal, o texto da disposição legal adjectiva em questão não menciona de forma explícita a possibilidade de aceder à facturação detalhada e a localização celular, aparentando, numa leitura imediatista, referir-se somente à possibilidade de acesso aos dados de conteúdo, através da intercepção e gravação das conversações ou comunicações telefónicas, ou seja às apelidadas “escutas telefónicas”.
Mas não se pode deixar de ter presente que a norma não se confunde com as fontes de direito e que só a actividade interpretativa é que nos dá o sentido da fonte ou o conteúdo da regra jurídica (V. J. BAPTISTA MACHADO, em “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, pág. pp. 175-176, da 3.ª Reimpressão, de 1989, da Almedina, e J. OLIVEIRA ASCENSÃO, em “O Direito – Introdução e Teoria Geral “, pág. 479, da ed. de 2001, da Coimbra Editora), não descurando, contudo, as necessárias cautelas exigidas pelo respeito devido ao princípio da legalidade em processo penal, acrescidas pelo elevado risco de produção de graves lesões a direitos fundamentais que encerra um preceito que autoriza operações de intromissão das autoridades públicas nas telecomunicações.
Daí que a necessária actividade interpretativa deva ter específicas limitações de modo a evitar-se a extensão da admissão de utilização de técnicas de ingerência nas telecomunicações, cujo grau de ofensa aos direitos e liberdades do cidadão não tenha sido ponderado pelo legislador.
(…)
A permissão de realização de intercepções e de gravações de conversações e comunicações telefónicas abrange não só o acesso ao conteúdo dessas comunicações, mas também a todos os dados fornecidos pela realização dessas intercepções.
Tendo presente a descrição acima efectuada do modo de efectivação das técnicas de acesso à facturação detalhada e localização celular e dos dados por ela revelados, verifica-se que a realização das referidas intercepções faculta automaticamente o acesso a esses dados de tráfego.
Na verdade, a intercepção e gravação das conversações ou comunicações telefónicas incorpora necessariamente uma “facturação detalhada” dessas comunicações, que é levada a cabo pelo órgão de polícia criminal interveniente e que se materializa no auto de gravação a juntar ao processo, o qual contém, relativamente ao aparelho de telefone escutado, além de outros dados, os números de telefone chamados, a data da chamada, a hora de início e a duração de cada chamada, isto é os elementos de tráfego cobertos pelo sigilo das telecomunicações constantes da facturação detalhada.
Por outro lado, as referidas intercepções das comunicações telefónicas são sempre necessária e tecnicamente precedidas da localização celular do equipamento móvel em causa, sem a qual não pode haver estabelecimento e transmissão das comunicações.
Daí que seja possível concluir, com recurso a um simples raciocínio lógico, que o artigo 187.º, n.º 1, do C.P.P./87, ao permitir a intercepção e gravação das conversações ou comunicações telefónicas, permite também, inevitavelmente, o acesso a todos os dados de tráfego inerentes à concretização dessa técnica de ingerência nas telecomunicações, onde se incluem os dados da facturação detalhada cobertos pelo sigilo das telecomunicações e a localização celular.
E, sendo esses dados de tráfego apenas uma parte dos dados facultados pela realização de “escutas telefónicas”, nada obstará, e até imporá a exigência que as técnicas de intromissão nas comunicações telefónicas se limitem à medida necessária para alcançar o objectivo de investigação criminal visado, que o acesso a esses dados de tráfego seja efectuado, dispensando a realização duma “escuta telefónica”, quando esta não se revele necessária aos fins da investigação.
Estas conclusões foram obtidas através de uma leitura que teve presente o alcance real das técnicas de ingerência nas telecomunicações expressamente autorizadas pelo legislador, para, recorrendo-se a um raciocínio de pura lógica, apurar o conteúdo integral da autorização legal.
A interpretação normativa aqui sindicada mais não é que o resultado duma leitura que, partindo do elemento linguístico do preceito interpretado, recorre a um elemento lógico para determinar objectivamente um conteúdo implícito da previsão legal.”
Aqui chegados, damos como assente estarmos perante um meio oculto de obtenção de prova (já não será assim com o recurso aos dados de localização celular, ainda que com utilização de tecnologia GPS, por o visado poder contar com a mesma no respetivo aparelho de telecomunicação móvel). E também diríamos ser unanimemente aceite a essencialidade do recurso a este meio de obtenção de prova, em especial na criminalidade mais grave e organizada.
O TEDH, como vimos, não tem uma posição de princípio contrária à utilização deste meio de obtenção de prova, que considera configurar uma ingerência no respeito ao direito da vida privada e familiar, do domicílio e da correspondência consagrado no art. 8.º da CEDH, mas menos intrusivo que outros, posto que tenha acolhimento na lei interna.
Mas é evidente que a questão do recurso a meios ocultos de investigação continua a merecer tratamento dissonante e a reclamar um olhar mais atento do legislador nacional,  aparentemente alheio ao que se discute no Direito Internacional e no Direito Europeu. Trilhar o caminho já percorrido pelo legislador alemão e francês não será, porventura, difícil, assim se encontre motivação, alicerçada na necessidade de balancear o imperativo de segurança e a salvaguarda das garantias inerentes ao Estado de Direito.
E são por demais reconhecidas as dificuldades decorrentes da inércia legislativa ou da frágil capacidade em prever soluções legais, com particular impacto em áreas de restrição dos direitos fundamentais. A abordagem casuística, dispersa, tardia que continua a merecer o tratamento dos meios ocultos de investigação não pode deixar de nos merecer reparo.
Orientando-nos para o meio que, em concreto, nos ocupa, entendemos que na panóplia de meios ocultos de investigação, a utilização de aparelhos de GPS, de uso muito comum na atualidade, importa, de facto, um nível pouco relevante de restrição ao núcleo dos direitos fundamentais consagrados (arts. 25.º, 26.º, 27.º, 34.º e 35.º da CRP) não sendo, nomeadamente, suscetível de sacrificar o direito ao silêncio, nem apto a obter “confissões” inconscientes, não livres, como ocorre com o recurso a outros meios ocultos de investigação.
O nosso Código Processo Penal consagra a regra da não taxatividade dos meios de prova e dos meios de obtenção de prova subordinados aos demais limites constitucionais e legais de admissibilidade, nomeadamente os consagrados no art. 126.º do mesmo diploma (métodos proibidos de prova). Entre estes e ressalvados os casos previstos na lei, são nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respetivo titular (n.º 3).
A pedra de toque é, em nosso entender, se a limitação dos direitos fundamentais decorrente do recurso ao meio de obtenção de prova em causa (GPS) é de tal forma gravosa que, ao não merecer regulamentação legal expressa (no sentido de completa previsão normativa), recaí em método proibido de prova (art. 126.º, n.º 3 do Cód. Processo Penal) ou se, não encontrando regulamentação expressa, mas não limitando, de forma exagerada os direitos dos visados, encontra respaldo legal no art. 125.º do Cód. Processo Penal e 18.º ns. 2 e 3 da CRP.
Fomos respondendo neste último sentido. E, de facto, reconhecendo os riscos de interpretações analógicas e extensivas em matérias restritivas de direitos fundamentais, e que o art. 189.º do Cód. Processo Penal ficou aquém do pretendido, ainda assim as decisões dos nossos tribunais têm maioritariamente procurado enquadramento legal para o uso de aparelhos GPS, sopesado o menor grau de intrusão nos direitos fundamentais que o recurso a este meio oculto de investigação aporta e a natureza gravosa da criminalidade a cuja investigação se vocaciona, bem como a cobertura legal que o art. 125.º do Cód. Processo Penal confere aos avanços tecnológicos.
Na verdade, podendo representar algum grau de compressão na esfera da vida privada, na liberdade ambulatória, pela potencialidade de espelhar a movimentação de suspeitos e pelo subsequente tratamento informático dos dados por essa via obtidos, a verdade é que essa compressão pode sempre ser limitada e não terá o uso destes dispositivos, à partida, de contender com outros direitos fundamentais. E pragmaticamente, sem prejuízo do princípio, que temos por basilar, da confiança nos agentes policiais, do Ministério Público e judiciais, preferimos um recurso controlado judicialmente a este meio que o seu uso camuflado numa investigação (sendo um meio de fácil acesso e utilização, os resultados podem ser introduzidos sem grande esforço no processo ocultando-se a indicação da respetiva proveniência). Esta utilização controlada permitirá não só o exercício (oportuno) do contraditório, como o direito a ver sindicadas as decisões tomadas por via de recurso, o que constitui uma inegável garantia de defesa dos sujeitos processuais.
E o recurso à sua utilização poderá, até, tornar desnecessário o uso de meios mais intrusivos dos direitos dos visados (como, por exemplo, as interceções das comunicações móveis ou entre presentes).
Na leitura que fazemos, para além do STJ, também o Tribunal Constitucional, nos arestos acima mencionados (213/2008 e 486/2009) e o TEDH (Acórdão Uzun c. Alemanha, de 2/9/2010 e Acórdão Ben Faiza c. França, de 8 de maio de 2018[25]) admitem alguma elasticidade no âmbito da reserva de lei exigida, sem que esta tenha de se reconduzir à regulamentação expressa de todos os aspectos técnicos dos meios de obtenção de prova, compatível com uma cláusula como a do art. 125.º do nosso Cód. Processo Penal (não idêntica à prevista na legislação francesa anterior à alteração de 2014 e sobre a qual se pronunciou o Acórdão Ben Faiza c. França).
Admitem, também, que o sentido dado pela jurisprudência constante dos tribunais superiores sobre os textos legais é um dos vetores a considerar na verificação da existência de lei e os nossos Tribunais, como vimos, têm-se pronunciado maioritariamente pela admissão deste meio de prova, posição que, pelos motivos expostos, acolhemos.
Não estamos, em nosso entender perante um meio de obtenção de prova abusivo, particularmente intrusivo, pelo que não caí no regime das proibições de prova. Reconhecendo-se, contudo, os perigos das abordagens casuísticas, determinadas desde logo pela grande divergência doutrinária e jurisprudencial que o tema convoca (e que só por si e por razões de segurança jurídica e de preservação do Estado de Direito já deveriam ter determinado o legislador nacional a agir) entendemos que o recurso a este meio de obtenção de prova deverá ser judicialmente controlado, aplicando-se o regime legal que do mesmo mais se aproxima – no caso o da localização celular (arts. 187.º a 189.º do Cód. Processo Penal). Tal implica que só poderá ser utilizado este meio de obtenção de prova em casos de criminalidade grave, não podendo os resultados pretendidos ser obtidos por meio distinto e revelando-se o mesmo proporcional aos fins visados. E a natureza oculta do meio, ainda que o potencial lesivo de direitos fundamentais seja, em nosso entender, mínimo, reclama não só autorização mas também controlo judicial, com verificação periódica. A duração da sua utilização deverá, de igual forma, ser concretamente determinada e limitar-se ao mínimo necessário.
Sendo, por isso e em nosso entender, admissível o recurso à colocação de aparelhos GPS, importa ponderar se, na situação concreta, é de deferir a pretensão do recorrente, o que desde já nos merece resposta negativa.
Na verdade, como já referimos a utilização deste meio de obtenção de prova é excecional e subsidiário. Apenas será de autorizar se os resultados forem essenciais à investigação e não poderem ser obtidos com recurso a meio alternativo.
Na situação concreta, o Ministério Público promoveu a prorrogação da colocação dos aparelhos GPS excecionalmente, até ao termo da época da pesca. Na versão sustentada em recurso nem sequer promoveu qualquer prorrogação. A manter-se esta versão, não poderia este Tribunal determinar qualquer autorização para utilização do referido meio de investigação, por não sustentado nem requerido pelo titular da ação penal, considerando que nos encontramos em fase de inquérito.
Sendo o caso, como nos parece, de pretender efetivamente o Ministério Público o uso do GPS nas viaturas dos suspeitos (ou não teria qualquer utilidade prática o presente recurso) sempre temos de referir que, quer pelo lapso de tempo já decorrido, quer pela circunstância de não se terem apresentado quaisquer dados recolhidos na sequência das anteriores autorizações concedidas, não se mostra justificada a atualidade e a imprescindibilidade no recurso a este meio de obtenção de prova.
Improcede, por isso, na totalidade, o presente recurso.
*
4. Decisão
Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público, mantendo-se, por razões distintas, a decisão do Tribunal a quo que indeferiu a autorização para instalação física de aparelhos de localização geográfica, vulgarmente designados de GPS, em veículos utilizados pelos suspeitos.

Sem custas (art. 522.º. n.º 1 do Cód. Processo Penal).
Notifique.
*
Lisboa, 8 de novembro de 2022
Mafalda Sequinho dos Santos
Capitolina Fernandes Rosa
Carla Francisco
_______________________________________________________
[1] Ac. TRL 22/06/2016, Proc. 1101/14.3PBSXL.L1-3
https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRL:2016:1101.14.3PBSXL.L1.3.3F/
[2] Recursos Penais, 9.ª ed., Simas Santos e Leal-Henriques, p. 26/27.
[3] Relator Santos Cabral, proc. n.º 171/12.3JBLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt.
[4] Ainda que não muito abordada do ponto de vista processual penal.
[5] Havendo até quem admita, que “Não carece de prévia autorização judicial o uso pelos órgãos de polícia criminal de localizadores de GPS colocados em veículos utilizados por pessoas investigadas em inquérito (e pelo tempo tido por necessário pelo órgão de polícia criminal encarregue do mesmo)” TRE 7/10/2008, proc. 2005/08-1, Rel. Martinho Cardoso.
[6] Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 137.º, n.º 3950, “Bruscamente no verão passado”, p. 277 e ss.
[7] Julho de 2018, disponível in ulfd140157_tese.pdf.
[8] Setembro 2017, Faculdade Direito, Universidade Nova Lisboa, http://hdl.handle.net/10362/31036.
[9] Comentário ao Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª Edição, pp. 316 e 528.
[10] “Que Futuro Para o Direito Processual Penal”, 2009, p. 525 a 551.
[11] Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 137.º, n.º 3950, “Bruscamente no verão passado”, p. 277 e ss.
[12] “A localização GPS como meio de obtenção de prova no processo penal português” Universidade Católica, Faculdade Direito do Porto, 2020 - https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/33643/1/00187_02_antonio-sousa-penha-345018057-disserta%C3%A7ao-integral.pdf
[13] Proc. n.º 2903/11.8TACSC.L1-3 in www.dgsi.pt.
[14] Da Prova Penal, Tomo II, pp. 92 e ss..
[15] Relator Joaquim Gomes, CJ, Ano XXXVIII, T. II/2013, p. 208 a 210, onde se refere, nomeadamente que “I – Carece de autorização judicial a localização de suspeito através de GPS” e se enquadra a legalidade de recurso a este meio de obtenção de prova parcialmente reproduzido aquando da citação do Acórdão desta secção da RL de 11/05/2021 (ver página 24 e ss.).
[16] Relator Manuel Joaquim Braz, CJ STJ, Ano XXI, T. III/2013, p. 200 a 207.
[17] Relator Santos Cabral, proc. n.º 171/12.3JBLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt.
[18] Almedina, 4.ª ed., p 776 a 778.
[19]“O Sistema de Geolocalização Gps no Processo Penal Português”, Universidade de Lisboa, Faculdade de Direito de Lisboa, Dissertação de Mestrado, 2016.
[20] De 11/05/2021, Relator Agostinho Torres.
[21] “Sobre a admissibilidade da obtenção de dados de localização através de sistema GPS à luz do Direito português e do Acórdão Ben Faiza c. França do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem”, Julgar online, março 2019.
[22] In https://hudoc.echr.coe.int.
[23] Que dispunha: «É possível, sem o conhecimento da pessoa em questão,
1.
a) tirar fotografias e recolher imagem,
b) utilizar outros meios técnicos específicos para fins de vigilância para investigar os factos ou localizar o suspeito sempre que a investigação diga respeito a um crime de considerável gravidade, quando a investigação dos factos ou a localização do suspeito forem, de outro modo, impossíveis ou muito difíceis de realizar (...)
(…)
(2) As medidas previstas no primeiro parágrafo só podem ser dirigidas contra o arguido (...) As medidas previstas no primeiro parágrafo, números 1, alínea b), e 2, só podem ser dirigidas contra outras pessoas se existirem fundadas razões para crer que estão em contacto com o suspeito e que a medida permitirá investigar os factos ou localizar o suspeito e que, de outro modo, tal seria impossível ou muito difícil de realizar. (…)»
[24] Relator Cura Mariano.
[25] In https://hudoc.echr.coe.int.