Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
85/21.6IDLSB.L1-3
Relator: MARIA DA GRAÇA DOS SANTOS SILVA
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
FIEL DEPOSITÁRIO
IVA
APRECIAÇÃO DA PROVA
MEDIDA DA PENA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I–No crime de abuso de confiança fiscal, o valor do IVA, cuja retenção consubstancia a sua prática, é da exclusiva propriedade do Estado, representado pela autoridade tributária.

II–O valor do IVA não é lucro da empresa.

III–O vendedor de bens e serviços, adstrito ao pagamento de IVA, age unicamente na qualidade de fiel depositário. Isto significa que o recebe e detém unicamente como se fosse uma longa mão da autoridade tributária, de onde lhe vem a obrigação inultrapassável de o entregar àquela, nos tempos e condições estabelecidas na legislação tributária.

IV–O agente não tem qualquer possibilidade de discricionariedade relativamente ao uso que lhe quer dar.

V–Enquanto fiel depositário do valor recebido a título de imposto, recai sobre ele a inalienável obrigação de entregar aos cofres públicos o valor do imposto que lhe foi confiado e os frutos que gerou (juros, no caso) nos termos definidos por lei, sob pena de não o fazendo incorrer em responsabilidade penal.

VI–A comissão do crime resulta precisamente do facto de o empresário se apropriar desse valor e, fazendo-o coisa sua, amealhá-lo ou empregá-lo no cumprimento de obrigações emergentes da sua actividade ou outras, sejam elas de que natureza forem.

VII–O resultado de um julgamento não se confunde com um repositório de declarações (muitas vezes contraditórias), a que o Tribunal tenha que conceder crédito acrítico e absoluto.

VIII–A descrição da prova produzida em audiência, em sede de fundamentação da aquisição probatória, não se confunde com a creditação do que foi alegado. É por isso que a lei exige que o Tribunal faça uma apreciação crítica dessa prova.

IX–A assunção da lista dos factos que se provaram e não provaram resulta da análise crítica de toda a prova produzida, segundo regras de experiência comum, em coordenação com os factos creditados, ou seja, de uma operação de cotejamento de toda a prova, retirando da equação do provado todos os factos invocados que não mereceram crédito, segundo a percepção do julgador.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, em conferência, na 3ª Secção Criminal, deste Tribunal:


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I–Relatório:


Em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular,
- “...”, com o NIPC 5.........7, com sede na ...;
- AA, casado, economista, filho de BB e de CC, natural da ..., nascido em .../.../1950, portador do Cartão de Cidadão n.º …., residente na ...,
Foram acusados, pronunciados, julgados e condenados pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. nos artigos 105º/1, 22º/ 2 do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), e 73º/1, al. c), do Código Penal (CP), na pena especialmente atenuada de cento e setenta dias de multa, à taxa diária de € 60,00 a sociedade ... e de cem dias de multa, à taxa diária de € 50,00, o arguido AA,
Os arguidos apresentaram contestação, defendendo que, sendo o dolo requisito essencial para o preenchimento do tipo subjectivo do crime de abuso de confiança fiscal e não tendo eles agido com dolo, não cometeram o crime em causa.
Recorrem, agora, ambos os arguidos da referida condenação.

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II–Fundamentação de facto:

Na sentença recorrida foram considerados os seguintes os factos:

Provados

1.–A “...” é uma sociedade por quotas, portadora do NIPC 5.........7, com sede na ..., em Lisboa e que tem por objecto social a exploração de estabelecimentos de ensino particular, de todos os tipos e graus de ensino, podendo explorar qualquer outro ramo em que os sócios acordem.
2.–O arguido AA exerce as funções de gerente de direito e de facto da sociedade arguida desde 31 de Janeiro de 2011 até á presente data.
3.–Para efeitos de IVA a 1.ª arguida está enquadrada no regime normal de periodicidade mensal.
4.–No exercício da sua actividade, os arguidos procediam à cobrança de IVA aos seus clientes, estando obrigados a entregar tais quantias nos cofres do Estado, a quem pertenciam os montantes liquidados a esse título.
5.–Os arguidos enviaram, efectivamente, à Administração Fiscal, a competente declaração periódica referente ao mês de Junho de 2020, prevista no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do CIVA, tendo sido apurado que o valor do imposto a entregar ao Estado era de € 42.034,41.
6.–No entanto, os arguidos não fizeram acompanhar a referida declaração periódica do respectivo meio de pagamento.
7.–Acresce que tal montante não foi entregue ao Estado pelos arguidos no prazo legal, nem nos 90 dias subsequentes.
8.–Notificados para procederem ao pagamento da referida quantia, acrescida dos juros e da coima respectiva, mais uma vez abstiveram-se de o fazer, antes se apoderando de tal valor, o qual fizeram seu.
9.–Os arguidos bem sabiam que tal dinheiro, cobrado aos clientes a título de IVA, não lhes pertencia e que deveria ter sido declarado, devidamente liquidado e entregue nos cofres do Estado, nos prazos legais.
10.–O arguido AA agiu em nome e no interesse da sociedade arguida “...”, bem como no seu próprio interesse.
11.–Ao não entregarem nos cofres do Estado o IVA mencionado, integrando-o na esfera patrimonial da sociedade arguida, agiram os arguidos de forma livre e com o propósito concretizado de prejudicar o Estado e de obter vantagem patrimonial a que não tinha direito, resultado que representou.
12.–Mais agiram de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo, que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
13.–O arguido AA utilizou o valor do IVA, a que se faz referência em 5., para efectuar pagamento de salários aos empregados da arguida sociedade.
14.–Os arguidos “...”, e AA já procederam ao pagamento do valor em débito, a título de IVA, concernente ao período a que é feita referência em 5., no valor de € 42.034,41 e respectivos acréscimos legais.
15.–A sociedade arguida “...” celebrou um contrato com a ..., no âmbito do qual procede á gestão do infantário da ....
16.–A sociedade arguida “...” explora o DD que se dedica ao ensino pré-escolar, 1º, 2º e 3º ciclos do Ensino Básico, e é gestora do ... da .....
17.–Os estabelecimentos de ensino a que é feita menção em 16., têm capacidade para cerca de 860 alunos.
18.–A arguida sociedade pagava á Câmara Municipal de Lisboa, no ano de 2021, o montante mensal de € 39.770,06, a titulo de renda, com o arrendamento do espaço onde se encontra instalado o DD.
19.–A arguida sociedade teve, no mês de Abril de 2021, a despesa de € 3.444,00 com desenvolvimento de aulas de Engenharia, Artes e Criatividade, no DD.
20.–A arguida sociedade suportava, no ano de 2021, a despesa mensal de € 4.920,00 pelo serviço de vigilância humana que lhe era prestado pela sociedade ...
21.–No ano de 2020, a sociedade arguida teve a despesa anual de € 7.007,51, pelos serviços de medicina do trabalho.
22.–A arguida sociedade tem as seguintes condenações averbadas no respectivo registo criminal:
- foi condenada, por sentença datada de .../.../2019, transitada em julgado a .../.../2021, pela prática, no ano de ..., de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal agravado, na forma continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, e de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena única de 1100 dias de multa á taxa diária de € 40,00, o que perfaz € 44.000,00;
- foi condenada, por sentença datada de .../.../2020, transitada em julgado a .../.../2021, pela prática a .../.../2018, de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena de 75 dias de multa á taxa diária de € 15,00, o que perfaz € 1.125,00. Por despacho datado de .../.../2021, foi julgada extinta, pelo respectivo pagamento, a pena de multa.
23.–O arguido AA possui, como habilitações literárias, a licenciatura em economia.
24.–Já exerceu as funções de administrador de uma Instituição Financeira.
25.–Actualmente encontra-se reformado, recebendo uma pensão de reforma, no montante mensal de € 6.000,00.
26.–Continua a exercer as funções de gerente da sociedade arguida.
27.–É pessoa com hábitos de trabalho.
28.–A esposa do arguido encontra-se reformada, recebendo uma pensão de reforma no montante mensal de € cerca de € 3.200,00.
29.–A esposa do arguido é responsável pela actividade pedagógica dos referidos estabelecimentos de ensino, o DD, e o ....
30.–O arguido tem dois filhos, que contam as idades de 49 e 52 anos, respectivamente.
31.–O arguido AA tem as seguintes condenações averbadas no respectivo registo criminal:
- foi condenado, por sentença datada de .../.../2019, transitada em julgado a .../.../2021, pela prática, no ano de ..., de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal agravado, na forma continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, e de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão, declarada suspensa na sua execução pelo período de 5 anos, com a condição de o arguido, no prazo de 5 anos, proceder ao pagamento á Administração Tributária, de parcela do montante das importâncias em divida á Administração Tributária;
- foi condenado, por sentença datada de .../.../2020, transitada em julgado a .../.../2021, pela prática a .../.../2018, de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena de 50 dias de multa á taxa diária de € 10,00, o que perfaz € 500,00. Por despacho datado de .../.../2021, foi julgada extinta, pelo respectivo pagamento, a pena de multa.

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Não provados:

Não se provou que:
a)-a sociedade arguida atravessou e atravessa momentos muitíssimo difíceis, fruto da contracção das dinâmicas económico-financeiras nacionais e globais e que se vieram a agravar com a pandemia de Covid-19, que existia em Portugal á data dos factos e que se prolongou para além dessa data;
b)-a sociedade arguida sempre se mostrou escrupulosamente cumpridora das suas obrigações fiscais, contributivas e contratuais;
c)-a grave situação financeira que a sociedade arguida agora ultrapassa se deve, exclusivamente, ao incumprimento dos pagamentos pelos seus devedores, o que, consequentemente, implicou a falta de liquidez da sociedade para proceder aos pagamentos que são devidos e que se agravou com a pandemia Covid-19;
d)-no âmbito do contrato referido em 15., não raras vezes, a ... se atrasa no pagamento dos serviços prestados pela arguida sociedade, gerando uma situação de instabilidade financeira na sociedade arguida;
e)-diversas vezes, os encarregados de educação dos alunos que frequentam o estabelecimento de ensino, não procedem ao pagamento das mensalidades que são devidas, levando, inclusivamente, a sociedade arguida a propor procedimentos de injunção de modo a conseguir obter o pagamento daquilo que lhe é devido;
f)-a falta de pagamento das mensalidades dos alunos que frequentam os estabelecimentos de ensino a que é feita menção em 16., contribui para a falta de liquidez da arguida sociedade para fazer face ás despesas;
g)-a sociedade arguida despendia á data dos factos, e despende actualmente, o montante mensal de cerca de € 29.000,00 com os vencimentos dos seus trabalhadores;
h)-a falta de pagamento atempado do montante de IVA, a que é feita menção em 5., se deveu á falta de disponibilidade financeira da sociedade arguida;
i)-tal falta de disponibilidade financeira adveio da falta de recebimento total, parcial, ou atempada, por parte da sociedade arguida de todos os montantes que lhe são devidos pelos seus devedores e da enorme crise financeira que a pandemia Covid-19 originou;
j)-a sociedade arguida passava por uma grave situação económica, pelo que teve de destinar tudo o que recebia a fazer face ás despesas necessárias ao funcionamento dos estabelecimentos de ensino;
l)-a liquidez de que a sociedade arguida dispunha era insuficiente para pagar salários e pagar também impostos, bem como para fazer face a todas as despesas inerentes ao dia-a-dia da sociedade arguida;
m)-a sociedade arguida passava por uma grave situação económica, pelo que teve de optar nos seguintes termos: ou pagava os salários dos seus colaboradores e continuava a prestar serviços aos seus clientes, de modo a ser possível continuar a desempenhar a sua actividade e, assim, gerar dinheiro que a permitisse fazer face ás despesas, não lhe sendo, assim, possível pagar o IVA, ou, deixava de pagar salários, deixava de prestar serviços, perdendo os seus colaboradores, fechando portas e aumentando as suas dividas;
n)-os arguidos não decidiram apoderar-se do montante de IVA a que é feita referência em 5.;
o)-os arguidos não agiram com o propósito concretizado de prejudicar o Estado e de enriquecer á custa dele;
p)-os referidos estabelecimentos de ensino têm instalações modernas, que têm sido sucessivamente adaptadas ao crescimento e necessidades das escolas;
q)-tanto o ... como o ... se pautam por um ensino de elevada qualidade, tendo como principais pilares a busca pela excelência e pelo humanismo;
r)-a sociedade arguida goza de bom nome, sendo positivamente reconhecida e largamente recomendada pelos encarregados de educação dos seus alunos;
s)-o arguido AA é pessoa bem considerada pelos seus familiares, amigos, colegas e subordinados.

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III–Fundamentação probatória:

O Tribunal a quo justificou a aquisição probatória nos seguintes termos:
«A convicção do Tribunal relativamente aos factos provados fundou-se nas declarações do arguido AA, que confirmou a factualidade descrita nos pontos 1., a 10., com a ressalva de que afirmou que ao agir da forma mencionada na acusação não o fez no seu próprio interesse, e que nunca existiu uma intenção deliberada da sociedade arguida de não proceder ao pagamento do IVA, explicitando que tal omissão de pagamento resultou das dificuldades que a sociedade arguida atravessou e da prioridade conferida ao pagamento dos salários aos trabalhadores, e no depoimento testemunhal de EE, Inspectora Tributária e instrutora do inquérito que esteve na génese dos presentes autos, que elaborou o relatório de fls. 70 a 73 vº, cujo teor confirmou em audiência de julgamento, tendo, ainda confirmado que a divida de IVA em apreciação se encontra já paga, estando a situação tributária regularizada, em conjugação com a prova documental junta aos autos, a saber, documentos de fls. 21 a 26, e fls. 31 a 50 vº, notificações efectuadas nos termos do disposto no art. 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT, fls. 60 e 61, certidão permanente da sociedade arguida de fls. 82 a 88, nos documentos 1, 2, 3, 4 e 7, juntos com a contestação, documentação com referência citius 32966476 de .../.../2022, remetida pela ..., e documentação com referencia citius 30464715 de .../.../2021.
Os factos dos pontos 15. a 21., e 23. a 30., resultaram provados tendo por base as declarações do arguido AA, que se consideraram credíveis, não sendo postas em causa, e os documentos 1, 2, 3, 4 e 7, juntos com a contestação.
Para dar como provados os antecedentes criminais do arguido AA e da arguida sociedade, o tribunal atendeu ao teor dos certificados de registo criminal, com data de emissão, respectivamente, de .../.../2023 e .../.../2023.
No que tange à matéria de facto considerada como não provada, tal ficou a dever-se à circunstância de nenhuma prova ou nenhuma prova suficientemente consistente ter sido produzida acerca da mesma, encontrando-se parte dela em contradição com a matéria de facto que o tribunal considerou como provada.
A este respeito, importa ponderar que, tendo o arguido AA destinado o montante de IVA, recebido dos clientes, ao pagamento de salários aos empregados da arguida sociedade, se conclui que a falta de pagamento atempado do IVA ao Estado, não adveio de falta de disponibilidade financeira da sociedade arguida.»

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IV–Recurso:

Os arguidos recorreram, concluindo as alegações nos termos que se transcrevem:
«1.-À data dos factos a sociedade recorrente atravessava uma situação económica muito difícil, muito em parte devidos à pandemia de Covid-19 que se fazia sentir e que teve bastante impacto nos estabelecimentos de ensino, como é o caso da sociedade ora recorrente, levando a que não pudessem os recorrentes proceder atempadamente a muitos dos pagamentos por que eram responsáveis, nomeadamente ao pagamento atempado de parte dos impostos que eram devidos aos cofres do Estado.
2.-Os recorrentes nunca quiseram evadir-se ao pagamento dos impostos.
3.-Logo que tiveram disponibilidade financeira para o efeito, a sociedade arguida procedeu ao pagamento do IVA em causa nos presentes autos, o que sucedeu muito antes do inicio do julgamento dos presentes autos.
4.-Com a obrigatoriedade de confinamento e com o ensino à distância, os alunos deixaram de fazer as refeições (almoço e lanches) na escola e deixaram de frequentar as actividades extracurriculares (e, naturalmente, de proceder aos pagamentos relativos a tais serviços), levando a uma redução das receitas da recorrente.
5.-Independentemente da quebra das suas receitas, a sociedade arguida de continuar a proceder ao pagamento dos salários dos seus trabalhadores e aos pagamentos devidos aos seus fornecedores.
6.-Os pontos 10, 11 e 12 dos factos provados deveriam ter sido julgados não provados.
7.-Todos os factos não provados deveriam ter sido julgados provados.
8.-A atribuição ao longo da sentença recorrida da responsabilidade pelos actos concretos praticados no âmbito da gestão desta empresa ao recorrente pessoa singular, como se de factos dependentes da sua vontade se tratassem, revela-se excessiva e injustificada e, principalmente, não assenta em prova suficiente, muito menos cabal e inequívoca, como se demonstrará.
9.-Pelo contrário, toda a prova produzida impunha uma decisão diversa da decisão recorrida.
10.-Não existe acervo probatório de onde se possa retirar, segundo critérios lógicos e racionais, que o recorrente pessoa singular agiu em nome e no interessa da sociedade arguida, bem como no seu próprio interesse, nem agiram os arguidos de forma livre e com o propósito concretizado de prejudicar o Estado e de obter vantagem patrimonial a que não tinha direito, ou que agiram de forma livre, voluntário e consciente, como decorre dos pontos 10 a 12 da matéria de facto dada como provada.
11.-Das declarações do arguido resultou, sem margem para dúvidas, o conjunto de factos que levou à prática do crime.
12.-O Tribunal não podia ter decidido sem ter em atenção o conjunto de factos determinante para a prática do crime, uma vez que ficou amplamente demonstrado que, não fosse a existência de tais factos, o dito crime não teria ocorrido.
13.-Os factos trazidos à colação pelo recorrente têm que ter relevância, já que integram os fins ou motivos que determinaram o crime e podem conduzir a uma eventual atenuação geral ou especial da pena, ou, até mesmo, ser tidas em conta ao nível da própria existência de culpa.
14.-A análise crítica e ponderada da prova produzida, a qual, foi integralmente valorada pelo Tribunal, impunha uma decisão diferente pelo Tribunal a quo, nomeadamente no que concerne ao ponto 10 da sentença recorrida, na parte em que se refere que o recorrente, alegadamente, fez reverter em benefício da sociedade arguida e em seu proveito próprio o montante do IVA, enriquecendo o seu património e o património da sociedade arguida.
15.-O arguido pessoa singular nem sequer retira um salário enquanto gerente da sociedade arguida, de modo a que todas as receitas daquela sociedade sejam exclusivamente canalizadas para o pagamento das suas despesas. Tal facto decorreu das declarações do recorrente.
16.-Do depoimento da testemunha EE decorre não só o facto de o montante aqui em causa estar integralmente pago, como também todos os esforços que os recorrentes fizeram no sentido de regularizar a situação.
17.-Conjugando as declarações do arguido e o depoimento da testemunha EE, resulta bastante claro (1) que o montante relativo ao IVA não existia na esfera patrimonial da sociedade arguida; (2) que os recorrentes apenas não procederam à entrega atempada de tal montante porque não tinham liquidez para o fazer e tal não dependeu da sua vontade; (3) que os recorrentes não obtiveram qualquer vantagem ou enriquecimento ilegítimo.
18.-Ao dar como provado que os recorrentes fizeram reverter as quantias em seu proveito próprio, assim enriquecendo, olvidou-se a sentença recorrida de tomar em consideração todo o acervo probatório produzido em sede de audiência de julgamento.
19.-Consagra o artigo 374.°, n.° 2 do Código de Processo Penal que a sentença tem que indicar e efectuar um exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, o que não sucedeu, consubstanciando uma nulidade, nos termos e para os efeitos da alínea a) do n.° 1 do artigo 379.° do CPP, impondo-se, em consequência, a reforma da sentença recorrida.
20.-Considerando devidamente as declarações do arguido e o depoimento da testemunha EE impunha-se uma decisão diversa da recorrida na parte atinente à matéria de facto.
21.-O Tribunal a quo ignorou factos amplamente demonstrados que deveria ter tido em conta para a decisão e deu como provados factos com base em provas insuficientes para prova desses mesmos factos.
22.-Com base na prova produzida, todos os factos dados como não provados pelo Tribunal a quo deveriam ter sido julgados provados.
23.-O Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento.
24.-Na motivação da matéria de facto constante da sentença recorrida, constam, tão só, os meios de prova que serviram de base à factualidade descrita nos pontos 1 a 10, 15 a 21 e 23 a 30.
25.-O Tribunal a quo não mencionou qual a sua motivação para dar como provados os pontos 11 e 12 dos factos dados como provados.
26.-A sentença recorrida escusou-se de concretizar em que meio de prova concreto se baseou para dar como provados os factos 12 e 12, que considerou provados, em clara violação do n.º 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal.
27.-Os artigos 374.º, n.º 2 e 97.º, n.º 5 do CPP consagram o dever de fundamentação, cuja falta constitui uma nulidade, nos termos e para os efeitos da alínea a) do n.º 1 do artigo 379.º do Código de Processo Penal, que se invoca.
28.-A sentença recorrida dá como provado, sob os pontos 10, 11 e 12 da fundamentação de facto que o recorrente pessoa singular agiu em nome e no interesse da sociedade arguida, bem como no seu próprio interesse e que os recorrentes integraram o montante do IVA na esfera patrimonial da sociedade arguida, de forma livre e com o propósito concretizado de prejudicar o Estado e de obter vantagem patrimonial a que não tinham direito, tendo agido de modo livre, voluntário e consciente.
29.-Tal conclusão apenas poderia ter sido extraída se existisse prova concreta e sólida que demonstrasse que os arguidos receberam o IVA em causa e tinham disponibilidade financeira para proceder à sua entrega ao Estado, tendo optado por não o fazer, o que, não se verificou.
30.-Na motivação da matéria de facto, refere a sentença recorrida que “o arguido AA “confirmou a factualidade descrita nos pontos 1. A 10., com a ressalva de que afirmou que ao agir da forma mencionada na acusação não o fez no seu próprio interesse, e que nunca existiu uma intenção deliberada da sociedade arguida de não proceder ao pagamento do IVA, explicitando que tal omissão de pagamento resultou das dificuldades que a sociedade arguida atravessou e da prioridade conferida ao pagamento dos salários aos trabalhadores (...)”.
31.-Tal circunstância é absolutamente contraditória com os factos 10, 11 e 12 dados como provados.
32.-O Tribunal a quo incorreu em contradição porquanto os arguidos não poderão não ter disponibilidade financeira para proceder ao pagamento do imposto e, simultaneamente, ter decidido fazer tal montante (que não tinham) seu; tão pouco poderão ter tido intenção de delapidar o Estado e, simultaneamente, pagar o imposto em dívida logo que lhes foi possível, como bem consta do ponto 14 dos factos dados como provados e do depoimento da testemunha EE referido na fundamentação da matéria de facto.
33.-Tal contradição é insanável porque não é ultrapassável com recurso às regras da experiência, nem tão-pouco com recurso à decisão recorrida no seu todo.
34.-Tais contradições, porque manifestamente incompatíveis entre si, consubstanciam o vício a que alude o artigo 410.º, n.º 2, al. b), do CPP, que se invoca.
35.-A sentença recorrida exclui a aplicação do regime da dispensa de pena pelo simples facto de considerar que as exigências de prevenção especial são elevadas, invocando que “embora os arguidos fossem primários à data dos factos objecto destes autos, cada um deles já sofreu duas condenações pela prática do mesmo tipo de crime por factos anteriores àqueles pelos quais são condenados naqueles autos”.
36.-Estabelece o n.º 1 do artigo 75.º do Código Penal que existe reincidência quando o agente “cometer um crime doloso que deva ser punido com prisão efectiva superior a 6 meses, depois de ter sido condenado por sentença transitada em julgado em pena de prisão efectiva superior a 6 meses por outro crime doloso, se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime”.
37.-Não tendo os arguidos sofrido nenhuma condenação à data da prática dos factos aqui em causa não estamos perante uma situação de reincidência, não sendo este, assim, um argumento válido para invocar que existem necessidades de prevenção especial acrescidas e não podendo colher a tese adoptada pela sentença recorrida.
38.-Tendo os arguidos procedido ao pagamento do montante de IVA aqui em causa em data muito anterior à decisão final dos presentes autos, entendeu o Tribunal a quo estarem reunidos os pressupostos para que os recorrentes beneficiem da atenuação especial da pena.
39.-As molduras abstractas das penas aplicadas aos arguidos seriam de 10 até 240 dias de multa para o arguido AA e de 10 até 480 dias de multa para a arguida ....
40.-As penas de multa aplicadas a ambos os recorrentes são excessivas e desproporcionadas.
41.-A pena de multa aplicada à sociedade arguida é bastante superior ao limite mínimo da pena de multa abstractamente aplicável.
42.-A pena de multa aplicada ao arguido pessoa singular, que respeita à não entrega do imposto apenas relativo a um mês e já integralmente pago, se mostra bastante excessiva, uma vez que corresponde a 10 vezes o limite mínimo da pena de multa abstractamente aplicável.
43.-As penas de multa aplicadas reportam-se à não entrega do imposto relativo a apenas um mês e que, à data do julgamento, se encontrava já integralmente pago.
44.-As circunstâncias a que se deveu a falta de pagamento atempada do imposto foram amplamente explanadas em sede de audiência de julgamento e, dadas a excepcional pandemia que vivemos, são atendíveis.
45.-Mais, as taxas diárias de € 60,00 (sessenta euros) e € 40,00 (quarenta euros), demonstram uma enorme excessividade e desproporcionalidade.
46.-Na aplicação da pena deve o julgador procurar uma justa medida, uma adequada proporção, entre as penas e os factos a que elas se aplicam: a gravidade das penas tem de ser proporcional à gravidade das infracções.
47.-O princípio da culpa proíbe que se aplique pena sem culpa e, bem assim, que a medida da pena ultrapasse a da culpa, que é o que exactamente ocorre nos presentes autos.
48.-O princípio da igualdade também vincula o juiz aquando da fixação a medida da pena.
49.-As penas aplicadas não se afiguram minimamente razoáveis quando interpretadas à luz dos critérios de determinação da medida da pena consagrados no artigo 71.º do CPP.
50.-A sentença não é coerente ao relatar várias circunstâncias com a virtualidade de atenuar as exigências do caso concreto e de diminuir a culpa dos agentes, concluindo, até, pela possibilidade de atenuação especial da pena, e ao terminar aplicando aos recorrentes penas tão elevadas.
51.-De toda a prova produzida em audiência de julgamento resultou claro que o recorrente não agiu com elevada culpa, no sentido de nunca ter pretendido apropriar-se de montantes que sabia pertencer aos cofres do Estado para prosseguir interesses megalómanos ou para enriquecer à custa destes montantes.
52.-Os esforços encetados pelos arguidos, aliados ao facto de estes não terem averbada qualquer condenação anterior nos respectivos certificados de registo criminal sempre terão de ser tidos em consideração para a determinação da medida da pena.
53.-A medida concreta da pena deve ter em consideração a aptidão do agente para este processo de ressocialização, partindo da análise da situação actual do arguido.
54.-O presente caso concreto impõe diminutas exigências de prevenção especial.
55.-O Tribunal a quo incorreu numa grosseira e flagrante violação do artigo 71.º do CPP.
56.-Da aplicação conjugada dos artigos 40.º, n.º 2, 47.º e 71.º do Código Penal e 22.º do RGIT, resulta claro que aos recorrentes deveria ter sido aplicada penas de multa inferiores às concretamente aplicadas.
57.-Entendendo-se em sentido contrário, desde já se suscita a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 40.º, n.º 2, em conjugação com o artigo 71.º, ambos do Código Penal, na dimensão interpretativa que permita a aplicação de uma pena manifestamente excessiva por força valorativa negativa das exigências de prevenção geral em detrimento das especiais por violação do princípio da proporcionalidade em sentido abstracto ou da proibição do excesso nas dimensões de adequação, necessidade, subsidiariedade, exigibilidade, indispensabilidade, razoabilidade e proporcionalidade, em sentido estrito, consagradas no artigo 18.º, n.º 2 da CRP.
Pelo exposto, deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão ora sindicada, determinando-se o suprimento das nulidades invocadas e, em consequência, proferido acórdão que aplique aos ora recorrentes penas próximas do mínimo legalmente admissível, porquanto existem circunstâncias anteriores e posteriores aos crimes que diminuem a ilicitude do facto e a culpa dos recorrentes, nomeadamente o pagamento prévio dos impostos aqui em causa e as circunstâncias em que ocorreram os factos.».

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Contra-alegou o Ministério Público, concluindo as respectivas alegações nos seguintes termos:
«1.-Nos presentes autos foi a arguida ... condenada pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º, n.º 1, e art.º 22.º, n.º 2, ambos do RGIT (Regime Geral das Infrações Tributárias), e art.º 73.º, n.º 1, al. c), do Cód. Penal, na pena especialmente atenuada de 170 (cento e setenta) dias de multa, à taxa diária de € 60,00 (sessenta euros).
2.-O arguido AA foi condenado pela prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º, n.º 1, e art.º 22.º, n.º 2, ambos do RGIT, e art.º 73.º, n.º 1, al. c), do Cód. Penal, na pena especialmente atenuada de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 50,00 (cinquenta euros),
3.-Não se conformando com a referida decisão, dela vieram os arguidos interpor recurso.
4.-Vêm os recorrentes invocar que os factos constantes dos pontos 10 a 12 da matéria de facto dada como provada não deveriam ter sido dados como provados e que deveriam ter sido dados como provados todos os factos que constam da matéria de facto não provada.
5.-A matéria de facto dada como provada, nomeadamente quanto aos pontos 10 a 12, resulta das próprias declarações do arguido que afirmou que optou por pagar aos trabalhadores viabilizando assim a empresa o que lhe permitiu continuar a laborar e assim, no seu entendimento, aumentar as hipóteses do Estado ser ressarcido.
6.-Os factos dados como não provados resultam, essencialmente, de não ter sido feita prova sobre os mesmos e, noutros casos, a sua confirmação apenas resultar das afirmações do arguido desacompanhadas de outros elementos de prova.
7.-Sendo que os pontos n) e o) dos factos dados como não provados resultaram das próprias declarações do arguido, o ponto b) foi infirmado pelo certificado de registo criminal da arguida e os pontos p) a s) não foram sustentados pela prova realizada em audiência de julgamento e são irrelevantes para o preenchimento dos elementos do tipo de ilícito.
8.-Segundo os recorrentes o tribunal a quo incorreu num erro de julgamento, no entanto, para se verificar o invocado erro a prova tem que impor outra apreciação da matéria de facto e não apenas permitir outra apreciação da matéria de facto.
9.-Os factos dados como provados foram-no por tal ter resultado da produção de prova realizada em audiência de julgamento e constante dos autos, apreciada na sua globalidade e conjugada com as regras da experiência, a qual foi devida e corretamente valorada pelo julgador.
10.-O tribunal fundamentou a sua tomada de posição sobre a prova de modo claro tendo esclarecido que “A convicção do Tribunal relativamente aos factos provados fundou-se nas declarações do arguido AA, que confirmou a factualidade descrita nos pontos 1., a 10.” [...] “A este respeito, importa ponderar que, tendo o arguido AA destinado o montante de IVA, recebido dos clientes, ao pagamento de salários aos empregados da arguida sociedade, se conclui que a falta de pagamento atempado do IVA ao Estado, não adveio de falta de disponibilidade financeira da sociedade arguida.”
11.-Concorda-se com o decidido pelo tribunal atentas as declarações do arguido, da testemunha EE, Inspetora Tributária e instrutora do inquérito e os demais elementos de prova documental constante dos autos.
12.-Ao dar como provados os factos constantes da matéria de facto não foram violadas quaisquer regras da experiência, não se retiraram conclusões ilógicas, contraditórias, arbitrárias e inaceitáveis da prova produzida nem se violaram regras sobre prova vinculada.
13.-A prova produzida em audiência de julgamento vai no sentido apontado pela decisão recorrida e os excertos transcritos nas alegações de recurso não são passíveis de pôr em crise o decidido quanto aos factos provados, nem são suscetíveis de inverter o sentido daquela decisão.
14.-Invocam os recorrentes padecer a sentença recorrida de contradição insanável, mas para que se verifique o referido vício é necessário que se afirme e negue ao mesmo tempo uma mesma coisa ou que sejam dadas como provadas duas proposições contraditórias que, tendo o mesmo sujeito e objeto, não podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas.
15.-Só é de entender como insanável a contradição em que, de acordo com um raciocínio lógico, se deva concluir que a fundamentação devia levar à decisão oposta da consagrada na sentença ou quando a colisão dos fundamentos leva a que essa decisão não esteja suficientemente esclarecida, todavia, apenas a contradição que não possa ser ultrapassada com recurso à totalidade da decisão ou às regras da experiência pode ser considerada insanável.
16.-Lida que foi a sentença resulta claro não existir a contradição invocada pois apreciando-se todo o segmento da sentença acima transcrito verificamos que não existe contradição, sendo percetível o raciocínio do julgador.
17.-O tribunal considerou que a não entrega da quantia ao Estado foi voluntária, opção feita pelo arguido em benefício da arguida e seu próprio, em ordem poder com aquele valor pagar outras obrigações e, assim, segundo os arguidos, manter-se em funcionamento a sociedade arguida e consequentemente a posição de gerência do arguido.
18.-Em conformidade também este vício não se encontra verificado.
19.-Vêm os recorrentes invocar que a decisão padece do vício de falta de fundamentação, asserção com a qual não concordamos.
20.-De facto, uma decisão judicial tem de ser fundamentada, mas a extensão e o modo de fundamentar a decisão variarão em face do estilo de cada magistrado e o grau de complexidade de cada decisão, importante é que seja percetível o modo como se formou a convicção do tribunal.
21.-Apreciada a decisão recorrida verifica-se que a fundamentação da mesma é adequada. Resultam claros os motivos de facto e direito que levaram o tribunal à decisão em causa, sendo percetível o raciocínio efetuado pela M.ma Juíza na sua decisão sobre todos os factos que foram dados como provados e não provados uma vez que a mesma esclareceu o modo como apreciou a prova e os motivos que a levaram a interpretar a prova produzida nos termos em que o fez.
22.-Especificamente quanto aos pontos 11 e 12 da matéria de facto dada como provada, da leitura de toda a fundamentação da matéria de facto entendemos ser claro o motivo pelo qual o tribunal os deu como provados e as provas em que se baseou, sendo tal conclusão facilmente percetível dos segmentos de sentença acima já transcritos e que nos escusamos de repetir.
23.-Da leitura da decisão é possível apreender como foi aplicado o direito aos factos sendo esclarecido o motivo dos factos terem sido considerados típicos e o modo como as condutas dadas como provadas preenchem os elementos do tipo.
24.-Contrariamente aos recorrentes entendemos que não foi feita prova que o montante relativo ao IVA não existia na esfera patrimonial da sociedade arguida e que estes não entregaram tal montante apenas porque não dispunham do mesmo.
25.-De facto, provou-se o contrário, das declarações do arguido e até das próprias alegações de recurso resulta que o arguido, no seu interesse e no da sociedade, optou por canalizar o dinheiro recebido, e de que dispunha, para outros pagamentos, não tendo entregue a referida quantia para o cumprimento das obrigações fiscais a que sabia estar obrigado.
26.-Foi feita uma escolha consciente, uma opção económica, no interesse da sociedade e do próprio arguido, que assim pretendeu, segundo o mesmo, manter a sociedade em atividade pagando a empregados e fornecedores e, consequentemente, manter-se também na gestão de uma empresa viável.
27.-Atento o acima esclarecido e tendo os arguidos optado por usar a quantia monetária recebida a título de IVA em seu proveito de modo a satisfazer outros pagamentos preencheram o ilícito em causa, posição esta pacífica na jurisprudência.
28.-Veja-se o explanado no Ac. do TRE, datado de 19-02-2019, proferido nos autos n.º 62/15.6IDSTR.E1, in dgsi.pt: “Na verdade, e repete-se, para efeitos do preenchimento dos elementos do tipo legal de crime em apreço, é totalmente irrelevante que não tenha ocorrido uma verdadeira “apropriação” dos valores recebidos a título de IMA. Se o arguido, em vez de entregar ao Estado a “prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar”, não a entregou, por decisão sua, por que motivo fosse, seja por dificuldades financeiras da sociedade arguida, seja por ter de pagar outras obrigações tributárias da sociedade arguida, naturalmente que se assumiu como “dono” dos montantes recebidos a título de IMA, ou, no mínimo, não os entregou como devia, preferindo, ao que resulta da própria alegação constante da motivação do recurso, satisfazer outras obrigações tributárias da sociedade arguida (é que, e em substância, o arguido detinha tais montantes, “desviando” o dinheiro para fins diversos, a que sentiu necessidade de acorrer).”
29.-Mesmo que se tivesse provado o alegado pelos recorrentes, tal não afastaria o preenchimento do ilícito em causa devendo necessariamente considerarem-se provados e preenchidos todos os elementos do tipo não só quanto à arguida, mas também quanto ao arguido.
30.-Os recorrentes alegam ter pago o montante em dívida assim que puderam. Ora, os mesmos não pagaram nos prazos legais, mas apenas após o início dos presentes autos e verificada que foi a condição de punibilidade prevista na lei, pelo que o pagamento dos valores em dívida não afasta o preenchimento do ilícito em causa nem a condenação, mas apenas deve ser tido em conta na determinação da medida da pena.
31.-Entendem os recorrentes que as penas que lhes foram aplicadas são excessivas e que violam o previsto nos artigos 40.º, n.º 2 e 71.º do Código Penal
32.-Do artigo 40.º do Código Penal resulta que as finalidades de aplicação de uma pena, seja ela qual for, são a proteção dos bens jurídicos que a sociedade considera especialmente valiosos e a reintegração do agente na sociedade. No entanto, estas finalidades serão sempre limitadas pela culpa do arguido (artigo 71.º, n.º 1 do Código Penal).
33.-Deve o juiz da causa, aquando da determinação da pena, ponderar todas as circunstâncias que depuserem contra e a favor do arguido conforme o determinado no n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal.
34.-Assim, a pena concreta a aplicar a um dado arguido tem de ter em conta as necessidades de prevenção geral e especial, ou seja, uma medida da pena não se foca exclusivamente, embora se foque principalmente, no próprio arguido (neste sentido veja-se o Ac. do STJ, datado de 26-10-2011 e proferido nos autos nº 62/10.2PEBRR.S1, in dgsi.pt).
35.-Para se considerar uma pena devidamente aplicada tem de se averiguar da virtualidade da mesma evitar a repetição de condutas ilícitas tanto pelo arguido como por terceiros, garantir que, com a mesma, se repõe a validade da norma tanto perante o arguido como da sociedade onde este se insere, embora evitando, ao máximo, os inconvenientes da estigmatização resultante da aplicação da pena e favorizando reintegração de cada arguido na sociedade cuja norma violou.
36.-As necessidades de prevenção geral são necessariamente tomadas em consideração na medida da pena mesmo se sempre conjugadas com os demais elementos suprarreferidos e balizadas pela culpa de cada arguido.
37.-Atenta a moldura penal e o previsto tanto no art.º 60.º do Código Penal e no art.º 22.º do RGIT foram afastadas a possibilidade de aplicar aos recorrentes a pena de admoestação bem como do instituto da dispensa da pena.
38.-No entanto, considerou o tribunal ser de aplicar o mecanismo previsto no art.º 22.º, n.º 2 do RGIT uma vez que “os arguidos procederam ao pagamento da divida de IVA a que se referem os autos e demais acréscimos legais, no âmbito do processo de execução fiscal”.
39.-Como circunstâncias determinantes para a fixação da pena o tribunal ponderou, para além do mais, a conduta dos arguidos e as consequências da mesma, o grau de ilicitude, a danosidade e alarme social daquelas condutas e as necessidades de prevenção especial e geral que ao caso se fazem sentir.
40.-Foi apreciado que os arguidos têm condenações por factos de igual natureza o que necessariamente implica um acréscimo das necessidades de prevenção especial e foram consideradas as exigências de prevenção geral muito elevadas atenta a frequência da prática deste ilícito e a banalização dos crimes contra os interesses tributários do Estado que necessitam de uma reação veemente do sistema penal.
41.-Foi ainda ponderado que o arguido efetuou uma confissão parcial dos factos enunciados na acusação o que é particularmente relevante para as necessidades de prevenção especial bem como foram ponderadas as condições socioeconómicas do arguido e a sua particular formação.
42.-São ainda de particular importância para a ponderação dessas mesmas necessidades os antecedentes criminais dos arguidos uma vez que os mesmos, apesar de primários à data dos factos, sofreram, posteriormente, condenações pela prática de vários crimes de igual natureza praticados em momento anterior aos que se encontram aqui a ser apreciados.
43.-Considerou, o tribunal que as penas de multa terão ainda a virtualidade de evitar a repetição de condutas ilícitas de igual natureza, tanto pelos arguidos como por terceiros. No entanto, atento o acima referido as penas é manifesto que estas penas não podem ser fixadas nos seus limites mínimos.
44.-De facto, vários contatos com o sistema penal implicam o legítimo receio que, os arguidos cometam novos atos ilícitos, nomeadamente da mesma natureza, sendo necessária uma reação mais vigorosa do sistema penal.
45.-Mais, deve aceitar-se, em cada sanção aplicada, respeitados que estejam os suprarreferidos parâmetros e requisitos legais da fixação da pena, uma (embora pequena) margem de liberdade (que não arbitrariedade) do julgador (Ac. do STJ datado de 29-04-04 e proferidos nos autos n.º 111/04.5 cujo sumário consta de fls. 71 do Vol. I do Código Penal Anotado acima referido).
46.-Atento tudo o acima elencado quanto aos elementos a ter em conta na medida da pena e atenta a moldura abstrata do crime em causa entendemos serem as penas de multa fixadas aos arguidos na sentença justas, adequadas e proporcionais.
47.-Para a determinação da medida concreta da pena de multa está consagrado, no nosso ordenamento jurídico, o sistema do dia de multa o que implica que a operação de determinação de uma sanção seja uma operação compósita: numa primeira fase o tribunal procede à determinação do número dos dias de multa de acordo com as necessidades de prevenção, geral e especial, da pena e a culpa do arguido socorrendo-se, para tal o julgador, das circunstâncias previstas no art.º 71.º, n.º 2, al. a) a f) do Código Penal (excetuando a al. d) desse mesmo número). Seguidamente, fixados que estejam os dias de multa determina-se, então, o quantitativo diário de acordo com as condições pessoais e económicas do arguido, fazendo apelo à al. d) do n.º 2 do referido artigo.
48.-Quanto à fixação do quantitativo diário de cada dia de multa: “XV. [...] tudo aconselha a que os quantitativos mínimos sejam reservados para aquelas pessoas que vivem abaixo ou no limiar da subsistência, escalonando-se a partir daí todos os demais.” (Ac. do TRL, datado de 14-01-2015, proferido nos autos nº 72/11.2GDSRT.C1, in dgsi.pt), uma vez que a pena tem de implicar um sacrifício para o condenado (Ac. do TRE, proferido nos autos nº 2989/04.1, datado de 29-03¬2005, in dgsi.pt).
49.-Os quantitativos diários das penas de multa foram fixados tendo em conta os rendimentos dos arguidos, nomeadamente, quanto à arguida, a sua atividade, conjugados com a realidade social e económica do país.
50.-Entendemos que os quantitativos diários das penas de multa foram adequadamente fixados e não olvidamos que quando uma multa, devidamente fixada, implica um pagamento demasiado penoso para o arguido a lei portuguesa prevê modos de cumprimento alternativos que têm em conta essas dificuldades económicas.
51.-Em conformidade com os argumentos acima elencados, entende-se não assistir razão aos recorrentes, e pelos motivos suprarreferidos, dever ser negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Nestes termos, e com o douto suprimento desse Venerando Tribunal, negando provimento ao recurso e mantendo a decisão recorrida, V. Ex.as farão, como sempre, a costumada JUSTIÇA.».

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Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto aderiu à contra-motivação.

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V–Questões a decidir:
Do artigo 412º/1, do CPP, resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente, definem as questões a decidir em cada caso (1), exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso (2).
As questões colocadas pelos recorrentes, arguidos, são as seguintes:

I-Da oposição à matéria de facto provada e não provada:
• -Nulidade por falta de fundamentação, quanto aos pontos 10 a 12 do provado;
• -Vício de contradição insanável entre a fundamentação da aquisição probatória e o conteúdo dos pontos 10 a 12 do provado;
• -Impugnação do provado sob os pontos 10 a 12 e de todos o conteúdo do não provado;

II- Impugnação da medida das penas e taxa das multas, mediante invocação de:
• - Aplicabilidade do regime de dispensa de pena;
• - Excesso da medida das penas e do montante da taxa diária aplicada;

III-Inconstitucionalidade da norma constante do artigo 40.º, n.º 2, em conjugação com o artigo 71.º, ambos do Código Penal, na dimensão interpretativa que permita a aplicação de uma pena manifestamente excessiva por força valorativa negativa das exigências de prevenção geral em detrimento das especiais por violação do princípio da proporcionalidade em sentido abstracto ou da proibição do excesso nas dimensões de adequação, necessidade, subsidiariedade, exigibilidade, indispensabilidade, razoabilidade e proporcionalidade, em sentido estrito, consagradas no artigo 18.º, n.º 2 da CRP.

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I-Da oposição à matéria de facto:

Os arguidos pretendem obter alteração da factualidade provada e não provada invocando três institutos a saber: impugnação do provado sob os pontos 10 a 12 e de todo o conteúdo do não provado, vício de contradição insanável entre a fundamentação da aquisição probatória e o conteúdo dos pontos 10 a 12 do provado e nulidade por falta de fundamentação, quanto aos pontos 10 a 12 do provado:
Vejamos, em traços largos, ao regime de cada um dos institutos em causa.

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Da nulidade por falta de fundamentação:

Nos termos dos artigos 379º/1- a) e 374º/2, do CPP, é nula a sentença que não contiver, entre o mais, a exposição, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal.
Com esta nulidade não se confundem os vícios a que respeita o nº 2 do artigo 410º/CPP, relativos, também eles, à fundamentação que, não obstante exarada, apresenta as deficiências aí enumeradas (e nisto reside a diferença: de um lado não há fundamentação ou análise da prova; do outro a fundamentação feita apresenta deficiências intrínsecas que comprometem a justeza da solução).
A exigência de fundamentação tem natureza imperativa, é um princípio geral que a própria Constituição consagra, no artigo 205°/1, e que tem de ser observado nas decisões judiciais.
O dever de fundamentação visa atingir uma tríplice finalidade: permitir a compreensão da decisão e, consequentemente, a sua aceitação pelos destinatários e pela comunidade jurídica em geral; garantir que os motivos de facto e de direito foram apreciados de forma racional e garantir que o direito ao recurso se faça na plena compreensão do acto de que se recorre.
Em jeito de resumo, dir-se-á que «fundamentação é a base, o alicerce que legitima o edifício constituído pelo acórdão.
E cumpre, normalmente, duas funções, há muito assinaladas:
a)- uma de índole endoprocessual visando impor ao julgador a verificação e controle da lógica da decisão, permitir às partes o recurso da decisão com correcto conhecimento da situação, e, por fim, permitir que o tribunal de recurso possa exprimir, com segurança um juízo concordante ou divergente;
b)- uma outra de índole extra processual, já não dirigida essencialmente às partes e ao tribunal de recurso, antes visando tornar possível um controle externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão, garantindo a «transparência» do processo e da decisão, no dizer de M. Taruffo, cito no Ac. TC 61/88, DR, II Série, de 20 de Agosto de 1988)» (3).

Só com a demonstração de que a concreta opção tomada não é ilógica, arbitrária ou violadora das regras de experiência, a decisão se torna transparente e permite a sua compreensão, intra e extraprocessualmente (4).
Sobre a obrigação de motivação fáctica das sentenças penais, é unanimemente reconhecido que ela não se pode limitar a uma remissão genérica para determinado(s) meio(s) de prova produzido(s) na audiência de julgamento, desacompanhada da justificação por força da qual convenceu/convenceram o Tribunal a decidir desta maneira e não de outra (5). Marques Ferreira (6) expendeu as seguintes considerações, a propósito da questão: «No futuro processo penal português, em consequência com os princípios informadores do Estado de Direito democrático e no respeito pelo efectivo direito de defesa consagrado no artigo 320º, nº 1 e no artigo 210º, nº 1, da CRP, exige-se não só a indicação das provas ou meios de prova que serviram para formar convicção do tribunal mas, fundamentalmente, a expressão tanto quanto possível completa ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentaram a decisão.
Estes motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum) mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência. (…) A fundamentação ou motivação deve ser tal que, intraprocessualmente permita aos sujeitos processuais e ao tribunal superior o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, pela via de recurso, conforme impõe inequivocamente o artigo 410º, nº2. (…) E extraprocessualmente a fundamentação deve assegurar, pelo conteúdo, um respeito efectivo pelo princípio da legalidade na sentença e a própria independência e imparcialidade dos juízes, uma vez que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais mas a própria sociedade».

Não basta uma mera referência às provas, antes é necessário a correlação dos factos com as provas que os sustentam, de forma a poder concluir-se quais delas, e em que termos, garantem que os factos aconteceram ou não pela forma apurada. O fim visado é permitir a avaliação cabal do acerto do decidido em face da prova produzida, o que só se consegue com a explicitação mínima dos fundamentos da decisão. E esses fundamentos são precisamente o conteúdo da prova produzida e não o puro relatório da produção de prova.
Ou seja, o Tribunal deve referir, ainda que sumariamente, a descrição das provas produzidas que foram relevantes para a apreciação probatória dos factos em questão, o que significa que quanto a cada prova produzida há que esclarecer o respectivo conteúdo e sujeitá-lo ao cotejamento com as demais provas, numa avaliação crítica que permita estabelecer o iter cognitivo que serviu para considerar os factos provados ou não provados. Isto implica que haja sempre que referir o conteúdo de cada uma das provas produzidas, o que é particularmente relevante quanto à prova testemunhal, que só pode ser considerada se se souber os termos em que foi produzida.

Em suma: A exposição dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, deve ser completa mas sem que se assemelhe a assentadas reportadas a declarações e depoimentos produzidos em audiência. Deve também ser concisa, contendo as provas que serviram para fundar a convicção alcançada pelo Tribunal tal como a análise crítica da prova. Esta análise deve consistir na explicitação do processo de formação da convicção do julgador, concretizada na indicação das razões pelas quais determinados meios de prova foram valorados num certo sentido e outros não o foram ou seja, a explicação dos motivos que levaram o Tribunal a considerar certos meios de prova como idóneos e/ou credíveis e a considerar outros meios de prova como inidóneos e/ou não credíveis e, ainda, na exposição e explicação dos critérios, lógicos e racionais, utilizados na apreciação efectuada.

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- Do vício da contradição insanável da fundamentação e/ou entre a fundamentação e a decisão:
O referido vício supõe posições antagónicas e inconciliáveis entre si nos factos descritos ou entre essa descrição e a respectiva fundamentação.
Verifica-se quando «segundo um raciocínio lógico, é de concluir que a fundamentação justifica precisamente a decisão contrária ou, quando, seguindo o mesmo raciocínio, se conclui que a decisão não fica suficientemente esclarecida, quer porque existe contradição entre os fundamentos e a decisão, quer porque se dá como provado e como não provado o mesmo facto» (7).
«Existe o vício (…) quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta ou não justifica a decisão ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre factos provados, entre facto provados e não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do tribunal» (8).

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Da impugnação e reapreciação de prova, nos termos do artigo 412º/3 e 4, do CPP:
A reapreciação depende do cumprimento de requisitos de forma e conhece condicionantes e limites, nos termos do artigo 412º/CPP.

No que se refere a requisitos formais, o recorrente que queira ver reapreciados determinados pontos da matéria de facto tem que dar cumprimento a um duplo ónus, a saber:
- Indicar, dos pontos de facto, os que considera incorrectamente julgados – o que só se satisfaz com a indicação individualizada dos factos que constam da decisão, sendo inapta ao preenchimento do ónus a indicação genérica de todos os factos relativos a determinada ocorrência;
- Indicar, das provas, as que impõem decisão diversa, com a menção concreta das passagens da gravação em que funda a impugnação – o que determina que se identifique qual o meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa, que decisão se impõe face a esse meio de prova e porque se impõe. Caso o meio de prova tenha sido gravado, a norma exige a indicação do início e termo da gravação e a indicação do ponto preciso da gravação onde se encontra o fundamento da impugnação (as concretas passagens a que se refere o nº 4 do artigo 412º/CPP).

Nos termos do recente AUJ nº 3/2012, publicado no DR-Iª, de 18/04/2012, estabeleceu-se que «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».

O que se pretende é a delimitação objectiva do recurso, com a fundamentação da pretensão e o esclarecimento dos objectivos a que o recorrente se propõe. Impõe-se-lhe o dever de tomar posição clara, nas conclusões, sobre o objecto do recurso, especificando o que, no âmbito factual, pretende ver reponderado, assim como na hipótese de renovação, especificando as provas que devem ser renovadas (alínea c) do nº 3 do artigo 412º/CPP). «Esse imprescindível e indeclinável contributo do recorrente para a pedida reponderação da matéria de facto corresponde a um dever de colaboração por parte do recorrente e a sua responsabilização na demarcação da vinculação temática deste segmento da impugnação, constituindo tais formalidades factores ou meios de segurança, quer para as partes quer para o Tribunal» (9). «O ónus conexiona-se com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto» (10). «A delimitação precisa dos pontos de facto controvertidos constitui um elemento determinante definição do objecto do recurso em matéria de facto e para a consequente possibilidade de intervenção do tribunal de recurso» (11).

Definamos, agora, quais as condições em que é permitida a alteração da matéria de facto, pelo Tribunal da Relação.

O recurso da matéria de facto vem concebido pela lei como remédio jurídico e não como instrumento de refinamento jurisprudencial (12). Dito de outro modo o recurso da matéria de facto não foi concebido como instrumento ao serviço da realização de novo julgamento, com reapreciação de toda a prova que fundamenta a decisão recorrida, como se o julgamento efectuado na primeira instância não tivesse existido. Trata-se, tão-somente, de um instrumento concebido para a correcção de erros de julgamento e de procedimentos, devidamente discriminados pelas partes (13). A intromissão da Relação no domínio factual cingir-se-á a uma intervenção "cirúrgica", no sentido de delimitada, restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção, se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação. «O tribunal superior procede então à reanálise dos meios de prova concretamente indicados (ou as questões cuja solução foi impugnada) para concluir pela verificação ou não do erro ou vício de apreciação da prova e daí pela alteração ou não da factualidade apurada (ou da solução dada a determinada questão de direito» (14).

A doutrina e jurisprudência penais entendem que a reapreciação da prova, na segunda instância, deverá limitar-se a controlar o processo da convicção decisória da primeira instância e da aplicação do princípio da livre apreciação da prova, tomando sempre como ponto de referência a motivação da decisão. Na apreciação do recurso da matéria de facto, o Tribunal de segundo grau vai aferir se a convicção expressa pelo Tribunal recorrido tem suporte adequado naquilo que a gravação da prova (com os demais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si e, consequentemente, a Relação só pode alterar a decisão sobre a matéria de facto em casos excepcionais, de falta desse suporte.
Assim, a reapreciação só pode determinar alteração à matéria de facto assente se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão.
Os condicionamentos ou imposições a observar no caso de recurso de facto, referidos nos nºs 3 e 4 do artigo 412° constituem mera regulamentação, disciplina e adaptação aos objectivos do recurso, já que a Relação, como se referiu, não fará um segundo julgamento de facto, mas tão só o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento, que tenham sido referidos no recurso e às provas que imponham (e não apenas sugiram ou permitam outra) decisão diversa indicadas pelo recorrente.

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Vistos o regime dos institutos resta ver em que termos o alegado pelos recorrentes têm possibilidade de procedência..
Os arguidos começaram o recurso pela impugnação do provado sob os pontos 10 a 12 e de todo o conteúdo do não provado, com fundamento em que com a Covid 19 a sociedade baixou o nível das receitas e a única forma de continuar a pagar os trabalhadores foi canalizar as receitas obtidas para esse fim.

Os pontos 10 a 12 reportam-se ao elemento subjectivo do crime e contêm-se nos seguintes termos:
«10.- O arguido AA agiu em nome e no interesse da sociedade arguida “...”, bem como no seu próprio interesse.
11.- Ao não entregarem nos cofres do Estado o IVA mencionado, integrando-o na esfera patrimonial da sociedade arguida, agiram os arguidos de forma livre e com o propósito concretizado de prejudicar o Estado e de obter vantagem patrimonial a que não tinha direito, resultado que representou.
12.- Mais agiram de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo, que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.»
Entendem os recorrentes que tal «conclusão apenas poderia ter sido extraída se existisse prova concreta e sólida que demonstrasse que os arguidos receberam o IVA em causa e tinham disponibilidade financeira para proceder à sua entrega ao Estado, tendo optado por não o fazer, o que, não se verificou».
Mais alegam que a «atribuição ao longo da sentença recorrida da responsabilidade pelos actos concretos praticados no âmbito da gestão desta empresa ao recorrente pessoa singular, como se de factos dependentes da sua vontade se tratassem, revela-se excessiva e injustificada e, principalmente, não assenta em prova suficiente, muito menos cabal e inequívoca, como se demonstrará».
Para prova da argumentação invocam excertos do depoimento do arguido e da testemunha EE, de onde constam, respectivamente, e no essencial que:
- «Não nos apropriámos propriamente do valor. Nós realmente não o tínhamos. Ah... Portanto, a situação foi... Não propriamente de apropriação, foi porque... Não existia, digamos que, tesouraria suficiente para o podermos, para o podermos fazer. É consequência, portanto, de várias, de várias circunstâncias, mas penso que até são conhecidas de todos nós.» e
- « Pois... Ah, não audiência de interrogatórios, não prestou declarações, neste caso, o senhor .... Mas eu acho que das conversas que íamos tendo, sempre teve essa intenção de pagar. Temos 4 contabilistas que se certificaram que teve sempre intenção de formar...».

A argumentação é, portanto, a de que o dinheiro do IVA foi aplicado em salários, face a uma alegada quebra de lucros e que a própria testemunha inspectora entendeu que o arguido tinha intenção de pagar.
No que concerne às declarações da testemunha inspectora, do facto de ter dito que estava convencida que o arguido tinha intenção de pagar não se retira, necessariamente, que não tivesse condições de pagar, como consta do recurso. Aliás, veio a pagar se bem que já depois de iniciado o processo judicial em curso. A sua percepção resulta daquilo que viu e ouviu, e do convencimento que teve de que o arguido não teria fundos suficientes, o que como se verá abaixo, não é efectivamente correcto. O arguido simplesmente fez uma escolha entre pagar a dívida de imposto ou aplicar o dinheiro na satisfação de outro tipo de passivo.
Contudo, como consta da sentença recorrida, o valor cuja retenção consubstancia a prática d
os crimes não é lucro da empresa, e como tal o recorrente não tem qualquer possibilidade de discricionariedade relativamente ao uso que lhe quer dar.
O IVA é um valor da exclusiva propriedade do Estado, representado pela autoridade tributária, recebido pelo vendedor de bens e serviços, que age, relativamente a ele, unicamente na qualidade de fiel depositário. Isto significa que o recebe e detém unicamente como se fosse uma longa mão da autoridade tributária, de onde lhe vem a obrigação inultrapassável de o entregar àquela, nos tempos e condições estabelecidas na legislação tributária.
São obrigações legais imperativas do depositário guardar a coisa depositada, avisar imediatamente o depositante, quando saiba que algum perigo ameaça a coisa ou que terceiro se arroga direitos em relação a ela, desde que o facto seja desconhecido do depositante e restituir a coisa com os seus frutos (artigo 1187 do Código Civil), sendo que não tem o direito de usar a coisa depositada (artigo 1189 do CC). Por sua vez, o fiel depositário tem ainda a obrigação de prestar contas (artigo 760º do Código de Processo Civil).
Não se tratando de lucro, verifica-se que toda a argumentação desenvolvida pelo recorrente parte de um pressuposto errado e, consequentemente, desemboca na conclusão errada.
O fisco não é tido nem achado para saber como cada devedor de IVA aplica os lucros da sua atividade, nem sequer se os tem ou não.
O empresário, enquanto fiel depositário do valor recebido a título de imposto é que tem a inalienável obrigação de entregar aos cofres públicos o valor do imposto que lhe foi confiado e os frutos que gerou (juros, no caso) nos termos definidos por lei, sob pena de não o fazendo incorrer em responsabilidade penal.
A comissão do crime resulta precisamente do facto de o empresário se apropriar desse valor e, fazendo-o coisa sua, amealhá-lo ou empregá-lo no cumprimento de obrigações emergentes da sua actividade ou outras.
O desconhecimento da lei não aproveita a ninguém e, no caso, sendo o arguido pessoa de avançada idade e com actividade empresarial como gestor da sociedade arguida há, pelo menos, 12 anos, não é sequer credível que pudesse ignorar uma das responsabilidades estruturantes da actividade exercida.
Do exposto resulta ainda que é absolutamente irrelevante para a subsunção dos factos ao tipo de ilícito saber se o arguido é remunerado, ou não, pela sua actividade, porque a remuneração resulta da afectação de património da sociedade a um determinado fim. O facto que invoca de trabalhar pro bono (não sendo credível porque contraria regra da experiência comum, qual seja a de que ninguém exerce actividade empresarial sem visar uma vantagem pecuniária) é igualmente indiferente à integração do ilícito.
Em face das normas aplicáveis à situação de fiel depositário do valor do IVA, propriedade do Estado, evidente se torna que o arguido agiu em nome e no próprio interesse, e também em nome e no interesse da sociedade, na medida em que integrou no património desta uma valor da exclusiva propriedade do Estado, jamais susceptível de ser entendido como lucro. Actuou sempre de forma livre, voluntário e consciente, como o próprio aliás referiu, e com o propósito concretizado de não entregar ao estado o valor que lhe pertencia, assim lhe causado prejuízo em troca de uma vantagem patrimonial a que não tinha direito, resultado que esse que necessariamente representou, quis e se veio a verificar.
Em face do exposto, verifica-se que a impugnação do provado e não provado é inteiramente improcedente, pelo que se mantem a matéria de facto provada e não provada nos seus precisos termos.

***

Também não se encontra falta de fundamentação da matéria de facto provada sob os pontos 10 a 12, ou qualquer outra.
Os pontos 10 a 12 reportam-se ao elemento subjectivo do crime e resultam da aplicação à actuação do arguido das regras da experiência comum, que se podem resumir em que, uma pessoa dotada de normais capacidades intelectuais, age de forma livre e consciente, mediante um propósito pré definido, com conhecimento das consequências da sua acção, assumindo-as voluntariamente.

Aplicada esta regra ao caso concreto, verifica-se que de acordo com a factualidade objectivamente praticada e os conhecimentos que o arguido necessariamente tinha e tem sobre a natureza e consequências da sua actuação, ao não entregar nos cofres do Estado o IVA mencionado, integrando-o na esfera patrimonial da sociedade, assim se apropriando do valor respectivo, agiu o arguido de forma livre, com o propósito concretizado de obter vantagem patrimonial correspondente ao prejuízo que causou ao erário púbico, resultado que representou e quis.

O dever de fundamentação não exige que o Tribunal explique, passo por passo, o iter cognitivo quando ele é resultado necessário e consequente da análise crítica feita relativamente aos elementos objectivos do ilícito. O que se exige é uma fundamentação perceptível pelo cidadão de normais características intelectuais, o chamado bom pai de família, o que no caso foi feito, sem qualquer dúvida.

***

A alegada contradição insanável, determinante de vício da sentença recorrida, também não se verifica.
Entendem os recorrentes que «Na motivação da matéria de facto, refere a sentença recorrida que “o arguido AA “confirmou a factualidade descrita nos pontos 1. A 10., com a ressalva de que afirmou que ao agir da forma mencionada na acusação não o fez no seu próprio interesse, e que nunca existiu uma intenção deliberada da sociedade arguida de não proceder ao pagamento do IVA, explicitando que tal omissão de pagamento resultou das dificuldades que a sociedade arguida atravessou e da prioridade conferida ao pagamento dos salários aos trabalhadores (...);Tal circunstância é absolutamente contraditória com os factos 10, 11 e 12 dados como provados; O Tribunal a quo incorreu em contradição porquanto os arguidos não poderão não ter disponibilidade financeira para proceder ao pagamento do imposto e, simultaneamente, ter decidido fazer tal montante (que não tinham) seu; tão pouco poderão ter tido intenção de delapidar o Estado».

A descrição da prova produzida em audiência, em sede de fundamentação da aquisição probatória, não se confunde com a creditação do que foi alegado. É por isso que a lei não se limita a exigir que da fundamentação conste apenas uma redacção sumária da prova produzida, mas antes exige que o Tribunal faça uma apreciação crítica dessa prova, segundo as regras da experiência comum.

O princípio da livre apreciação da prova é essencial para a execução adequada dessa apreciação crítica. O resultado de um julgamento não se confunde com um repositório de declarações (muitas vezes contraditórias), a que o Tribunal tenha que conceder crédito acrítico e absoluto. A assunção da lista dos factos que se provaram e não provaram resulta da análise crítica de toda a prova produzida, segundo regras de experiência comum, em coordenação com os factos creditados, ou seja, de uma operação de cotejamento de toda a prova, retirando da equação do provado todos os factos invocados que não mereceram crédito, segundo a percepção do julgador.

No caso, a insusceptibilidade da influência das declarações do arguido, agora invocadas, para a fixação do provado, está dilucidada a propósito da irrelevância do fundamento invocado para o pedido de reapreciação. Tendo-se concluído que as dificuldades de tesouraria não justificam a apropriação de um valor recebido na qualidade de fiel depositário, não se colhe fundamento para a pressuposta contradição.

Improcede, pois, o invocado vício.

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ii-Da impugnação da pena, medida da pena e montante da taxa diária da multa:
Os recorrentes impugnam as penas mediante invocação de que deveria ter sido aplicado o regime de dispensa de pena e, subsidiariamente, mediante a invocação de que as penas são excessivas, tal como a taxa diária aplicada.
O regime de dispensa de pena está definido no artigo 22º/1, do RGIT e tem por pressupostos que o agente reponha a verdade sobre a situação tributária, o crime seja punível com pena de prisão igual ou inferior a três anos, a ilicitude do facto e a culpa do agente não sejam muito graves; a prestação tributária e demais acréscimos legais tenham sido pagos, ou tenham sido restituídos os benefícios injustificadamente obtidos e que à dispensa de pena se não oponham razões de prevenção.
A sentença recorrida afastou a aplicação da dispensa de pena mediante a seguinte argumentação.
«No caso vertente, a arguida “...”, incorreu na prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo art. 105.º, n.º 1, e art. 7.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias, e o arguido AA, na prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo art. 105.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias
Embora os arguidos fossem primários á data dos factos objecto destes autos, cada um deles já sofreu duas condenações pela prática do mesmo tipo de crime por factos anteriores àqueles pelos quais são condenados nestes autos (o arguido AA foi condenado, por sentença datada de .../.../2019, transitada em julgado a .../.../2021, pela prática, no ano de ..., de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal agravado, na forma continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, e de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão, declarada suspensa na sua execução pelo período de 5 anos, com a condição de o arguido, no prazo de 5 anos, proceder ao pagamento á Administração Tributária, de parcela do montante das importâncias em divida á Administração Tributária, e foi condenado, por sentença datada de .../.../2020, transitada em julgado a .../.../2021, pela prática a .../.../2018, de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena de 50 dias de multa á taxa diária de € 10,00, o que perfaz € 500,00, e a arguida sociedade foi condenada foi condenada, por sentença datada de .../.../2019, transitada em julgado a .../.../2021, pela prática, no ano de ..., de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal agravado, na forma continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, e de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena única de 1100 dias de multa á taxa diária de € 40,00, o que perfaz € 44.000,00, e foi condenada, por sentença datada de .../.../2020, transitada em julgado a .../.../2021, pela prática a .../.../2018, de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena de 75 dias de multa á taxa diária de € 15,00, o que perfaz € 1.125,00), o que faz com que as exigências de prevenção especial se façam sentir.
As exigências de prevenção geral neste tipo de crime são muito elevadas, não apenas por o crime de abuso de confiança fiscal ser actualmente dos mais frequentes, mas também pela necessidade de «promover a consciência ética fiscal» -Anabela Rodrigues- Contributo para a fundamentação de um discurso punitivo em matéria penal fiscal- Direito Penal Económico e Europeu – Vol. II, pág. 484.
Com efeito, há que ter presente a banalização da prática de crimes tributários, demonstrada pelos elevados índices de criminalidade contra os interesses tributários do Estado Fiscal Social.
Diz Jorge dos Reis Bravo, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 9, Out/Dez. 1999, pág. 630, «O fenómeno da evasão fiscal, sendo uma realidade endémica e quase cultural, fez com que se reclamasse uma atitude mais firme e exigente por parte do Estado, no sentido de ser efectivado o cumprimento dos deveres fiscais, por todos os cidadãos e em condições de igualdade de tratamento».
Pelo exposto, conclui-se que a dispensa de pena não é adequada á satisfação das necessidades de prevenção especial e que as exigências de prevenção geral são muito elevadas quando se trata de crimes tributários, pelo que se mostra afastada a possibilidade da sua aplicação aos arguidos AA e “...”.»
Os recorrentes equiparam a fundamentação dada a uma situação de reincidência e argumentam que «não tendo os arguidos sofrido nenhuma condenação à data da prática dos factos aqui em causa, como bem refere a sentença recorrida, não estamos perante uma situação de reincidência, não sendo este, assim, um argumento válido para invocar que existem necessidades de prevenção especial acrescidas e não podendo, assim, colher a tese adoptada pela sentença recorrida.»

Acontece é que a fundamentação não se reporta a nenhuma situação de reincidência, que pressupõe a existência de condenações anteriores à prática do novo delito. Apenas considera que, em face das elevadas necessidades de prevenção especial emergentes da prática de factos delituosos em ... e ... – se bem que objecto de condenação posterior à pratica do crime de que cuidam os presentes auto – constitutivos de um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal agravado, na forma continuada, de mais um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada e de novo crime de abuso de confiança fiscal, aliadas às imperiosas necessidade de prevenção geral, não se verifica o último dos requisitos legais referidos, de que à dispensa de pena se não oponham razões de prevenção.
Avaliadas as mesmas premissas chegamos à mesma conclusão, de que o caso dos autos não se caracteriza de acordo com este último requisito de dispensa de pena, pelo que a pretensão não procede.
Mais entendem os arguidos que as penas aplicadas, de cem dias quanto ao arguido AA e cento e setenta quanto à sociedade, especialmente atenuadas por força do artigo 22º/2 do RGIT, são exageradas porque em causa está apenas a falta de pagamento do imposto devido por um mês, imposto esse que foi pago muito antes da sentença, os arguidos não pagaram por dificuldades de tesouraria, eram primários, à data dos factos, estão exageradamente penalizados face a casos menos graves, a preocupação da reincidência do arguido fica totalmente prevenida com a simples ameaça da aplicação de uma pena de prisão, havendo ainda que considerar o seu enquadramento familiar e social tendo capacidade para conformar a sua personalidade com os padrões ético-jurídicos que lhe são exigíveis.
De acordo com o disposto no artigo 73º/11, al. c), do CP, ao crime em cuja prática os arguidos incorreram, correspondem as seguintes molduras abstratas:
- quanto ao crime cometido pelo arguido AA: pena de multa de 10 até 240 dias;
- quanto ao crime cometido pela arguida sociedade: pena de multa de 10 até 480 dias.
O Tribunal recorrido ponderou a medida das penas nos seguintes termos:
«Na determinação da medida concreta da pena, manda o art. 71.º do Cód. Penal que se tomem em consideração todas as circunstâncias que deponham contra ou a favor do agente, punindo-se em função da culpa e levando-se em conta as exigências de prevenção de futuros crimes. Acrescenta o art. 13.º do R.G.I.T. que, para além disso, se considerará, sempre que possível, o prejuízo sofrido pela Fazenda Nacional.
Os arguidos deixaram de entregar nos Cofres da Administração Fiscal montante que ascendeu ao valor de € 42.034,41, expressivo de elevada lesão, ou seja, de elevado grau de ilicitude.
Também a intensidade do dolo se mostra elevada, desde logo porque se trata de dolo directo.
O arguido efectuou uma confissão parcial dos factos enunciados na acusação.
As exigências de prevenção geral revelam-se elevadas por força do bem jurídico tutelado e da frequência destas condutas com os inerentes custos sociais
Quanto ás exigências de prevenção especial, salienta-se que os arguidos, apesar de primários á data dos factos, sofreram, posteriormente, duas condenações pela prática de idêntico crime.
O arguido AA, á data da prática dos factos ora em análise, não tinha antecedentes criminais, e, por decisões transitadas em julgado em momento posterior á data da prática dos factos, sofreu condenações, pela prática de idêntico crime (o arguido foi condenado, por sentença datada de .../.../2019, transitada em julgado a .../.../2021, pela prática, no ano de ..., de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal agravado, na forma continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, e de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão, declarada suspensa na sua execução pelo período de 5 anos, com a condição de o arguido, no prazo de 5 anos, proceder ao pagamento á Administração Tributária, de parcela do montante das importâncias em divida á Administração Tributária, e foi condenado, por sentença datada de .../.../2020, transitada em julgado a .../.../2021, pela prática a .../.../2018, de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena de 50 dias de multa á taxa diária de € 10,00, o que perfaz € 500,00).
A arguida sociedade, á data da prática dos factos ora em análise, não tinha antecedentes criminais, e, por decisões transitadas em julgado em momento posterior á data da prática dos factos, sofreu condenações, pela prática de idêntico crime (a arguida sociedade foi condenada, por sentença datada de .../.../2019, transitada em julgado a .../.../2021, pela prática, no ano de ..., de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal agravado, na forma continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, e de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena única de 1100 dias de multa á taxa diária de € 40,00, o que perfaz € 44.000,00, e foi condenada, por sentença datada de .../.../2020, transitada em julgado a .../.../2021, pela prática a .../.../2018, de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena de 75 dias de multa á taxa diária de € 15,00, o que perfaz € 1.125,00).
A ser assim, e tudo visto e ponderado, o tribunal entende que o arguido AA deve ser condenado como autor material de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo art.º 105.º, n.º 1, e art. 22.º, n.º 2, ambos do Regime Geral das Infracções Tributárias e art. 73.º, n.º 1, al. c), do Cód. Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa.
***
No que concerne à ... F. ...”, há que atender ao artigo 7º, n.º 1 do RJIT, que dispõe “ As pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são responsáveis pelas infracções previstas na presente lei quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse colectivo”.
A sociedade arguida, pelas razões supra enunciadas, deve ser condenada, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. p. pelo art.º 105.º, n.º 1, e art.º 22.º, n.º 2, ambos do Regime Geral das Infracções Tributárias, e art. 73.º, n.º 1, al. c), do Cód. Penal, na pena de 170 (cento e setenta) dias de multa.»

A argumentação aduzida pelos recorrentes não tem cabimento no caso dos autos.
Desde logo, o Tribunal aplicou uma atenuação especial precisamente porque o montante em causa foi pago. O benefício decorrente dessa atitude reflectiu-se, e bem, na aplicação de uma moldura penal muito inferior à normal.
A questão das dificuldades de tesouraria não se reflecte nos deveres emergentes da qualidade de fiel depositário que os arguidos tinham relativamente ao montante do imposto não pago, como acima se explicou.
O facto de a omissão ser relativa a uma única mensalidade não pode ser valorado só por si, mas acompanhado das demais circunstâncias, designadamente do valor em causa, elevado, e do facto de que os arguidos apenas entregaram o imposto depois de instaurado o correspondente processo crime.
Desconhece-se quais sejam os casos similares ou mais graves punidos com penas inferiores, o que leva à improcedência de tão genérica e imprecisa argumentação.
O arguido não foi condenado em pena de prisão, pelo que a questão da reincidência não se coloca.
Partindo do princípio que quando se refere a reincidência está a referir-se às necessidades de prevenção especial verifica-se que se manifesta forte necessidade de prevenção da prática de futuros crimes, considerando a actuação posterior aos factos, que determinou a condenação dos arguidos em penas por crimes de idêntica natureza, agravados e continuados.
O facto de serem arguidos primários, à data dos factos, foi considerado na sua real dimensão, que não se pode alhear da existência de condenações relativas a períodos posteriores, pela prática do mesmo tipo de crime.
No mais, foram consideradas as atenuantes resultantes da confissão, do enquadramento familiar e social do arguido e da expectativa da sua capacidade para conformar a sua personalidade com os padrões ético-jurídicos que lhe são exigíveis. Por isso mesmo as penas são bem inferiores ao ponto médio da moldura penal.
Uma pena mínima ou próxima do mínimo tem que ser reflexo de uma conduta muito pouco culposa e de baixa ilicitude, o que seguramente não é o caso.
Tomando em consideração o disposto no artigo 71º/CP e as circunstâncias dos crimes não se encontra excesso nas medidas das penas aplicadas.
No que respeita ao quantitativo da multa ele reflecte apenas a condição económica dos condenados, nos termos do artigo 47º/CP e 27º/RGIT.
A multa mínima é de um euro por dia e ao arguido foi aplicada a taxa diária de cinco euros.
O rendimento mínimo mensal garantido era, à data da sentença, € 760,00.
O arguido tem rendimentos mensais de aproximadamente oito vezes o rendimento mínimo, o que determina a improcedência da discordância apresentada.
Por sua vez, tendo em consideração que em causa está apenas o valor de uma prestação mensal, verifica-se que a sociedade, não obstante a diminuição de receitas invocada em consequência da paragem de actividades lucrativas na altura do condid, dispõe de uma normal situação de desafogo económico significativo, que justifica perfeitamente o quantitativo diário da multa aplicado.
Resta, portanto, a manutenção do valor da taxa diária fixada para as penas de multa aplicadas.

***

iii-Da inconstitucionalidade:
Invocam os recorrente a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 40º/2, em conjugação com o artigo 71.º, ambos do Código Penal, na dimensão interpretativa que permita a aplicação de uma pena manifestamente excessiva por força valorativa negativa das exigências de prevenção geral em detrimento das especiais por violação do princípio da proporcionalidade em sentido abstracto ou da proibição do excesso nas dimensões de adequação, necessidade, subsidiariedade, exigibilidade, indispensabilidade, razoabilidade e proporcionalidade, em sentido estrito, consagradas no artigo 18.º, n.º 2 da CRP.
A dimensão interpretativa relativamente à qual é invocada a inconstitucionalidade é improcedente por dois motivos.
O primeiro é que joga com conceitos indeterminados, como o de pena manifestamente excessiva. Os recorrentes não deixam sequer perceber, com factos concretos retirados dos autos o que seja uma pena manifestamente excessiva.
O segundo é que, nem o Tribunal recorrido nem este, consideraram que a pena que foi aplicada fosse manifestamente excessiva, porque se assim considerassem não a tinham aplicado.
Improcede, consequentemente, a questão em apreço.

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VII–Decisão:

Acorda-se, pois, negando provimento ao recurso, em manter a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas pelos recorrentes, com taxa de justiça de 4 ucs para cada um.
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Texto processado e integralmente revisto pela relatora.

Lisboa,10/01/2024

Maria da Graça dos Santos Silva
Ana Paula Grandvaux Barbosa
Alfredo Costa

1.Cf. Germano Marques da Silva, em «Curso de Processo Penal», III, 2ª edição, 2000, pág. 335, e Acs. do S.T.J. de 13/5/1998, em B.M.J. 477-º 263; de 25/6/1998,em B.M.J. 478º-242 e de 3/2/1999, em B.M.J. 477º-271. 
2.Cf. Artºs 402º, 403º/1, 410º e 412º, todos do CPP e Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R., I – A Série, de 28/12/1995. 
3.Cf Vinício Ribeiro em CPP, notas e comentários, Coimbra Editora, 2ª edição.
4.Cf. Prof. Germano Marques da Silva, em “Curso de Processo Penal”, III, 2ª ed. 294; Acs do STJ em CJSTJ, 2000, I, 226; CJSTJ, I, 178; da RC em CJ, 2000, IV, 53, e de 17/05/2000, proc. 893/2000, em www.dgsi.pt. 
5.Cf. Ac do T.C., nº 680/98, de 2/12, no proc. 456/95, DR.II, de 05/03/1999; Acs. do STJ, de 07/07/1999, em CJSTJ, VII, 2, 246; de 12/07/2005, no proc. 2315/05-5ª, SASTJ nº 93, 116; de 07/12/2005, SASTJ, nº 96, 67. 
6.Cf. Jornadas de Direito Processual Penal, pág.229 e 230. 
7.Cf. Ac. do STJ, de 10.12.1996, em www.dgsi.pt.
8.Cf. Ac. do STJ de 13.10.1999, in CJSTJ, ano XXIV, III, pág.184.
9.Cf. Ac STJ, de 05/12/2007, no proc. nº 3460/07. 
10.Cf. AC STJ, de 08/03/2006, no proc. nº 185/06-3ª. 
11.Cf acs. STJ, de 10/01/2007, no proc. 3518/06-3º e de 15/10/2008, no proc. 2894/08-3º. 
12.Cf. Simas Santos e Leal Henriques, em “Recursos em Processo Penal” 7ª edição, actualizada aumentada, 2008, pág. 105. 
13.Cf Ac. do TC n 59/206, de 18/01/2006, no proc. 199/2005, em www.tribunalconstitucional.pt, e Acs. dos STJ de 27/01/2009, e de 20/11/2008, tirados respectivamente nos procs. 08P3978 e 08P3269, em www.dgsi.pt, e de 17/05/2007, na CJSTJ, 2007, II, 197. 
14.Cf. Ac TC. Nº 59/2006, de 18 de Janeiro de 2006, proferido no processo n° 199/05, da 2.a secção, publicado no DR - II Série, de 13-04-2006.