Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | MANUELA ESPADANEIRA LOPES | ||
Descritores: | INSOLVÊNCIA CULPOSA PRESUNÇÃO JURIS ET DE JURE PRESUNÇÃO JURIS TANTUM NEXO DE CAUSALIDADE VENDA DE VEÍCULO AUTOMÓVEL | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 06/04/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | I- Contrariamente ao que se verifica relativamente ao tipificado no nº3 do art.186º do CIRE - que apenas consagra uma presunção “juris tantum” de culpa grave -, o apuramento de factualidade integradora do previsto nas alíneas d) e h) do nº 2 – e nas demais alíneas desse normativo - consubstancia presunção inilidível ou presunção jure et de jure, da qualificação da insolvência como culposa, sem necessidade de prova do nexo de causalidade entre o facto e a insolvência ou o seu agravamento. II- Naturalmente que esta presunção não determina que o afectado fique impedido de alegar e provar que não se verificaram os factos que a lei, pela sua gravidade, ali associa à existência de uma insolvência culposa, estando dessa forma garantido o direito previsto constitucionalmente a um processo equitativo. III- Tendo ficado demonstrado que o requerido, gerente da insolvente, dentro do período correspondente aos três anos anteriores à declaração de insolvência, transferiu para outra sociedade a propriedade de um veículo daquela, com valor não inferior a € 7.500,00 e que a transacção não foi facturada pela insolvente à adquirente do veículo e ainda que não existem reportes contabilísticos que comprovem a entrada nas contas da insolvente do respectivo montante, verifica-se a disposição dos bens da sociedade insolvente em proveito pessoal ou de terceiro e como tal encontra-se preenchida a presunção de insolvência culposa prevista na alínea d) do nº 2 do aludido artigo 186º. IV- Na alínea f) do mesmo normativo encontra-se previsto o uso do crédito ou de bens de uma pessoa colectiva, não no interesse desta, mas em proveito dos administradores ou de terceiros. V- A factualidade referida em III- não consubstancia uso dado ao veículo automóvel pelo gerente da sociedade susceptível de integrar o disposto na alínea f) supra referida, mas a transmissão do direito de propriedade sobre tal veículo, o que se enquadra, como se viu, no disposto na alínea d) do aludido normativo e não na alínea f). VI- Tendo ficado também provado que na contabilidade da sociedade devedora relativa ao aludido período de três anos não se encontravam reflectidos a integralidade dos montantes facturados e suportados pela mesma, não permitindo tal contabilidade saber o destino de quantias que deviam ter sido recebidas e suportadas pela sociedade, encontra-se verificada a presunção prevista na alínea h) do nº2 do mesmo artigo 186º do CIRE. VII- O despacho de arquivamento do inquérito é da exclusiva competência do Ministério Público, tratando-se de decisão não jurisdicional e, consequentemente, não é susceptível de caso julgado. VIII – O facto de ter sido proferido despacho de arquivamento, nos termos do artº 277º, nº2, do CPP, do inquérito instaurado na sequência de queixa apresentada contra o gerente da devedora por factos susceptíveis de integrar a prática de um crime de insolvência dolosa, p. e p. pelo artº 227º, nº1, do Código Penal, não impede que, verificadas as presunções referidas em III- e VI-, a insolvência da sociedade devedora seja qualificada como culposa e por esta afectado o respectivo gerente. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam as Juízas na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa: * I - Relatório I…, LDA, apresentou-se à insolvência, tendo a respectiva acção sido instaurada em 20-01-2020. Por sentença de 22-01-2020, transitada em julgado, foi declarada a insolvência da identificada sociedade. Por requerimento de 08-03-2020, a credora F…, Comércio de Frutas, Lda, requereu a abertura do incidente de qualificação da insolvência e que pela qualificação como culposa seja afectado o gerente da sociedade L… M… Alegou, em síntese, que consta do balancete geral acumulado de 2019 que o requerido está a dever à sociedade a quantia de € 110.894,94. Conforme consta da conta nº….018 resulta em débito a referida quantia a favor da sociedade insolvente, não tendo o requerido efectuado o pagamento da mesma com elevados prejuízos para os credores da sociedade. O requerido apropriou-se indevidamente de quantias ao longo dos anos em detrimento dos mesmos credores. Sustentou ainda que o mesmo alienou um veículo no ano anterior à declaração de insolvência, devendo ser apurado se foi vendido a preços de mercado. Concluiu que os actos praticados pelo requerido são susceptíveis de preencher a previsão constante do artigo 186º, n.º 2 alíneas a), d), f) e “l)” do C.I.R.E. Por despacho de 07-04-20209, foi declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência. O Administrador da Insolvência apresentou parecer pronunciando-se no sentido de a insolvência ser considerada fortuita. Invocou que da contabilidade resulta que a insolvente tem um crédito no valor de €120.745,27 e que, por outro lado, foi alienado equipamento de transporte no valor de €25.360,00 no ano em que a insolvência foi decretada. Refere que o crédito corresponde a uma dívida que o pai do actual gerente tinha para com a sociedade, a qual já existia em 31 de Dezembro de 2015, tendo o actual gerente assumido a gerência da insolvente em 23 de Junho de 2016. Resulta que foram efectuados investimentos para evitar a insolvência. Refere que o veículo alienado tinha um valor inferior porque já tinha 11 anos, estava em mau estado de conservação e foi vendido para pagar dívidas da insolvente por €6.500,00. Foram juntos aos autos diversos documentos, tendo o Ministério Público requerido que o Administrador da Insolvência se pronunciasse sobre a documentação referente à eventual dissipação de património respeitante à venda de uma viatura. Nesta sequência, este apresentou novo parecer onde concluiu pela insolvência culposa nos termos do artigo 186.º, n.º 2 alínea d) do CIRE, devendo ser afectado o gerente da insolvente, com base no facto de ter alienado o veículo dois meses antes da declaração de insolvência por alegadamente €6.500,00, sem que a transacção tenha sido facturada pela insolvente à adquirente da viatura. Não existem reportes contabilísticos que comprovem a entrada nas contas da insolvente do preço. Disse que resolveu o contrato em 22 de Julho de 2020 e que o veículo veio a ser recuperado avariado e desmontado, valendo apenas €1.000,00. O Ministério Público emitiu parecer, fundamentando que, face aos elementos existentes nos autos, a insolvência deve ser qualificada culposa nos termos das alíneas a), d) e f) e g) do nº 2 do artigo 186º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, A insolvente foi notificada e o requerido foi citado, tendo este apresentado oposição. Alegou, em síntese, que o valor de € 110.894,94 (cento e dez mil oitocentos e noventa e quatro euros e noventa e quatro cêntimos), correspondem a valores que vêm muito antes da assunção da gerência pelo mesmo e que, por força da assunção da gerência, os valores que se encontravam contabilizados nas contas das sociedades do “Grupo A…” foram transferidos contabilisticamente para a conta 278110018 em nome do Requerido, que “herdou” da gerência de seu falecido pai um débito no montante de € 86.745,27. O Requerido, a ser responsável, apenas o poderia ser, a final, pelo valor de € 24.149,67 (€ 110.894,94 - € 86.745,27). O que não se concebe, porque o oponente não se apropriou de tal verba, nunca fez seu qualquer valor da sociedade que passou a gerir em finais do mês de Junho de 2016. Tal montante teve como fim último o pagamento de trabalhos que foram efectuados em nome da Sociedade I…, Lda, sem que as pessoas tivessem disponibilizado qualquer recibo. O Requerido efectuou obras na loja sita na Rua V…, em …, sem que tivessem sido emitidos os comprovativos dos pagamentos, conforme explica o Senhor Contabilista Certificado, sendo essa a razão pela qual os valores foram sendo contabilizados na conta do Requerido. Quanto à venda da viatura automóvel comercial ”Mercedes 315”, matrícula …, o valor entregue, em numerário, foi de € 1.230,00 (mil duzentos e trinta euros), tendo a diferença - € 5.270,00 - ficado por conta de dívidas que a sociedade “I…, Lda” tinha para com a “E…, Lda.”, divida esta que não se mostrava evidenciada na Contabilidade. A viatura não tinha o valor de € 10.000,00, uma vez que datava de Outubro de 2008 e não se encontrava em boas condições. Foi proferido despacho saneador, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova e designada data para realização de audiência final, que veio a ser realizada, conforme resulta da respectiva acta. Foi proferida sentença que qualificou como culposa a insolvência de I…, Lda e, em consequência, declarou afectado pela qualificação o gerente L… M… e a) declarou o mesmo requerido inibido, pelo período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses, de administrar patrimónios de terceiro, para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa; b) declarou a perda de quaisquer créditos de que o requerido L… M… seja titular sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente, condenando-o na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos e c) condenou o mesmo a indemnizar os credores da Insolvente em indemnização a efectuar em liquidação de sentença. * Inconformado, este interpôs recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES: I. Vem o presente recurso interposto, parcialmente, da aliás Douta Sentença, de fls. (…) proferida nos autos de processo comum, em que decidiu: “(…) Em face do exposto, ao abrigo do disposto pelos artigos 186º e 189º do CIRE, o Tribunal julga o presente incidente de qualificação totalmente procedente e, em consequência qualifica como culposa a insolvência de I…, Lda., e, em consequência, declara afectado pela qualificação o gerente L… M… e declara: a) O requerido L… M… inibido, pelo período de 2 (dois) anos e 6(seis) meses, de administrar patrimónios de terceiro, para o exercício do comércio, e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa. b) Mais se declara a perda de quaisquer créditos de que o Requerido L… M… seja titular sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente, condenando-o na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos. c) Mais se condena o Requerido L… M… a indemnizar os credores da Insolvente em indemnização a efectuar em liquidação se sentença. (…).”. II. Não pode o Requerido, ora Recorrente, concordar com tal entendimento, face à prova produzida e aos factos dados como provados e não provados. III. Constam da Douta Sentença os factos que o Tribunal a quo considerou provados e não provados (o apelante transcreveu os mesmos, o que se julga neste momento desnecessário, em virtude da transcrição que se efectuará seguidamente em termos de Fundamentação de Facto). (…) V. Não fez o Tribunal a quo aquando da prolação da sentença, uma análise crítica dos depoimentos das Testemunhas, nem mesmo dos documentos juntos aos autos. VI. Considerou o Tribunal a quo provado que, conforme se pode ler no ponto 17º, “A referida actuação do gerente /requerido visou o seu proveito pessoal e a dissipação do património da insolvente e levou a cabo uma gerência deficitária, em prejuízo da insolvente e dos credores desta, criando prejuízos e agravando o passivo da sociedade I…, conduzindo-a à insolvência.”. VII. O tribunal considerou como não provado que: “a) O requerido apropriou-se indevidamente de quantias ao longo dos anos em detrimento dos credores da sociedade.”. VIII. Tal como não ficou provado que “d) Em 2019 houve uma descapitalização da empresa, por parte do gerente/requerido, quer da quantia de € 110.894,94.” IX. Havendo uma contradição entre os factos provados e os não provados. X. O Tribunal a quo não levou em linha de conta a junção aos autos do Arquivamento do Processo Crime, que correu termos na 4ª secção do Departamento de Acção e Investigação Penal de Cascais e que o Requerido juntou aos Autos em 24 de Outubro de 2023. XI. Do Despacho de Arquivamento poderemos ler que não se encontraram indícios para imputar o crime de insolvência danosa, daí o Arquivamento. XII. Também o Tribunal a quo não teve em consideração que o valor já “vinha” contabilizado em diversas contas das empresas do Pai do Recorrente, tal como o Senhor Administrador de Insolvência juntou ao processo. XIII. Tal como não levou em conta a documentação junta aos Autos, como os Balancetes de 2014 e 2015, onde constam os valores das diversas contas das referidas empresas do Pai. XIV. O que se provou foi que o Recorrente herdou uma situação de dívidas contabilizadas nas diversas contas do Pai. XV. Explicou o Senhor Contabilista Certificado, Senhor M… S…, cujo depoimento se encontra gravado no dia 25 de Outubro de 2023, aos 23:29 minutos das suas Declarações. XVI. Antes de assumir a gerência, quem “punha e dispunha da sociedade era o Pai”. XVII. Valores que saíram da conta do Pai para a conta do Recorrente por ter assumido o passivo e activo. XVIII. Houve, apenas, uma transferência, contabilística, não de fluxos. XIX. Também, por parte do Senhor Administrador de Insolvência da Sociedade I…, foi declarado não ter encontrado qualquer indício que indicasse haver dolo do Recorrente. XX. Poderia sim, haver culpa mas apenas no que diz respeito à venda de uma viatura, meses antes da sociedade se apresentar à Insolvência. XXI. Não pode o Tribunal a quo qualificar a insolvência da sociedade I… como culposa, com todas as consequências para o seu gerente. XXII. Nem mesmo no processo crime foi considerado que houve dolo por parte do aqui Recorrente. XXIII. Não ficou provado que o Recorrente utilizou em seu proveito valores que eram da sociedade. XXIV. Se o Recorrente tivesse utilizado valores para seu proveito pessoal, não teria de ter de se apresentar à Insolvência, tal como o fez. Terminou peticionando que seja dado provimento ao recurso e, em consequência, revogada a sentença. * O Ministério Público respondeu ao recurso, CONCLUINDO: 1- O nº 2 do artigo 186º do CIRE tipifica situações em que a insolvência deverá sempre considerar-se sempre como culposa, e presunções inilidíveis ou de juris et jure. 2- No caso, verificou-se o preenchimento dessas presunções (art.º 186.º n.º 2 al. d), f) e h) do CIRE), pelo que a insolvência foi correctamente considerada como culposa. 3- O facto de ter sido proferido despacho de arquivamento relativamente ao crime de insolvência dolosa, em nada obsta à decisão de qualificação da insolvência como culposa, porquanto os fundamentos e pressupostos (do tipo de crime e da insolvência culposa) são diferentes. 4- Demonstrando-se que a insolvente era proprietária de um veículo comercial com um valor não inferior a €7.500,00 e que, em 28 de Novembro de 2019, o requerido transferiu a propriedade do veículo para outra sociedade pelo valor de € 6.500,00, e tendo-se demonstrado que a transacção não foi facturada pela insolvente à adquirente do veículo e não existem reportes contabilísticos que comprovem a entrada nas contas da insolvente do preço de €6.500,00, verifica-se a disposição dos bens da sociedade insolvente em proveito pessoal ou de terceiro - pelo que se conclui que está verificada e preenchida esta alínea d) e f) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE. 5- Provando-se que não foram entregues pelo requerido os documentos de suporte à contabilidade ao respectivo contabilista responsável pela contabilidade da sociedade Insolvente, referentes ao pagamento de trabalhos que foram efectuados, em nome da Sociedade I…, Lda. E que, tal circunstancialismo não permitiu, nem permite, a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor, tampouco permitiu ao Administrador da Insolvência, nem sequer ao Tribunal, identificar o trajecto comercial da sociedade insolvente e conhecer, com precisão e clareza, a sua situação patrimonial e financeira, bem andou o Tribunal «a quo» ao considerar esse incumprimento como substancial. 6- Por conseguinte, bem andou bem o tribunal a quo ao qualificar a insolvência como culposa ao abrigo do artigo 186º nº 1 e 2 alíneas d), f) e h) do CIRE, devendo a sentença manter-se nos precisos termos em que foi proferida. Terminou peticionando que o recurso seja julgado improcedente e, consequentemente, mantida a sentença recorrida. * A Mmª Juíza a quo proferiu despacho admitindo o recurso, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo. * Foram colhidos os vistos das Exmªs Adjuntas. * II – Questões a decidir: É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações do recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigo 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do mesmo Código). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido. Assim, em face das conclusões apresentadas pelo recorrente importa analisar e decidir o seguinte: A- impugnação da matéria de facto e B- da verificação dos pressupostos considerados na sentença recorrida para qualificação da insolvência como culposa e para a afectação do ora apelante. * III - Fundamentação A) Na sentença sob recurso foi considerada como provada a seguinte factualidade: 1) I…, LDA, NIPC …, com o capital social de € 5.000,00, com sede na Avenida V…, apresentou-se à insolvência e a mesma foi declarada por sentença de 24-01-2020, transitada em julgado, conforme sentença proferida nos autos principais cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido. 2) A sociedade tem por objecto o comércio de fruta, conservas das mesmas e produtos similares. 3) A actividade da Requerente assenta no comércio de frutas, em lojas abertas ao público. 4) A administração da insolvente era exercida pelo gerente L… M… e a insolvente obriga-se com a assinatura de um gerente. 5) À data da declaração de insolvência as dívidas da insolvente eram no montante de € 125.028,31. 6) Do balancete geral acumulado de 2019, na conta nº …018, resulta em débito €110.894,94 a favor da sociedade insolvente. 7) A conta referida em 5) é a conta do requerido L… M… 8) A insolvente era proprietária de um veículo comercial marca Mercedes Benz com a matrícula …, com um valor não inferior a €7.500,00. 9) Em 28 de Novembro de 2019 o requerido transferiu a propriedade do veículo para a sociedade “E…, Lda.” pelo valor de €6.500,00. 10) A transacção não foi facturada pela insolvente à adquirente do veículo e não existem reportes contabilísticos que comprovem a entrada nas contas da insolvente do preço referido em 9). 11) O contrato de compra e venda do veículo foi resolvido pelo Sr. Administrador da Insolvência em 22 de Julho de 2020, tendo sido o veículo recuperado para a massa insolvente e tem actualmente o valor de €1.000,00. 12) Foi emitida uma factura no valor de €1.230,00 para a sociedade “E…, Lda.”. 13) O Requerido assumiu a Gerência da sociedade I…, Lda., em 23 de Junho de 2016. 14) Sendo que anteriormente a gerência era exercida por seu falecido Pai, A… C… 15) Não foram entregues pelo requerido os documentos de suporte à contabilidade ao respectivo contabilista responsável pela contabilidade da sociedade Insolvente referentes aos o pagamento de trabalhos que foram efectuados, em nome da Sociedade I…, Lda.. 16) Foram reclamados sobre a sociedade insolvente os créditos que constam da reclamação de créditos junta o apenso A cujo teor se dá por reproduzido. 17) A referida actuação do gerente /requerido visou o seu proveito pessoal e a dissipação do património da insolvente e levou a cabo uma gerência deficitária, em prejuízo da insolvente e dos credores desta, criando prejuízos e agravando o passivo da sociedade I…, conduzindo-a à insolvência. * Foram considerados Não Provados os seguintes factos: a) O requerido apropriou-se indevidamente de quantias ao longo dos anos em detrimento dos credores da sociedade. b) Foram alienados equipamento de transporte no montante de €25.360,91. c) Foram liquidados seguros automóveis em 2009 de acordo com a conta 626311. d) Em 2019 houve uma descapitalização da empresa, por parte do gerente/requerido, quer da quantia de € 110.894,94. e) Por força da assunção da Gerência, os valores que se encontravam contabilizados nas contas das sociedades do “Grupo A…”, foram transferidos contabilisticamente para a conta, …018, em nome do Requerido. f) O requerido nunca fez seu qualquer valor da Sociedade que passou a gerir em finais do mês de Junho de 2016. g) O montante referido em 6), teve como fim último o pagamento de trabalhos que foram efectuados, em nome da Sociedade I…, Lda., sem que as pessoas tivessem disponibilizado qualquer Recibo. h) O requerido efectuou obras na loja, sita na V… V…, em C…, sem que tivessem sido emitidos os comprovativos dos pagamentos. i) O valor entregue, em numerário pela compra do veículo referido em 8), foi de €1.230,00 (mil duzentos e trinta euros), tendo a diferença - €5.270,00 - ficado por conta de dívidas que a sociedade “I…, Lda.”, tinha para com a “E…, Lda.”. j) O veículo referido em 8) datava de Outubro de 2008 e não se encontrava em perfeitas condições. k) A chapa encontrava-se amolgada em diversos sítios, estava avariada ao nível da mecânica, pois para circular precisava de uma reparação, tendo sido por essa razão que a “E…” ficou com a viatura por um valor inferior ao de mercado e assumido a reparação. l) No ano que precedeu a declaração de insolvência, o sócio-gerente L… M… injectou cerca de €90.000,00 na sociedade insolvente a título de investimentos em fundo de maneio. * B) Da Impugnação da Decisão sobre a Matéria de Facto Nos termos do artigo 640º, nº 1, do Código de Processo Civil: «Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.” No que toca à especificação dos meios probatórios: «Quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (artigo 640º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil). Citando o Sr. Conselheiro Abrantes Geraldes, «Estabelecendo o paralelismo com a petição inicial, tal como esta está ferida de ineptidão quando falta a indicação do pedido, também as alegações destituídas em absoluto de conclusões são “ineptas”, determinando a rejeição de recurso (art. 641º, nº 2, al. b), sem que se justifique a prolação de qualquer despacho de convite à sua apresentação.(…) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.(…)» – cfr Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª ed., p. 122 e 132. Como consequência, segundo o mesmo autor, impõe-se a rejeição do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto nas seguintes situações: a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto; b) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados; c) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.); d) Falta de indicação exacta das passagens da gravação em que o recorrente se funda; e) Falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação; f) Apresentação de conclusões deficientes, obscuras ou complexas, a tal ponto que a sua análise não permita concluir que se encontram preenchidos os requisitos mínimos que traduzam alguns dos elementos referidos - Ob. cit, pág. 135. Existe divergência jurisprudencial no que concerne a saber se os requisitos do ónus impugnatório previstos no artigo 640º, nº1, devem figurar apenas no corpo das alegações ou se também devem ser levados às conclusões sob pena da rejeição do recurso (cf. Artigos 635º, nº2 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil). O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a pronunciar-se nos seguintes termos: No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.2.2015, Cons. Tomé Gomes, 299/05, afirma-se que «(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.» No Acórdão de 11.4.2016, relatora Cons. Ana Luísa Geraldes, 449/410, defendeu-se que servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso, deverão nelas ser identificados com precisão os pontos de factos que são objecto de impugnação; quanto aos demais requisitos do ónus impugnatório, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso. As conclusões do recurso não têm de reproduzir todos os elementos do corpo da alegação – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.1.2015, Cons. Clara Sottomayor, 1060/07. O AUJ n.º 12/2023, relatora Cons. Ana Resende, Processo n.º 8344/17.6T8STB.E1-A.S1, publicado no Diário da República n.º 220/2023, Série I de 2023-11-14, páginas 44 – 65, disponível também em www.dgsi.pt, pronunciou-se expressamente no sentido que: «Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações». Defendeu-se no Acórdão do mesmo Tribunal de 29.10.2015, Cons. Lopes do Rego, 233/09, que se a falta de indicação exacta das passagens da gravação não dificulta, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório, nem o exame pelo Tribunal da Relação, a rejeição do recurso com tal fundamento constituirá solução excessivamente formal e sem justificação razoável. O ónus imposto ao recorrente na al. b) do nº1 do artigo 640º do Código de Processo Civil não se satisfaz com a simples afirmação de que a decisão devia ser diversa, antes exige que se afirme e especifique qual a resposta que havia de ser dada em concreto a cada um dos diversos pontos da matéria de facto controvertida e impugnados, pois só desta forma se coloca ao tribunal de recurso uma concreta e objetiva questão para apreciar – cfr Acórdão da Relação do Porto de 16.5.2005, Desemb. Cunha Barbosa, 0550879. De igual modo, não cumpre o ónus do aludido artigo 640º, nº1, do C.P.Civil, o recorrente que faz uma transcrição integral dos depoimentos que culmina com uma alegação genérica de erro na decisão da matéria de facto - cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.7.2015, Cons. Abrantes Geraldes, 961/10. É também entendimento pacífico da jurisprudência dos tribunais superiores, mormente do STJ, que o recorrente não cumpre o ónus de especificação imposto no art.º 640º, nº 1, al b), do CPC, quando procede a uma mera indicação genérica da prova que, na sua perspectiva, justifica uma decisão diversa daquela a que chegou o Tribunal de 1.ª Instância, em relação a um conjunto de factos, sem especificar quais as provas produzidas quanto a cada um dos factos que, por as ter como incorretamente apreciadas, imporiam decisão diversa, fazendo a apreciação crítica das mesmas – cfr Acórdãos do STJ de 20-12-2017 e 5-09-2018, respectivamente, nos processos nºs 299/13.2TTVRL.C1.S2 e 15787/15.8T8PRT.P1.S2, disponíveis em www.dgsi.pt. No nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da livre apreciação da prova, plasmado no art.º 607º, n.º 5 do Código de Processo Civil, segundo o qual: “O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.” Assim, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e somente quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na lei (v.g. força probatória plena dos documentos autênticos - cfr. art.º 371º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação (cfr a este respeito Prof. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, IV vol., Coimbra Editora, 1987, pág. 566 e seg. e Antunes Varela e Outros, Manual de Processo Civil, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 1985, pág.660 e seg.). Começou o apelante por invocar que há uma contradição entre os factos provados e não provados, porquanto o tribunal considerou provado, conforme se pode ler no ponto 17, que: “A referida actuação do gerente /requerido visou o seu proveito pessoal e a dissipação do património da insolvente e levou a cabo uma gerência deficitária, em prejuízo da insolvente e dos credores desta, criando prejuízos e agravando o passivo da sociedade I…, , conduzindo-a à insolvência” e, por outro lado, entendeu que não se encontrava provado que: “a) O requerido apropriou-se indevidamente de quantias ao longo dos anos em detrimento dos credores da sociedade” e ainda que: “Em 2019 houve uma descapitalização da empresa, por parte do gerente/requerido, quer da quantia de € 110.894,94.” Quando se fala em impugnação da matéria de facto pretende-se significar um juízo de discordância com a decisão do julgador acerca de determinado facto. Facto e não qualquer juízo conclusivo. Como resulta do artº 607º, nº4, do C.P.Civil, o julgamento da decisão de facto há-de incidir sobre a realidade dos factos concretos e individualizáveis trazidos aos autos. São estes que têm que ser declarados provados e não provados, o que significa que deve ser suprimida toda a matéria deles constante susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, juízos de valor ou conclusivos. Segundo elucida Anselmo de Castro “são factos não só os acontecimentos externos, como os internos ou psíquicos, e tanto os factos reais, como os simplesmente hipotéticos”, depois acrescentando que “só, (…), acontecimentos ou factos concretos no sentido indicado podem constituir objecto da especificação e questionário (isto é, matéria de facto assente e factos controvertidos), o que importa não poderem aí figurar nos termos gerais e abstractos com que os descreve a norma legal, porque tanto envolveria já conterem a valoração jurídica própria do juízo de direito ou da aplicação deste” – cfr Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, Coimbra, vol. III, 1982, p. 268/269. Só os factos materiais são susceptíveis de prova e, como tal, podem considerar-se provados. As conclusões, envolvam elas juízos valorativos ou um juízo jurídico, decorrem dos factos provados e não podem elas mesmas serem objecto de prova [cfr. Acórdãos do STJ de 19.4.2012, Proc.º 30/08.4TTLSB.L1.S1, Pinto Hespanhol; de 23/05/2012, proc.º 240/10.4TTLMG.P1.S1, Sampaio Gomes; de 29/04/2015, Proc .º 306/12.6TTCVL.C1.S1, Fernandes da Silva; de 14/01/2015, Proc.º 488/11.4TTVFR.P1.S1, Fernandes da Silva; 14/01/2015, Proc.º 497/12.6TTVRL.P1.S1, Pinto Hespanhol; todos disponíveis em http://www.dgsi.pt/jstj]. O plasmado no ponto 17- dos “factos provados” trata-se de matéria absoluta e totalmente conclusiva, ou seja, que encerra juízos de valor a extrair, ou não, da factualidade que tenha resultado demonstrada e, como tal, não deve – nem pode – ser considerada em termos de factos provados. Deste modo, há que determinar a eliminação do que ficou plasmado no ponto 17- dos Factos Provados, ficando, em consequência, prejudicado o conhecimento do invocado pelo apelante em termos de contradição entre os factos provados e não provados. Sustentou ainda o mesmo que o tribunal a quo não considerou demonstrado o teor do despacho de arquivamento do processo crime que contra si correu termos na 4ª secção do Departamento de Acção e Investigação Penal de Cascais e que foi junto aos autos em 24 de Outubro de 2023. Diz ainda que o mesmo tribunal não teve em consideração que «o valor já “vinha” contabilizado em diversas contas das empresas do pai do recorrente, tal como o Senhor Administrador da Insolvência juntou ao processo, tal como não levou em conta a documentação junta aos Autos, como os Balancetes de 2014 e 2015, onde constam os valores das diversas contas das referidas empresas do Pai» e que «o que se provou foi que o Recorrente herdou uma situação de dívidas contabilizadas nas diversas contas do Pai.» Sustentou igualmente que como «explicou o Senhor Contabilista Certificado, Senhor …, cujo depoimento se encontra gravado no dia 25 de Outubro de 2023, aos 23:29 minutos das suas Declarações» que «antes de assumir a gerência, quem “punha e dispunha da sociedade era o pai”». Estabelece o artº 607º, nº4, do CPCivil supra citado: “Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.” Por sua vez, dispõe o artº 663º do mesmo código que é aplicável à elaboração do acórdão o disposto no referido artigo, com as necessárias adaptações. Os factos provados por documentos com relevância para a decisão serão considerados na respectiva fundamentação, independentemente de terem, ou não, ficado a constar expressamente do segmento relativo aos factos provados. Deste modo, não há que alterar a decisão da matéria de facto a fim de proceder ao aditamento de qualquer factualidade relativa ao teor da certidão do despacho de arquivamento supra referido. Quanto ao demais invocado, o apelante não refere expressamente qual a factualidade que deveria ter sido considerada provada e que não o foi, limitando-se a efectuar afirmações de carácter genérico, como “o que se provou foi que o Recorrente herdou uma situação de dívidas contabilizadas nas diversas contas do Pai” e que a testemunha afirmou que antes de o mesmo «assumir a gerência, quem “punha e dispunha da sociedade era o pai”». Acresce que a insolvência foi considerada culposa por o tribunal a quo ter entendido que a factualidade provada se subsumia na previsão das alíneas h), d) e f) do nº 2 do artº 186º do CIRE, mais concretamente a prática de irregularidade a nível contabilístico com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira da devedora e a disposição de bens desta em proveito pessoal ou de terceiros. O invocado pelo apelante não tem aptidão para infirmar os factos que foram considerados provados e com base nos quais o tribunal concluiu pela verificação do previsto nestas alíneas, pelo não existe fundamento para alterar a decisão de facto. Contrariamente ao invocado, o tribunal a quo fez uma análise crítica dos depoimentos e dos documentos que entendeu relevantes para a decisão. Improcede, pois, nos termos referidos a impugnação da decisão da matéria de facto deduzida pelo apelante, determinando-se, no entanto, nos termos supra expostos a eliminação do ponto 17- dos factos provados. * Decidida que se encontra a impugnação da decisão da matéria de facto, passemos a conhecer das questões suscitadas pelo requerido/recorrente em termos de Direito. * C) Verificação dos pressupostos de qualificação da insolvência como culposa Conforme consta da sentença ora sob recurso, entendeu o tribunal a quo que, face aos factos provados, se encontra preenchido o disposto no artº 186º, nº2, alíneas d), f) e h) do CIRE e que assim não se pode deixar de concluir que a insolvência é culposa. O artigo 185º indica claramente a finalidade do incidente de qualificação da insolvência: averiguar as razões que conduziram à situação de insolvência para qualificá--la numa das categorias tipificadas na lei. Desta forma, a insolvência pode ser culposa ou fortuita. Estabelece o artigo 186.º, n.º 1, do CIRE, que: “A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.” São, assim, requisitos da insolvência culposa: 1) o facto inerente à actuação, por acção ou omissão, do devedor ou dos seus administradores, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência; 2) a culpa qualificada (dolo ou culpa grave); 3) e o nexo causal entre aquela actuação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência. Por sua vez, estabelece o n.º 2 deste artigo que se considera sempre culposa a insolvência do devedor quando os seus administradores tenham incorrido em algum dos comportamentos elencados nas suas diversas alíneas. Como referem Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, Quid Juris – Sociedade Editora, 2015, pág. 680, o legislador veio estabelecer no nº 2 do mesmo artigo uma presunção inilidível que complementa a noção geral fixada no nº 1. O nº 3, mediante uma presunção ilidível, dá por verificada a existência de culpa grave quando ocorram determinadas circunstâncias ali previstas. Continuam os mesmos autores que: “Segundo o nº1, a insolvência culposa implica sempre uma atuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, determinados, estes, nos termos do artº 6º. Essa atuação deve ter criado ou agravado a situação de insolvência em que o devedor se encontra. Uma vez que o preceito nada dispõe, em particular, nessa matéria, as noções de dolo e de culpa grave devem ser entendidas nos termos gerais de Direito”. A qualificação impõe que tenha ocorrido (pelo menos) uma conduta do devedor ou dos seus administradores, de facto ou de direito, na asserção do disposto no art.º 6º do CIRE que: - tenha criado ou agravado a situação de insolvência; - tal conduta seja dolosa ou com culpa grave, excluindo-se, assim, a culpa simples – neste sentido v.g., entre outros, Manuel Carneiro da Frada in “A responsabilidade dos administradores na insolvência”, ROA, Ano 66, Set. 2006, pág. 689; - tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, ou seja, nos três anos anteriores ao dia da entrada do requerimento inicial do processo de insolvência na secretaria do tribunal, relevando, para além desse prazo, todos os actos praticados entre aquele dia e a data de declaração de insolvência, nos termos previstos no art.º 4º, n.º 2, do CIRE. A doutrina e a jurisprudência têm-se questionado sobre o alcance das presunções previstas nos nºs 2 e 3 do referido artigo 186º, nomeadamente, no que concerne a saber se é de presumir também o nexo de causalidade entre a conduta legalmente tipificada e a criação ou agravamento da situação de insolvência. Relativamente às presunções previstas no n°2, tem sido entendimento maioritário que se tratam de presunções quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade. Refere-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 6/10/2011, P.46/07.8TBSVC-O.L1.S1, in www.dgsi.pt: «1. A insolvência culposa implica sempre uma actuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores, a qual deve ter criado ou agravado a situação de insolvência em que o devedor se encontra. 2. O nº 2 do art. 186.º do CIRE estabelece, em complemento da noção geral antes fixada no nº 1, presunções inilidíveis que, como tal, não admitem prova em contrário. Conduzindo, assim, necessariamente, os comportamentos aí referidos à qualificação da insolvência como culposa. 3. O nº 3 do mesmo art. 186.º estabelece, por seu turno, presunções ilidíveis, que admitem prova em contrário, dando-se por verificada a culpa grave quando ocorram as situações aí previstas. 4. Não se dispensando neste nº 3 a demonstração do nexo causal entre o comportamento (presumido) gravemente culposo do devedor ou dos seus administradores e o surgimento ou o agravamento da situação de insolvência. Sendo, pois, necessário, nessas situações, verificar se os aí descritos comportamentos omissivos criaram ou agravaram a situação de insolvência, pelo que não basta a simples demonstração da sua existência e a consequente presunção de culpa que sobre os administradores recai. Não abrangendo tais presunções ilidíveis a do nexo causal entre tais actuações omissivas e a situação da verificação da insolvência ou do seu agravamento”. Esclarece-se igualmente no aresto em referência: “Definindo, assim, este preceito legal em que consiste a insolvência culposa, começando por fixar, para o efeito, uma noção geral no seu nº 1. Implica sempre, tal insolvência culposa, uma actuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores, a qual deve ter criado ou agravado a situação de insolvência em que o devedor se encontra. Deixando, contudo, tal actuação de ser atendida – devendo considerar-se as noções de dolo e de culpa grave, na falta de outro critério específico, nos termos gerais de Direito – para o efeito da qualificação da insolvência em análise, se não tiver ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. Estabelecendo, de seguida, em complemento da noção antes fixada, o seu nº 2, presunções inilidíveis, ou seja, presunções absolutas ou jure et de jure, não admitindo prova em contrário (cfr., ainda, art. 350.º, nº 2 do CC). Conduzindo, assim, necessariamente, os comportamentos dos administradores aí referidos – sem prejuízo de se dever atender às circunstâncias próprias da situação de insolvência do devedor – à qualificação da insolvência como culposa.» Aludindo ao Ac. do STJ supra citado, diz o Ac. da RG de 18/10/2018, relatora Maria Luísa Ramos, o qual pode ser consultado in www.dgsi.pt: «Com efeito, como se deduz do preceito legal em referência - artº 186º do CIRE que regulamente a “Insolvência Culposa”, e é cabalmente esclarecido no Ac. STJ citado, apenas nas situações previstas no nº3 do indicado artigo, estabelecendo este presunções ilidíveis, relativas ou juris tantum, que assim podem ser ilididas por prova em contrário, se exige a demonstração do nexo causal entre o comportamento (presumido) gravemente culposo do devedor ou dos seus administradores e o surgimento ou o agravamento da situação de insolvência, não abrangendo esta presunção ilidível a do nexo de causalidade entre tais actuações omissivas e a situação da insolvência verificada ou do seu agravamento, e, já não nas situações previstas no nº2 do artº 186º do CIRE, em que a lei estabelece presunções inilidíveis, ou presunções absolutas ou jure et de jure, que não admitem qualquer prova em contrário, conduzindo, assim, necessariamente, os comportamentos dos administradores referidos nas respectivas alíneas à qualificação da insolvência como culposa. No mesmo sentido v. Luís Alberto Carvalho Fernandes e João Labareda C.I.R.E. Anot., Vol. II, Pags. 14 e 15. “...as previsões deste número 2, consubstanciam presunções jure et de jure de insolvência culposa, portanto em si mesmas definitivas, por não elidíveis”». Como se refere no Ac. da Rel. de Guimarães de 09/04/2019, relatora: Margarida Almeida Fernandes, o qual também pode ser consultado in www.dgsi.pt: «Para facilitar a determinação de uma insolvência culposa o legislador optou estabelecer factos-índice da mesma, de diferente natureza, nos nº 2 e 3 do citado preceito. Da verificação de algum dos factos-índices previstos no nº 2 resulta sempre a insolvência culposa do devedor que não seja pessoa singular. Encontramo-nos nesta sede perante presunções absolutas, iuris et de iure ou inilidíveis (não admitem prova em contrário – art. 350º nº 2 in fine do C.C.), quer da culpa grave, quer do nexo de causalidade entre a conduta e a criação ou agravamento da situação de insolvência. Mas, da verificação dos factos-índices previstos no nº 3 resulta apenas, quanto a nós, uma presunção ilidível da violação, com culpa grave, de obrigações impostas aos administradores do insolvente exigindo-se a subsequente prova do referido nexo de causalidade. Esta tese baseia-se na letra da lei, pois, enquanto no nº 2 se refere “Considera - -se sempre culposa a insolvência” (sublinhado nosso), no nº 3 alude apenas a “Presume-se a existência de culpa grave” inexistindo aqui qualquer presunção quanto à verificação dos demais requisitos previstos no nº 1. A propósito do nº 3 do citado preceito refere-se no Ac. da R.G. de 12/07/2017 (Conceição Bucho), in www.dgsi.pt “este normativo é claro e inequívoco, no sentido de que não admite, com o apoio mínimo no texto da lei que o artigo 9º, nº 2 do Código Civil exige, uma interpretação mais abrangente, que inclua no âmbito da presunção estabelecida no nº 3 do artigo 186º do CIRE também o exigido nexo de causalidade entre a actuação descrita naquele preceito legal e o despoletar da situação de insolvência ou do seu agravamento.” Esta é a posição da jurisprudência largamente maioritária defendida, entre outros, também pelos Ac. do S.T.J. de 06/10/2011 (Serra Baptista), da R.L. de 26/04/2012 (Ezaguy Martins), R.C. de 10/07/2013 (Falcão de Magalhães), R.E. de 08/05/2014 (Francisco Xavier), R.G. de 01/06/2017 (Maria João Matos) e de 11/07/2017 (José Cravo) todos consultáveis no www.dgsi.pt. Cremos que a doutrina maioritária também o defende - vide, entre outros, Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª ed., Quid Juris, p. 680-681; A. Soveral Martins, in Um Curso de Direito da Insolvência, 2016 – 2ª ed. ver. e actual., Almedina, p. 423.» Após a alteração introduzida pela Lei nº 9/2022, de 11/01, ficou claro que as situações tipificadas no nº 3 do artº 186º do CIRE constituem meras presunções de culpa grave, sem presunção de causalidade quanto à situação de insolvência. Todavia, não é isto que se verifica, como se viu, relativamente às situações elencadas no nº 2 do mesmo normativo, o qual dispõe, no que ora releva: “2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham: (…) d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros; (…) f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto. (…) h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor; (…)” Para o efeito da alínea d) do nº 2 deste preceito legal, tem-se entendido que os comportamentos ali previstos tanto são aqueles que têm por efeito a saída dos bens do património do devedor – por exemplo venda ou a doação dos bens -, como os que, embora não implicando necessariamente a saída dos bens do património do devedor, retiram-lhe, no entanto, a disponibilidade, colocando-os na disponibilidade de outrem. Exige ainda o legislador que o acto de disposição seja feito em proveito pessoal “dos administradores ou de terceiros”. É que “Como é por demais consabido, o processo de insolvência liquidatário traduz-se em processo de execução universal e concursal, que tem como finalidade primeira a satisfação dos interesses patrimoniais dos credores através da liquidação do património para afetação do respetivo produto na satisfação dos direitos dos credores. Execução universal porque, conforme definição de massa insolvente que consta do art. 46º do CIRE, com exceção dos bens isentos de penhora, abrange todo o património do devedor à data da declaração da insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo. Concursal porque, conforme arts. 90º, 128º e 146º do CIRE, visando a liquidação do passivo global do devedor, procede-se para o efeito à citação de todos os credores do devedor para concorrerem ao produto que resulte da liquidação dos bens que integram o património do devedor, na medida das forças deste e em função da hierarquia/graduação dos créditos de acordo com a respetiva natureza. Para cumprimento daquele fim a declaração da insolvência do devedor determina a apreensão material de todos os bens que integram a massa insolvente, incluindo o produto da venda desses bens, ainda que arrestados, penhorados, apreendidos ou por qualquer outra forma detidos (cfr. arts. 46º, 149º, 150º, 81º, nº 1, 55º, nº 1 e 158º do CIRE). A preocupação do legislador em salvaguardar a garantia patrimonial dos credores e o cumprimento da universalidade da insolvência liquidatária vai ao ponto de dotar o AI do poder-dever de proceder à resolução extrajudicial de negócios para recuperação das atribuições patrimoniais que, nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência foram concedidas com prejuízo para o património do devedor e, assim, com prejuízo das garantias patrimoniais dos respetivos credores (cfr. arts. 120º e ss. do CIRE). Subjacente à tutela legal visada cumprir com os institutos da qualificação da insolvência e da resolução de atos de caráter patrimonial pelo AI (este com efeito directo sobre a massa insolvente) estão dois princípios estruturante do processo falimentar: a garantia patrimonial dos bens e direitos dos credores dada pelo património do devedor, e a satisfação igualitária dos direitos dos credores. É também em benefício da preservação desta garantia patrimonial e da melhor e mais rápida satisfação dos direitos dos credores que o legislador previu a obrigação específica de o devedor se apresentar à insolvência nos 30 dias seguintes à data do seu conhecimento, presumindo-o de forma inilidível decorridos três meses sobre o incumprimento generalizado de créditos fiscais, contribuições sociais, créditos laborais, ou rendas de qualquer tipo de locação (cfr. arts. 18º e 20º, al. g) do CIRE), impondo o cumprimento da liquidação/venda dos bens do insolvente no âmbito do processo de insolvência para controlo da legalidade do mesmo e da afetação legal devida do produto que dela resulte. No contexto destes princípios e finalidade, a qualificativa prevista pela al. d), tal como as previstas pelas als. e), f) e g), assumem uma função de pré-proteção dos credores do devedor em situação de insolvência atual ou iminente, sancionando condutas suscetíveis de em abstrato lesar o património e prejudicar a solvabilidade do devedor, independentemente da verificação do perigo concreto de conduzirem a essa situação. Exige ‘apenas’ que de qualquer um dos atos ali previstos resulte benefício para o administrador que o praticou ou para terceiro especialmente relacionado com o devedor nos termos taxativamente previstos pelo art. 49º, enquanto manifestação sintomática da violação do específico dever de fidelidade a que o administrador está vinculado na gestão do património que lhe está confiado e, assim, daquele perigo (abstrato) de lesão do património e da solvabilidade do respetivo titular. É por referência a estes princípios – da garantia patrimonial e de tratamento igualitário dos credores sociais - que se impõe entender o alcance dos elementos normativos ‘disposto de bens’ e ‘proveito pessoal ou de terceiros’ que integram o facto qualificador da insolvência previsto pela al. d)” – cfr Ac TRL de 02/10/2023, Proc. nº 1941-13.0TYLSB-A.L1, relatora Amélia Sofia Rebelo, subscrito pela ora relatora enquanto 2ª adjunta e que pode ser consultado também in www.dgsi.pt. A acção de insolvência foi instaurada em 20-01-2020. Ficou demonstrado que: 8) A insolvente era proprietária de um veículo comercial marca Mercedes Benz com a matrícula …, com um valor não inferior a €7.500,00. 9) Em 28 de Novembro de 2019 o requerido transferiu a propriedade do veículo para a sociedade “E…, Lda.” pelo valor de €6.500,00. 10) A transacção não foi facturada pela insolvente à adquirente do veículo e não existem reportes contabilísticos que comprovem a entrada nas contas da insolvente do preço referido em 9). 11) O contrato de compra e venda do veículo foi resolvido pelo Sr. Administrador da Insolvência em 22 de Julho de 2020, tendo sido o veículo recuperado para a massa insolvente e tem actualmente o valor de €1.000,00. Interpretada com o sentido e o alcance acabados de expor, a alínea d) compreende a transmissão da propriedade de um bem, da qual resulte proveito apenas para os administradores (de direito ou de facto) ou para um terceiro. Tendo ficado demonstrando que a insolvente era proprietária de um veículo comercial com um valor não inferior a €7.500,00, que, em 28 de Novembro de 2019, o requerido transferiu a propriedade do mesmo para outra sociedade pelo valor de € 6.500,00 e ainda que a transacção não foi facturada pela insolvente à adquirente do veículo e que não existem reportes contabilísticos que comprovem a entrada nas contas daquela, verifica-se a disposição dos bens da sociedade insolvente em proveito pessoal ou de terceiro, porque não lhe correspondeu a entrada de qualquer bem no património da transmitente, nem a diminuição do respectivo passivo. A circunstância de o administrador da massa ter procedido à resolução da transmissão não prejudica a aplicação da alínea d). Como se escreveu no acórdão do STJ proferido em 15-02-2018, no processo n.º 7353/15.4T8VNG-A, o qual pode ser consultado in www.dgsi.pt: “Trata-se de uma circunstância subsequente aos comportamentos que aqui estão sob escrutínio, que em nada contende com o anterior ato de disposição do bem em proveito do terceiro. Apenas sucede que se tratou de um ato de disposição em proveito de terceiro que acabou mal sucedido, mas isto não tem a virtualidade de apagar o comportamento culposo anterior”. Acresce que o veículo tem actualmente um valor muito inferior ao que tinha quando foi alienado pelo requerido. Na alínea f) está em causa o uso do crédito ou de bens de uma pessoa colectiva, não no interesse desta, mas em proveito dos administradores ou de terceiros. In casu, não está em causa nenhum concreto uso dado ao veículo automóvel pelo ora recorrente, enquanto gerente da sociedade I…, Lda. Está em questão a transmissão do direito de propriedade sobre tal veículo, o que se enquadra, como se viu, no disposto na alínea d) e não na alínea f). No que se refere à alínea h) e conforme se referiu no Ac. da RL de 25/01/2022, relatora: Fátima Reis Silva e subscrito pela ora relatora na qualidade de 2ª adjunta, acórdão esse proferido no Proc. 15973/18.9T8SNT-A.L1 e ao que sabemos, não publicado: “As condutas das alíneas h) e i) do nº2 do art. 186º são de uma gravidade muito superior às previstas no nº3, e radicam em fundamentos de diverso grau. As condutas da al. h), que se analisam, sinteticamente em não manutenção de contabilidade, contabilidade dupla ou fictícia e irregularidades graves na contabilidade, prejudicam a compreensão da situação do devedor a terceiros e aos que com ele interagem possibilitando, por exemplo, a manutenção no mercado, de empresas zombie, a continuação da concessão de crédito sem qualquer hipótese real de recuperação, entre muitas outras consequências – ou seja, são de molde a presumir que se lhe segue a impossibilidade total do cumprimento de obrigações vencidas”. Esta alínea do nº2 do art. 186º do CIRE compreende três situações distintas: a) Incumprir, em termos substanciais, a obrigação de manter contabilidade organizada, ou b) manter uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade; ou c) praticar irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor. O prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor apenas é exigível no terceiro grupo de casos, dado que nestes há contabilidade, que não se encontra falseada, mas que tem irregularidades. As irregularidades podem ser mais ou menos graves e prejudicar ou não a compreensão da situação do devedor. Está demonstrado que não foram entregues pelo requerido os documentos de suporte à contabilidade ao respectivo contabilista responsável pela contabilidade da sociedade Insolvente referentes aos o pagamento de trabalhos que foram efectuados, em nome da Sociedade I…, Lda. Invocou o requerido na oposição que apresentou que a quantia de € 24.149,67 foi utilizada para efectuar o pagamento de trabalhos realizados, “em nome da sociedade I…, Lda, sem que as pessoas tivessem disponibilizado qualquer recibo”. Atento o declarado pelo mesmo, seria este o valor em falta na contabilidade, correspondente aos trabalhos efectuados por conta da devedora. Ficou ainda provado, como já supra ficou referido, que o requerido transferiu a propriedade do veículo de matrícula …, com um valor não inferior a € 7.500,00, para a sociedade “E…, Lda”, pelo valor de € 6.500,00. Esta transacção também não foi facturada pela insolvente à adquirente do veículo e não existem reportes contabilísticos que comprovem a entrada nas contas da insolvente do preço referido. Manter a contabilidade organizada é uma obrigação permanente que segue as regras do Sistema de Normalização Contabilística aprovado pelo Decreto-Lei n.º 158/2009 de 13/07 (rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 67-B/2009 de 11/09), obrigatório para as sociedades comerciais (cfr. art. 3º, nº1, al. a) do referido Decreto-Lei). Culmina com a obrigação anual de prestação de contas prevista no aludido art. 65º do CSC e pressupõe a organização diária e regularidade de todas as tarefas. Tal obrigação decorre ainda do estatuído nos artigos 1º e 17º, nº 3 do Código do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas e, para efeitos fiscais, destina-se a permitir a determinação e controlo do lucro tributável das pessoas colectivas. A contabilidade deve estar organizada de acordo com a normalização contabilística e reflectir todas as operações realizadas pelo sujeito passivo através do lançamento dos respectivos documentos de suporte nas contas a que respeitam, de modo a permitir, no final de cada exercício, o apuramento dos saldos de cada rubrica e a elaboração do balanço que integra as demonstrações financeiras do exercício a apresentar em sede de prestação e depósito de contas. Pretende-se que a contabilidade proporcione informação acerca da real posição financeira e dos resultados das operações da empresa, informações que são úteis aos investidores, fornecedores e trabalhadores, mas imprescindíveis também aos próprios administradores e aos credores. Encontra-se, assim, também preenchido o previsto na aludida alínea h) do nº 2 do artº 186º. Os actos supra referidos foram praticados no período relevante para efeitos de qualificação da insolvência e foram, inclusivamente, levados a cabo pelo requerido, sendo irrelevante para o efeito que a sociedade devedora já apresentasse uma situação deficitária no período em que a gerência foi exercida pelo pai do apelante. Sustentou ainda este que não foi considerado na sentença que foi proferido despacho de arquivamento do inquérito nos autos de processo crime instaurados contra o requerido/apelante, na sequência de queixa apresentada pela sociedade F…, - Comércio de Frutas, Lda, por factos susceptíveis de integrar a prática de um crime de insolvência dolosa, p. e p. pelo artº 227º, nº1, do Código Penal. Foi junta aos autos em 24 de Outubro de 2023 certidão do despacho de arquivamento referido, que determinou o arquivamento dos autos nos termos do disposto no artº 277º, nº2, do C.P.P., bem como da decisão do Sr. Procurador da República Dirigente que indeferiu a reclamação hierárquica deduzida pela assistente e manteve o despacho de arquivamento. Estabelece o artº 185º do CIRE: “A insolvência é qualificada como culposa ou fortuita, mas a qualificação atribuída não é vinculativa para efeitos da decisão de causas penais, nem das ações a que se reporta o nº 2 do artigo 82º”. Referem Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, in ob. cit., pág. 678, em anotação a este mesmo artigo, que a qualificação atribuída à insolvência no incidente previsto no CIRE “não releva no plano da decisão de causas penais em que o insolvente seja arguido. Daqui resulta que o tribunal competente para decidir essas causas pode atribuir à insolvência uma qualificação diferente da fixada nestes incidentes do processo de insolvência. Mas resulta também que a eficácia da qualificação se reduz a este processo e, mesmo assim, em termos limitados. Com efeito, por força do artº 185º, ela não releva para as ações previstas nas alíneas do nº 2 do artº 82º…”. Luísa Teixeira da Mota, na tese de Mestrado sob a orientação do Professor Doutor Germano Marques da Silva, Março de 2013, Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Direito, intitulada “A insolvência culposa no C.I.R.E. e a insolvência dolosa no Código Penal”, consultável in https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/14920/1/201259184.pdf, pag. 34 e ss, diz que a exigência do legislador não é a mesma em relação às duas figuras: “… enquanto para a consumação do crime de insolvência dolosa é necessário que o agente tenha actuado com dolo, a insolvência culposa basta-se com culpa grave. A figura criminal é, naturalmente, mais rígida do que a figura prevista no C.I.R.E. Podemos dizer que as duas figuras se tocam relativamente ao dolo, já quanto à culpa grave a mesma só é relevante no âmbito da figura da insolvência culposa…” e após confrontar os actos cuja prática leva à qualificação da insolvência como culposa, com os actos que consubstanciam o crime de insolvência dolosa, conclui que: “… temos no Código da Insolvência condutas que levam, inexoravelmente, à qualificação da insolvência como culposa, porém, e ao contrário das que acima referimos, não integram o crime de insolvência dolosa. Assim, a disposição dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros – prevista na alínea d) do nº 2 do 186º; o exercício, a coberto da personalidade colectiva da empresa se for o caso, de uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa – prevista na alínea e); o uso contrário ao interesse do devedor do seu crédito ou dos seus bens, em proveito pessoal ou de terceiros designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto – prevista na alínea f); o prosseguimento, no seu interesse pessoal ou de terceiro, de uma exploração deficitária, não obstante saberem que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência – prevista na alínea g); e o incumprimento de forma reiterada dos deveres de apresentação e de colaboração até à data de elaboração do parecer referido no nº 2 do artigo 188º - previsto na alínea i); não constituem crime sendo, todavia, condutas cuja verificação leva automaticamente, à qualificação da insolvência como culposa.” Acresce que o despacho de arquivamento do inquérito é da exclusiva competência do Ministério Público, tratando-se de decisão não jurisdicional e, consequentemente, não é susceptível de caso julgado. Assim e como se explicitou supra, tendo-se provado factos que se subsumem nas alíneas d) e h) do citado n.º 2 do art.º 186º, esses factos, por si, integram presunção iuris et de iure de insolvência culposa e, ao contrário do que acontece com o n.º 3 do art.º 186º, o n.º 2 deste artigo, não se presume apenas a existência de culpa, mas também a existência de nexo de causalidade entre a actuação do devedor e a criação ou agravamento do estado de insolvência. Assim, contrariamente ao invocado pelo apelante, a insolvência não pode deixar de ser qualificada como culposa e o mesmo, enquanto gerente, afectado pela qualificação. Dado que apenas estes segmentos do decisório constituem o objecto do recurso, tem este que ser julgado improcedente, cumprindo apenas referir que, não obstante se ter concluído apenas pela qualificação nos termos das duas alíneas supra referidas e não também pela alínea f) do mesmo nº 2 do artº 186º como entendeu o tribunal a quo, tendo sido decretada a inibição do requerido nos termos do artº 189º do CIRE por período muito perto do mínimo aí previsto – dois anos e seis meses -, nada há a alterar no que a tal concerne. * IV-Decisão Em face do exposto acordam as juízas na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar o recurso improcedente, mantendo a sentença recorrida. Custas: pelo apelante. Registe e Notifique. Lisboa, 04/06/2024 Manuela Espadaneira Lopes Renata Linhares de Castro Fátima Reis Silva |